Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 07

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nas garras das feras, nos leitos de fogo; não eram, porém, condemnados a
assentar-se em cima das ruínas de todos os seus affectos, clamando ao
Senhor durante annos: _Erue me! Erue me!_
Fizestes uma cousa absurda e impossível: deixastes na terra cadaveres
vivos, e assassinastes os espiritos.
Ao menos que esses cadaveres não sintam traspassá-los o vento que
sibilla nas sarças, a chuva que alaga as campinas, o frio que entorpece
as plantas e os membros dos animaes.
Pão para a velhice desgraçada! Pão para metade dos nossos sabios, dos
nossos homens virtuosos, do nosso sacerdocio! Pão para os que foram
victimas das crenças, minhas, vossas, do seculo, e que morrem de fome e
de frio!
Cumpri aos menos a vossa brutal promessa. Podem n'essas almas ser
profundas as trevas, e todavia respeitardes as regras mais triviaes de
uma probidade vulgar.
Senão, que os pobres monges inclinem resignados a fronte na cruz do seu
martyrio, e alevantem uma oração fervorosa ao Senhor para que perdoe aos
algozes, que nella os pregaram. É este o exemplo que na terra lhes
deixou o Nazareno.
Mas que se lembrem os poderosos do mundo de que a oração de Jesus na
hora suprema da agonia foi desattendida do Eterno. E comtudo, Jesus era
o seu Christo.
Que olhem para essa nação que fluctua ha dezoito seculos no pégo da sua
infamia, maldicta de Deus, e apupada pelo genero-humano, sem nunca poder
submergir-se nos abysmos do passado e do esquecimento.
Que se lembrem do proprio nome, do nome de seus filhos, de que ha
justiça no céu, e na terra a posteridade.
Se nos seus corações restam vestigios de crenças humanas, que meditem
uma hora, um minuto, um instante nisso tudo. Das profundezas de tal
meditar surgirá uma idéa, que lhes fará manar da fronte o suor frio da
morte; porque será uma idéa tenebrosa e terribilissima.


*DA INSTITUIÇÃO
DAS
CAIXAS ECONOMICAS
1844*


I

A origem das caixas economicas, embora imperfeitamente organisadas, como
todas as instituições nos seus começos, remonta apenas aos fins do
seculo passado, e a Allemanha e a Suissa foram os primeiros paizes que
as viram nascer. Hamburgo possuia uma em 1787, e a de Berna, instituida
só para os creados de servir, appareceu em 1789. Seguiram-se poucos
annos depois a do ducado de Oldemburgo e a de Genebra. Todas as demais,
nestes e n'outros paizes, foram fundadas posteriormente, e pertencem ao
presente seculo. Em Inglaterra, dizem alguns que a idéa das caixas
economicas occorrera primeiramente ao celebre Wilberforce; mas os
vestigios dellas que ahi se apontam anteriores a 1810 são de natureza
duvidosa ou apenas tentativas obscuras. Data daquella epocha o _banco de
poupanças_ (_saving's bank_) de Ruthwel, fundado por Duncan, e que foi o
primeiro que se constituiu naquelle paiz com estatutos publicos e
regulares. Os seus prosperos resultados foram poderoso incentivo para a
diffusão das caixas economicas. Dentro de sete annos contavam-se no
Reino-unido perto de oitenta estabelecimentes analogos, e em 1833 quasi
quinhentos, onde 470:000 individuos, pouco mais ou menos, tinham
depositado a enorme somma de quasi 16 milhões de libras esterlinas, ou
acima de 160 milhões de cruzados, subindo nos quatro annos immediatos o
numero dos depositarios a 636:000 e o valor dos depositos a 20 milhões
de libras ou mais de 200 milhões de cruzados. Ao passo que estes
beneficos institutos cresciam e se multiplicavam na Gran-Bretanha,
generalisavam-se e prosperavam tambem no meio das nações continentaes.
Em 1838 o numero das caixas economicas subia na Allemanha a 257, e na
Suissa a 100. A França, onde só foram introduzidas em 1818, conta
actualmente (1844) perto de 300, e na Italia quasi não ha cidade que não
possua estabelecimentos desta especie. Á porfia, os governos e os povos
tem concorrido para arraigar uma instituição, cuja idéa fundamental é,
talvez mais que nenhuma, civilisadora e moral. Como todas as cousas
verdadeiramente grandes e uteis, as caixas economicas não tem encontrado
uma unica parcialidade politica, uma unica eschola que ouse
condemná-las, uma só crença religiosa que as repudie. As monarchias
absolutas, os governos parlamentares, as republicas acceitam-nas,
promovem-nas. Ao passo que o ministro protestante as aconselha como
poderoso instrumento de morigeração e de ventura para o povo, o papa
sanctifica esta formosa instituição, abençoando-a e propagando-a nos
estados da igreja. Progresso verdadeiro, nascido no meio da terrivel
lucta de idéas, de paixões e de interesses em que ha meio seculo se
debate a Europa, as caixas economicas não tem custado á humanidade nem
lagrymas, nem sangue. Evidentemente uteis por sua natureza; provadas
taes pelos principios em que se estribam e pelos seus esplendidos
resultados; simples no seu mechanismo, por toda a parte aquelles a quem
os seus beneficios são especialmente destinados, os homens do povo,
tem-nas comprehendido e abraçado. Simplicidade, clareza, utilidade
reconhecida são as principaes condições de todo e qualquer pensamento
social que tenda a popularisar-se. As caixas economicas ostentam no mais
subido grau estes caracteres de todas as instituições que devem vir a
encarnar-se na sociedade e a viver a larga e robusta vida das nações, a
vida dos muitos seculos.
Este consenso unanime, não de paizes ignorantes, mas dos que estão na
dianteira da civilisação, e ahi, não de uma classe de individuos, mas de
homens de todas as jerarchias; tal consenso, dizemos, é o julgamento
mais completo, o testemunho mais irrefragavel da utilidade nunca
desmentida das caixas economicas. Onde quer que ellas appareceram, a
moralidade das classes inferiores e pobres melhorou em breve, e a
miseria, perspectiva permanente que o jornaleiro e o assalariado tem
diante dos olhos para o ultimo quartel da existencia, deixou de ser para
elles uma fatalidade ineluctavel. A sobriedade; a poupança, as virtudes,
em summa, de homem do povo deixaram de ser van precaução contra o seu
negro porvir de mendicante velhice.
A familia, sobretudo, essa imagem da sociedade e sua origem, que para o
obreiro, ás vezes escaçamente retribuido, é, não raro, flagello e
maldicção, póde deixar de ser desgraça, ao menos para aquelle a quem ou
viva crença religiosa, ou a natural bondade da indole induzem a preferir
á satisfação de vicios ignobeis o proprio bem estar futuro e o bem estar
de seus filhos.
Que é, pois, a caixa economica, essa arvore que produz taes fructos de
benção? É a cousa mais conhecida e trivial. É o mealheiro; é esse velho
alvitre de poupados que desde pequeninos todos nós temos visto usar aos
pouco opulentos, e que nossos paes e avós já conheceram; é a astucia do
pobre para fugir a superfluidades tentadoras (é longa a lista das
superfluidades do pobre: encerra quasi todo o necessario do rico) e á
custa dellas achar em si proprio soccorro nos dias de inactividade
forçada, da carestia ou da enfermidade. É o mealheiro, mas o mealheiro
tornado productivo, fecundado pela intelligencia e pelo principio de
associação: é uma grandiosa, e por isso singela, invenção do senso
commum, que durante muitas eras ficou, por assim dizer, no estado de
sementinha perdida, até que a luz do progresso e da civilisação a fez
rebentar, crescer, bracejar, florir e gerar fructos preciosos, que della
colhem em abundancia as sociedades modernas.
A este baptismo de regeneração, que, bem como ao do evangelho, são
principalmente chamados os pequenos e humildes, só tarde nós
concorremos. Não que ignorassemos a sua existencia, mas por essa especie
de destino mau que nos arrasta após novidades de pouca monta ou
contrarias á razão, ao passo que desprezamos o que nas instituições
estranhas ha conforme com os nossos costumes ou accommodado ás nossas
precisões reaes. Debalde um dos primeiros economistas portugueses[2]
propôs ha annos na camara dos deputados a creação das caixas economicas,
offerecendo a lei que as devia regular, e mostrando as suas vantagens
n'um largo relatorio, onde á vasta sciencia se ajuncta a eloquencia que
vem da convicção profunda. Entretidos com theorias, ou com interesses de
partidos ou de pessoas, os homens politicos lançaram no esquecimento as
boas e sinceras diligencias do deputado que desempenhava uma das mais
graves obrigações do seu mandato. Até hoje nada fizeram a semelhante
respeito aquelles a quem mais que a ninguem isso incumbia; e se a
existencia da primeira caixa economica portuguesa se realisou, deve-se o
facto a uma associação particular[3].
É sabido que, por via de regra, as caixas economicas são uma especie de
deposito, onde qualquer individuo póde ir ajunctando lentamente e em
quantias pequenas ou grandes as sobras da sua receita, salvas das
despesas necessarias á vida;--que, em vez de ficarem inertes as sommas
alli depositadas, começam logo a produzir juro, o qual, passado um anno,
se converte em capital e se accumula ao capital primitivo para com elle
produzir novos juros;--que esta accumulação, bem como a formação do
capital primitivo, é perfeitamente indeterminada e sem accepção nem
excepção de tempos e de quantias, uma vez que não sejam estas inferiores
ao diminuto minimo de cem réis;--que o depositante póde quando lhe
aprouver levantar o juro ou o principal no todo ou em parte, ou
transmitti-lo por testamento ou por successão a seus herdeiros ou
legatarios;--que, finalmente, o homem laborioso e poupado tem alli as
suas economias seguras pelas garantias positivas que lhe presta uma
associação poderosa e respeitavel, em vez de as conservar improductivas
e arriscadas no mealheiro domestico, ao qual, suppondo-lhe a indole
previdente e poupada que tantas vezes falta ao operario e, em geral, a
todos os que vivem de pequenos lucros eventuaes, teria necessariamente
de recorrer.
«Com razão se tem apontado, diz De Gerando, a utilidade moral que esta
instituição produz, favorecendo as inclinações para o arranjo e
economia. Ella é propicia ás virtudes que se ligam com essas
inclinações, ou que d'ahi nascem. Excita ao trabalho; habitua o homem
laborioso a cogitar; ajuda a desenvolver os affectos domesticos;
concorre para multiplicar tanto os estabelecimentos industriaes como as
familias, proporcionando meios de formar e conservar o cabedal
necessario para abrir uma officina ou ajunctar um dote para casamento;
ensina ao pouco abastado como em si proprio póde achar recursos e como
se póde remir na miseria, na doença e na velhice. As caixas economicas,
ao passo que diminuem o numero dos indigentes, concorrem tambem para
nobilitar o caracter do homem pobre e para lhe dar aquella honrada
altivez que nasce da maior independencia. Aos que vivem na estreiteza
faz-lhes saber quanto é grato o sentimento da propriedade,
estabelecendo-lhes uma que é real e que, apesar de modica, fructifica e
se perpetua. Além disso, são proveitosas em subido grau á sociedade,
porque são conjunctamente symptoma e instrumento da quietação publica.»
Veio o successo justificar as previsões do illustre moralista. Tem-se
observado em França e em em Inglaterra, que não ha individuo que tenha
feito depositos nas caixas economicas que fosse accusado nunca perante
os tribunaes, ao passo que as listas de criminosos feitas em diversas
epochas provam que as tres quartas partes dos individuos sentenceados
eram pessoas inclinadas ao jogo, ás loterias, ou a bebidas espirituosas.
Os factos citados pelo virtuoso De Gerando são, de feito, as
consequencias forçosas da idéa fundamental das caixas economicas. Das
classes populares saem, não só absolutamente, mas tambem relativamente,
a maior parte dos criminosos. Tem-se attribuido isto á falta de educação
nessas classes: sob certo aspecto e até certo ponto a causa é
verdadeira; não é, porém, a unica, nem a principal. Se indagamos quaes
foram os primeiros passos dos mais celebres malvados, achamos que
partiram dos simples roubos até chegarem á maxima ferocidade no crime.
Poucos entre os assassinos famosos escreveram logo com sangue as paginas
maldictas da historia da sua existência. Na estatistica da criminalidade
popular predomina o roubo: é cousa trivialmente sabida, como o é que a
miseria das classes laboriosas produz principalmente esse facto. Mas o
que a sociedade parece ignorar ou esquecer é que ella é a culpada de que
a pobreza do humilde se converta facilmente em miseria; miseria extrema,
desesperada, terrivel; miseria que impelle quasi forçadamente pela
estrada da immoralidade o homem do povo, para quem os legisladores ha
muito inventaram as masmorras, os desterros, os supplicios, em vez de
alevantarem barreiras moraes que lhe obstem a precipitar-se no abysmo.
Para o individuo sem propriedade, para o obreiro, o artifice, o creado
de servir; para aquelle, emfim, que só tem por capital os proprios
braços, e cuja renda é apenas um salario contingente, a imprevidencia e
o habito de procurar cada dia os meios de viver esse dia nascem
naturalmente da sua situação precaria. Nada espera no futuro, e por isso
nada teme delle: probabilidades, contingencias, não as calcula nem
previne. Assim, vemo-lo acceitar com facilidade os encargos de pae de
familia. Satisfez o appetite momentaneo; que importa o futuro áquelle
para quem isso não existe?
Depois vem os filhos, vem a doença, vem a falta de trabalho: as
affeições domesticas enraizaram-se no coração do desgraçado. A natureza,
a religião, os costumes, tudo lhe diz que esses entes que gerou, que
essa mulher a quem se prendeu devem achar nelle o seu abrigo, a sua
providencia. Ao passo que a má organisação da sociedade o inhabilita
absolutamente para em certos casos poder supprir os seus, a mesma
sociedade lhe diz, e diz bem, que nunca os deve abandonar. Desta ordem
de cousas, falsa, violenta, contradictoria, resulta que as mais leves
tendencias para o crime se excitam e dilatam até chegarem a produzir
tristes fructos, cujo desenvolvimento a sociedade crê impedir com as
algemas, carceres, grilhetas, desterros e patibulos, emquanto ella
propria, com o seu desprezo pelas classes pobres, com a falta absoluta
de instituições verdadeiramente moralisadoras e beneficas, alimenta a
arvore mortifera que produz as acções criminosas.

II

As caixas economicas são o primeiro e agigantado passo para a solução do
problema que as leis ainda não tentaram resolver: as caixas economicas
são o contraste, a negação do patibulo. Matam a perversão popular nas
suas causas, em vez de a punir nos seus effeitos. Criam o futuro para
milhares de individuos que nunca imaginaram tê-lo, creando-lhes o goso
da propriedade, e nesta um recurso para a hora da afflicção e escaceza,
tão proxima, entre as almas vulgares, da hora do crime. O facto de não
apparecer o nome de um unico depositante das caixas economicas nas
listas dos sentenceados em França e em Inglaterra é a consequencia
natural dos principios em que esta instituição se estriba.
A sua influencia moral vai ainda mais longe. Os vicios são, depois da
miseria, a origem de frequentes attentados. O jogo e a embriaguez estão
por toda a parte mais ou menos nos habitos do povo: a embriaguez,
sobretudo, é para o maior numero de jornaleiros como refrigerio, como
prazer licito nos dias de repouso. Quem, todavia, ignora que estes dous
vicios são quasi sempre a causa de rixas entre os operarios, de
desordens domesticas, e de se aggravar cada vez mais a miseria das
classes laboriosas? As caixas economicas guerreiam, geralmente com
vantagem, a propensão para as bebidas fermentadas e para o jogo.
Inimigas da penalidade feroz e sanguinaria que ainda governa a Europa,
não o são menos da taberna, que muitas vezes é a porta fatal por onde o
homem de trabalho enceta o caminho que tantas vezes o conduz ás galés,
ao desterro e, até, á morte.
Mas, dir-se-ha, como podem as caixas economicas desarreigar os vicios
inveterados do povo? Como correrá este a depositar nos escriptorios das
caixas a exigua quantia que ia applicar á embriaguez e ao jogo? A esta
pergunta responde a experiencia dos paizes onde esta especie de
depositos estão instituidos e vulgarisados ha certo numero de annos. A
principio a concorrencia era diminuta e lenta; mas cresceu gradualmente,
e vai tomando hoje um incremento que passa além de todas as previsões
dos amigos da humanidade.
Entre nós mesmos ha um triste exemplo de como o povo, quando descortina
ainda a mais duvidosa perspectiva de melhorar a sua condição, dá de
barato o satisfazer os outros appetites para correr após essa incerta
esperança. São as loterias o exemplo: é exemplo essa deploravel invenção
de especular com a cubiça e com o desejo ardente que as classes menos
abastadas tem de conquistarem, seja como for, fortuna independente.
É de ver a ancia, diriamos quasi o delirio, com que o vulgo concorre a
lançar no sorvedouro das loterias quantos reaes lhe sobram do que lhe
cumpre gastar nas mais estrictas precisões da vida. Muitos ha que até
cortam pelo necessario a si e á família para o irem dar a devorar á
loteria, a essa fatal banca de jogo em que se joga á luz do dia, no meio
da praça publica, embora haja a certeza de _que a grandissima maioria
dos que apontam hão de forçosamente perder_; circumstancia que
caracterisa esta instituição _publica_ de modo, que, se fosse uma
especulação particular, os tribunaes puniriam severamente o especulador.
Mas o facto demonstra que, apenas clareia algum tanto o negro horisonte
do porvir; apenas lá reluz uma esperança tenue, improvavel até, a de um
premio avultado, o povo corre para essa esperança; porque antevê as
dolorosas consequencias da sua precaria situação e busca esquivar-se a
ellas.
É para tornar proficua e moral esta previsão que se instituiram as
caixas economicas. Fazendo convergir para si as sobras escaças dos pouco
abastados, as quaes aliás se desbaratariam provavelmente em vergonhosos
deleites, ou no que vale quasi o mesmo, na loteria, ellas não apresentam
esses engodos fementidos, essas promessas mentirosas com que se desperta
a cubiça popular; não promettem mil por dez com a condição de, em cem
casos, perderem-se noventa e nove vezes os dez e não se obterem os mil.
Não! As caixas economicas offerecem unicamente um juro modico, mas
constante, e alèm disso a certeza de rehaver o depositante o seu
capital, augmentado com o juro, no momento em que delle careça:
offerecem uma cousa simples, clara, possivel: não promettem milagres,
nem sequer maravilhas; porque o maravilhoso muitas vezes, e o milagroso
sempre, nas cousas humanas, são a caracteristica do charlatanismo.
Como os descobridores de thesouros encantados, como os viciosos de
loterias, como os alchimistas, os que desenvolveram e applicaram o
pensamento desta instituição calcularam tambem com a insaciabilidade da
cubiça humana; com a cubiça que póde estar dormente ou subjugada por
outros affectos, mas que existe em todos os corações. O primeiro
sentimento que deve levar o obreiro, o familiar, o caixeiro, o artifice
a ir entregar na caixa economica alguns tostões que forrou do producto
do seu trabalho será a idéa de que virão de futuro as occasiões da
enfermidade, da falta de occupação ou de outro qualquer contratempo, e a
reflexão de que, reservando os sobejos de hoje para as faltas de amanhã
é, sem questão, mais judicioso accumulá-los no mealheiro seguro e
publico, onde não corre uma hora, um minuto, em que a somma poupada não
produza seu lucro, e em que este lucro não se esteja transformando em
capital productivo, do que mettê-los no mealheiro particular, que póde
ser roubado, e onde, no momento da precisão, nem mais um ceitil se
achará daquillo que ahi se metteu. É este o sentimento que, no povo,
suscita desde logo a caixa economica, e conforme a experiencia de todos
os paizes, basta elle para angariar extraordinario numero de
depositantes. Ha, porém, um perigo: quando algum destes tiver accumulado
certa quantia que repute sufficiente para occorrer a qualquer apuro
inesperado, os costumes viciosos e desordenados que o temor do futuro e
a esperança de remedio domaram, hão de provavelmente melhorar-se nessa
lucta entre o bem e o mal, e o homem de trabalho voltará aos habitos de
desleixo e dissipação que lhe absorviam as suas sobras, e que lh'as
tornarão a absorver de novo, e quem sabe se, até, as proprias economias
que fizera. Obviamente o perigo é real e grandissimo: ha, todavia, no
coração humano tambem a avareza; ha essa paixão, que, ao contrario das
outras, augmenta com a posse, radica-se com a idade, arde violenta ainda
na penumbra fria do sepulchro. Na instituição das caixas economicas,
contou-se com ella. Invenção que toca as raias do sublime é o aproveitar
uma paixão má e ignobil para fazer o bem; tornar instrumento da moral e
da civilisação a mais indomavel, a pessima entre as nossas propensões.
Perigosa, destructiva, anti-social no rico, ella será útil ao pobre,
que, sem deshonra, a póde alimentar onde quer que existirem as caixas
economicas. E é o que deve succeder e succede. O creado, o jornaleiro, o
artifice que insensivelmente se achou transformado em pequeno
capitalista e que vê, com o decurso do tempo, engrossar os tostões em
cruzados, os cruzados em moedas, começa a amar o seu peculio e a fazer
sacrificios para o augmentar: esta idéa entranha-se no seu espirito, e
não tarda a vir o exame severo das superfluidades e o córte em todas
ellas. E fazem-no desafogadamente, porque sabem que no dia ou no
instante em que o excesso da poupança os conduza a algum apuro, é-lhes
licito ir levantar no todo ou em parte o juro ou o capital que possuem:
e se tal aperto se não der, tem a certeza de que, quanto mais depressa
ajunctarem um peculio de certo vulto, mais depressa realisarão o sonho
constante da maioria dos individuos collocados na precaria situação de
assalariados, a existencia independente. Um abrirá a loja de retalho,
outro a officina de pequena industria: este irá plantar a vinha no
outeiro escalvado; aquelle arrotear o chão baldio na planicie. Cada qual
seguirá a senda que a sua inclinação lhe indicar, mas todos pensarão só
n'uma cousa, a independencia; a independencia que nasce da propriedade,
e que é o mais fertil elemento da moral, da paz e da prosperidade
publica.
As considerações que temos feito são geraes; applícam-se a todos os
paizes, porque assentam sobre a indole dos affectos humanos, e sobre
circumstancias mais ou menos communs nas sociedades modernas. Se, porém,
ha nação cujo estado social, cujas tendencias entre as classes
inferiores assegurem ás caixas economicas, mais que nenhuma outra, uma
acção poderosa em melhorar a condição dessas mesmas classes, essa nação
é a nossa.
Em Inglaterra e em França as caixas economicas, apesar das suas
grandissimas e innegaveis vantagens, tem apresentado alguns
inconvenientes: tal é o de servirem para especulações de gente rica,
que, na falta de applicações para os seus cabedaes, alli os vão
depositar com os juros compostos que delles devem auferir, sem correrem
riscos e sem se onerarem com as despesas de administração. Procurou-se
em muitas partes remover este inconveniente, estabelecendo maximos para
as entradas e para o total dos depositos de cada individuo; mas esta
providencia nem é geral, nem impede que a frequencia das entradas supra
a modicidade dellas, e que repartindo uma quantia avultada por diversos
membros da propria familia, e fazendo todos estes ao mesmo tempo
pequenos depositos em diversas caixas, o abastado venha a abusar de uma
instituição cujo fim não é, de certo, locupletá-lo.
Entre nós não existe e difficilmente existirá semelhante perigo.
Portugal é um dos paizes da Europa, onde, graças á nossa antiga
organisação social e á natureza e condições das nossas industrias, as
fortunas são por via de regra mediocres, a propriedade territorial mui
dividida nas provincias mais populosas, e por consequencia os capitaes
raros e os grandes capitaes rarissimos. Fallecem elles ás applicações,
não as applicações a elles. Se a essa limitada força de capitaes que
possuimos faltasse o minotauro que os devora quasi todos, a agiotagem,
quasi sempre infecunda, com o governo e com os particulares, ainda
restavam as necessidades das industrias fabril e agricola, ás quaes por
muitos annos não bastarão os que existem, sem que receiemos sirvam para
perverter uma instituição quasi exclusivamente destinada ás classes
laboriosas e menos abastadas.
Tem-se ponderado que a acção benefica das caixas economicas é impotente
contra a miseria do maximo numero de obreiros, isto é, contra a miseria
de quasi todos os que pertencem á industria fabril. Nos paizes onde as
grandes fabricas são a principal fórma, o mais commum systema da
industria, essa observação é infelizmente verdadeira. O aperfeiçoamento
das machinas, a concorrencia dos productos nos mercados, a desproporção
entre o fabrico e o consumo tem feito descer os salarios a ponto que
toda e qualquer economia é impossivel para o operario, que ganha
exactamente só o preciso para não morrer de fome. Depois, nos grandes
focos de industria fabril, principalmente na Gran-Bretanha, a depravação
dos costumes é tão profunda, que, ainda quando a economia não fora
materialmente impossível, sê-lo-hia moralmente. Ahi, portanto, as caixas
economicas, são, sem duvida, insufficientes para libertar o povo da
miseria e da corrupção.

III

Quando a organisação de um paiz é viciosa e contrafeita; quando e onde a
propriedade está mal e, digamos até, monstruosamente dividida: onde o
capital anda em guerra viva com o trabalho; onde a condição do obreiro é
relativamente peior que a do servo da idade media, a caixa economica de
certo não póde remediar os effeitos desta situação absurda. Os
districtos ruraes da Inglaterra, nomeiadamente os da Irlanda, são
victimas de uma constituição da propriedade territorial em que ainda
está viva a conquista dos normandos, e nas cidades manufactoras o
excesso dos aperfeiçoamentos mechanicos tem gerado o excesso de miseria
dos proletarios. Para estes, que pelas fluctuações do commercio externo,
tem repetidas vezes largas ferias de trabalho, e se vêem forçados a ir
receber a esmola dos soccorros parochiaes; para estes, a quem
frequentemente faltam os objectos de primeira necessidade, a caixa
economica é como se não existisse. Em tal situação recommendar ao
obreiro a economia e a previsão fora cruel escarneo.
Mas que ha entre nós que tenha semelhança com tal estado de cousas? As
nossas fabricas são poucas e acham-se ainda longe dos grandes
aperfeiçoamentos. Por outra parte, não havendo superabundancia de
braços, os salarios são razoaveis. N'uma nação essencialmente agricola a
industria manufactora difficilmente preponderará sobre a agricultura. Do
modo como a propriedade está constituida, sendo avultadissimo o numero
dos proprietarios ruraes, e predominando a pequena cultura pela grande
divisão do solo, essa preponderancia é e será por muito tempo
impossivel. A supremacia industrial dos ingleses devem-na estes, talvez
quasi exclusivamente, a que na Gran-Bretanha a terra, por assim dizer,
foge debaixo dos pés ao homem de trabalho. Paiz classico dos
latifundios, os possuidores de vastos predios, ou os seus opulentos
rendeiros obtem facilmente simplificar as operações da cultura com
engenhosos e potentes machinismos, dispensando assim um grandissimo
numero de braços, que vão augmentar a offerta dos que a industria fabril
utilisa. Essa, forcejando igualmente para os substituir pelas machinas,
ao que a obrigam as luctas interminaveis da concorrencia, acceita-os,
acceita-os sempre, mas com a condição inevitavel do abaixamento
indefinido do salario. Em Inglaterra a agricultura, adiantadissima em
extensão, em intensidade, em instrumentos, e em copia de capital movel,
está restricta a operar dentro dos limites do solo cultivado. O
principal instrumento de producção, a terra aravel, não póde
multiplicar-se. Quando a machina ou um novo systema agricola expulsa o
operario rural, expulsa-o para dentro das barreiras da industria fabril.
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