Amor de Salvação - 04

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perguntas do primo Eleuterio. Assim foi. Ageitado o ensejo, a menina,
balbuciando com artificial pudor, disse que estava disposta a tomar
estado, visto que a idade lh'o permittia. Eleuterio, perplexo, de
ouvil-a, sem ousar suppor-se o noivo escolhido, sopesava o bofe direito,
cuidando que estava alli o coração; quando, porém, a prima lhe disse:
--Faço aquillo que meu tio Romão quizer... Caso com quem elle
determinar...
Eleuterio expediu um ai de desafogo, e riu-se alvarmente, esfregando as
mãos.
Por amor d'este successo vim eu a desenganar-me de que a natureza anda
muito abastardada e contrafeita no theatro e nos romances. Casos
analogos d'aquelle tenho-os visto remedados com tregeitos e exclamações
inversas da logica da natureza. No romance todos os Arthures ou
Ernestos, ao saberem que são amados, empallidecem, suam, ajoelham,
declamam, quando não podem oscular com frementes soluços a mão da mulher
amada. No theatro, em lances identicos, tenho visto desmaiar sujeitos,
que matariam a futura sogra e o proprio pae, se lhe atravancassem o
caminho da felicidade. Rir ás cascalhadas é que eu ainda não vi amante
ditoso nenhum, no instante solemne de se crêr amado. Eleuterio Romão dos
Santos é o primeiro modêlo que a natureza me offerece.
E a verdade é só uma. Ao beijo da felicidade, que endouda e transporta,
o homem, que não estoura em explosões de riso, deve de estar mui
calcinado de coração. Dramaturgos e romancistas, por via de regra, são
umas pessoas aridas, frias, e falsas, que inventam a natureza, depois
que desbarataram a sensibilidade, exagerando as generosas commoções que
receberam d'ella.
Theodora gostou medianamente dos modos de seu primo. Antes ella o queria
falsificado no molde dos romances, que a menina transmontana lhe
emprestára; mas, ainda assim, aceitou com paciencia a linguagem
desartificiosa d'aquella ingenua e bruta alma.
Aquietado do seu arrebatamento, Eleuterio Romão dos Santos fallou assim:
--Cheguei ao que desejava, graças a Deus! A pena que eu tenho é não ser
tão rico como Sansão. (O padre Hilario quizera leccional-o em sagrada
escriptura: fallou em Salomão, ao que se presume, e o rapaz, assim como
odiava o soletrar palavras de tres syllabas, deve suppôr-se que tambem
em materia de historia, preferia os individuos de duas aos de tres
syllabas.)
E continuou:
--Se eu fosse tão rico como Sansão, prima Theodora...
N'isto, como lhe não occorresse idéa nenhuma com que fechar a oração
condicional, levou a mão á testa, e roçou a epiderme com o aro d'um
robusto annel que trazia no dedo indicador. Idéa magnifica! Tirou o
annel, e lançou-o ao regaço de Theodora. Tinha o annel um grosso
topazio, engastado n'um circulo de perolas. Theodora examinou o objecto,
e enganada pela circumferencia do aro, esteve quasi a pensar que era uma
pulseira.
--Faz favor de encaixar no dedo, prima--disse Eleuterio.
--Não me serve--disse a menina.
--É que está magrinha das mãos...--replicou o moço--Pois guarde-o, e
quando engordar o porá no dedo. Lá que a prima ha-de engordar com os
ares de Tibães, isso é que não falha. Vamos a tratar da dispensa, e
acabar com isto. O que eu queria era ser tão rico como Sansão.

VIII
As filhas do desembargador Figueirôa rodeavam o primo Affonso de
agrados, de gozos familiares, e recreios, tendendo tudo a divertil-o de
sua taciturna melancolia. A senhora de Ruivães, escrevendo a seu irmão,
pedia-lhe que se descuidasse em materia de estudos, e tomasse muito a
peito a distracção do filho, qualquer que fosse o gasto que ella
houvesse de desembolsar. Os prazeres da sociedade eram temporãos ainda
para a idade de Affonso. Bailes e theatros atediavam-no só em cuidar que
havia de ir affrontar-se com centenares de mulheres entre as quaes nem
sequer em sombra se lhe offerecia, como agro alimento de saudade, a
imagem de Theodora. O pudor dos dezesete annos, a indole nada
communicativa, o receio de ser posto a riso por suas primas,
encrudesciam, na soledade silenciosa, a paixão do moço. Comprára-lhe o
tio, por ordem de sua irmã, um cavallo. Affonso recebeu a dadiva com
satisfação, por poder assim, quando lhe aprazia, alongar-se da cidade, e
refugiar-se em alguns arvoredos das quintas limitrophes de Lisboa.
O local mais attractivo do seu espirito era a quinta dos condes de
Pombeiro, em Bellas. Desde o reinado de el-rei D. Manoel que as gigantes
arvores d'aquella magestosa ancian estavam frondeando, e asylando as
gerações de aves, como para alegrarem com suas musicas, e gasalharem com
suas sombras o moço foragido do estrondear da cidade. Por alli as horas
lhe corriam placidas, contentes nunca, bem que a tristeza d'entre
arvoredos, ao murmuroso cahir d'agua em sonora bacia, seja uma
particular tristeza, que, relembrada depois, dá rebates de saudade,
saudade como a sentimos de alegrias para sempre idas com a sazão das
breves e donosas verduras da vida.
De cada vez que Affonso ia á quinta predilecta, em cada arvore nova
entalhava as letras iniciaes dos dous nomes, que elle imaginava, apesar
da distancia e dos revezes, atados para sempre com applauso de Deus.
Este pagão d'amor e por amor, á imitação de todos os amadores
visionarios, cuidava que a divindade se intromette n'estas brincadeiras
da terra, chamadas paixões, passatempo de muito folgar que, algumas
vezes, nas suas folganças e corrimaças, esbarra na sepultura aberta, e
lá se atira em corpo, deixando cá fóra a alma infernada na deshonra e na
execração. E querem os pobresinhos, com o peito aberto ao abutre de suas
chimeras, que Deus intervenha nos seus infernados brinquedos!...
E Affonso, escondido nas sombras escuras de Bellas, chorava por
Theodora, e, alteando o rosto ao céo, pedia ao Senhor que lhe visse as
lagrimas, e houvesse piedade d'ellas.
O desembargador inquietava-se com as longas ausencias do sobrinho; mas
não o contrariava. As filhas é que mais se queixavam da selvatiqueza do
primo, que se ia á aldêa a conversar com arvores e penedos, e deixava
suas primas que tanto se interessavam em divertil-o. N'estes queixumes
das gentis meninas, transparecia um mal disfarçado despeito de todas e
de cada uma. Qualquer d'ellas, a resguardo das outras, havia pensado em
ser a mais amoravelmente olhada dos olhos de Affonso, o galhardo moço,
que tantas graças tinha, como se lhe não bastasse ser rico! O amador da
orphan das Ursulinas, se podesse suspeitar que suas primas conjuravam em
disputar-lhe uns grãosinhos do incenso de Theodora, não faria menos que
odial-as. Estes escrupulos são a religião, o ascetismo dos illuminados
de amor, illuminados lhes chamarei eu em respeito do leitor maior de
trinta annos, e compaixão de mim, que ambos nós já fomos tambem
illuminados, e não é por nossa vontade que estamos agora atolados n'este
lamaçal, onde, por sobre todas as desgraças e vergonhas, ainda queremos
vêr na superficie lamacenta e torva espelharem-se as estrellas do céo da
nossa mocidade!
Affonso esperava ainda. Sua mãe mentia-lhe. Seu tio, aferrado ás
tradições de avós, devia de tramar a quebra do casamento destinado com
uma menina, apenas formosa, rica, e pura como um anjo a quizera para si.
É o que Affonso pensava do silencio da mãe, e das reflexões do velho.
Estava, uma tarde de Agosto, Affonso em Bellas. Desde o dia anterior que
não voltára a Lisboa. O tio, como elle não voltasse ao segundo dia,
metteu-se á sua carruagem, e foi procural-o, e entregar-lhe cartas
recebidas do norte. Uma era de sua mãe, outra d'um seu tio paterno,
fidalgo de Barcellos, o mais acerrimo impugnador do casamento de um
Teive Lacerda Corrêa Figueirôa, com uma mulher da Fervença, que, dizia
elle, por nome não perca.
A carta da mãe dizia simplesmente:
«Não era digna de ti, meu filho, Deus bem m'o tinha dito, e o coração
estalava-me em ancia de t'o dizer. Agora, meu filho, ou cumpre o que o
tio Fernão te pede, ou faz o que a honra te aconselhar.» E poucas mais
expressões de conforto religioso; mas insinuantes como sabem dizel-as as
mães, que nunca se temem de corar diante de seus filhos.
A carta de Fernão de Teive era mais prolixa versando quasi toda sobre o
casamento de Theodora com Eleuterio.
Parecem-me dignos de extracto uns relanços d'esta carta, que eu copiei
do original. Não parecem de fidalgo velho, e estranho ao estylo
picaresco do folhetim:
«....... Eu estava em Braga, de visita aos primos Vasconcellos do
Tanque, e acaso vi o cortejo nupcial da morgada sem morgadio.
Predominavam as eguas de albardão e rabicho na parte equestre do
prestito, que era luzido, por que os arreios brilhavam, principalmente
as barbellas. O noivo ia desencabrestado, visto que tirára bula para
isso, quando tirou dispensa do parentesco. A morgada, com cara
relamboria, levava ares fulos; e procurava as estrellas ao pino do meio
dia, pasmada de vêr que ellas não vinham á janella admiral-a. Eu,
lembrando-me que a vergontinha da Fervença esteve a querer trepar pelos
troncos de Farelães e Numães, dei louvores a Deus, e parabens aos nossos
antepassados!.............................................................
..........................................................................
«Perguntei quem eram os figurões do prestito. O meu sapateiro conhecia
quatro. Varreram-se-me da memoria os nomes, e só me lembro que levavam
cara de terem bebido em jejum á saude da noiva. O lapuz do noivo queria
montar á Marialva; mas o ginete, quando chegou á Cárcova, festejou a
suciata com quatro couces que iam apanhando os jarretes da morgada, como
amostra dos que ella ha-de levar do marido................................
..........................................................................
«Tinhas a côrte celestial a pedir por ti, Affonso! Quando te deu na
venêta ser marido de Theodora, em quanto a mim tinhas lido o folheto que
reza de uma que era formosa e sábia. Vai ás arcadas do Terreiro do Paço,
que lá a encontras pendurada no cordel do livreiro cego. Theodora por
Theodora, antes a do papel de mata-borrão, que est'outra é um borrão da
tua mocidade, que felizmente o tempo ha-de gastar.........................
..........................................................................
«Agora é tempo de te dizer que tens uma prima, e eu tenho uma filha. Se
a queres esposar, vem quando estiveres farto da capital. Está senhora, e
foi educada como as senhoras da nossa raça. Aos meus olhos de pae,
Mafalda parece-me gentil e esvelta. Em palavras é discreta como se os
cabellos, em vez de puro ouro, lh'os tivesse embranquecido a
experiencia. Em acções creio que nenhuma ainda praticou de que me não
deva honrar, e bemdizer a mãe que a educou, e o sangue illustre que lhe
fórma o coração.
«Tua mãe compraz-se na minha resolução. Vem gozar as delicias puras
d'uma mocidade bem encaminhada, e recebe a benção de teu tio
_Fernão de Teive_.»
Lidas estas cartas, Affonso levou o lenço ao suor da testa e ás
lagrimas, que lhe cahiram a quatro. O tio, já avisado do successo de
Braga, discursou largamente de pitada no dedo, e os oculos montados na
mais grave das attitudes. Affonso diz que o não ouvira longo tempo, e o
abominára depois que o ouvira.
Quizera o desembargador leval-o comsigo na traquitana; mas o moço
rebellou-se arrogantemente contra as ordens do velho, já irritado da
pertinacia do sobrinho em ficar, terceira noite, fóra de casa. Affonso
internou-se de corrida entre o arvoredo, n'um impeto de desesperação ou
loucura. O magistrado deixou-o, e foi para Lisboa, d'onde participou á
irmã o resultado das cartas, e aproveitou o ensejo para vaticinar que
Affonso ia caminho da demencia a passos de gigante.
Disse-me Affonso que, n'aquella noite, fôra ter a Mafra; e repousára, na
madrugada, encostando a cabeça a um degrau do templo. Ao nascer do sol,
quiz agitar-se em nova caminhada; mas o cavallo, prostrado de fadiga e
fome, resistiu impassivel á espora. Esta contrariedade, que faria rir o
leitor, pungiu acerbamente Affonso. A mais tragica desventura tem uma
physionomia comica, se bem lh'a procuramos. Escusavel seria o riso de
quem observasse o cavalleiro, roxo de febre e colera, esporeando os
ilhaes do esbuxado cavallo, decepado de jejuns, e correrias arabes pelos
descampados, onde seu dono acalmava as vertigens da paixão! Que funesta
sorte a do irracional que dá em poder de tal amo! O infeliz, privado do
dom da palavra, nem sequer póde questionar com o dono a supremacia da
sua racionalidade!
Em quanto o cavallo reparava as forças na manjadoura, Affonso escreveu a
sua mãe, pedindo-lhe recursos para se ausentar de Portugal, e licença
para se demorar no estrangeiro até poder regressar esquecido de
Theodora. Escreveu tambem ao tio Fernão, lastimando-se de não poder
aceitar a felicidade das mãos de sua prima Mafalda.
Feito o proposito de viajar, o phrenesi descahiu em sombria, mas serena
tristeza.
O céo negro abria-se-lhe, a instantes, em relampagos de luz. Atirava
elle com a alma ao futuro, ao vago, ao sonho indelineavel, e retrahia-se
com ella a uns rapidos assomos de alegria, que não eram senão rebates de
esperança, esperanças tão amigas dos dezoito annos! Viajar era-lhe já
uma ancia; cria-se resgatado assim das penas, e só assim que nenhum
outro lenitivo humano lhe poderia já valer.
Embebecido n'esta esperança, voltou para Lisboa, e recolheu-se
tranquillo a casa do desembargador. Ninguem fallou em Theodora. As
primas forcejavam por distrahil-o sem mostrarem proposito d'isso. O
velho proferia maximas umas de Seneca, outras d'elle ácerca das paixões;
abstendo-se, porém, de apontar o alvo onde iam bater as sentenciosas
frechas. Affonso, n'aquelles oito dias, podera recopilar maximas e
proverbios com que, no decurso de longa existencia, regesse as suas
acções, e repartisse sciencia de bem viver por todas as pessoas
transviadas do caminho direito; porém, confessa o inattento sobrinho do
apotegmatico desembargador que apenas se recorda de que eram em latim as
maximas de Seneca, e quasi latinas as do tio em virtude do estylo graudo
e philintiniano em que as compozera. O certo foi que Affonso não
aproveitou nada, nem mesmo o gosto da latinidade.
Mais vernaculo mentor lhe estava reservado, como ao diante se verá.
N'um dos dias em que Affonso estava esperando recursos para se expatriar
com a sua dôr, chegou a Lisboa a fidalga de Ruivães. Affonso, desgostoso
da surpreza, bem que as lagrimas o consolassem ao vêr sua mãe, receiou
que ella viesse apostada, com o imperio dos prantos ou da authoridade, a
demovel-o de viajar. A santa senhora, entrando-lhe na alma, sorriu
benignamente, e disse-lhe:
--Eu vim despedir-me de ti, meu filho, já que tu, antes de sahir de tua
patria, não quizeste ir abraçar tua velha mãe, e abraçal-a talvez para
nunca mais a tornares a vêr. Vim eu, sabe nosso Senhor com que fadigas
aqui cheguei. Mas sempre te devo dizer, Affonso, que eu ouvi muitas
vezes contar a tuas avós que era costume em nossa geração nunca sahirem
da patria para as guerras contra a Hespanha os militares ainda mancebos
e os generaes já encanecidos, sem irem de Lisboa ao Minho despedir-se
dos seus, e orarem em commum diante da cruz a que suas mães tinham orado
com elles tenrinhos nos braços. Este era o uso da nossa familia antiga,
meu filho, e não sei por que não ha-de continuar comnosco tão salutar
costume. Aos pés da cruz a que elles oravam, tambem eu orei comtigo em
meu seio, e lá aprendeste de minha bocca as tuas primeiras orações.
Sempre pensei que o meu nome ao menos--nome dôce de mãe que te
estremece--seria algum tanto mais em teu coração, e esse pouco bastaria
a que o meu Affonso, disposto a desterrar-se sem mais outra razão que a
sua pouca força de alma, o não havia de fazer, sem me ir dar com
anticipação o abraço, que eu lhe pediria nos ultimos instantes da vida.
Aqui estou eu, pois, meu filho, para te abençoar, e ficar pedindo a
Jesus Nosso Pae que te guie, e ampare, e restitua aos que te ficam
chorando. Em quanto a dinheiro, Affonso, tu dirás o que queres, que
prompto está. Prasa a Deus que elle te não sirva de ruina ou deshonra.
O desembargador, que estivera ouvindo esta affectuosa e branda censura,
quando a irmã concluiu, foi direito ao sobrinho, bateu-lhe no hombro com
severidade, e clamou:
--Acorda, coração de pedra!... Córa de pejo, e dôa-te o arrependimento,
filho mau!
--Meu mano--disse a senhora--o nosso Affonso não é mau filho, nem tem
acção de que deva corar. Se a tivesse, eu não seria a mãe que sou. O que
elle tem é ser infeliz; mas quem o encaminhou n'esta má vereda fui eu.
--Tu, Eulalia?! Como assim?--perguntou o desembargador interdicto.
--Eu, eu fui, quem primeiro lhe fallou em Theodora, e lhe preparou o
coração para captivar-se da filha da minha primeira amiga da mocidade.
Cuidava eu que o nascimento honrado de Theodora a dispensaria de herdar
fidalguia, para que ella fosse excellente esposa de meu filho, e digna
de o ser do filho da mais illustre mãe. Eu enganei-me, e elle foi
enganado por mim. Affonso apaixonou-se; quando lhe quizemos valer, era
tarde; tardiamente aconselhei; e meu filho, se não fosse um anjo,
poderia ter-me obrigado a discreto silencio, quando eu, pouco ha, lhe
chamei fraco.
Affonso lançou-se em pranto desfeito, aos braços de D. Eulalia; e, após
curtos instantes de offegante silencio, exclamou:
--Eu não irei viajar, se a sua vontade é essa, minha mãe. Eu tenho em
sua alma um thesouro de bens e de alegrias. Viva, minha querida mãe, o
que eu mais necessito é a sua vida!
--Graças vos dou, meu Creador e Redemptor!--clamou a senhora, muito
commovida, com as mãos postas--Grande é o poder que daes ao coração
maternal! Eu não vos merecia tanto, meu Deus! mas a vossa misericordia
não mede os merecimentos pela afflicção com que as mães vos chamam!
E, volvendo o rosto ao filho, cobriu-o de beijos, e tomou-o para o seio
com o fervor e mimo com que o acariciava na infancia.
O magistrado e as filhas solemnisavam o espectaculo chorando e rindo de
contentamento.

IX
Verei se posso repetir, sem inexactidão sensivel, o que Affonso de Teive
me contou, com seguimento aos successos descriptos.
«Nenhum rapaz dos meus annos--dizia elle--exerceria tão dolorosa
violencia sobre o seu espirito. Jurei commigo de nunca mais proferir o
nome de Theodora, e mesmo convencer minha mãe de me ter esquecido
d'ella. Eu não sabia a que porta do inferno fôra bater, sacrificando-me
puerilmente a uns pontos de dignidade, que homem nenhum de annos
experimentados conseguiu vingar. Em presença de parentes, e relações de
minha familia, atava com arames em brasa a mascara da minha agonia,
contra a qual minha propria mãe involuntariamente dardejava insultos.
Quando ella me dizia: «Estás esquecido d'aquella louca, meu filho! as
minhas orações foram ouvidas no céo» ou quando meu tio, com alegres
gargalhadas me applaudia, dizendo: «Sempre entendi que eras homem, meu
rapaz!» então a minha angustia exacerbava-se, e eu, assim que as
attenções me deixavam senhor meu, ia esconder-me a chorar, a chorar com
as mãos postas; e, muitas vezes, d'este inutil rogar á piedade divina,
erguia-me para escrever a Theodora cadernos de papel, que queimava,
antes de apagar a luz, ao entrar o sol no meu quarto. Que noites
aquellas!...
«Minha mãe deteve-se um mez em Lisboa. Adivinhei-lhe o desejo de me
trazer comsigo para a provincia; mas a obediencia não podia levar tão
longe a abnegação. Recordar estes sitios, vêr além os horisontes de
Braga, cuidar que ainda havia de encontrar, fortuitamente, Theodora, ou
alguem que me fallasse das felicidades d'ella, isto apertava-me tanto a
alma, que eu sentia em mim um desfallecimento de coragem, uma quasi
precisão de pedir a todos em altos brados que me amparassem.
«Então pensei em ir para Coimbra, onde esperava eu que mil rapazes de
todas as condições e feitios me arrancariam de mim proprio, e levariam
em suas folias, ou me habituariam o espirito ás consoladoras occupações
do estudo.
«Minha mãe accedeu promptamente á minha vontade.
«Fui para a universidade, muito escasso de preparatorios, e por isso me
matriculei em philosophia. Logo aos primeiros dias conheci que fôra um
erro confiar nas distracções juvenis de Coimbra. Alistei-me
primeiramente na roda dos moços-velhos, gente ridicula; mas d'uma
ridiculez que não distrahe ninguem. Cada um parecia que trazia dous
oraculos na cabeça: antes de expenderem os seus dogmas, punham-se á
escuta da inspiração; e, ao abrirem a bocca, a propria Minerva das
escadas latinas cuidavam elles que se apeava do sóco para escutal-os.
Zanguei d'estas creaturas infestas, e fui-me inscrever na fila dos
litteratos militantes, gente de pouco saber, de muitas maravalhas,
questionadora por necessidade de adivinhar a discutir o que não sabia da
leitura, emfim, futuras esperanças da patria, que bem sabiam que uma
diminuta sciencia, com muita ousadia, basta para attingir os pinaculos
sociaes. Tinham estes rapazes um jornal. Publiquei sem assignatura uma
das muitas poesias que eu tinha escripto nos arvoredos de Bellas, nos
tempos em que a imagem lagrimosa da reclusa das Ursulinas ia lá commigo
a ouvir a voz de Deus nas harmonias da terra. A poesia tinha a religiosa
suavidade d'um amor que se alliava aos santos enlevos do coração virgem.
Os litteratos disseram que eu imitava Lamartine, e que mesmo o traduzia
quasi litteralmente em algumas strophes. Ora, eu não tinha ainda lido
Lamartine: fui lêl-o, e corei de vergonha pelo grande poeta comparado
commigo. Em todo o caso, desgostei-me dos meus collegas por se darem uns
ares de tolice muito por ahi fóra dos limites rasoaveis. Passados tempos
dei ao jornal uma outra poesia, fremente de paixão, arrojada,
vertiginosa, escripta depois do meu desastre. Os meus collegas
avisaram-me de que a academia, lendo a minha ode, declarára que eu
traduzira Victor Hugo. Fui lêr depois Victor Hugo, e lastimei que os
soberanos do genio estivessem sujeitos ás chufas de todo o mundo, sem
excepção dos litteratos meus contemporaneos da universidade.
«Enfadado d'uns sandeus, que nem mesmo eram recreativos, bandeei-me com
os _trossistas_, iniciando-me para isso nas libações homericas da
genebra e cognac do Troni. Á primeira vez que me embriaguei, recobrando
o tino, envergonhei-me; lembrou-me minha mãe, e chorei. Não impediu isto
que me aturdisse segunda vez. Os meus socios de delirio diziam que eu,
embriagado, era um moço de boa companhia, alegre, sarcastico, ironico,
eloquente, e mesmo espirituoso. E, em verdade, das minhas perdas de
razão ficavam-me lembranças de ter visto o mundo de outra côr, e de
haver idealisado formosas chimeras douradas por novas e esplendidas
auroras d'outro amor. Comecei a sentir saudades da embriaguez quando, no
uso integro das minhas faculdades, me acommettiam os terrores da noite
infinita do meu coração, horas roubadas ao tormento dos parricidas, asco
acerbo a tudo que em volta de mim revelava alegria, odio mesmo á luz que
me amostrava os espectaculos da natureza, em que n'outro tempo a minha
alma, toda oração, toda absorvida, se evolava em effluvios de admiração
para o Altissimo.
«N'este perdimento de dignidade terminei o primeiro anno, com approvação
plena, e resolvi passar as ferias em Lisboa.
--Com approvação plena!--atalhára eu Affonso de Teive.
«Por que não?--respondeu elle--As minhas noites eram quasi todas
desveladas, depois que me recolhia fatigado das assuadas e disturbios.
Se o torpor me não adormecia, a visão de Theodora sentava-se em frente
da minha mesa, e dialogava commigo, ella no tom escarnicador da mulher
ovante da sua deshonra, e eu no accento supplicante de quem já não tem
que pedir senão piedade. A refugir d'este supplicio, ferrava com
desespero dos livros da aula, lia-os, e relia-os sem comprehendel-os;
mas, esmagado o coração sob as mãos de ferro da vontade, conseguia
entender, decorar, e expôr com clareza, uma ou outra vez, as idéas dos
compendios. Os meus creditos firmaram-se desde que me estreei
vantajosamente n'uma lição.
«Pediu-me minha mãe que a visitasse em ferias, embora me demorasse
poucos dias. Sem me negar aos seus desejos, consegui que ella fosse ao
Porto passar commigo a estação dos banhos de mar. Annuiu a santa
senhora.
«Os meus dias corriam magoados, mas serenos em Lessa da Palmeira, onde
se haviam reunido alguns parentes nossos de casas mui distantes umas das
outras. Meu tio Fernão concorreu com minha prima Mafalda, que o jovial
pae me tinha desenhado sem encarecimento. Fôra a minha companheira dos
brincos infantis. Viram-na os olhos da minha razão depois á verdadeira
luz. Era bella, e triste. A seriedade taciturna de Mafalda, se não fosse
vaidade de raça, seria um dialogar permanente com o namorado anjo da sua
innocencia. «Se eu podesse amal-a!» dizia eu a minha mãe, que se tornára
para mim, n'aquelles dias menos opprimidos, uma segunda consciencia. E
minha mãe, com a summa delicadeza da sua virtude, pedia a Mafalda que me
obrigasse a fallar, que me fizesse lêr alguns livros recreativos em voz
alta. Instado por minha prima, escolhi a leitura da _Noite do Castello
ou os Ciumes do Bardo_. Comecei a lêr pelo livro; porém, á segunda
pagina, dei de mão insensivelmente ao livro, e declamei de côr com
tamanho enthusiasmo, e com a voz tão vibrante de lagrimas, que minha mãe
rompeu em soluços, e minha prima empallideceu de assustada da minha
intimativa. Aqui tens tu um lance que eu não posso agora relembrar sem
rir! O que tudo isto me parece, visto d'aqui, do alto dos meus tamancos,
e através d'estes oculos de tres graus!
«Minha mãe impediu a continuação da leitura, e Mafalda nunca mais
desejou ouvir-me. Observei mais arrefecida, e muito menos attenciosa,
minha prima, desde aquella explosão de ciumes, por conta do poeta
Castilho. Isto inquietou-me tão de leve, que nem a vaidade me magoou.
«Estavamos em Setembro, e eu já tinha entrouxado as malas para voltar a
Coimbra. Fui despedir-me dos sitios, onde as horas me tinham sido mais
tranquillas, na soledade. Velejei n'um barquinho rio acima, e aproei á
ribanceira, d'onde se avistava o arruinado e já em parte desfigurado
conventinho de extinctos franciscanos. Á sombra d'um arco manuelino, que
havia sido a portaria do arrazado templo, meditei nos frades, no
convento, no refugio dos desamparados do mundo, nas lapides profanadas
que mãos impias arrancaram de sobre as cinzas de muitos corações,
extinctos com o segredo de sublimes torturas. Meditei, e maldisse a
civilisação, que fechára os aditos da paz, quando a guerra sacudia as
suas serpes mais inexoravel; maldisse a illustração, que aluira a
enfermaria dos empestados do vicio, quando a peste ardia mais
devoradora. A minha angustia era ainda immensa, por que eu não podia
dispensar-me de Deus, e dos homens, que apontavam o caminho de melhor
mundo.
«Descendo o rio, lá me ficavam ainda os olhos e as saudades nas
ruinarias do convento. Desembarquei na ponte, onde minha mãe me estava
esperando. Detive-me a passear com ella pelo braço, e a referir-lhe as
minhas idéas sobre os conventos. A virtuosa rejubilava-se ouvindo-me, e
dizia, em raptos de contentamento, que eu estava da mão do Senhor, e
que, apesar do mundo, havia de trilhar sempre os vestigios de meus
religiosos avós, alguns dos quaes tinham morrido martyres da fé nas
pelejas dos soldados de Christo contra os mahometanos. Ouvia eu
aprazivelmente a chronica de meus ascendentes, gloriosamente mortos na
Africa e no Oriente, quando vi ao longe, na estrada do Porto, á sahida
de Matosinhos, com direcção á ponte, uma senhora cavalgando um alentado
cavallo, ao lado d'um cavalleiro menos cuidadoso das arremettidas
garbosas do seu.
«Minha mãe assestou a luneta, e murmurou:--Valha-me Nossa Senhora dos
Remedios!... Se me não engano...
«Quem é?--atalhei eu. Minha mãe demorou a resposta. Os cavalleiros, no
entanto, avisinharam-se a galope. Antes de conhecel-a, adivinhou-a o
coração, que me repuxou á cabeça uma onda de sangue... Era Theodora,
Theodora, deslumbrante de formosura, gentil como as magnificas chimeras
do pincel inspirado, visão que me não parecia para olhos turvados de
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