Amor de Salvação - 06

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minha alma lhe exoro perdão d'este odio. Se me doe o coração saudoso
d'ella, abomino-me, e recurvo sobre mim proprio as unhas d'esta feroz
paixão.
«A fugir de mim mesmo, ia abrigar-me sob os olhos de Mafalda. Ella via
nos meus olhares a submissão imploradora, e não entendia a covarde
procedencia d'aquelle fital-a com tanta brandura. Apreciou-me
erradamente. Teve-se em conta de amada. E, quando eu mais atormentado
pelejava com a visão de Lessa e da lamêda das Caldas, Mafalda rehavia do
céo os jubilos de outros dias, e a purpura do rosto. A compadecida
amargura, com que eu a fitava, afigurava-se á ingenua menina a expressão
do amor contemplativo, como ella o sentira e escondera sempre de todos,
salvo de seu pae.
«Minha mãe, a occultas da sobrinha, perguntava-me a respeito d'ella
cousas, cujo fito estava posto no casamento. Eu respondia a verdade,
como se Deus necessitasse interrogar a minha consciencia. Mostrava
receios de ter desbaratado as flôres do coração, ao apuro de não ter já
virtudes que me fizessem um digno esposo d'ella. Minha mãe não podia
entender-me; obrigava-me suavemente a explicações, e, ouvindo-me, dizia
soluçante: «Não se quebrou ainda o fatal encantamento!... Deus te salve,
meu desgraçado filho!»
«A quarenta passos de distancia de minha casa está uma cruz de pedra
tosca, sobre uma peanha de cantaria. A esta cruz se referia Theodora, na
carta que lêste. Quando ella tinha seis annos, esteve com sua mãe uma
temporada em nossa casa, e voltou alli aos nove. Algumas vezes nossas
mães se sentaram nos degraus do cruzeiro, em quanto nós, com vergonteas
floridas de acacias e arvores de fructa, teciamos uns desageitados
festões que dependuravamos dos braços da cruz.
«Levou-me para lá o coração dez annos depois. Sentei-me na peanha da
cruz. Acaso relanceei os olhos pela pedra, que lhe formava o sôcco, e vi
letras. Reparei, e reconheci os caracteres de Theodora. Eram duas datas:
_5 de Julho de 1848_, com a assignatura inicial _T. P._ Seguia-se a
outra, em letras mais de fresco: _10 de Setembro de 1849_, com as mesmas
iniciaes, e as seguintes palavras: _Aqui veio orar a alma penada._ Eu
estava então em 15 de Setembro d'aquelle anno. Cinco dias antes, pois,
alli tinha estado Theodora.
«Recolhi-me com febre. Á celestial graça de Mafalda, que me sahiu ao
tope da escada, respondi com uma affectuosidade falsa. Importunava-me o
anjo. Eu queria então uma orgia infernal. Queria arder e palpitar no
deleite sequioso, que zomba dos deveres, e insulta o espantalho da
moral, impassivel carrasco das organisações ardentes. O aspecto mavioso
de Mafalda era uma lança que me traspassava. Fugi-lhe, e, por alguns
dias, raras horas nos encontramos.
«Voltei novamente ao cruzeiro. Do braço esquerdo da cruz pendia uma
corôa de flôres do campo; e, na base, inscripta outra data: _20 de
Setembro de 1849--Meia noite--O sol de amanhã queimará as flôres; mas o
braço da cruz redemptora permanecerá aberto para os desgraçados. T. P._
«Eu queria esconder de minha mãe estas inscripções, feitas a lapis.
Embebi um lenço em agua, e desfil-as. Hei-de agora confessar-te que a
pertinacia de Theodora, por algumas horas, me pareceu ridicula.
--Tambem a mim me está parecendo isso, ainda agora--observei eu, animado
pela confissão da pessoa, menos idonea para embicar no irrisorio
romanticismo da esposa de Eleuterio Romão dos Santos.
«Mas, proseguiu Affonso de Teive--esta judiciosa critica, no dia
seguinte, converteu-se em piedade...
--Em amor--atalhei.
«Amor, sim, amor indomavel, amor faminto de vêl-a e de ouvil-a, de
chorar com ella, de arrebatal-a ao marido, e insultar a sociedade e Deus
na posse d'ella.
«Esporeava-me este designio, quando entrei em casa. Minha prima estava
na primeira sala. Ergueu-se. Tomou-me com brandura a mão, levou-a ao
coração arquejante, e disse-me:--_Os braços da cruz redemptora estão
sempre abertos para os desgraçados._ As palavras, embora escriptas por
mão criminosa, são santas. Meu pobre Affonso, já que ella te deu a
desgraça, aceita-lhe tambem o conselho.--Beijou-me a palma da mão, e
sahiu da sala.
«Mafalda tinha visto, primeiro que eu, as palavras de Theodora.
Comprehendera o mysterio, resistira ao impeto de as tirar, e, desde
aquella hora, promettera a Deus exercitar todos os recursos de seu
coração para me acautelar das cavillações da mulher ardilosa.
«Que poderia fazer a simples creatura? O infinito das forças humanas fez
ella em meu resgate; mas muito já por noite dentro de minha vida lhe
havia de conceder o céo um pleno dominio em minha razão.
«Logo, ao outro dia, Mafalda pediu-me que sahisse com ella a um passeio
longe por esses pinhaes fóra até ao mosteiro de Landim.
«Sosinhos?--lhe perguntei--Por que não! sosinhos, com os nossos anjos da
guarda, e o coração de tua mãe comnosco, meu querido Affonso.
«Sahimos. Mafalda ia taciturna. De encontro ao meu braço direito
batia-lhe o coração com celeridade irregular. E eu sentia um enleio, uma
constricção de alma, que não atinava com os termos communs d'uma
palestra entre dous primos. No alto d'um sêrro, d'onde haviamos de
descer para umas veigas, Mafalda sentou-se, e abrangeu com os olhos
lagrimosos a redondeza dos horisontes. Perguntei-lhe que razão tinha
para chorar. Respondeu-me que a mortificava a idéa de me vêr ir talvez
para sempre do lado de minha mãe e dos parentes que me estremeciam.
«Quem te disse que eu deixo minha mãe e parentes?--redargui--Dizes-m'o
tu, se eu t'o perguntar com as mãos postas--respondeu ella, pondo as
mãos em supplica.
«Tartamudiei confusamente. As minhas palavras vinham falsificadas do
espirito. Aqueceram-se-me as faces, porque eu não estava afeito a
mentir. O coração teve quinhão d'este pejo: a meiga creatura, que me
interrogava, tinha uns ares de divinisação, que me incutiam uma especie
de escrupulo religioso.
«--Vejo que te afflijo, meu primo--interrompeu Mafalda--És ainda bom,
que não podes mentir á tua amiga. Queres ir ao teu destino... Vai,
mas... escuta-me...
«Seguiu-se um longo silencio, que ella mesma interrompeu, exclamando, em
pranto desfeito:--Não posso!... A Virgem do céo não ouviu os meus
rogos!...
«Acariciei-a com o melindre de irmão, instando-a a que fallasse.
Articulou ainda algumas palavras desatadas, faceis, porém, de se ligarem
em meu espirito prevenido. Atalhei-a muito commovido, n'estes termos:
«Deves ter directo instincto do céo, minha prima, por que a tua alma
virginal é pura de toda a falsidade, e não póde ser enganada. Sabes que
eu vou fugir, sem eu ter annunciado a nossa mãe este novo golpe. Fujo,
minha irmã, por que entre a tua celestial dedicação e as minhas
desvairadas paixões está o infinito. Tu és a creatura que ainda não
sonhou o mal, sedenta d'uma alma cheia das crenças da juventude. Vês a
minha vida, posta em assedio pelas tentativas da mulher unica do meu
amor, da mulher perdida para mim e para si propria perdida... observas
isto com teus olhos inexperientes, e pasmas do poder infernal d'esta
mulher. Oh! que Deus te livre de ainda veres o mundo, despido das vestes
que a tua candura lhe empresta! Deus te poupe a debruçares-te sobre o
abysmo d'onde se tira a luz, ao clarão da qual se observam as chagas da
sociedade. Esconde-te de mim, e de todo homem que viu o mundo;
esconde-te, anjo do paraiso, para que nenhum homem te diga o que viu. Eu
não sei como ousaria contar-te as minhas desventuras, Mafalda. A tua
linguagem perdi-a, quando sahi d'estas florestas, onde nós nos
entendiamos como as avesinhas do céo se entendem. Que hei-de eu dizer-te
hoje? Com que termos te mostrarei a minha indignidade!
«Mafalda poz-me com muita suavidade a mão na bocca, e disse:--Não digas
mais nada, meu irmão, que já disseste tudo... _A mulher unica do teu
amor_... _a mulher unica do teu amor_ é... ella!...--Os soluços
embargaram-lhe a voz. Falleceram-me a mim espiritos com que tentasse
consolal-a. Todas as palavras, sem vehemencia de dentro, seriam pallidas
e vans. Mentir, bem que eu podesse, de que serviria?... O meu silencio
era angustioso. Recriminava-me por me ter exposto áquelle dialogo...»
«Com satisfação a vi erguer-se, e dizer-me:--Voltemos, primo?... Vamos
para casa. Não percas instantes da companhia de tua mãe. Vamos...»
«N'este momento, á raiz da serra, onde ia a estrada de Landim, passava
uma mulher cavalgando a galope. Ia sósinha. Eu não a tinha visto ainda,
quando Mafalda, apontando-a com o braço tremulo disse:--_A mulher unica
do teu amor_...
«N'este instante, esqueci o anjo, que me estava alli chorando, não sei
mesmo se desejei que Deus o chamasse para a sua patria; e adorei o
demonio, que passava lá em baixo, com o véo esvoaçante, por entre nuvens
de pó, sacudidas das patas do arremessado cavallo.

XII
Cerravam-se cada dia mais espessas as trevas em volta do perplexo animo
de Affonso de Teive. A obsessão de Theodora não lhe dava treguas. Nas
circumvisinhanças de Ruivães já se fazia reparada a amazona, umas vezes
sósinha, outras seguida do lacaio, e algumas vezes ao lado do marido, a
quem ella não prestava mais attenção que ao lacaio. Affonso, em quanto a
mim, resistindo á tentação, iniciava-se para consociar-se no reino
celestial com os santos da sua familia, mortos sob o estandarte da cruz;
mas, a juizo de muita gente, muito menos benemeritos da auréola da
santidade. Morrer com o céo a abrir-se além no horisonte, ouvindo já os
hymnos dos anjos, é glorioso e exultante; porém, morrer gotejando em
lagrimas o sangue do coração, sem visões bemaventuradas, sem estimulo de
predestinado, morrer do amor de uma mulher que se arrasta submissa aos
pés do triumphador que a despreza e adora... sublime extravagancia, se
querem que lhe eu não chame santissimo martyrio!
A mãe do lastimavel moço, antes de avisada da intentada partida d'elle,
resolveu impôr-lhe o seu arbitrio de mãe com severidade. Informada por
Fernão de Teive, sabia que Theodora fazia miudas investidas ás
redondezas de Ruivães, e que Affonso não era estranho, bem que a não
houvesse encontrado, aos planos da impudente mulher. A palavra
«adulterio», no espirito de D. Eulalia, tinha uma significação de
horror, como se o crime não tivesse exemplo na humanidade, nem remorso
que o contrapesasse na balança da misericordia divina. O pavor de que um
filho seu, um descendente de santos, e, pelo menos honrados varões,
podesse dar ao mundo o escandalo de tamanha perversidade, accendeu-a em
louvavel indignação. Inesperadamente é chamado Affonso ao quarto de sua
mãe para ouvir estas pesadas e seccas palavras:
--Eu preciso de morrer em paz com o mundo, que nunca escandalisei, penso
eu, e Deus me perdôe se a minha vaidade me faz esquecer as culpas. Em
quanto viva, peço-te, como amiga, se não devo antes ordenar-te como mãe,
que me poupes á vergonha de esconder a face, quando me pedirem contas
dos sentimentos de religião e honra que te insinuei na alma. Temo que me
perguntem que fiz eu da herança, que teu pae fiou de mim para te eu ir
entregando, assim que tivesses razão para recebel-a... herança de
virtude e probidade que tu levas em principio de desbarate. Mando-te que
te retires para longe d'esta terra. Vai para Lisboa, se te agrada; ou
vai viajar, se antes queres. É bom que saibas os cabedaes que tens. A
tua casa rende seis mil cruzados: conta com elles, e com o valor das
propriedades, se, para salvação de tua honra, precisares que ellas se
vendam. Não voltes para mim sem me poderes jurar, pelas cinzas de teu
pae, que a lembrança peccaminosa de Theodora morreu em teu coração. Deus
Nosso Senhor te abençôe, filho. A minha ultima oração será rogar ao
Creador que restitua á casa onde as gerações legaram umas ás outras a
tradição de grandes serviços a Deus ligados a grandes serviços á patria:
religião, honra, e trabalho, o nobre trabalho da espada de uns, e da
sciencia d'outros. Tu sahes da trilha de teus avós, consumindo tua
mocidade em dissabores de que ninguem, senão eu, póde compadecer-se.
Vai. Se poderes, sê forte, sê homem. Se a ultima fraqueza te levar ao
ultimo crime, guarda ao menos uma parte da alma para a contrição no
remate da vida.
Nunca, até áquella hora, Affonso vira e ouvira assim sua mãe. Mesmo na
admoestação, denotára sempre o pesar com que o fazia; e para o compensar
da magoa, acudia logo com as caricias. Por causa de Theodora, as
reprehensões eram sempre disfarçadas na grave mas dôce persuasão do
conselho. Querer afastal-o de si, nem por sombra de palavra o indicára
nunca. E agora, no semblante, na rigidez da phrase, na postura do rosto,
e arrugado da testa, Affonso achou tanta mudança para espantar-se como
affligir-se.
Ia elle responder, e ella, para logo, d'um gesto de silencio, o fez
calar, dizendo:
--Não te quero ouvir: Deus que te ouça; mas vai. Cá fico eu velando os
dias d'esta menina, que teve a desventura de te amar. Consolar-nos-hemos
eu e ella, orando por ti. Ámanhã partirás. Tua mãe ordena.
Affonso, ao despedir-se de sua mãe, teve a intuição de que a não veria
mais. A maior agonia da sua vida, até áquelle momento, foi essa.
Ajoelhou-se a beijar-lhe as mãos, que molhou de lagrimas. E ella
abençoou-o serenamente, com os olhos no crucifixo do seu oratorio. Ao
lado d'elles, estava Mafalda, livida, hirta, tranzida d'um frio, que a
fazia tiritar. Não chorava. Podia comparar-se a sua atribulação á da mãe
que tambem tinha enxutos os olhos. Porém, quando Affonso lhe estendeu a
mão, e disse: «adeus!» ella, arrancou do intimo um cortante grito, e
lançou-se nos braços d'elle, debulhada em pranto.

XIII
Foi Affonso de Teive para Lisboa. Como ia desgostoso e intratavel,
rejeitou a aposentadoria em casa do tio desembargador. Mobilou casa no
bairro de Buenos-Ayres, na menos frequentada das ruas. Desligou-se do
trato das relações adquiridas em casa do magistrado, e evitou novos
conhecimentos. Vestiu de livros as paredes do seu gabinete, propondo-se
o recreio do estudo, e o trabalho mesmo da composição, sem o intento de
fazer-se conhecido no mundo litterario. Em quanto o espirito se lhe
entreteve nos apetrechos de casa e aconchegos de quem tencionava viver
n'ella os dias e as noites, curtos intervallos de magoa o assoberbaram;
assim, porém, que o bulicio cessou, e os tapetes das elegantes salas não
davam rumor de um passo, e Affonso, sentado á sua banca de estudo, ouvia
apenas as cadencias do pendulo do relogio, condensaram-se-lhe em volta
do espirito as nuvens torvas, que se haviam rarefeito, bafejadas pela
aragem da esperança, e nunca tão compressora o sopesou a mão da
tristeza. Os livros atediavam-no; o escrever acendia-lhe o espirito a um
grau penoso de excitação. Todos os seus manuscriptos fragmentarios ou
desatados, que eu vi treze annos volvidos, accusavam uma obstinada
paixão da qual o poeta hauria argumentos contra a Providencia que o
desamparára, na batalha comsigo mesmo.
Aos vinte e dous annos, aceitar longo tempo e voluntariamente um jugo de
vida assim, é virtude imaginaria. Para outras civilisações, lá estava o
deserto do anachoreta, e a Palestina do cruzado: um e outro se deixavam
devorar das angustias do ermo, ou cortar do ferro islamita; e lá iam
encontrar-se no céo, a cobrarem o seu patrimonio de alegrias infindas,
ganhado a troco d'uma hora de orgulho satisfeito--que mais não é o
contentamento d'esta breve fugida que fazemos do ventre á sepultura.
N'estes tempos, porém, a tanta luz, a tanto estrondo, em tamanho
desentranhar-se a terra em novos enfeites de si propria, agora que o céo
se deixa contemplar, já não como paragem de futuras vidas, senão como
estrellado involtorio d'este globo cujas delicias nos foram dadas em
desconto do breve tempo que as saboreamos; agora, em summa, que o viver
sem gozar é um triste, senão estupido, preludio da morte, em redor da
sepultura, que loucura é esta de Affonso de Teive que não rompe mundo a
dentro, com seis mil cruzados de renda, vinte e dous annos, bizarria de
fidalgo, e physionomia dotada de graças attractivas de todos os olhos?
Era necessario que a sociedade culta delegasse um dos seus ornamentos a
intimar Affonso de Teive para comparecer, réo de lesa-illustração, á
barra do seculo XIX. O enviado, escolhido a ponto, foi, como por acaso,
encontrar Affonso na matta da Penha-Verde em Cintra, onde o tinham
chamado saudades das suas arvores de Ruivães.
D. José de Noronha, sugeito de trinta annos, filho segundo d'uma casa
titular de Lisboa, cursára alguns estudos da Universidade, contemporaneo
de Affonso. Pertencia á tribu dos _trossistas_, e gozava as honras de
caudilho nos disturbios, e maiores honras ainda de primeiro estomago em
digestão de vinho. Contava-se que D. José de Noronha bebia por um pipo
de almude, quando não tinha á mão o alguidar, taça ordinaria das suas
libações. Este facto, presenciado com assombro e inveja, avantajou-o em
consideração aos socios da taberna, e conferiu-lhe voto deliberativo em
todas as barganterias nocturnas. Affonso de Teive, algum tempo associado
aos tonantes, declinou da sua estima o illustre companheiro, indistincto
dos outros em sua opinião. Separados pela mudança de costumes, raras
vezes se viam, e mais raras se tratavam. D. José cognominava de renegado
o fugitivo socio, e divulgava que o miseravel nunca bebera uma garrafa
de genebra, sem se embriagar. Equivalia esta denuncia a uma grave
deshonra.
Abandonada a carreira dos estudos, por força de successivas reprovações,
D. José foi para a familia, que o recebeu sem espanto do mau exito, nem
mesmo pesar. O fidalgo libertino tinha bom patrimonio materno, e um pae,
cujo desregramento de vida absolvia os desatinos do filho. A sociedade
recebeu-o prazenteiramente, deu-lhe a primeira linha na cohorte dos
elegantes, e victoriou-o com alguns tropheus de conquistas, comminadas
no codigo penal, e gloriosas nos salões. D. José absteve-se da ebriedade
em publico, é isso verdade; mas indemnisou-se em vicios, que seriam
muito mais nocivos á humanidade, se as maiorias compartissem dos
ultrages afflictivos, que vão na intimidade obscura, e mesmo na publica
exposição das familias. Não vem isto para dizer que todas as familias
ultrajadas se afflijam. Em Lisboa, principalmente, as excepções são
tantas, que suaria o topete quem quizesse achar a regra. Lá, haveis de
encontrar muito d'uma cousa chamada «philosophia», sciencia, que foi
necessario inventar-se, á medida que umas certas virtudes de portas a
dentro deram em saltar pelas janellas, e voar por ahi fóra, não sei para
onde, naturalmente para a India, onde as viuvas se queimam em
demonstração de fidelidade aos maridos defunctos. Ha-de ser isso.
Affonso de Teive reconheceu D. José, que sahiu d'um rancho de senhoras a
comprimental-o. Eram cousas diversissimas vêl-o em Coimbra, ou alli em
Cintra ao lado das senhoras _da primeira distincção_, como lá se diz, e
quasi sempre em rigorosa verdade, omittindo-se a qualidade distinctiva.
O menos preço em que o fidalgo do Minho tivera o de Lisboa,
desvaneceu-se logo. A compostura, o trajo, a seriedade, os ademanes,
aquillo tudo, digamol-o assim, aromatizado do palacio e côrte, demudou a
má opinião de Affonso em estima attenciosa e quasi amigavel.
Em breves termos, se disseram mutuamente as suas residencias,
convencionando-se logo em se encontrarem e conviverem a miudo. D. José
de Noronha, como da terra, foi o primeiro a visitar Affonso.
Frequentaram-se assiduamente, e chegaram a termos de se hospedarem á
vez, e ás temporadas de tres dias, nas casas um do outro.
Claro é: Affonso contou suas penas, com sincera expansão, ao amigo. Era
o primeiro estranho a ouvir-lh'as. Mostrou-lhe as cartas de Theodora,
encarecendo-lhe a belleza, superior mesmo ao genio revelado na escripta.
Nada menos que genio o meu pobre Affonso descobrira nas cartas da esposa
de Eleuterio Romão. D. José de Noronha, por sua parte, passava do
espanto ao assombro a cada periodo interrogativo da famosa missiva, que
me fez rir e chorar--caso unico na minha vida extraordinaria.
--E tu podeste, Affonso--disse D. José--podeste resistir a esta
mulher?!... És aleijado, ou tens peito de rocha, ou cheiras a santo!
Abre-me bem os refolhos do teu espirito. Esclarece-me este phenomeno. É
certo que nunca respondeste a esta mulher, nem a procuraste?
--É certo--respondeu Affonso, quasi envergonhado da confissão.
--Ó pobre Joseph! ó mallograda Hiempsal! Conheces bem a Hiempsal... a
esposa do ministro de Pharaó! Quantas capas tencionas assim deixar em
lindas mãos?... Ai de ti, Affonso de Teive, que, a final, sahirás do
mundo sem capa, e coberto de lama!... Tu não sabes que estás em 1850, e
que tens de alijar a carga de dous seculos, se não quizeres ir a pique,
varar no ridiculo inexoravel com os homens da tua fortuna e da tua
figura. Origines ficticios, que nem sequer resalvam com o estudo dos
attributos divinos a sua ignorancia dos attributos humanos... Pobre
Theodora... a formosa mulher, que se rojava a teus pés, quando tu, por
brio mesmo de tua vaidade ferida, devias ter ido beijar-lhe os cabellos,
e não arrancar-lh'os. Pobre menina, casada com um homem chamado
Eleuterio... que mais?
--Eleuterio Romão dos Santos--disse Affonso, sorrindo no tom imitante do
dizer galhofeiro do amigo.
--Eleuterio Romão!... Eu não sei--proseguiu D. José--se amaria a esposa
de um homem chamado Eleuterio!... Mas, nas condições de cara e estylo em
que está Theodora, amaria, quer-me parecer que amaria, Affonso,
obrigando-a a promover o chrysma do conjuge... Fallemos serios, serios
como rapazes, que tem o estricto dever de não serem palermas, do
contrario seremos victimas de todos os Eleuterios. É necessario que
escrevas a essa mulher; isso não te priva de escreveres a outras muitas,
visto que estás aqui a ares, e tens ainda a balda de escrever
meditações... Que ratão és tu, Affonso! Eu, em Coimbra, achava-te uma
graça! Quando tu publicavas no «Trovador» umas lamurias lamartinianas,
que davam idéa de seres um desgraçado, que vivias das brizas do claro
Mondego, e tu, meu patarata, em quanto fazias chorar as meninas com os
versos, emborcavas torrentes de cognac por uma catadupa esponjosa que
muitas vezes receei que me apeasses do meu pedestal!... Patusco!...
Fallemos agora serios. Escreve á Theodora, se tens algum resto de
pudor... Não me digas que estás soffrendo por ella, que deixaste por
ella tua mãe, que renunciaste ao amor de um anjo por causa d'ella... Não
me digas tal, que eu nem posso admirar-te a virtude nem a parvoice. A
virtude seria medir o espaço que separa a tua alma do coração atraiçoado
de Theodora, e interpor n'esse espaço trinta mulheres, com tanto que te
não privasses da companhia de tua mãe, nem lhe désses desgostos muito
menores que este. Devias adorar tua prima porque era um anjo, e devias
desejar a outra porque era um demonio. Que fizeste tu quando ella casou?
Choraste, e com tamanho aggravo dos teus brios que consentiste que o
mundo te visse chorar, a ti, rapaz de vinte annos, gentil, e rico!
Pondera bem n'esta vilipendiosa calamidade, meu caro Affonso. Salta
sobre dez annos de tua existencia para diante, e diz-me que nojo te
ha-de fazer este Affonso, quando o Affonso de 1860 achar que tem o mesmo
nome, e quasi a mesma figura!...
E continuou por largo espaço n'este sentido.
Escutava o filho de Eulalia o discurso de D. José, lardeado de facecias,
e, por vezes, attendivel por umas razões que se lhe cravavam fundas no
espirito. As réplicas sahiam-lhe frouxas e mesmo timoratas. Já elle se
temia de responder cousa de fazer rir o amigo. Violentava sua condição
para o igualar na licença da idéa, e por vezes, no desbragado da phrase.
Sentia-se por dentro reabrir em nova primavera de alegrias para muitos
amores, que se haviam de destruir uns aos outros, a bem do coração
desprendido salutarmente de todos. A sua casa de Buenos-Ayres
aborreceu-a por afastada do mundo, boa tão sómente para tolos infelizes
que fiam do anjo da soledade o despenarem-se, chorando. Mudou residencia
para o centro de Lisboa, entre os salões e os theatros, entre o reboliço
dos botequins e concurso dos passeios. Entrou em tudo. As primeiras
impressões enjoaram-no; mas, á beira d'elle, estava D. José de Noronha,
rodeado dos próceres da bizarria, todos aporfiados em tosquiarem um
dromedario provinciano, que se escondêra em Buenos-Ayres a delir em
prantos uma paixão callosa, trazida lá das serranias minhotas. Ora,
Affonso de Teive antes queria renegar da virtude, que já muito a medo
lhe segredava os seus antigos dictames, que expor-ser á irrisão de
pessoas d'aquelle quilate. É verdade que ás vezes duas imagens
lagrimosas se lhe antepunham: a mãe, e Mafalda. Affonso
desconstrangia-se das visões importunas, e a si se accusava de pueril
visionario, não emancipado ainda das crendices do poeta inexperto da
prosa necessaria á vida.
Escrever, porém, a Theodora, não vingaram as suggestões de D. José. Por
ventura, outras mulheres superiormente bellas, e agradecidas ás suas
contemplações, o traziam preoccupado e algum tanto esquecido da morgada
da Fervença.
Mas, um dia, Affonso, n'uma roda de mancebos a quem dava de almoçar,
recebeu esta carta de Theodora:
«Compadeceu-se o Senhor. Passou o furacão. Tenho a cabeça fria da beira
da sepultura, d'onde me ergui. Aqui estou em pé diante do mundo. Sinto o
peso do coração morto no seio; mas vivo eu, Affonso. Meus labios já não
amaldiçoam, minhas mãos estão postas, meus olhos não choram. O cadaver
ergueu-se na immobilidade da estatua do sepulcro. Agora não me temas,
não me fujas. Pára ahi onde estás, que as tuas alegrias devem de ser
muito falsas, se a voz d'uma pobre mulher póde perturbal-as. Olha... se
eu hoje te visse, qual foste, ao pé de mim, anjo da minha infancia,
abraçava-te. Se me dissesses que a tua innocencia se baqueára á voragem
das paixões, repellia-te. Eu amo a creança de ha cinco annos, e detesto
o homem de hoje.
«Asserena-te, pois. Esta carta que mal póde fazer-te, Affonso? Não me
respondas; mas lê. Á mulher perdida relanceou o Christo um olhar de
commiseração e ouviu-a. E eu, se visse passar o Christo, rodeado de
infelizes, havia de ajoelhar e dizer-lhe: «Senhor! Senhor! é uma
desgraçada que vos ajoelha e não uma perdida. Infamias uma só não tenho
que a justiça da terra me condemne. Estou acorrentada a um dever
immoral, tenho querido espedaçal-o, mas estou pura. _Dever immoral_...
por que não, Senhor! Vós vistes que eu era innocente; minha mãe e meu
pae estavam comvosco.
«Abafaram-me n'uma jaula; eu queria amar-vos fóra dos violentos ferros,
deixei-me matar diante da vossa imagem por um sacerdote do vosso culto.
O vosso sacerdote, Senhor Deus da Justiça, praticou uma immoralidade,
levantando sobre as faculdades d'esta alma esmagadas o patibulo do meu
coração. Foi immoral o dever, que me legislaram em vosso nome, Senhor. E
eu, sem vociferar contra o mundo, que me arroxêa a gonilha no pescoço, a
vós ajoelho, Deus dos reprobos das alegrias d'este mundo, exorando-vos
que me deis um amigo.
«É o que eu diria ao Deus da adultera e da Magdalena, Affonso. E o
Senhor piedoso havia de ouvir-me, e de tua alma, fulminada pela
inspirativa misericordia do Justo dos justos, sahiria um gemido piedoso
por a mulher desamparada. Sê meu amigo!»
Recusava-se Affonso a deixar vêr a carta: era, porém, uma descortezia
sonegal-a, entre moços, que francamente haviam alli relatado á
competencia, as façanhas amorosas dos ultimos quinze dias.
--Homem indigno da nossa estima!--exclamava D. José de Noronha--Grande
cynico! podes tu negar aos teus amigos dous minutos do innocente prazer
de ouvirem o estylo d'uma Sevigné provinciana, que, para ser mulher de
época, só lhe falta affeiçoar-se a um homem que lhe rasgue os horisontes
d'um destino esplendido!? Venha a carta!
--A carta! a carta!--exclamaram todos, empunhando os copos.
--Um brinde á formosa das montanhas!--bradou D. José.
--Depois de lida a epistola!--emendou um commensal.
--Antes e depois!--redarguiu o proponente do brinde, e ajuntou:--Á saude
de Theodora, bella e espirituosa, amada e amantissima, pura quanto póde
sêl-o a mulher que nos braços d'um marido reserva para o homem amado a
virgindade do coração!
--Á saude de Theodora--conclamaram todos, exceptuando Affonso, cujo
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