Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 09

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as faces enrugadas e pallidas das monjas de Lorvão, por onde as lagrymas
se penduravam quatro a quatro, emquanto vozes convulsas descreviam
scenas do longo drama de miseria de que este sepulchro de vivos tem sido
theatro durante vinte annos: supponha que olhava para estas janellas mal
reparadas, para estas paredes verdoengas, cujo aspecto produz um
sentimento inexplicavel de frio, apesar do calor da atmosphera n'um dia
de julho; para as alfaias roçadas e poídas; para os proprios trajos das
freiras; que lia em tudo isso, repetida por cem modos, uma palavra só:
_infortunio, infortunio, infortunio_! Que fazia? Com o seu coração, com
os seus principios, e redactor de um jornal que tem largas sympathias,
sentia-se grande e forte pondo a sua penna eloquente ao serviço da
desgraça e da fraqueza. Faça-o, meu amigo; faça-o! Peça esmola para as
freiras de Lorvão, que foram ricas e felizes na mocidade, e que na
velhice tem fome. A velhice é sancta! Ponha esse contraste do passado e
do presente perante os olhos dos opulentos e ditosos, para que se
lembrem com alguns cruzados das pobres que gemem debaixo destas abobadas
escondidas no meio dos montes ladeirentos e agrestes do concelho de
Penacova. Ao governo não peça nem diga nada; deixe esses homens ao seu
destino; deixe-os estofar poltronas e dormir nellas. Deus e os vindouros
hão de julgar-nos a todos.
Se entender que esta carta de uma testemunha ocular póde servir de thema
ás suas considerações, publique-a. O homem que vê o que eu vi e abafa no
peito o grito da indignação ou é um malvado ou um covarde, e eu espero
não merecer jámais nenhum desses titulos. Imprima esta carta no todo ou
em parte, se quizer; porque folgarei com isso. O que importa é ver se
obtemos despertar a compaixão publica a favor destas infelizes.
Auctorisando-o, porém, a publicar as idéas que me assaltaram ao
presenciar o espectaculo atroz e repugnante que está diante de mim,
advirta que não ha nisso nem virtude, nem audacia. Incommodam-me
mediocremente as coleras de certa gente, e a malevolencia ou antes o
odio della é titulo que aprecio, porque creio que ha de honrar perante a
posteridade quem quer que o possuir, se é que este paiz não caminha
fatal e irremediavelmente á dissolução social.


DO ESTADO
DOS
ARCHIVOS ECCLESIASTICOS DO REINO
E DO
DIREITO DO GOVERNO
EM
RELAÇÃO AOS DOCUMENTOS AINDA NELLES EXISTENTES

PROJECTO DE CONSULTA
SUBMETTIDO Á
SEGUNDA CLASSE DA ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS
*1857*


Senhor.--Manda V. M. que a Classe de sciencias moraes, politicas e
bellas-letras da Academia Real das Sciencias de Lisboa consulte sobre as
representações dirigidas a V. M. por diversas corporações
ecclesiasticas, que recusara obedecer á portaria de 11 de setembro de
1857 pela qual se ordenou a entrega de certos documentos antigos
pertencentes aos cartorios dessas e d'outras corporações, para serem
depositados no Archivo nacional da Torre de Tombo, onde tem de ser
examinados, a fim de se transcreverem aquelles que se reputarem dignos
de entrar na collecção dos Monumentos Historicos de Portugal, que esta
Classe está publicando, e que se tornou pela ultima lei do orçamento uma
obra verdadeiramente nacional, visto que a sua existencia se estriba
hoje n'uma providencia legislativa.
Examinando a portaria de 11 de setembro e as representações que ella
suscitou, a Classe não póde deixar de deplorar que um acto do poder
executivo em que só transluz o amor das letras e o patriotismo
illustrado e circumspecto do Governo de S. M. encontrasse resistencias,
ás quaes se buscaram pretextos, que nem sequer tem o merito de
plausiveis, e que ao mesmo tempo envolvem affirmativas erroneas de
doutrina e de facto, que esta Classe, pertencendo a um dos primeiros
corpos scientificos do paiz, não deve deixar sem correctivo, até porque
foi ella, não só quem sollicitou a transferencia d'aquelles documentos,
mas também quem aconselhou a sua conservação no Archivo geral do reino,
circumstancia esta que, diante de inexplicaveis resistencias, a forçam,
bem contra sua vontade, a dar as razões que a moveram a suggerir esse
ultimo arbitrio ao Governo de V. M.
Dos papeis transmittidos á Classe por soberana resolução de V. M.,
comparados com as communicações dos commissarios encarregados da
recepção dos antigos pergaminhos indicados pela Classe, resulta que
nenhum prelado diocesano recusou entregar os documentos que foram
pedidos dos archivos das respectivas mitras, ou de outros immediatamente
dependentes dos mesmos prelados. Provaram assim que comprehendiam, como
o Governo e o Parlamento o haviam comprehendido, a magnitude e o valor
do trabalho que a Academia emprehendera, provando igualmente que o
episcopado português não degenerou, e que o baculo pastoral dos Caetanos
Brandões, dos Cenaculos, dos Avellares, dos Lemos, dos S. Luiz não cahiu
em mãos indignas delle. A Classe compraz-se em poder dar um testemunho
de agradecimento em nome das letras a quem tão nobremente sabe conciliar
a dignidade do caracter episcopal com o reconhecimento do direito do
Governo, e com o sentimento da gloria litteraria que resulta para o paiz
da publicação dos seus monumentos historicos, empreza que já é
devidamente apreciada, não só entre nós, mas tambem pelos homens
competentes de outras nações da Europa.
Do mesmo modo resulta dos documentos officiaes remettidos pelo Governo á
Academia e das communicações dos agentes desta, que umas corporações se
mostraram promptas a obedecer ao Governo, que outras desobedeceram,
limitando-se a declarar oficialmente aos agentes da Academia o motivo do
seu proceder, e que outras desobedeceram e representaram a V. M. Vê-se
d'aqui que entre ellas ha desacordo sobre a extensão dos respectivos
direitos, e que algumas entendem, e bem, como os prelados maiores, que o
Governo não ultrapassou os limites das suas attribuições.
Para poder apreciar devidamente os fundamentos da resolução tomada por
algumas das corporações de mão-morta, de que resultaria tornar-se
impossivel a continuação de um trabalho que hoje a lei fórça o Governo e
a Academia a realisar, cumpre expor o estado da questão e reunir as
objecções ao cumprimento da portaria de 11 de setembro, oferecidas nas
diversas representações recebidas pelo Governo e communicadas á
Academia, e nas respostas que foram dirigidas officialmente ao agente
desta nas provincias do norte. Não podendo qualificar-se o acto das
corporações que recusaram fazer a entrega sem recorrer a V. M., senão de
pura e simples desobediencia, a Classe abstem-se de indicar qual deva
ser em tal caso o procedimento do executivo, encarregado de cumprir as
resoluções do poder legislativo. O Governo de V. M. sabe perfeitamente
qual é neste caso, não só o seu direito, mas tambem o seu dever. Todavia
a Classe não póde deixar de se fazer cargo dos motivos de recusa que
directamente lhe foram dados, e conjunctamente d'aquelles sobre que é
mandada consultar.
A Academia pela Classe de sciencias moraes, politicas e bellas letras
sollicitou a vinda a Lisboa dos documentos anteriores ao anno de 1280
que existiam, não só nos cartorios dos extinctos mosteiros, mas também
nos das corporações de mão-morta não abolidas, pedindo ao mesmo tempo,
para maior segurança desses documentos, e para evitar uma
responsabilidade que lhe era inutil tomar, que fossem depositados no
Archivo geral do reino, aonde os academicos encarregados da publicação
dos Monumentos Historicos podiam, sem incommodo grave, ir fazer a
escolha e os mais trabalhos necessarios ácerca dos que se achasse que
deviam entrar naquella collecção. A Classe possuia já a este tempo um
inventario succinto de todos os documentos anteriores a essa data, que
ainda existem nos archivos dos districtos centraes e septemtrionaes do
reino, e que montam a alguns milhares. Este inventario fora feito por
um commissario da Academia com auctorisação do Governo, nos annos de
1853 e 1854.
A correspondencia deste commissario, no desempenho das funcções que lhe
tinham sido commettidas, e em conformidade das instrucções que lhe
haviam sido dadas, fez conhecer á Classe qual era o deploravel estado da
maior parte dos cartorios, não só das corporações extinctas, mas tambem
das existentes. A perda de antigos documentos, quanto ao passado, era já
immensa, e podia prever-se qual seria quanto ao futuro, conservando-se
as cousas no estado em que se acham. Convencida de que fazia um bom
serviço ao paiz aconselhando o Governo a que conservasse no Archivo
geral do reino os documentos chamados a Lisboa, depois de examinados e
utilisados litterariamente, a Academia não hesitou em fazê-lo;
absteve-se porém de fundamentar com os factos de que adquirira
conhecimento um conselho, na verdade não pedido, mas que o seu caracter
de corpo litterario official lhe impunha o dever de dar em materia de
sua competencia. Procurava assim evitar ás corporações existentes o
desgosto que a narrativa de certos factos, que podiam vir a ser
publicos, devia causar-lhes, e ao mesmo tempo precaver a continuação de
perdas irreparaveis. Entretanto, como o fim que então se propunha, e que
hoje se propõe, era o estudo e escolha desses documentos para continuar
o trabalho que encetara, deixou ao prudente arbitrio do Governo ponderar
se conviria mais restituir os documentos enviados á Torre do Tombo, se
conservá-los alli, propondo a V. M. a resolução mais conveniente.
A portaria de 11 de setembro de 1857 não é outra cousa senão a
reproducção deste pensamento da Academia, abraçado pelo Governo de V. M.
Expondo summariamente as razões que ha para se conservarem de futuro na
Torre do Tombo os documentos pedidos, o ministro dos negocios
ecclesiasticos e de justiça limitou-se comtudo a ordenar em nome de V.
M. a entrega delles, reservando para tempo opportuno resolver se devem
ser alli conservados ou restituidos aos cartorios das corporações.
Vê-se, pois, que nessa parte as representações eram licitas, e é até
possivel que as ponderações a favor da restituição fossem de ordem tal
que movessem o animo de V. M. a ordená-la. Isto, porém, não dispensava
as corporações de obedecerem quanto á entrega e ao deposito temporario
no Archivo nacional, que era por então o que preceptivamente se
estatuia. Quanto a este ponto, nenhuma opposição plausivel se poderia
fazer, e as recusas dirigidas officialmente ao commissario da Academia
constituem nessa parte, como já se notou, uma desobediencia formal.
E esta desobediencia é tanto mais grave quanto é certo que se o Governo
de V. M. não procurasse reprimi-la, della resultaria, não só a
impossibilidade de se cumprirem as resoluções do Parlamento, mas tambem
grande descredito para qualquer ministro que tolerasse semelhantes
obstaculos á continuação de uma empreza que, por nos servirmos da phrase
de um de dos maiores sabios da França, constituirá um dos títulos mais
gloriosos do reinado de V. M.
A Classe lamenta que taes resistencias venham de corporações parte das
quaes são compostas de individuos em quem se deve suppor maior ou menor
educação litteraria, e que, em relação á sociedade civil, são
verdadeiros funccionarios publicos. Não era por certo de esperar que,
tanto nas representações dirigidas a V. M., como nas respostas dadas ao
agente da Academia, se encontrasse tão singular esquecimento do direito
publico antigo e moderno do paiz, transtorno tão completo das boas
doutrinas, tão inexacta exposição de factos, e até accusações tão
offensivas contra a Academia, que V. M. relevará por certo que esta
Classe, repellindo-as, seja talvez sobradamente severa.
As ponderações feitas e os factos allegados, tanto nas representações
dirigidas a V. M., como nas respostas officialmente dadas ao commissario
da Academia, resumem-se no seguinte:
Diz uma das corporações que não pode convir na alheação dos antigos
documentos do seu cartorio, porque na maxima parte são comprovativos de
contractos onerosos, e quando o não sejam, illustram esses contractos, e
que a portaria de 11 de setembro alheia a favor do Archivo da Torre do
Tombo documentos que são propriedade da mesma corporação.
Diz outra: que a portaria encerra uma determinação inteiramente nova e
contraria á practica até hoje seguida.
Declara ao mesmo tempo, n'um officio ao commissario da Academia, que
para o exame de qualquer documento no seu archivo é indispensavel
licença regia e uma ordem do prelado ordinario; mas que para se tirarem
documentos seriam necessarias ou uma lei que dispensasse as formalidades
do esbulho da propriedade, ou sentença do poder judicial.
Outras duas corporações limitam-se a dizer em officios ao dito
commissario que a portaria de 11 de setembro offende o direito de
propriedade, e que recusam a entrega por terem representado sobre esse
assumpto ao Governo de V. M., representações que esta Classe não póde
apreciar porque não lhe foram communicadas.
Duas corporações monasticas do sexo feminino declaram, emfim, não
poderem entregar os dictos documentos por causa dos inventarios dos seus
bens a que se está procedendo por ordem do Governo, em virtude de
resolução de Cortes.
As outras corporações mostram-se todas promptas a obedecer ás ordens de
V. M.
Senhor, os membros da Classe de sciencias moraes, politicas e bellas
letras não podem deixar de dizer a V. M. com o respeito devido ao chefe
do estado, mas com a liberdade de homens de letras, que é impossivel
acumular mais desvarios do que os que se lêem nos documentos acima
substanciados. Elles provam peremptoriamente a necessidade de uma
profunda reforma no systema da educação do clero, e de vigilancia da
parte do Governo sobre o modo como são providos os beneficios
ecclesiasticos.
Predomina, em geral, nos documentos que temos presentes uma certa somma
de idéas, não sabemos se astutas, mas sem duvida falsas. É uma dellas a
confusão dos bens administrados pelas corporações com os titulos
primitivos dos mesmos bens, confundindo-se igualmente esses titulos
primitivos com os actuaes; os que podem ter uma utilidade practica na
administração ou no foro com os que só em casos rarissimos servirão para
fortificar ou esclarecer o testemunbo d'est'outros. Posses immemoriaes,
tombos incomparavelmente mais modernos do que os pergaminhos anteriores
ao seculo XIV, contractos de epochas posteriores, mais ou menos
recentes, eis os verdadeiros documentos de uso practico, que se
conservam nos cartorios das corporações. E se esses pergaminhos antigos
tem a utilidade material que se lhes attribue, as corporações devem
possuir índices regulares que apontem em substancia o objecto, a indole
d'elles e os logares onde se acham nos respectivos cartorios: depois,
devem abundar os exemplos de casos nos quaes ellas os hajam utilisado
nos ultimos vinte ou trinta annos. Exija o Governo de V. M. aquelles
índices; peça a enumeração especificada destes casos, que por certo não
ficará edificado da verdade das allegações nesta parte.
Ainda admittindo todas as inexacções de direito e de facto apinhadas nas
representações e officios sobre este assumpto, ha uma circumstancia que
torna a denegação absoluta e completa das corporações ao cumprimento da
portaria de 11 de setembro, não só um acto de vandalismo litterario e de
desprezo pela gloria da nação, mas tambem uma verdadeira espoliação
feita ao paiz. Na epocha a que pertencem os documentos exigidos, não
existia archivo especial do rei ou do estado, o qual só começou no tempo
de D. Fernando I. Os diplomas de alta importancia, cuja existencia se
desejava conservar para a posteridade, manda-vam-se depositar nos
cartorios dos cabidos e dos principaes mosteiros, chegando-se aponto de
se ordenar esse deposito no proprio corpo do diploma. É um facto este
que as corporações desobedientes tinham obrigação de não ignorar.
Depois, os prelados, os cabidos, as ordens ecclesiasticas e militares
exerciam, como donatarios da coroa, actos que importavam manifestações
de soberania, e contractos em que rigorosamente esses corpos não
figuravam senão como representantes do poder publico: taes eram os
foraes instituindo municipios e comprehendendo provisões de direito
publico local; taes eram os contractos por que se transformavam os
terrenos reguengos em jugadeiros, as quotas de fructos em rendas certas,
etc. Os documentos desta ordem não respeitam ás corporações; respeitam
ao paiz, como aquelles que os antigos monarchas confiaram á guarda do
clero. Suppondo que ellas tivessem direito a negar a entrega dos que
exclusivamente lhes dizem respeito, poder-se-hia tolerar que tambem
sequestrassem impunemente os documentos da nação por um capricho
inexplicavel, ou antes explicavel de mais?
Ha, pouco, Senhor, que examinando-se por ordem desta Classe os restos
que escaparam do rico archivo do mosteiro de Aguiar, conservados no
Thesouro-publico, ahi se foram encontrar no original muitos documentos
politicos e economicos da mais alta importancia relativos aos seculos
XIII e XIV. Se ainda existissem corporações religiosas do sexo
masculino, como existem do feminino, é natural que, como algumas destas,
os monges de Aguiar recusassem obedecer á portaria de 11 de setembro.
Toleraria, porém, o Governo que esses documentos importantes para a
historia, e talvez para questões actuaes ou futuras com a Hespanha
ácerca de limites, ficassem sepultados e inuteis nas tristes solidões do
Cima-Coa? E tolerá-lo-hia só porque alguns frades suspicazes e
ignorantes receiassem que o conhecimento dos velhos pergaminhos do seu
cartorio podesse servir para lhes contrariar interesses materiaes de
cuja legitimidade a consciencia os fizesse duvidar?
As difficuldades, Senhor, que se oppoem agora á realisação do empenho da
Academia e ao cumprimento da lei já em parte surgiram quando se ordenou
que os cartorios das corporações fossem franqueiados ao simples exame de
um commissario da mesma Academia. Houve recusas formaes; houve
subterfugios dilatorios. Indagou-se o motivo disto, e soube-se que se
receiava fosse utilisado o exame a que se procedia em beneficio dos
colonos ou proprietarios com quem as corporações tem litigios sobre
direitos dominicaes; porque a algumas d'ellas, ou a todas, custava a
comprehender que se gastasse tempo em decifrar esses pulverulentos e
afumados diplomas sem algum interesse material. Note-se agora a infeliz
coincidencia entre a resolução administrativa que chama a Lisboa os
documentos de antigos tempos, e a que ordena um inventario dos bens de
certas corporações de mão-morta, e achar-se-ha facilmente, em suspeitas
não menos insensatas que as primeiras, a explicação mais plausivel das
resistencias que apparecem por esta parte.
Os cartorios dos corpos de mão-morta tem sido sempre considerados como
cousa publica. Uma das corporações reconhece-o formalmente no officio
que dirige ao commissario da Academia, affirmando a necessidade de
licença regia, e determinação do prelado, para qualquer extranho
examinar os documentos do seu archivo. De certo um particular não
precisaria de licença regia para facultar a qualquer o uso do seu
cartorio ou para deixar sair delle quaesquer titulos. Tanto se
consideravam esses archivos como dependentes do Estado, que os seus
documentos mereceram sempre uma especie de fé publica. Em muitos delles,
até, existiam e existem chartularios, geral e impropriamente denominados
Tombos, e feitos em diversas epochas, desde o reinado delrei D. João II
até o delrei D. João V, em que se contém traslados dos documentos
antigos, precedendo provisões regias, pelas quaes se dá a estas copias o
mesmo valor dos originaes, para dellas se passarem certidões. Esses
actos do poder supremo não provam só a consciencia que o Governo tinha
da incapacidade ordinaria dos membros das corporações, e dos tabelliães
desses logares para lerem os antigos diplomas: provam tambem o caracter
publico de taes archivos; porque não nos consta que provisões de
semelhante natureza se passassem nunca a favor de cartorios
particulares. Embora o poder civil désse a sua sancção ás disposições
canonicas relativas á conservação dos documentos dos corpos de
mão-morta; embora prohibisse, como mais de uma vez prohibiu, a saída
delles do respectivo archivo, essa prohibição está justamente
demonstrando que elle poderia ordenar o contrario, se entendesse que
convinha mais guardá-los n'outra parte. Foi por isto que no reinado de
D. João V se proveu a favor da Academia de Historia, para que se lhe
facultasse o conhecimento e copia de todos os documentos das corporações
de mão-morta, que foram obrigadas a transmittir inventarios de todos
elles á mesma Academia. Foi por esse fundamento juridico, que nos
estatutos da universidade (L. 2, tit. 6, cap. 3) se determinou que os
cartorios dos mosteiros e das cathedraes estivessem patentes aos
professores de direito patrio, para lerem, estudarem, extractarem,
copiarem, ou fazerem extractar e copiar todos os documentos que
entendessem serem uteis ao ensino das leis patrias e da sua historia,
disposições que não se estenderam, nem podiam estender, ainda debaixo do
absolutismo ferrenho daquella epocha, aos cartorios particulares. É,
finalmente, á vista de tal jurisprudencia e de taes exemplos, que na
portaria de 11 de setembro o Governo ordena se facilite á Academia o uso
desses diplomas, reservando para si o direito, que indubitavelmente lhe
pertence, de resolver sobre o modo mais conveniente da sua futura
conservação.
Mas, diz uma das corporações desobedientes, que foi no proprio archivo
della que Brito e Brandão tomaram notas dos documentos ahi existentes;
que o guarda-mór Lousada copiou os mais curiosos e mandou as copias para
a Torre do Tombo; que alli se tiraram traslados dos mais importantes
para o Archivo de Historia Portuguesa; que a corporação possue no seu
seio um paleographo capaz de trasladar tudo, embora não seja tão habil
como os da capital; que não convem que os documentos andem de mão em
mão; emfim, que a Academia não restituiu integralmente os documentos
recebidos por ella, uma unica vez que lhe foram confiados.
A Classe desejava, Senhor, nesta consulta não empregar uma unica phrase
que não fosse moderada; mas, vendo accusados, se não os membros actuaes
da Academia, ao menos os que os precederam, de falta de probidade, e
sabendo que essa accusação vai directamente cahir sobre homens tão
eminentes por sciencia e virtudes como D. Francisco de S. Luiz, Trigoso
e outros varões, cujos nomes são veneraveis para o paiz e para as
letras, teme não saber reprimir sempre os impetos de indignação diante
das calumnias vertidas sobre as cinzas de individuos que não se podem
defender, mas que os academicos de hoje, posto valham menos do que
elles, não devem, nem querem deixar sem pleno desaggravo.
A corporação que, desobedecendo ao Governo, mostra desconhecer o antigo
e o moderno direito publico destes reinos, não foi feliz querendo dar
licções á Academia sobre materias de sua competencia, e increpá-la de
menos probidade. Se esta virtude tivesse faltado aos seus antigos
membros ácerca de documentos publicos, não seria o melhor meio de
preservar os actuaes de semelhantes delictos pôr-lhes diante os nomes de
Brito e Lousada, que passaram a vida, não tanto a distrahi-los, como a
forjá-los e a falsificá-los. Curiosas devem ser as memorias por onde
consta á corporação desobediente que o escrivão Lousada (despachado por
ella guarda-mór da Torre do Tombo) mandou para alli copias dos
documentos mais curiosos do seu cartorio, do que aliás nenhuns vestigios
restam no Archivo geral do reino. Dos que se remetteram para o Archivo
de Historia Portuguesa nada tem que dizer a Classe, porque não lhe
consta que tal archivo exista ou existisse nunca no mundo. Póde ser
excellente o paleographo que essa corporação inculca á Academia; mas a
Classe emprehendeu um trabalho demasiado serio, para exigir dos membros
encarregados da publicação dos Monumentos Historicos a conferencia
pessoal das copias destinadas á publicação com os respectivos originaes,
depois de terem apreciado quaes merecem ver a luz publica. Estes
trabalhos preliminares, assás tediosos e longos, não podem os socios
effectivos ir fazê-los a 50 ou 60 legoas da capital, porque tem aqui
outros deveres que cumprir, e por isso não aproveitam o offerecimento.
Se o sincero, honesto e judicioso Brandão teve a simplicidade de se fiar
em copias subministradas pelas corporações e nos paleographos habeis
dellas, pagou bem caro a sua imprudencia, não havendo, talvez, senão um
ou dous documentos, dos publicados por integra na 3.ª e 4.ª Partes da
_Monarchia Lusitana_, que esteja devidamente correcto. Quando,
finalmente, esta Classe pede, não que venham para a sua secretaria os
documentos que pretende examinar e transcrever, mas que se depositem na
Torre do Tombo, para onde os remette directamente a pessoa encarregada
de os receber, e onde não ha perigo de se extraviarem, nem de serem
presa de algum incendio; quando esta Classe prefere á propria
commodidade ir alli preparar e dirigir os trabalhos de que está
incumbida, temendo os riscos que de outro modo poderiam correr esses
restos dos abundantes monumentos historicos que outr'ora possuimos;
quando, depois, aconselha ao Governo que os conserve cuidadosamente
naquelle archivo, o ponderar-se que não convem que os antigos documentos
andem correndo de mão em mão é uma verdadeira inepcia.
Desde o começo desta consulta e no proseguimento della, a Classe
forcejou e forcejará sempre por não designar nomeiadamente nenhuma das
corporações a que se refere. Move-a a isso um sentimento de
generosidade. É todavia forçada a fazer uma excepção quando se tracta da
honra do instituto de que forma parte, e da boa fama dos que precederam
os signatarios deste papel nas cadeiras que hoje occupam. Na sua
representação dirigida ao digno prelado metropolitano, para ser presente
ao Governo, o cabido da sé de Braga accusa a Academia de não ter
integralmente restituido varios documentos que, por ordem do mesmo
Governo, lhe haviam sido confiados. Dos registos da Academia consta, com
effeito, que para uso da commissão de Cortes foram chamados a Lisboa, em
1836, varios monumentos do cartorio daquelle cabido; mas dos actos
officiaes, junctos por copia á presente consulta, se vê, 1.°, que a
Academia pediu um codice e cinco documentos avulsos do mesmo cartorio,
indicando o logar onde estes se achavam, e um volume manuscripto do
archivo da mitra; 2.°, que foram remettidos pelo cabido o codice e tres
dos cinco documentos pedidos, declarando o presidente da corporação que
não fora possivel encontrar os outros dous, nem na gaveta onde deviam
estar, nem nas diversas gavetas que diligentemente se examinaram; 3.°,
que em 1840 foram devolvidos á secretaria do reino para voltarem a Braga
o manuscripto da mitra, e bem assim o codice e os tres pergaminhos
avulsos que tinham vindo do cabido. A restituição foi, portanto,
integral. Esses actos officiaes, que a Classe leva á presença de V. M.,
não são, porém, só importantes para desfazer uma calumnia: são-no
igualmente para provar com quanta razão a Classe aconselhou que os
antiquissimos documentos chamados agora a Lisboa fossem conservados no
Archivo geral do reino. De cinco pedidos pela Academia, indicando ella o
logar onde se achavam, apenas tres existiam naquella conjunctura, porque
nem alli, nem nas outras gavetas, se acharam. Di-lo o chefe da
corporação; e das suas explicações se deduz que tambem não havia indice
do cartorio, nem registo por onde constasse como haviam sido
distrahidos. Se da historia, porém, dos cinco diplomas, pedidos
casualmente, houvessemos de tirar illações para o resto do archivo
capitular, infeririamos que dous quintos dos seus pergaminhos têem sido
desencaminhados, apesar das constituições synodaes e das excommunhões
fulminadas contra os dissipadores dos titulos da cathedral, excomunhões
que poderiam gerar nos animos sérias apprehensões sobre o destino além
da campa dos conegos até então fallecidos, mas que teriam sido
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