Amor de Salvação - 05

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verem as fealdades d'esta vida... Não te espante o ardor d'esta
linguagem. Eu fiz agora pé atraz vinte e quatro annos da minha vida, e
senti-me reviver n'aquelle momento... Agora, espera um pouco... Deixa-me
tomar fôlego, recordando minha mulher e meus filhinhos.

X
Affonso, passados dous minutos, continuou, demudado já o semblante da
jovialidade com que principiára.
«Theodora reconheceu-me. A turbação do meu animo era como uma vertigem,
e assim mesmo vi-lhe todos os lances de olhos, todas as linhas alteradas
d'aquelle adoravel rosto. Fitou-me. Estremeceu; vi-a estremecer na quasi
paragem convulsiva que fez o cavallo. E eu busquei o apoio do hombro de
minha mãe, e senti-me comprimido nos braços d'ella. E a magia satanica
do olhar da bella mulher empederniu-me; arrefeci; d'ahi a pouco era fogo
vivo a minha fronte; cuidava que a via ainda; e ella tinha passado. Puz
então a mão sobre o meu coração, e já lá encontrei a de minha mãe.
«Caminhamos para casa, e não trocamos palavra. Entrei no meu quarto,
lancei-me sobre a cama, abafei o rosto nas almofadas, e vinguei-me do
meu infortunio a chorar. Chorei, e senti-me desopprimido. Fui ao quarto
de minha mãe, e achei-a de joelhos orando. Quaes lagrimas me deram
allivio? seriam as d'ella ou as minhas? As d'ella, que o homem, quando
chora, desafoga uma paixão, e abafa n'outra: a do odio. Prantos que
salvam são os da dôr immerecida, os apêllos das iniquidades do mundo
para o tribunal da Providencia. E eu, quando chorava, amaldiçoava, e
pedia vingança.
«No dia seguinte, fui para Coimbra.
«Concentrei-me com a visão da ponte de Lessa. Não me deixou aquelle
adorado demonio recahir na minha miseria da embriaguez. Para que?--dizia
eu--Se tenho de voltar á razão para encontral-a com a tenaz ardente da
tortura?
«Quinze dias depois da minha chegada, abri uma carta marcada em Braga.
Oscillaram-me as pernas, e cuidei ouvir dentro do peito o despegar-se-me
o coração, uma dôr que eu não sei se é commum de todas as organisações,
dôr que eu tenho tantas vezes experimentado, que já a considero aleijão
dos vasos sanguineos. A carta era de Theodora, as linhas muito poucas, e
assim, se bem me lembro: «Foi o mau anjo da minha vida que me levou para
onde tu estavas, Affonso. Faltava-me o inferno de hoje. Não bastava o
remorso: era necessaria a fatalidade do amor, da paixão. D'aqui por
diante ha-de rasgar-me o peito a desesperação dos reprobos, que Deus
lançou de si. Arrasto-me a teus pés a pedir-te perdão. Não me amaldiçôes
tu d'hoje em diante. Se tens padecido, perdôa, e Deus te dê o triumpho
na bemaventurança; se te esqueceste, escarnece-me. Que vingança maior?
Adeus. Alegra-te, que eu desejo a morte, e ella virá salvar minha pobre
alma d'este miseravel corpo.»
«Que lucta, meu amigo! As horas d'aquelle dia e d'aquella noite foram
uma continuada alternativa de alegria douda e de excruciante agonia!
Começava a escrever-lhe, e rasgava logo as cartas, envergonhando-me
diante de minha propria consciencia. A paixão ia tocando as extremas
onde principia a perversão moral. Já me queria parecer que não era
indignidade nenhuma responder-lhe eu, quer insultando-a, quer
atirando-lhe aos pés com o meu coração infame. Ultrajal-a e adoral-a era
então a despotica necessidade da minha cabeça allucinada.
«Eu carecia de um amigo, e não tinha nenhum a quem mostrasse as secretas
dôres, que escondera de todos. Tive ancias de uma alma, que me
escutasse. Lembraram-me todos os que mais tinham convivido commigo. Sem
excepção d'um só, eram todos futeis, e incapazes de me pouparem á sua
zombaria, se me vissem chorar. Suffoquei-me, atirei-me aos braços da
minha algoz phantasia, deixei-me dilacerar pelo abutre da soberba,
soberba de não ser ridiculo em nenhuma das minhas desgraças.
«Passaram tres dias. Na minha banca estavam tres cartas fechadas, e os
fragmentos d'outras, que eu destinára a Theodora. Abri as cartas,
reli-as, tive pejo e tedio de mim, rasguei-as e fui embriagar-me.
«Porque? porque não havia de ser eu o que seria todo o homem, abrazado
de amor, ou sequioso de vingança? Que tinha que eu, condoendo-me ou
escarnecendo-a, lhe perdoasse? Se alguem se rira de mim abandonado
d'ella, que maior victoria queria eu, senão a de fazer risivel o marido
da mulher castigada por sua mesma abjecção? Esta philosophia hedionda,
com que se pavonea a philaucia de muitos sujeitos, celebrados pela
inveja e admiração d'outros miseraveis do mesmo formato, quem me privou
de a seguir, e aproveitar n'um caso da vida, em que a minha cura não
podia esperar-se da religião, da moral, ou da volubilidade do meu
caracter? Não lhe respondi; é o que sei dizer do meu inflexivel pundonor
dos dezenove annos. Era uma feroz vingança que eu me infligia á conta do
covarde quebranto em que me deixára a apparição da mulher vil, arreiada
com as pompas da felicidade.
«O meu segundo anno de Coimbra foi um continuado suicidio. Desbaratei a
saude em toda a especie de desregramento e libertinagem. Não dei nos
olhos da academia, porque, n'aquelle anno de 1846, a fermentação da
guerra civil absorvia os espiritos alvorotados dos academicos. Fechou-se
a Universidade em Maio, quando eu, extenuado de insomnias e empeçonhado
de bebidas estimulantes, cahi de cama, com o sincero desejo e alegre
esperança de que me não levantaria mais.
«Escondi de minha mãe aquelle estado em quanto me não assalteou o
remorso de a não chamar ao meu leito, e confessar-me da vileza de alma
que me levára a destruir a minha vida por meios tão ignominosos. Foi
esta vergonha que me salvou. Pedi com ancia e lagrimas aos medicos que
me salvassem. Disseram-me que fosse para a Madeira recobrar vigor, e
viajasse depois um anno nos paizes temperados e arborisados. A meu vêr,
a sciencia queria dizer no seu receituario que eu estava em vesperas de
encetar uma viagem barreiras a dentro da eternidade.
«Confiei na juventude, na vontade de viver, e ergui-me. Sahi de Coimbra
para o Porto. Tenteei o meu espirito, animando-me a procurar as
montanhas saudosas, os meus queridos pinheiraes de Ruivães, os regatos
crystallinos, orlados de verduras em que minha mãe me via creança, a
colher boninas para lh'as entretecer nos cabellos. A minha alma amava
então estas cousas com o transporte arrobado e sereno dos tisicos: é que
o envolucro já lhe não empecia o filtrar-se n'ella o calor da luz ideal,
aquelle calmo ambiente em que se degela o sangue coalhado no coração.
«Venceu o desejo da vida. Isto que, um anno antes se me antolhou feio e
inhabitavel, aformoseou-m'o então o anhelo de viver. Até a côr do céo,
d'onde me choveram as alegrias dos dezeseis annos, me sorria e chamava.
Nem já o temor de me encontrar com Theodora pôde conter-me. Que
importava? Eu cuidei que a porção de minha essencia, captiva do amor
d'ella, se tinha caldeado e vaporado ao fogo, d'onde eu sahira
refundido, e mui estranho ao homem do outro tempo.
«Surprehendi minha mãe, sentada á sombra da carvalheira da porta,
relendo as minhas ultimas cartas, escriptas com a ternura da alma
alumiada pela alva d'um melhor dia. Ao contacto do peito da virtuosa,
senti exuberancia de saude, de alegria, e de uncção religiosa. Então me
considerei estreado em nova existencia.
«Esperava eu que se abrisse a Universidade para ir a Coimbra repetir o
segundo anno, cujas disciplinas nem sequer as tinha visto no index dos
compendios. Minha mãe dissuadia-me de voltar a Coimbra, dando como
desnecessaria a formatura a quem não havia de ganhar a vida por ella.
Eu, porém, desejava instruir-me; dava-me como necessario recolher idéas
que ao depois me aligeirassem no estudo os annos de toda a vida, que eu
designára passar na casa, onde meu pae tinha vivido a sua, com todas as
ditas da paz. Minha boa mãe transigiu. A dôce creatura, accusando-se
sempre de motora da minha desgraça, obrigára-se a expiar pela abnegação
e condescendencia. E de mais, ella temia que, alguma hora, me
reapparecesse a visão de Lessa.
«Que presentimento!
«Dias antes da minha destinada partida, fui ás Taipas despedir-me de meu
tio Fernão, que estava em Caldas. Ao entardecer sahi com minha prima
Mafalda a passear na carvalheira. Já era escuro, quando nos fizemos na
volta de casa. Ao atravessarmos a alamêda dos banhos, acercou-se de nós
um vulto de mulher rebuçado n'uma capa alvacenta. Mafalda apertou-me o
braço convulsivamente. O vulto parou em frente de nós, e disse n'um tom
ironico:--Consintam que os contemple na sua felicidade: é um prazer dos
felizes verem-se admirados.
«Reconheci a voz de Theodora. Mafalda sentiu o tremor do meu braço, e
reconheceu-a tambem de instincto.
«Desviei-me do caminho trilhado para seguir ávante. Theodora deixou
cahir a dobra da capa, em que occultava meio rosto, e disse n'um tom
arrogante:--Veja, snr. Affonso de Teive! Veja, que ainda sou formosa! O
coração está esmagado; mas a face ainda conserva as graças que poderiam
arrebatar maior alma que a sua.
«Deteve-se alguns segundos arquejante: eu ouvia-lhe o latejar do alto
seio no fremito da sêda do corpete. Depois, com um gesto de arremesso,
lançou-me aos pés um volume, e afastou-se a passo rapido.
«Levantei o objecto arremessado, e conheci que eram papeis e um objecto
de mais solidez, deviam de ser as minhas cartas. O restante que seria?!
«Mafalda ia murmurando:--Que mulher, santo Deus! que ousadia!... Eu bem
desconfiava que era ella. Quando tu estavas a dormir esta tarde, vi
passar esta mesma creatura, assim encapotada sobre um grande cavallo,
com um criado de farda. Tua mãe tinha-me dito como a vira em Lessa, e
meu pae descreveu-m'a tão pelo miudo que a adivinhei. Não t'o disse, e
pedi a Deus que te levasse depressa d'aqui...--Não receies, minha boa
prima--disse eu a Mafalda--que esta mulher na minha vida, já agora,
apenas póde ser um estorvo de tres minutos, quando eu passeio nas
Caldas--Minha prima replicou:--Não te illudas, meu primo: esta mulher é
a tua sina maldita.
«Sorri-me, e fui examinar o pacote. Eram as cartas cintadas com uma fita
preta, e d'esta fita pendia uma pequena chave; era tambem uma caixinha
de tartaruga fechada. Entendi que a chave pertencia á caixa. Abri-a, e
vi uma trança de cabellos, com tres flôres resequidas compostas entre as
madeixas, como se as estivessem enfeitando. Reconheci as tres flôres:
tinha-lh'as eu levado do jardim de minha mãe, em dia dos seus annos.
«Tirei a trança, e insensivelmente, a contemplal-a, achei que a tinha
perto dos labios. Circumvaguei os olhos, a examinar que me não vissem.
Estava sosinho, e fechado... Beijei os cabellos de Theodora, meu amigo!
Peço-te desculpa de não corar agora; consinto, porém, que, se alguma vez
escreveres esta historia, ponhas seis pontos de admiração, quando
chegares aqui, e discorras o melhor que souberes e poderes, ácerca da
miseria do bruto que chora, e beija tranças de cabellos, do bruto que ri
de seu mesmo vilipendio, do bruto, em fim, chamado _homem_. «Ia depôr as
madeixas no cofre, receioso de alguma surpreza, e então vi um papel
dobrado no fundo da caixinha. Era uma carta. Escondi-a sofregamente,
fechei os cabellos, escondi o cofre e as minhas cartas no sacco de
noite, e palpitante de commoção sahi do meu quarto, e fui respirar no
escuro d'uma varanda, onde presumia não encontrar alguem.
«Apenas sorvi um hausto de ar, que me chegou ao coração impregnado das
auras balsamicas da minha mocidade, ouvi um respirar alto e tremente.
Fui á extrema da varanda, e vi minha prima, com as faces entre as mãos,
repuxando ao seio os soluços com anciada violencia. Chamei-a
carinhosamente. Interroguei-a. Quando bem a comprehendi, não sei
dizer-te que entranhado compungimento me cortou a alma! Cahiram-me nas
mãos as lagrimas de Mafalda... Perguntei-lhe por que chorava.
Respondeu-me:--São as primeiras lagrimas: é por ti que as choro, meu
primo. Deus deixa-te perder... Não ha ninguem que te possa salvar
d'aquella mulher.--E, desprendendo-se das minhas mãos, fugiu a soluçar.
«Eu levantei olhos ao céo, e disse, em meu espirito, com terror quasi
infantil:
--Não deixeis que eu me despenhe no mesmo abysmo, d'onde a vossa
misericordia não tem querido salvar-me!
«E cuidei que o céo, se abrira á minha oração com um milagre.
«A imagem de Theodora passou ante mim; vi-a repulsiva, abjecta,
vilissima, e prostituida. Subito, n'um disco luminoso, desenhou-se-me o
vulto angelical de Mafalda, com a face em lagrimas, humilde como uma
santa, e ao mesmo tempo altiva como a virtude sem nodoa.
«Amei então minha prima; todas as estrellas do céo m'a estavam
bem-fadando para mim; todos os rumores da noite diziam commigo um hymno
ao Senhor que me descaptivára das ciladas da mulher fatal, que no
descaro mesmo de sua audacia me fascinára, e com aquelles cabellos
tecera o baraço de estrangulação da minha dignidade.
«Fui, fervoroso de ternura, em busca de minha prima. Encontrei-a á
cabeceira do leito de seu pae. Chamou-me o tio para os pés da sua cama.
Sentei-me com inquieta alegria. O velho achou-me outro em olhar, em tom
de voz, em ar de rosto. Queria saber o segredo da transformação.
Perguntava a Mafalda se o sabia. A menina sorria com aquella distincta
angustia que lacera a alma sorrindo, por que as lagrimas só servem para
exprimir os soffrimentos communs.
«Assisti ao chá de meu tio, pedi-lhe a benção, e recolhi-me ao meu
quarto. Minha prima despediu-se de mim sem me fitar no rosto. A sua
natural altivez soffria, depois que eu a surprehendêra chorando
provavelmente. Este resguardo augmentou a divinisação de Mafalda.
«Fechado na minha alcôva, abri a carta de Theodora. Está n'este masso
lacrado, ha quatorze annos. Quebre-se o lacre, por amor da
authenticidade da historia... Aqui a tens. Lê tu, em quanto eu dou folga
aos pulmões. Ha muito anno que não fallei tanto tempo!
Li a carta de Theodora, cujo traslado segue:
«Quem te disse a ti que eu tinha cahido diante de mim mesma, Affonso?
«Quando te dei eu direito de suppôr que o teu silencio, em resposta a um
grito do coração, me esmagaria os brios de mulher, que, d'um sopro, faz
saltar de suas vestes a lama do teu desprezo?
«Quando eu te appareci magnifica de dedicação, fizeste-te mesquinho tu.
As minhas lagrimas figuraram-se-te o pus d'um coração corrompido; e eram
soro do mais nobre sangue.
«Não podeste chegar com a fronte á altura da minha, e apedrejaste-m'a!
«Quem cuidas tu que és, soberbo senhor, que voltas o rosto da tua
escrava, e não sabes sequer usar a misericordia de dizer á mulher, que
te ama, que não seja infame, amando-te?!»
N'este ponto suspendi eu a leitura, tomei a respiração, e disse:
--Esta senhora tem estylo, ou eu não entendo nada de estylos! Que
interrogatorio!
«Podes rir, que eu tambem cá estou mordendo os beiços para não espirrar
uma casquinada na cara do antigo Affonso de Teive--disse o meu amigo.
--Mas o estylo--tornei eu sinceramente agradado da leitura--o estylo
aqui não póde ser a mulher: aqui, ha, pelo menos, a triple intelligencia
de tres escriptores de melenas sacudidas aos quatro ventos da
inspiração! Por Hercules! Isto sim que é mulher... e «aqui ha que vêr»
como diz o Garrett.
--E que lêr--ajuntou Affonso de Teive--continúa, se queres.
Perfilei as minhas faculdades intelligentes, e segui a leitura:
«A contas, homem de ferro, que endureceste o teu fragil barro d'outro
tempo ao fogo de baixas paixões, a contas com a mulher desprezivel!
«Que fazias tu, quando eu me estorcia de saudades de ti, e dôres do meu
captiveiro, dentro das grades das Ursulinas?
«Quando soubeste que a tyrannia me fechava a sete chaves n'uma cella, e
me media os atomos de ar, que eu respirava a furto, que fazias tu para
resgatar os quinze annos d'uma mulher que queria o sol das flôres, das
aves, dos mendigos, do ultimo verme que se arrasta e cumpre o seu
destino debaixo dos olhos de Deus?»
--Parece-me, reflecti eu, que esta senhora arredonda ambiciosamente os
periodos, meu caro Affonso; e, se me dás licença, direi que ha estylo de
mais n'este periodo!... Estou morto por te perguntar que impressão te
fazia isto ha quinze annos!...
«Lê, e no fim fallaremos--disse Affonso. E eu li:
«Não respondas. A vil, a abjecta, a desgraçada é generosa. Não
respondas. Ri, e escuta.
«Abandonada por ti, enganada, não sei por que nem com que fim, por tua
mãe, achei-me fraca para cruzar os braços, e esperar a morte. Á borda do
abysmo, vi uma tabua de salvação. Sabia que, segurando-me n'ella, as
mãos se rasgariam em chagas incuraveis. Sabia-o; mas agarrei-me á tabua
de salvação. Escutei a desgraça; que não tinha outro anjo, nem outro
demonio que me aconselhasse. Escutei-a, e aceitei o marido que ella me
deu. Perdi-me para a vida da alma; mas encontrei a vida dos olhos e dos
ouvidos, e do seio, onde me roia a serpente da soledade e do desabrigo.
«Vi arvores, vi estrellas, ouvi os canticos da terra e os amorosos
murmurios da natureza festiva. No centro do mundo era eu a unica mulher
sem mãe, sem pae, sem amigo, sem coração que se abrisse ás cinzas do
meu. Não importa. Via o sol no firmamento; e para além do sol, a
infinita luz dos que bem-disseram a mão do Senhor que, á sua vontade,
desdobra um crepe de trevas sobre os corações, que, em sua innocencia,
não ousam interrogal-o como Job!»
--De mais a mais--reflecti eu--lida nos livros sagrados!... Posso, sem
indiscrição, perguntar se a authora d'esta carta morreu ou vive
escorreitamente?
«Espera que a concatenação dos factos te elucide--respondeu Affonso.
Prosegui, lendo, com espanto maior que o meu costume, se acerto de topar
cousas escriptas por pessoas de juizo duvidoso:
«Trasbordou um dia a amargura de minha alma. Não sabia onde me levava a
vertigem. Corri leguas. As arvores, que gemiam um som, as fontes que
tinham uma voz, os trovões que estalavam do céo de bronze, as catadupas
que bramiam no despinhadeiro, tudo me dizia o teu nome. Corri as
montanhas que nos viram meninos; reconheci a fraga onde nossas mães se
sentavam; orei á cruz de pedra, que está na quebrada da serra. E não te
vi. Dous mezes te procurei, sem balbuciar o teu nome. E, quando ha um
anno te avistei encostado ao hombro de tua mãe, a voz do meu orgulho de
desgraçada disse-me: Se elle quizer que tu te percas por elle, amanhã
não terás honra, nem familia, nem marido, nem creatura sobre a terra que
te não insulte.
«E escrevi-te, Affonso! Aquelle papel era uma renunciação, aquellas
palavras queriam dizer:--Dá-me a perdição como salvamento; dá-me a
infamia como gloria; o mundo vai apedrejar-me, e eu cuidarei que elle me
acclama virtuosa; todas as devassas me julgarão indignas d'ellas; e eu,
contente da minha deshonra, estenderei benignamente a mão a todas as
miseraveis, que m'a cuspirem.
«E tu, Affonso? Como me julgaste morta para a virtude, aproximaste-te do
cadaver, pozeste-lhe sobre o peito um pé, calcaste, viste-lhe nos labios
o sangue do coração, e escarraste-lhe!
«Voltei do outro mundo. A mulher, que viste ha pouco, era um phantasma.
Os cabellos negros, que adornastes com tres flôres n'aquelles formosos
quinze annos, cahiram-te aos pés. As flôres vem aradas do fogo do
inferno. O phantasma voltou ás suas labaredas, para nunca mais te
crestar o riso dos labios com as chammas dos seus olhos. Vai tu ao céo,
e pede a Deus que me deixe adorar-te na eternidade das penas. Pede-lhe
que me dê eternidade para a expiação, e eternidade para o amor. Adeus.»
Não sei bem dizer d'onde me vieram as lagrimas. Sei que terminei a
leitura da carta, já quando os olhos mal discriminavam as letras.
Como a gente, ás vezes, chora?...
Era o estylo!

XI
Sorriu Affonso do meu melindroso sentimentalismo, retorceu
destrahidamente os longos bigodes por sobre a barba listrada de
fasciculos brancos, afogueou o seu cachimbo de barro negro, e continuou:
«Eu é que verdadeiramente chorava, quando acabei de lêr esse papel.
Ficas sabendo a impressão que em mim fez a carta de Theodora. Não ha
vergonha que eu omitta n'esta confissão geral. Sou o juiz do homem que
fui. Julguei-me e condemnei-me ao opprobrio de levantar da lama o
coração velho, e mostral-o com nausea ao enojo dos que vão passando...
--Mas eu não vejo ahi cousa indecorosa de que te
envergonhes!...--atalhei.
«Vês, pelo menos, a baixeza do meu espirito, senão antes a crassa
sandice de pensar que as accusações de Theodora estavam justificadas por
essa frandulagem de palavras sonoras, e apostrophes melo-dramaticas. O
castigo da minha miserrima estupidez virá depois... Lá chegaremos.
«Li terceira vez a carta, e abri a janella do meu quarto. O vento
ramalhava nas carvalheiras, e o céo d'aquella noite não tinha uma
estrella. Appeteci embrenhar-me na escuridão do arvoredo. Abri de manso
a porta do meu quarto, e, pé ante pé, ganhei a varanda d'onde era facil
o salto á rua. Acabava eu de saltar, quando do escuro de uma janella
contigua á varanda, me surdiu a voz de Mafalda.--Não tinhas necessidade
de saltar, primo--disse ella--Chamasses que se te abriam as portas.
«--Estás a pé ainda, minha prima?--perguntei eu, corrido da surpreza, e
algum tanto contrariado da espionagem.--Nunca me deito mais
cedo--respondeu ella com brandura--Quando as noites são assim tristes,
gosto de as vêr... Está vento, primo;--continuou retirando-se--não
estejas ahi ao ar desamparado. Boas noites.»
«E fechou rapidamente a janella.
«Encaminhei-me á alamêda dos banhos, na inepta esperança de vêr alli
vestigios de Theodora, ou não sei se ella mesma. Não sei ao que ia. É
impossivel explicar o intento que nos impelle em casos semelhantes,
quando a gente, alguns annos depois, inquire de si mesmo o sentido das
suas intenções: são actos estranhos á razão, dos quaes só póde
desculpar-se o delírio. A verdade é que eu fui á alamêda, e andei, palmo
a palmo, recordando-me do local em que ella me sahiu, e a direcção que
tomára na retirada. Sentei-me n'um dos bancos de pedra, e conjecturei se
ella teria estado alli sentada. Cerrei ouvidos a todos os rumores para
escutar o som das palavras de Theodora, que me ecoavam do intimo
coração. Atirei com a alma supplicante e desesperada áquelle céo de
bronze, negro como ella. Pedia a Deus o esquecimento da mulher, com a
vehemencia do justo atribulado que pede a corôa do triumpho.
«Levantei-me, e andei por as trevas, esbarrando nas arvores, e
refrigerando o fogo da testa e mãos nas fontes e charcos que topava. Ao
arraiar da manhã, estava eu nas raizes da Falperra. Senhoreou-me então
um somno lethargico e invencivel. Adormeci com a face encostada á raiz
d'uma arvore, e acordei, coberto de camarinhas de orvalho, ao calor dos
primeiros raios do sol. Retrocedi pela estrada das Taipas, e entrei em
casa, quando meu tio Fernão, admirado de minha falta, andava indagando
dos criados, se eu sahira de madrugada.
«Mafalda appareceu-me com o semblante pallido, os olhos raiados do muito
chorar, e o azul-violeta das olheiras carregado e distendido até
meia-face. Meu tio ligeiramente alludiu á minha falta, na presença da
filha. Sahimos da mesa de almoço, e entramos na sala, onde Mafalda
recordava as suas musicas ao piano, e, algumas vezes, se acompanhava
cantando. N'este dia, a adoravel penitente sentou-se ao piano; e, com
uma só das mãos, dedilhou umas toadas monotonas, mas celestialmente
saudosas e melancolicas. O velho acenou-me, a occultas da filha.
Segui-o; sahimos, e caminhamos a pé na direcção das ruinas de Citania. A
meio caminho estava uma casa alagada, com uns lanços de muro ainda em
pé. O velho avisinhou-se das ruinas, estendeu o braço com o indicador
apontado, e disse: Aquelles pardieiros pertenceram a teu tio-avô
Christovão de Teive. N'aquelle tempo, os homens de vida infamada, quando
os ultimos invernos lhe geavam na cabeça, e os sinos, dobrando a
finados, lhes attrahiam os olhos para a sepultura, o remorso
penetrava-os até ao amago, e estorcia-os nas roscas das suas mil
viboras, até que Deus se amerceava d'elles, e os tomava para o seu
tribunal. Teu tio-avô foi um mau desgraçado. O amor de uma mulher da
côrte entrou-lhe no coração, e apodreceu-lh'o á força de lhe derrancar o
sangue com as torturas da perfidia. O moço empestado veio para a
provincia, e sevou o seu odio em quantas victimas pôde surprehender
adormecidas no regaço do seu anjo de innocencia. Aos quarenta annos,
pesou sobre elle a maldição de Deus. Desde a raiz dos cabellos até á
raiz das unhas chagou-se-lhe o corpo de lepra. De repente, em redor
d'elle fez-se uma solidão horrenda. Desampararam-no todos. Nem os
engeitadinhos, indigitados como filhos d'elle, ousavam chegar-lhe um
pucaro de agua. Christovão de Teive tinha esta casa, aqui afastada de
visinhos, construida não sei para que fim ha tres seculos. Aqui se
encerrou e viveu quinze annos aquelle vivo amortalhado nas ulceras da
sua pelle. A sua companhia era a ama, que o amamentára, e que Deus, em
recompensa, preservou da terribilissima enfermidade. Morreu o
desamparado, legando esta casa á mulher que lhe cerrára as palpebras. A
enfermeira foi depós elle, devolvendo a casa aos herdeiros de seu amo.
Cincoenta annos depois, quando eu aqui vim, encontrei estes pardieiros.
Dos nossos parentes ninguem poz pé a dentro das soleiras, que alli
estão, onde existiram as portas...
«Deteve-se meu tio breves instantes, e concluiu:--Affonso, o divino
Mestre doutrinava com parabolas: o homem d'estes calamitosos tempos
moralisa com exemplos. Teu tio-avô começou como tu: vê tu, meu sobrinho,
se vingas um correr de vida melhor que o d'elle. Se uma mulher te
cancerou o peito, esconde-te, depura-te, faz-te bom, e depois volve ao
mundo a procurar a felicidade do coração. Em quanto esse dia de
regeneração não chegar, foge das mulheres puras. Eu tenho uma filha
unica, um thesouro que Deus me confiou. Minha filha chora por ti.
Affonso, se as lagrimas d'ella te não resgatam das presas d'uma mulher
perdida, foge, e foge hoje mesmo. Agora, silencio, Affonso...
«Na madrugada do dia seguinte, sahi das Taipas, e fui para Ruivães. Dias
depois, desisti do plano de me formar, e fui para o Porto. Sahia um
vapor para Liverpool: embarquei, e estive na Inglaterra; passei a
França; e de França fui residir na Suissa uns seis mezes. O
arrependimento de deixar minha mãe e a minha terra seguiu-me sempre.
Resolvi regressar por muitas vezes; mas, fatalmente, a primeira imagem
que eu via, voando em espirito á patria, não era a de minha mãe. Ella
sempre, Theodora sempre!
«Ao cabo de um anno de expatriação, voltei para o Porto. Dava-me então
como curado. A memoria d'ella era já fria: o pulso não se accelerava,
nem do coração me subia á cabeça um golfo ardente de sangue. Fui alegrar
minha mãe, ao lado da qual encontrei Mafalda, que lhe assistia á
convalescença d'uma perigosa enfermidade. Notei sensivel mudança no
rosto de minha prima. Os risos do anjo tinham ascendido ao céo no
perfume de suas orações. A coruscante luz d'aquelles olhos tinham-na
apagado os prantos. As madeixas cahiam-lhe soltas sem flôres, sem
ornatos, como dons de quem os esquece, ou não sabe de que elles valham
ás venturas da existencia. Porém, formosa da aureola santa da dôr sem
culpa. Que paixão me avassallou n'aquelles primeiros dias! com que
religiosidade eu beijava a mão de minha mãe aquecida pelos labios
d'ella! Recordo-me de a encontrar sosinha no pomar. Sentei-me ao lado da
mulher purissima. Tomei-lhe com subita sofreguidão os dedos que me
offereciam um pomo. Não ousei beijar-lh'os... apenas balbuciei: minha
querida irmã!... Mafalda respondeu--Deves assim chamar-me, por que eu já
me afiz a chamar minha mãe á tua, meu primo.
«A paz dos primeiros dias, aquelle suave repousar do espirito, entre as
duas carinhosas almas, que m'o distrahiam com as indiziveis doçuras da
domesticidade, durou menos de tres semanas. Ao sentir-me fatigado da
igualdade de todas as horas, angustiei-me, e cobrei horror do meu
futuro. «Que abominavel homem sou!» dizia eu no meu intimo senso,
repellindo-me a mim proprio com uma restante força de virtude--Se me
repugna o crime, por que a não esqueço? Se a não posso esquecer, para
que me devoro n'estas covardes tentativas de lhe fugir? Odeio-a, e, em
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