Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 06

Total number of words is 4599
Total number of unique words is 1851
33.8 of words are in the 2000 most common words
49.4 of words are in the 5000 most common words
57.3 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.

Essa causa está n'uma instituição anachronica, absurda, insensata,
attentatoria da liberdade intellectual do engenho humano, e além disso,
perfeitissimamente inutil.
O mal não vem dos homens: vem das cousas: vem de uma parvoice legal: vem
da _censura prévia_.
O remedio só lh'o póde dar um parlamento que queira pensar cinco minutos
nesta materia.
Á luz politica, a censura prévia applicada ao theatro é um attentado tão
flagrante como applicada á imprensa. Todas as constituições existentes e
possiveis consagram a liberdade do pensamento e a livre communicação das
idéas. O theatro é, como a imprensa, como as artes plásticas, um meio de
communicação. Uma representação scenica é um livro impresso em tantos
exemplares quantos são os espectadores, com a unica differença de que
estes exemplares se apagam acabada a sua leitura. O principio da
liberdade do espirito é tanto ou mais sancto que o da liberdade da
terra: não soffre excepções, porque, se as soffresse, desceria da
categoria de principio para a classe das regras transitorias da vida
civil. Onde quer que appareça a censura, onde quer que se aninhe esta
irmã gémea da inquisição, ha uma quebra nos foros da independencia do
homem, ha uma insolencia do passado contra a dignidade social da geração
presente. Seja para o que for, a censura é um impossivel politico.
Contra o impossivel não ha razões de utilidade. As mais evidentes
considerações de conveniencia deveriam cahir diante da immutabilidade
dos principios; porque não ha meio termo entre o renegar do progresso
humano, e o respeitar sempre e em toda a parte os elementos fundamentaes
das sociedades modernas.
Mas existem, porventura, taes conveniencias? A censura do theatro--dizem
os defensores dessa cópula sacrilega e bestial de uma instituição
cadaver com as instituições vivas e actuaes--é uma necessidade: melhor é
prevenir que castigar: o castigo dos que abusarem deste modo de
publicação não impedirá que elle tenha já produzido a corrupção: sem
censura póde, até, attentar-se contra a segurança do Estado: no anno de
tal em Paris, em Bruxellas, na Haya, emfim não sei onde, um drama
recheiado de maximas subversivas produziu tal assuada, tal motim, tal
revolta.--Eis as excellentes razões, pouco mais ou menos, com que se
defende a existencia de um absurdo.
Estes argumentos são a apologia, não da censura do theatro, mas de toda
a censura; da censura do drama, como do livro ou do jornal; e ainda mais
destes; porque o exemplar da publicação scenica deixa de existir apenas
cahe o panno; mas do livro ou do jornal impressos, embora sequestreis os
volumes ou os numeros não vendidos, os exemplares derramados do primeiro
golpe lá ficam no dominio publico; milhares de individuos os lerão, e
com tanto maior avidez quanto mais severa houver sido contra elles a
condemnação dos tribunaes.
A desculpa da prevenção nos attentados legaes contra os principios vai
mais longe: vai até a inquisição, se quizermos ser logicos. Um homem é
conhecido por suas opiniões anti-religiosas: este homem é imprudente,
voluntarioso, ousado: nada mais facil, mais provavel que o vermo-lo
cahir na culpa de não respeitar a crença do Estado, de a insultar
publicamente. Á cautella, creae-me uma inquisiçãosinha illustrada; uma
inquisição progressiva, arejada, sem polés, nem potros, mas preventiva e
paternal, onde o incredulo, entre sermões, pão negro arraçoado e agua
benta, seja inhibido de commetter um crime, previsto na lei politica do
mesmo modo que o abuso da liberdade de escrever e de falar. Apostolos da
censura prévia, em nome da logica, dae-me a sancta inquisição.
Deixemos, todavia, as duas bagatellas dos principios e da logica.
Venhamos ao campo da experiencia. A censura ahi está. Que tem ella
feito, não digo já entre nós, que palpamos todos os dias os bellos
effeitos da instituição; mas na França, na Belgica, na Hespanha? Onde
tem impedido a prevaricação do theatro? Respondei-me.
É um dos argumentos mais triviaes e mais lastimosos que se fazem a favor
desta monstruosidade inutilissima o exemplo da França. D'antes, em
Portugal, para fazer uma lei, o que se indagava era se ella convinha ao
paiz. Ha annos a esta parte entendemos que era mais judicioso ver se
convinha aos outros povos. Esta abnegação completa da intelligencia
nacional poderá conduzir-nos ao céu pelo caminho da humildade; mas
tem-nos arrastado cá na terra a muita vergonha legal.
A verdade é que em França os homens independentes e illustrados clamam
tambem contra a censura prévia do theatro, porque é attentatoria e
inutil. Quereis a prova da sua inutilidade no vosso paiz modelo?--Ahi a
tendes á mão. D'onde nos vieram as _Torres de Nesle_, as _Proesas de
Richelieu_, e todas as mais prostituições litterarias da nossa pocilga
dramatica, chamada theatro normal? Vieram-nos dos repertorios dos
theatros de Paris: atravessaram pela censura de Mr. Taylor ou dos seus
delegados, como em Portugal passaram sans e escorreitas pela censura do
Conservatorio. Lá, como cá, a censura é um phantasma de que todos se
riem, e que só serve para descarregar os hombros dos empresarios,
auctores, e traductores dramaticos da responsabilidade moral e legal dos
seus envenenamentos litterarios.
É realmente uma das pequices mais desmarcadas falarem-nos das commoções
populares excitadas n'uma plateia. Quando a revolução vai assentar-se
nos bancos do theatro, não busqueis a sua origem nas palavras energicas
do poeta: buscae-a na frouxidão ou na maldade do poder. Sob um governo
forte e justo, uma revolução no theatro não passaria de comedia
representada áquem do proscenio. Mas, além disso, onde achaes os
exemplos de semelhantes factos? Justamente em alguns dos paizes onde
existe censura prévia. Como o capitão de Luiz de Camões, que não cabia
em nada, sancta gente, vós não cahis em que esse argumento é uma
punhalada na vossa querida censura?
Donde vem a impotencia da censura? De ser uma cousa anachronica, morta,
fétida, inintelligivel. Ao censor que respeita a inviolabilidade dos
principios repugna o impedir a representação de um drama; porque não crê
que o seu arbitrio possa substituir os jurados; que se possa executar
uma lei evidentemente contraria á lei fundamental do estado. Pelo que,
porém, toca ao que não crê nessas cousas, o aborrecimento inevitavel que
lhe traz o desempenho de um dever tedioso, de que não tira nem honra nem
proveito, ou o receio de attrahir odios de homens mais ou menos
poderosos, para o que não são triviaes entre nós o valor e a
consciencia, faz com que ou deixe de ler, ou leia essas miserias e as
approve. Se algum ha que não reflectisse no absurdo da instituição, e
que tenha energia bastante para lhes pôr o seu veto censorio, lá ficam
os empenhos e os respeitos humanos para fazerem escrever no rotulo do
boião immundo de peçonha litteraria: _passe e venda-se por dóses de 480
réis_.
É este o fado de todas as leis, de todas as instituições contradictorias
com as idéas e principios capitaes de qualquer seculo. São cadaveres, em
que a força legal opera os phenomenos que produz no corpo morto a pilha
voltaica; visagens de terror para os circumstantes, falsos movimentos de
vida, mas que todos sabem não passarem de joguetes de physica.
Fazei uma lei para o theatro em harmonia com a lei politica da nação,
com os principios eternos da liberdade intellectual, e salvareis a moral
e a decencia publica, que a vossa ridicula censura deixa todos os dias
impunemente affrontar.
Constitui um jurado especial composto dos membros das corporações
litterarias, homens que tem uma intelligencia para pensar, uma reputação
de probidade, de litteratura, e de gravidade que perder. Ahi tendes um
avultado numero de individuos respeitaveis na Academia das Sciencias, na
Eschola Polytechnica, na Eschola Medico-cirurgica, na Eschola do
Exercito, no Conservatorio e em todos os mais estabelecimentos
litterarios. Confiae-lhes a defensão da moralidade. Os espiritos fracos,
mas honestos, ahi julgarão sem temor; porque a sua sentença será
collectivamente sabida, mas individualmente secreta. Ahi, quando a
occasião do julgamento legal chegar, a causa já estará julgada e
sentenciada pela opinião publica, e esta opinião fará tremer os juizes,
se porventura entre elles houver algum de mais larga consciencia, ou que
seja capaz de esquecer-se, por affeição ou por odio, da sua grave e
importante missão.
Fazei que o processo seja rapido. Haja um procurador especial contra os
delictos dramaticos em offensa da moral publica. Seja o inspector dos
theatros; seja quem vos parecer. Se faltar á sua obrigação, puni-o.
A penalidade da lei seja severa. Por mais severa que a imaginemos, será
sempre branda em comparação da que cabe ao ladrão matador; e eu não sei
resolver qual besta-fera é mais damninha, se um assassino do corpo, se
um envenenador do espirito, que assassina as almas inexpertas das
mulheres e da mocidade, surripiando-lhes ainda em cima alguns cruzados
novos.
Desenganae-vos de que as formulas constitucionaes são mais efficazes que
as molas carunchosas do absolutismo.
Ficae certos de que os jurados não terão de vibrar o golpe da punição
mais do que uma vez. O primeiro empresario que, sem remedio, tiver de ir
dormir por um anno aos paços de S. Martinho, e de practicar a
generosidade de mandar algumas dezenas de moedas para o Asylo de
Mendicidade, ou para a Casa dos Expostos, tirará a todos os empresarios,
presentes e futuros, o fino gosto de offerecerem no theatro ao publico
indignado espectaculos que affrontariam um alcouce.
Que a censura prévia é inutil, os factos tem-no sobejamente provado.
Se-lo-ha uma lei constitucional? Não o creio. Se assim acontecesse, a
nação portuguesa não fora uma sociedade corrompida; fora uma nação
perdida. Nesse caso cumpriria deixar á Providencia de Deus convertê-la
ou anniquilá-la.


OS EGRESSOS

*PETIÇÃO HUMILISSIMA A FAVOR DE UMA CLASSE DESGRAÇADA

1842*


Não sei se todos aquelles que passam os largos serões do inverno, não
nos theatros, nem nos banquetes profusos, nem nos bailes esplendidos,
mas em aposento de poucas varas em quadro, rodeiados de alguns livros e
a sós com o seu pensar silencioso; não sei, digo, se a todos esses
acontece o mesmo que a mim, quando o som do chuveiro subito, o silvo do
vento, e o bramido do mar, quebrando lá ao longe nos rochedos da
marinha, lhes vem toldar a serenidade do tão suave calar nocturno e as
imagens que transitam lentas no kaleidoscopo da imaginação. Aquelles
brados da natureza, que parece gemer angustiada, nem uma só vez deixam
de despenhar-me do meu tão formoso universo das idéas no mundo das
realidades. A vida actual obriga-me então a tomar por uma das suas
estradas dolorosas, e como ao pobre judeu errante, esse bradar da
natureza, envolto no fustigar da chuva, no sibillar da ventania e no
rumorejar longinquo das ondas, repete-me de continuo:--Ávante! ávante!»
O que nesses caminhos muitas vezes se encontra é o clarão que illumina e
o clarão que deslumbra; é a sciencia que se entrevê, separada de nós
pela insufficiencia das forças do espirito; são profundezas ennevoadas
em que a razão se precipita e vai revoluteando até se incrustar n'um
macisso de trevas quasi tangiveis; é o desconsolo de trocar, de noite a
noite, o crer pelo duvidar, o duvidar pelo descrer; é aprender
laboriosamente pouco, desaprendendo dolorosamente muito; é substituir
pela observação e pelo raciocinio opprimidos no finito, no existente, a
poesia que nos leva mansamente embalados atravez das suas creações
infinitas; é consumir a brevidade da vida em esforços não raro
inefficazes para alcançar a verdade, que além da morte, nos espera
tranquilla nas amplidões do tempo sem fim.
Foi n'uma destas noites procellosas, emquanto eu buscava a verdade do
passado, que a imaginação insoffrida, como que a furto, me transportou
das realidades que foram para uma triste realidade que é.
Aproximava-se a meia noite. Tinha acabado de ler uma das bullas do
violento Innocencio III contra o não menos violento Sancho I de
Portugal, inserida nos registos daquelle digno successor de Gregorio
VII, volumosos registos, onde ha muito que aprender ácerca da vida
social de nossos maiores e das obscuras luctas da liberdade burguesa,
tronco antigo das modernas revoluções populares, que tambem tem as suas
arvores de costado, como a aristocracia de berço.
Ao anoitecer o céu estava toldado, a terra humida, e o ar tepido com o
bafo vaporoso do sul. Mas era mais tarde que a tempestade, como o ladrão
nocturno, queria fazer o seu gyro por entre as habitações dos homens.
Era, pois, já bem tarde. Subitamente a chuva fustigou as vidraças: o
primeiro bofar do vento fez ramalhar as arvores meias calvas; e senti-o
que se abysmava debaixo das arcarias de pedra.
Por momentos imaginei que uma especie de demonio familiar me batia á
porta. Dir-se-hia que viera assentado no dorso eriçado do tufão.
Pareceu-me que me affundia diante dos olhos as visões do passado, e que,
entre risadas, me chirriava aos ouvidos.--Ávante pelos caminhos do
presente; ávante, sonhador de abusões».
Obedeci: o meu espirito cahiu no mundo presente, presente na sua mais
rigorosa data, uma noite pessima do mez de novembro do anno do Senhor de
1842.
Lá fóra passava o temporal desfeito. Affigurou-se-me que, levado nas
azas delle, corria por agra e longa estrada das nossas provincias do
norte. Os robles baixos e reforçados, cuja vida, contrahida ao cêpo pela
mão do homem, lhes converte os topos em hydrocephalos monstruosos,
assemelhavam-se aos renques de dolmens druídicos da Bretanha. Quando as
nuvens, no seu curso precipitado, abriam alguma fenda passageira, por
onde a lua golfava instantaneo clarão na terra, via-os fugir para traz
de mim negros, hirtos, nus, como cadaveres tisnados de cousa que já
vivera. Parei. Ao longe, a fita alvacenta da estrada, coleando por entre
os linhares e milharaes, refrangia de quando em quando o luar fugitivo
da superficie alagada das baixas, e depois, alçando-se, como o collo do
cysne, sobre um outeiro, sumia-se no viso delle, ao curvar-se para o
pendor opposto. A dilatada fileira dos robles era o que unicamente se
alevantava da terra por um e outro lado. Pareceu-me, porém, que um vulto
distante vinha pela estrada do lado do outeiro: era um vulto humano, que
ora se encobria na sombra de nuvem negra que passava chuvosa, ora se
desenhava na claridade transitoria do céu. Aproximou-se vagarosamente, e
chegou ao pé de mim: passando, os seus vestidos roçaram-me por uma das
mãos: eram frios e molhados. Seguiu ávante, sem reparar em mim, que não
podia despregar os olhos d'elle. Os seus passos eram arrastados e
tremulos, vergado o corpo, a fronte nua e calva. E eu olhava para elle
fito. A chuva começou de novo a cahir cerrada e escura. O vulto
encostou-se então a um dos robles da estrada, como buscando abrigar-se;
e na cerração da saraiva que sobreveio, ouvi-lhe um gemido.
Foi um gemido inexplicavel de desalento e agonia.
«É mentira:--dizia comigo, tentando quebrar o feitiço daquelle pesadello
de homem acordado.
E quebrei-o: e era mentira. «Girei n'um circulo vicioso--pensava eu--.
Parti do ideal para chegar ao ideal atravez da realidade.»
E de feito, como o leitor facilmente acreditará, estava no meu gabinete,
com um tinteiro e algumas folhas de papel diante de mim, tendo do lado
esquerdo o segundo tomo das epistolas de Innocencio III, e da direita o
terceiro volume da _Monarchia Lusitana_ de Fr. Antonio Brandão; isto é,
da esquerda um papa ao mesmo tempo intractavel e astucioso; da direita
um frade modesto e sincero; e como personalisados nelles, o mau e o bom
anjo, que nos seguem sempre e por toda a parte.
De resto, a chuva cahia, mas era lá fóra. Eu estava enxuto e secco,
tanto, quasi, como a alma de um politico: estava bem, agasalhado,
commodamente. Só a luz do candieiro é que se tornara escandalosamente
mortiça.
Ergui o braço para a espivitar, e a cabeça para ver se a minha obra era
boa. Não sei se nestas palavras abuso das reminiscencias biblicas. Os
theologos o dirão.
O meu _fiat lux_ foi cumprido. O candieiro despediu um clarão brilhante,
que alagou todo o aposento.
Nunca eu tivera practicado este acto de omnipotencia! N'uma porta
fronteira, que dava para outro aposento desalumiado, estava o vulto que
vira no meu desvaneio de homem acordado; estava ahi, immovel, triste,
afflictivo, como a imagem do innocente suppliciado que apparecia todas
as noites sobre o bofete do celebre auctor da Ulissea.
E a figura avultava lá: e eu olhava para ella sem pestanejar. Oh que se
vós a víreis!
Era um ancião veneravel: tinha a fronte suave e pallida sulcada
profundamente dessas rugas horisontaes, que são como as ondas que vem
morrer nas margens exteriores do oceano tempestuoso dos pensamentos: o
seu olhar era esse olhar manso, agasalhador, indulgente, que em certos
velhos nos fascina e subjuga, e que nos faz dizer a nós os moços:--Quem
me dera ser teu filho!» Nas faces cavadas aninhava-se-lhe a fome ou a
penitencia...
«É a fome!--bradei eu, pondo-me em pé; porque, correndo a vista ao longo
da barba branca do ancião, vi que esta lhe cahia sobre o escapulario
negro de monge benedictino.
Mas a visão desapparecera de novo: e apenas me pareceu ouvir soar ao
longe uma voz cava e debil, como a que sáe de peito consumido por febre
pulmonar, que recitava estas palavras do Psalmista:
_Judica me Deus, et discerne causam meam, et a gente non sancta et ab
homine iniquo et doloso erue me_.
O meu circulo vicioso não existia. Cahira das idealidades do passado no
mundo real, e ahi, n'uma das realidades mais torpes, mais ignominiosas,
mais brutaes, mais estupida e covardemente crueis do seculo presente,
que diante de Deus, que o vê e o condemna, ousa gabar-se de grande e
generoso e forte; mas em cuja campa o christianismo e a philosophia
escreverão algum dia unicamente este letreiro:
--Aqui jaz a ultima era dos martyres.--
E pûs-me a scismar.
_Erue me! Erue me!_--O Senhor te resgatará, pobre monge; porque não
tarda a bater a hora em que durmas tranquillo na terra fria e humida,
fria e humida como a estamenha que te cobre. Queiras tu de lá
perdoar-nos!
E lançando os olhos em volta, perguntava a mim mesmo:--Porque possuo eu
os commodos da vida, o pão do corpo e o pão do espirito, e porque perdeu
elle tudo isso? Que bem tenho eu feito ao mundo? Que mal lhe havia elle
feito?
Á fé, que a minha consciencia não achou uma unica resposta cabal a tão
simplices perguntas.
A lembrança do frade velho atormentou-me toda a noite. A imaginação não
m'o pintava já na passagem escura, onde surgira pela segunda vez: via-o
na idéa, e ahi, encostado ao roble, procurando conchegar os membros
inteiriçados na cogulla encharcada, e resguardar a cabeça calva ao
abrigo do robusto madeiro. Errante e mendigo como o rei Lear, o monge
não tinha, como elle, para o guiar na solidão e na procella a caridade
de um truão.
É que hoje não ha truões. Este seculo é um grave, sério e cogitador
assassino.
De quantos anciãos veneraveis será a historia a historia do meu
benedictino?
«Mas elles têem pão: os soccorros publicos...» Olé, homens grandes,
silencio!
Qual é o juro legal de cem milhões? São cinco.
Quanto dizeis vós que atiraés dos vossos balcões dourados aos hélotas da
sciencia e do sacerdocio? Uma quota diminuta dessa quantia.
Cahiu também a arithmetica debaixo das ruinas do passado? Se é assim,
dizei-o. Supprimamos a arithmetica. O que não fica supprimido é a
palavra--mentira!
Mentistes; porque a somma de que falaes existe apenas em palavras mais
torpemente hypocritas que as da serpente tentadora de nossa primeira
mãe, as que se escrevem nas paginas de um orçamento.
E a realidade? A realidade é a minha visão; é que o monge, o sacerdote,
se converteu em mendigo.
Silencio, outra vez, homens grandes! Tambem eu nasci nesta terra, e o
sangue ainda me não esqueceu o caminho das faces.
E se nós, geração do progresso e da philosophia, nos envergonharmos de
ser deshonestos, e dissermos:--Dê-se uma fatia de pão ao que morre de
fome!» Mais; se dissermos:--Pague-se um juro modico dos valores que nos
apropriámos?»
Se o fizermos, em logar de sermos mil vezes uma cousa, cujo nome não
escreverei aqui, sê-la-hemos só novecentas e noventa e nove; porque
teremos restituido a millesima parte do que loucamente havemos
desbaratado.
O homem não vive só de pão. Di-lo um livro que vós nunca lestes, mas que
nem por isso tem deixado de ser por dezoito seculos o abrigo, a
doutrina, a crença e a consolação de innumeraveis milhões de individuos.
Calculastes jámais quanto é insolente, atroz, diabolico, chegar a um
velho, tomar-lhe nas mãos todas as suas affeições, todos os seus habitos
de largos annos, todas as suas esperanças mais queridas, e despedaçá-las
e calcá-las aos pés, e dizer-lhe depois:--Dar-te-hei um bocado de pão?»
Prometter pão aos setenta annos!... Feita a quem esperava morrer
abraçado com o passado; que reportava a elle o presente e o futuro; cujo
viver intimo era só de memorias, essa promessa materialista e de
escarneo bastaria para deshonrar-vos. Que nome, porém, se dará aos que
nem essa mesma cumpriram?
Quaes podiam ser as affeições de antigo monge habitador de um d'esses
mosteiros solitarios espalhados pelas provincias, e afastados do tumulto
das grandes cidades? As suas affeições existiam todas dentro dos muros
do claustro: era a cella caiada e limpa; era a enxerga do seu catre; era
a banca de pinho em que meditava e lia; era a poltrona tauxiada em que
se assentava; era a estamenha do seu habito; eram as suas sandalias de
peregrino; era a arvore da cerca, fronteira da janella, onde o rouxinol
cantava na madrugada; era o crucifixo do seu oratorio; era a lagea da
crasta, debaixo da qual dormiam seus irmãos mais velhos, aquelles que
antes delle haviam seguido o caminho do Calvario, e donde pareciam
chamá-lo para o seio de Deus, quando os seus passos vagarosos soavam por
cima da pedra. Nisso, e em mil cousas como estas estavam postos o seu
amor, os seus affectos, as suas saudades, os seus desejos. Era o seu
mundo esse; e a vida, serena, calada, melancholica, balouçava-se-lhe
suavemente nessas affeições do retiro. Porque lhe despedaçastes tudo
isto? Quanto vos renderam a enxerga, as sandalias, a lagea do sepulchro
e o crucifixo?
Pobre velho! Pobre velho!
«Mas nós, acudireis, não podiamos calcular essas cousas, nem cremos em
affectos moraes. Temos cabeça, mas falta-nos coração, como convém a
homens politicos. Os frades eram um elemento da sociedade antiga que
cumpria annullar. Fizemo-lo. E então?»
Então roubastes Satanaz.
Pois Satanaz era um demente, que vos désse palacios, carruagens,
banquetes, prostituições, embriaguez, poderio, a troco de uma alma
inteiramente morta para os affectos; que não comprehendesse nem a dor
moral, nem as harmonias suaves que ha entre o universo e o homem? Uma
alma sempre em noite, e na qual nunca penetrasse a saudade mysteriosa do
céu? De que lhe serviria para comvosco a sua terribilissima herança de
uma eternidade de tormentos?
Ah... deixae-me dizer tudo isto; porque a imagem do velho benedictino
está gravada na minha alma como um remorso; e sinto lá fóra a chuva que
lhe açouta as faces ardentes de febre, o tufão que lhe revolve as cãs
venerandas, a torrente que lhe alaga os pés descalços. As lagrymas do
sacerdote, só, mendigo, nú, esfaimado, são uma tremenda maldicção
contra nós, maldicção que ha de cumprir-se.
A arte moderna parece ter achado os mais poderosos meios de excitar a
compaixão e o terror: tudo quanto a arte antiga tinha pathetico e
terrivel sentimo-lo hoje frouxo e pallido. Se hoje, porém, houvesse
engenho capaz de traduzir em palavras humanas o drama horribilissimo das
ultimas agonias da vida monastica em Portugal, aquelle que lesse uma só
vez esse livro monstruoso e incrivel poderia depois, ao deitar-se,
conciliar o somno com o _Leproso de Aosta_, com o _Fausto_, com o
_Manfredo_, ou com os _Últimos dias de um sentenceado_.
Quando em 1834 se extinguiu o antigo e celebre cenobio de Sancta Cruz de
Coimbra, aconteceu ahi um facto que póde, até certo ponto, dar uma idéa
das primeiras scenas do negro drama que ha oito annos começou a passar
ante os olhos daquelles que ainda não abnegaram de todo a humanidade e o
pudor. Expulsos os cenobitas, e inventariados os bens do mosteiro pelos
commissarios desta obra brutal, quasi por toda a parte brutalmente
executada, ainda uma cella daquelle vasto edificio ficava occupada por
um dos seus antigos habitadores. Era um velho de oitenta annos, a quem o
tropego, o quasi morto dos membros embargavam o caminhar, e que por isso
não podia seguir seus irmãos. Entrando no aposento, encontraram o
cenobita deitado no seu catre humilde, em cujo topo pendia o crucifixo
que, talvez por sessenta annos, tinha visto a seus pés consumir-se na
meditação, nas preces e na penitencia aquella dilatada vida. Estava só o
ancião, e o silencio que o rodeiava apenas era interrompido pelos
gorgeios de uma avesinha, que pulava contente ao sol n'uma gaiola
pendurada da abobada. O velho parecia pensativo, como se adivinhasse que
era chegada para elle a hora do martyrio.
As passadas dos que entravam moveram-no a volver os olhos: correu-os por
aquelles rostos desacostumados: depois tornou-os a abaixar. Que lhe
importavam os homens do seculo? Elle não os conhecia.
Disseram-lhe então que era necessario sair d'alli.
«Porque?--perguntou o cenobita.
«Porque os frades acabaram:--replicou o mais eloquente e discreto dos
verdugos, como se exprimisse a idéa mais simples e trivial deste mundo.
«Porque os frades...: repetiu em voz baixa o velho, sem concluir. Os
labios não podiam levantar de cima do coração o resto daquella phrase
monstruosa: ella lh'o havia esmagado.
Um sorriso estupido passou pelas faces estupidas de alguns dos
circumstantes. No gesto espantado do cenobita liam elles a grandeza do
esforço com que associavam o proprio nome á obra prima do seculo.
E com razão. O triturar assim um coração de oitenta annos era feito que
excedia em heroicidade todos os que haviam practicado dous cavalleiros
portugueses, que, lá embaixo na igreja, continuavam a dormir nos seus
leitos de pedra um somno de muitos seculos, e que se chamavam Affonso
Henriques e Sancho Adefonsíades.
Os olhos do ancião ficaram enxutos. Só accrescentou:--Mas para onde hei
de eu ir?»
«Para casa dos vossos parentes:--acudiu o philosopho.
O cenobita correu a mão pela fronte calva, e respondeu:--Já não tenho
parentes na terra: todos me esperam no céu».
«Então ireis para a de algum amigo.»
«O unico amigo meu que ainda vive é aquelle!»
E apontava para a avesinha.
«O frade irá pois morar na gaiola do pintasilgo:--rosnou por entre os
dentes um dos algozes, que tinha fama de gracioso. Não quiz, porém,
communicar aos outros tal idéa. Tudo estouraria de riso.
Alguem, que estudava ahi perto esta scena de progresso moral, não pôde,
todavia, continuar os seus graves e terriveis estudos. Precisava de ar,
de luz, de ver o céu. Atravessou ligeiro o longo dormitorio, e desceu a
quatro e quatro os degraus das extensas escadarias. As lagrymas
rebentavam-lhe como punhos.
Á portaria de Santa Cruz as primeiras palavras que ouviu foram, que a
municipalidade acabava de fazer um calvario no fundo de uma petição,
escripta em vasconço por certo doutor affamado, na qual pedia ao governo
lhe atirasse aquelle osso do mosteiro de sete seculos, para o roer até
os fundamentos, e construir no sitio d'elle, não me lembra ao certo se
um espogeiro, se uma sentina.
Era o estudo do progresso artistico após o estudo do progresso moral.
Quantos destes factos dolorosos se passaram naquella epoclha por todos
os ângulos de Portugal! Poderia contar-vos mil, e cada um delles fora
uma nova scena de agonia. Os martyres primitivos morriam nos eculeos,
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 07
  • Parts
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 01
    Total number of words is 4340
    Total number of unique words is 1724
    31.4 of words are in the 2000 most common words
    47.1 of words are in the 5000 most common words
    55.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 02
    Total number of words is 4398
    Total number of unique words is 1706
    31.2 of words are in the 2000 most common words
    45.9 of words are in the 5000 most common words
    53.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 03
    Total number of words is 4571
    Total number of unique words is 1688
    31.7 of words are in the 2000 most common words
    46.1 of words are in the 5000 most common words
    53.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 04
    Total number of words is 4525
    Total number of unique words is 1600
    32.4 of words are in the 2000 most common words
    45.9 of words are in the 5000 most common words
    52.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 05
    Total number of words is 4563
    Total number of unique words is 1734
    31.3 of words are in the 2000 most common words
    45.8 of words are in the 5000 most common words
    53.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 06
    Total number of words is 4599
    Total number of unique words is 1851
    33.8 of words are in the 2000 most common words
    49.4 of words are in the 5000 most common words
    57.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 07
    Total number of words is 4482
    Total number of unique words is 1630
    31.1 of words are in the 2000 most common words
    46.8 of words are in the 5000 most common words
    55.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 08
    Total number of words is 4500
    Total number of unique words is 1751
    30.9 of words are in the 2000 most common words
    47.5 of words are in the 5000 most common words
    55.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 09
    Total number of words is 4399
    Total number of unique words is 1484
    33.9 of words are in the 2000 most common words
    48.9 of words are in the 5000 most common words
    56.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 10
    Total number of words is 4441
    Total number of unique words is 1568
    33.9 of words are in the 2000 most common words
    49.5 of words are in the 5000 most common words
    57.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 11
    Total number of words is 4476
    Total number of unique words is 1666
    29.5 of words are in the 2000 most common words
    42.4 of words are in the 5000 most common words
    51.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 12
    Total number of words is 3100
    Total number of unique words is 1246
    31.7 of words are in the 2000 most common words
    46.4 of words are in the 5000 most common words
    52.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.