Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 01

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OPUSCULOS
POR
A. HERCULANO

SOCIO DE MERITO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE LISBOA
SOCIO ESTRANGEIRO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE BAVIERA
SOCIO CORRESPONDENTE
DA R. ACADEMIA DA HISTORIA DE MADRID
DO INSTITUTO DE FRANÇA (ACADEMIA DAS INSCRIPÇÕES)
DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE TURIM
DA SOCIEDADE HISTORICA DE NOVA YORK, ETC.

QUESTÕES PUBLICAS

TOMO I

LISBOA
EM CASA DA VIUVA BERTRAND & C.ª--CHIADO, N.º 73
M DCCC LXXIII

IMPRENSA NACIONAL


*ADVERTENCIA PRÉVIA*

Havia annos que os meus velhos editores e amigos, os fallecidos Irmãos
Bertrands, admiraveis typos dessa modesta austeridade e dessa nobre
honradez, em todas as relações da vida civil, que eram gloriosa tradição
da classe burguesa, e que a burguesia destes nossos tempos, ensanefada
já de ouropeis fidalgos, não parece inclinada a manter com excessivo
ciume; havia muito, digo, que os meus editores instavam comigo para que
ajunctasse em volumes alguns opusculos, escriptos por mim e publicados
por elles em diversas conjuncturas, cujas edições se achavam de todo
esgotadas. Na sua opinião, eu devia incluir tambem nessa collecção
outros opusculos, que, ou impressos avulsamente por minha conta, ou
inseridos em publicações periodicas, tinham feito certo ruido, e não se
encontravam já no commercio. Entendiam igualmente que nesta compilação
de trabalhos sobre assumptos tão variados poderiam introduzir-se
quaesquer outros ainda ineditos, que me não parecessem indignos de virem
a lume, o que, no seu modo de ver, daria certo realce á publicação que
se propunham, e em cujo exito confiavam.
Apesar das ponderações que me faziam homens tão experimentados nas
cousas da imprensa, hesitei muito tempo em acceder aos seus intuitos.
Após largos annos consumidos na vida agitada das letras, em que o meu
baixel mais de uma vez fora açoutado por violentas tempestades, tinha,
emfim, ancorado no porto tranquillo e feliz do silencio e da
obscuridade. Olhava com uma especie de horror para as vagas revoltas da
immensa lucta das intelligencias, contraste profundo da vida rural a que
me acolhera. Depois, o espirito sentia bem a propria decadencia, cujos
effeitos a interrupção dos habitos litterarios devia aggravar.
Reflectia, sobretudo, no tedioso de rever escriptos, parte dos quaes
remontavam a tempos assás distantes. Podia, na verdade, devia talvez,
deixá-los passar como estavam, no que respeita á maior ou menor exacção
das doutrinas, porque a pretensão á infallibilidade é sempre ridicula no
individuo, e eu nunca tive tal pretensão; mas era indispensavel
castigá-los em relação á fórma. O methodo, o estylo, a linguagem, as
condições, em summa, da arte de escrever são, no mundo das letras, o que
a boa educação, a cortesia, as attenções, o respeito para com os usos
recebidos são no tracto civil, o que os ritos são nas sociedades
religiosas. No ente que cogita, a idéa póde e ha de variar com o decurso
do tempo, com a ampliação dos horisontes do pensamento. Sobrepõe-se
gradualmente a verdade ao erro, e ainda mal que, outras vezes, é o erro
que succede ao erro, quando não á verdade. Aprender quasi sempre é
esquecer; affirmar quasi sempre é negar: esquecer o que aprendemos;
negar o que nós proprios affirmámos. É por isso que, no meio de milhões
de duvidas, cada geração lega á que lhe succede poucas verdades
incontrastaveis, e que a lentidão do progresso real é um bem triste e
desenganador dynamometro da tão limitada potencia das faculdades
humanas. Não assim pelo que toca ás formulas externas das manifestações
do espirito. O incompleto, o barbaro, o vicioso, o tolhido, o
desordenado, o obscuro não são o revolutear do oceano das idéas: são
simplesmente ignorancia ou preguiçoso desalinho, mais ou menos
indesculpaveis.
Ora a revisão de escriptos de tão diversas epochas, ainda limitando-me
ao exame da contextura e execução, repugnava-me. Era renovar o tracto
com as letras no que ha nellas menos attractivo, na questão da fórma. E
todavia, sem esse trabalho preliminar, não podia decentemente satisfazer
os desejos dos meus editores, desejos que o ultimo d'elles, pouco antes
de fallecer, ainda vivamente manifestava.
Mas, o que era na realidade esta repugnancia ao trabalho, embora fosse
um trabalho ingrato? Era o egoismo dos annos derradeiros; o amor á
quietação da intelligencia, que, no outono da vida, é em nós como o
prenuncio da completa, da eterna paz. Para vencer esta enfermidade dos
espiritos cançados e gastos, cumpre que surja nelles um incitamento
poderoso, uma necessidade instante. Foi, porém, este incitamento ou esta
necessidade que, a final, nasceu para mim, justamente das condições da
vida rural.
Para o velho que vive na granja, na quinta, no casal, como que perdidos
por entre as collinas e serras do nosso anfractuoso paiz, ha na
existencia uma condição que todos os annos lhe prostra o animo por
alguns mezes, doença moral, mancha negra da vida rustica, facil de
evitar nas cidades. É o tedio das longas noites de inverno; das horas
estereis em que o peso do silencio e da soledade cai com duplicada força
sobre o espirito. Para o velho do ermo, nesses intervallos da vida
exterior, a corrente impetuosa do tempo parece chegar de subito a pégo
dormente e espraiar-se pela sua superficie. A leitura raramente o
acaricia, porque os livros novos são raros. A decima visão da mesma
idéa, vestida do seu decimo trajo, repelle-o, não o distrahe. As
convicções ardentes, as alegrias das illuminações subitas, as coleras e
indignações que inspiram e que, na mocidade e nos annos viris, enchem a
cella do estudo de turbulencias interiores, de arrebatamentos
indomaveis, de debates inaudiveis, de lagrymas não sentidas, de amargo
sorrir, cousas são que se desvaneceram. Matou-as o gear do inverno da
existencia. Desfallece-lhe o animo, mal tenta embrenhar-se na selva das
cogitações, engolfar-se nas ondas dos pensamentos, que, em melhor idade,
lhe roubavam á consciencia os ruidos longinquos e confusos das
multidões, e aquella especie de zumbido obscuro que ha no silencio
profundo, e as passadas tenebrosas da noite, e o surgir e o galgar do
sol ao zenith, emquanto a penna inspirada arfava, deslisando sobre o
papel, semelhante á véla branca da bateirinha, que, ao refrescar do
vento, vai e vem de margem a margem, atravez da ria. Não: para o velho
não ha a febre da alma que devora o tempo. Sente-o gotejar no passado,
como os suores da terra que cáhem, lagryma após lagryma, pela claraboia
de galeria deserta na mina abandonada. É verdade que a natureza compensa
o esmorecer e passar do vigor e da actividade intellectual com a propria
somnolencia do espirito, voluptuosidade da velhice, ameno e dourado
pôr-do-sol, que se refrange no espectro da sepultura já vizinha e o
illumina suavemente. Mas o dormitar do entendimento, para ser deleitoso
enleio, exige o movimento externo e as singelas occupações e cuidados da
vida campestre. Sem isso, e é isso que falta muitas vezes nas
interminaveis noites de inverno, a inercia da intelligencia, que vagueia
no indefinito sem o norte da realidade, vai-se convertendo pouco a pouco
em intoleravel tormento; tormento no qual ha, por fim, o que quer que
seja da céllula circular e esmeradamente branqueiada, onde o grande
criminoso é entregue, sósinho, á euménide da propria consciencia. N'esta
extremidade, por mais somnolenta e obscurecida que esteja a mente, por
mais que ella ame o repouso, o trabalho do espirito, ainda o mais arido,
é preferivel, cem vezes preferivel, ao fluctuar indeciso no vacuo.
Foi por isto que comecei a ajunctar os _disjecta membra_ de uma grande
parte do meu passado intellectual; a accrescentar, a cortar, a corrigir,
a completar. Vencido o primeiro inverno, vi desapparecerem os marcos
negros juncto dos quaes cumpria que longamente me assentasse ao cabo de
cada um dos poucos estadios que ainda me restam a transitar pela estrada
da vida. Que esta confissão ingenua sirva para ser absolvido da especie
da correria que, apesar dos mais firmes propositos, faço, ainda uma vez,
na republica das letras.
Os escriptos aqui reunidos, os quaes, na sua maior parte, foram
inspirados por impressões momentaneas, perderam o interesse que lhes
provinha das circumstancias que os provocaram; mas, ainda assim, podem
ficar como marcos milliarios que ajudem a assignalar as luctas e o
progresso das idéas em Portugal no decurso de mais de trinta annos que
as datas d'esses escriptos abrangem. Naquellas luctas o auctor dos
seguintes opusculos teve largo quinhão, e se, como é possivel, nem
sempre a razão esteve da sua parte, esteve-o sempre a convicção. É do
que lhe parece hão-de dar testemunho a propria contextura e o proprio
estylo dessas composições, que não vinham só da intelligencia, que
vinham muitas vezes tambem do coração. A demasiada vivacidade, a talvez
exaggerada energia, com que frequentemente ahi são expostas e defendidas
taes ou taes ideas e combatidas outras, revelam a indole impetuosa mas
sincera de quem escreveu essas paginas. Foi, porventura, este o melhor
titulo do auctor á benevolencia publica largamente manifestada;
benevolencia que encontrou ainda em muitos que estavam longe de
commungar com elle nas doutrinas para as quaes buscava ou obter o
triumpho ou adquirir sectarios.
Ordenando esta compilação, não me adstringi nem a conservar
rigorosamente a ordem das epochas a que esses varios escriptos
pertencem, nem a distribui-los precisamente conforme a sua indole.
Adoptei um termo medio, que me facilitasse ao mesmo tempo o trabalho de
revisão, e me habilitasse para ir successivamente publicando qualquer
volume á medida que o coordenasse. N'uma grande variedade de assumptos,
o espirito não se amoldaria a reconsiderá-los nem pela ordem das datas,
nem pela identidade da materia. A intelligencia é caprichosa, e
duplicadamente caprichosa na sua decadencia. Attendendo em geral á
natureza dos diversos opusculos, entendi que podiam dividir-se em tres
categorias--Questões publicas--Estudos historicos--Litteratura.--Estas
tres categorias constituirão tres series separadas, servindo-lhes apenas
de nexo o serem uma collecção geral das minhas opiniões, quer em
questões litterarias ou historicas, quer em questões sociaes. Assim, um
volume seguir-se-ha a outro da mesma ou de diversa serie sem
inconveniente para a publicação, e sem se tornar necessario que, n'um
trabalho tedioso e frequentemente interrompido, a attenção se dirija por
muito tempo e sem desvio para idéas até certo ponto congeneres ou pelo
menos analogas.
Ajunctando aos titulos dos opusculos as datas em que foram escriptos, o
auctor teve em mira habilitar o leitor para o julgar com justiça. Sem
querer no minimo ponto fugir á responsabilidade das suas opiniões,
entende que a responsabilidade será ora maior, ora menor, se porventura
se attender á epocha em essas opiniões foram manifestadas. O decurso de
trinta a quarenta annos, no turbilhão, cada vez mais rapido, em que hoje
as idéas passam, modificando-se, transformando-se, é um periodo que
corresponde a seculos nos tempos em que o progresso humano era sem
comparação mais lento. As doutrinas, as apreciações criticas, os
systemas, os livros quasi que envelhecem tão depressa como o homem. O
pensamento que ha vinte annos parecia uma verdade nova póde hoje parecer
apenas um problema não resolvido, e até um erro condemnado; a observação
profunda de então ser hoje trivialidade; a critica subtil, que levou um
raio de luz a certos recessos obscuros dos factos, achar-se incorporada
e transfigurada em apreciação mais complexa que illumine dilatados
horisontes. Por isso, a data de cada um dos opusculos contidos nos
seguintes volumes é um dos elementos indispensaveis para estes serem
avaliados com justiça e imparcialidade. Nem sempre fugimos á pressão das
idéas que se manifestam ao redor de nós, e muito faz aquelle que algumas
vezes sabe elevar-se acima das preoccupações ou dos interesses da epocha
em que escreve.
Não se associarão a estas considerações, que sollicitam a indulgencia,
algumas instigações do amor proprio? Suspeito que sim. Nos seguintes
escriptos ha, em mais de um logar, idéas, previsões, affirmativas,
negações que não raro grangeiaram para o auctor as qualificações de
temerario, de paradoxal, de visionario. Em certos casos, o decurso do
tempo encarregou-se de decidir de que lado estava ou a perspicacia ou a
boa razão: em alguns, o paradoxo, a visão, foram-se lentamente
insinuando em outros espiritos, e mais de uma vez o visionario primitivo
veio a achar-se como sumido na turba de tardígrados visionarios. Que o
facto não contribuisse para se datarem estes opusculos ninguem o
acreditaria, nem eu pretendo negá-lo. Chamarão uns a isso orgulho:
chamar-lhe-hão outros vaidade. E uns e outros terão razão. A vaidade e o
orgulho que são, senão duas especies de um genero unico de fraquezas? O
vaidoso é o que chama o mundo para espectador do seu orgulho: o
orgulhoso é o que se colloca a si como unico espectador da propria
vaidade. Symptomas varios de enfermidade identica: manifestações
diversas de uma só miseria do coração humano.


A VOZ DO PROPHETA

1837


INTRODUCÇÃO
1867

Depois da epocha em que o seguinte opusculo foi publicado e dos factos
que lhe deram origem, têem decorrido mais de trinta annos. Os homens que
intervieram nesses factos dormem já, pela maior parte, debaixo da terra.
Com raras excepções, restam apenas alguns dos que eram mais moços. O
auctor da _Voz do Propheta_ pertence a esse numero. Contava vinte e seis
annos naquelle tempo.
O homem de hoje póde julgar imparcialmente o escripto do homem de então.
O animo tranquillo póde avaliar a paixão que o inspirou. Aquelles a quem
esse verbo ardente feria viram no auctor um partidario que friamente
calculava os resultados politicos das suas palavras. Injustiça ou erro;
o mesmo que havia da parte delle em ver nos homens que forcejavam por
dirigir a revolta de 1836, por fazer sair desse facto um governo
regular, grandes criminosos. A verdade era que, n'uns davam-se ambições,
mas ambições talvez nobres; n'outros houve, de certo, o sacrificio das
proprias sympathias, o silencio imposto ás proprias convicções, para que
a revolta não degenerasse em anarchia. Em muitos desses individuos,
apparentemente revolucionarios, havia o patriotismo reflexivo, e até a
abnegação, emquanto em nós, os que os aggrediamos com a sinceridade da
indignação, havia, por amor exagerado aos bons principios, uma colera
que em muitas cousas offuscava a razão. A _Voz do Propheta_ representa
esse estado dos espiritos.
Hoje a exageração sincera do insulto, a invectiva hyperbolica,
inspirada, não pelo calculo, mas pelas irritações da consciencia, mal se
comprehende. Neste crepusculo da vida publica, tão favoravel ás
prostituições do cidadão, como o crepusculo do dia ás prostituições da
mulher; nesta epocha de extrema agonia, iniciada pela proclamação dos
_interesses materiaes_ acima de tudo, fórmula decente de sanctificar o
egoismo, porque para cada individuo o interesse material alheio é apenas
um interesse de ordem moral; agora que a boa educação dos homens novos
mudou a linguagem politica, e vai arrojando para os archaismos
historicos a lucta face a face, a punhalada pelos peitos; agora que a
strychnina da allusão calumniosa e amena, o enredo tortuoso, a traição
ridente vão expulsando da arena das facções as objurgatorias, rudes na
substancia e na fórma, a _Voz do Propheta_ é, sem duvida, uma composição
agreste e brutal. Inutil como exemplo e modelo, servirá todavia como
amostra do que eram as malevolencias da geração cujos raros
representantes, hoje quasi estrangeiros no seu paiz, não tardarão a ir
esconder no tumulo as ultimas grosserias que deturpam a suavidade dos
costumes e as tolerancias de toda a especie dos cultos filhos de
barbaros.
Os homens que em 1837 se aggrediam violentamente na imprensa e no campo
tinham, de feito, habitos e sentir diversos dos actuaes. As febres
politicas eram então ardentes, indomaveis, porque derivavam de crenças.
Naquella epocha havia, como houve sempre, belforinheiros da politica;
mas constituiam a excepção. O geral era gente baptisada com fogo e com
sangue nas duas religiões inimigas do absolutismo e do liberalismo.
Chamo-lhes religiões, porque o eram. A guerra civil, que terminara em
1834, tivera muitos dos caracteres das antigas cruzadas. Sobretudo nos
primeiros impetos della, haviam-se practicado actos de abnegação, de
constancia, de valor e de soffrimento sobrehumanos, ao passo que se
perpetravam outros de bruteza e ferocidade inauditas. A maior parte
delles, factos obscuros, individuaes, reiterados cada dia, cada hora
daquelle prolongado paroxismo de grandiosa barbaria, não os registou,
não os registará nunca a historia, talvez. E todavia, é isso que explica
a proceridade da estatura moral dos homens daquelle tempo, estatura a
que não chegaram, nem provavelmente chegarão as gerações subsequentes.
Sem paixões violentas e exclusivas, não ha as energias que assombram.
Então a existencia e os commodos e gosos della eram tão casuaes e
transitorios, as privações e dores de tão completa vulgaridade, que dar
a vida ou tirá-la aos outros pouco mais significavam do que acções
indifferentes. Diante do fanatismo politico, a reflexão que discrimina o
bom do mau, o justo do injusto, quasi que era puerilidade. Podia
ceder-se, e não raro cedia-se, a instinctos generosos para com o
adversario: a justiça em apreciá-lo moralmente, ou em respeitar-lhe os
direitos, isso é que se tornara difficil.
Taes eram os homens que, depois de esmagarem a monarchia absoluta,
vinham, emfim, a aggredir-se mutuamente na imprensa e no campo. A
revolta, desmembrando o partido liberal, constituia dous partidos
violentos, daquella violencia a que estavam affeitos e cujo embate devia
produzir males profundos e em parte irremediaveis.
Esta scisão, logo depois da victoria, era difficil de explicar fóra de
Portugal. Aqui entendia-se, embora derivasse de um facto injustificavel.
A harmonia de opiniões, a unidade de crenças e intuitos dos vencedores
dissipava-se, porque realmente não existia senão nas suas relações
negativas. Negava-se, combatia-se o passado. Era no que havia accordo.
As apparencias de união e conformidade creara-as a grandeza do perigo. A
phalange é e será sempre o mais poderoso instrumento de guerra, moral e
materialmente. Embora, porém, houvesse diversidade de doutrinas, o que
havia mais era contraposição de interesses. Para as primeiras se
manifestarem e tenderem ao predominio bastavam a liberdade da palavra
oral e escripta, e a discussão parlamentar. Aos segundos, dada a
impetuosidade e impaciencia da ambição humana, sobretudo nas raças
latinas, não bastava nenhuma liberdade. Recorreu-se ao illegal, ao
tumultuario, e a revolta de septembro de 1836 appareceu.
Quem a preparou e fez surgir? Não sei. Ostensivamente, os seus auctores
foram a plebe de Lisboa e alguns soldados que se negaram a dispersar os
amotinados. Os individuos que, depois de consummado o facto, tomaram nas
mãos as redeas do governo, recusaram para si a paternidade daquelle féto
político. Creio que, affirmando-se innocentes, falavam verdade; senão
todos, ao menos alguns. Fugir, porém, á responsabilidade de uma
situação, que aliás se busca fortalecer e constituir, é indirectamente
condemná-la; é dizer _não_ com a consciencia; _sim_ com os labios. A
sentença daquelle motim lavravam-na os mesmos que forcejavam por
convertê-lo n'uma cousa grave. Por outra parte, o que me parece evidente
é que os governos que cahem como cahiu o que existia, embora simulem de
vivos, estão já moralmente mortos.
E o governo de então estava-o. Por grandes que os seus serviços ao paiz
houvessem sido durante a lucta, o seu proceder depois da victoria não o
abonava. Havia quem fizesse sentir isso, quem até desmesuradamente o
exagerasse. Exageravam-no, sobretudo, os vencidos. Emquanto durou o
ruido das armas, os lamentos destes não se ouviam; mas quando o estrondo
cessou, e asserenaram os terrores, os queixumes foram-se convertendo em
invectivas colericas, e tambem em accusações não raro ou justificadas ou
plausiveis. A liberdade da palavra falada e escripta tinha-se
conquistado não só contra os defensores da censura e do absolutismo, mas
tambem para elles. Nas expansões da sua dor e do seu despeito, no pouco
ou muito que essas expansões contribuiram para o descredito dos homens
que mais cordialmente odiavam, tiveram os vencidos occasião de
reconhecer que a liberdade humana, ruim em these, sobretudo para a
salvação eterna, póde, em tal ou tal circumstancia, não ser
absolutamente má.
Os depositarios do poder executivo tinham, porém, adversarios mais
perigosos. No gremio liberal houvera homens, alguns de dotes não
vulgares, que, ou por despeitos pessoaes, ou por falta de animo para
affrontarem os trabalhos e riscos de commettimento desigual, ou
finalmente por obstaculos independentes do seu alvedrio, tinham ficado
extranhos á guerra civil, sumidos em escondrijos na propria patria, ou
acoutados na terra estrangeira para escaparem aos impetos da tyrannia.
Desaccordos nascidos no exilio entre alguns destes ultimos e os homens
de valia de quem o Duque de Bragança se rodeiara quando emprehendia a
guerra da restauração, não tinham feito senão medrar e azedar-se
progressivamente por diversas causas. Estes desaccordos, que pareciam
pouco importantes emquanto durou a contenda, apenas essa epocha
tormentosa cessou, tornaram-se mais graves, porque os individuos que se
haviam conservado como extranhos á lucta em que se lhes conquistava uma
patria, tinham amigos e parciaes numerosos entre os que pelejavam e
venciam. Constituido o regimen parlamentar, as malevolencias, mais ou
menos latentes, converteram-se em hostilidade acerba. Esta hostilidade
podia ter, e tinha em parte, motivos maus; mas, contida no ambito
constitucional, era, até certo ponto, bem fundada e util.
Os estadistas, que, cercados durante annos de espantosas difíiculdades,
souberam superá-las exercendo o poder, eram indubitavelmente homens de
alta esphera. Podia reputar-se problematica a virtude de um ou de outro:
a capacidade e a firmeza não podiam disputar-se a nenhum delles.
Affeitos a reger o paiz com o vigor de uma dictadura, inevitavel
emquanto durara a guerra, e com as formulas militares, custava-lhes
esquecerem-se dos habitos dessa epocha, confundindo mais de uma vez, na
praxe da administração, as duas idéas oppostas, de paiz libertado e de
paiz conquistado. Por outra parte, os que muito haviam padecido queriam
gosar muito, e o reino, devorado por discordias intestinas superiores ás
proprias forças e exhausto de recursos, via comprometter o futuro da
riqueza publica por larguezas, não só desacertadas, mas tambem
juridicamente injustificaveis. Homens que teriam legado á posteridade
nomes gloriosos e sem mancha, e que, mais modestos nas suas ambições
materiaes, seriam vultos heroicos na historia, pagaram-se como
_condottieri_ mercenarios, ao passo que outros, depondo as armas e
voltando á vida civil, exigiam ser revestidos de cargos publicos para
exercer os quaes lhes faltavam todos os predicados; homens cujo unico
titulo era terem combatido com maior ou menor denodo nas fileiras
liberaes ou haverem padecido nas masmorras os tratos da tyrannia. A
grande, a séria, a profunda revolução que se fizera no meio do estrondo
das armas levara de envolta com os dizimos, com os bens da corôa, com as
capitanias-mores, com toda a farragem do absolutismo, os antigos
_officios_, moeda que por seculos servira para pagar algumas vezes
meritos reaes, muitas mais vezes, porém, prostituições e villanias. Mas
as funcções publicas, os empregos vieram supprir essa moeda, tomando não
raramente cunho analogo, e distribuindo-se com a mesma justiça e
cordura. Estes e outros erros e abusos que o governo commettera, ora por
impulso proprio, ora para satisfazer as influencias preponderantes com
que o poder tem de transigir, necessidade fatal do regimen parlamentar,
e um dos maiores defeitos da sua indole ainda tão imperfeita,
engrossaram rapidamente, com os muitos desgostosos e indignados, a
parcialidade que na origem representava antes malevolencias pessoaes do
que antinomia de doutrinas.
Foi por isso que a revolta de septembro, se não achou eccho pelo paiz,
também não achou nelle repugnancia manifesta, e pôde na capital
constituir-se e tomar em poucos dias a importancia que não tinha em si.
A consciencia da propria impopularidade, o inesperado dos
acontecimentos, talvez, até o tedio e cansaço de aggressões continuas,
haviam feito titubeiar os membros do governo decahido, tornando-os
inhabeis para séria resistencia, emquanto os seus adversarios
aproveitavam o successo com a energia de inimizades encanecidas e de
ambições até ahi não satisfeitas.
Os homens que entenderam ser do seu interesse ou do interesse do paiz
fazer surgir daquelle estado anormal uma situação regular viram que a
primeira necessidade era elevar o motim á altura de uma revolução.
Faltava o assumpto. O derribar um ministerio não o subministra. Basta
para isso a acção mais ou menos lenta, mas segura e pacifica, da
liberdade da palavra, da imprensa e do voto. O povo que com estes
recursos não sabe tirar os seus negocios das mãos de quem lh'os gere
mal, é um povo ou que ainda não chegou á maioridade ou que já se arrasta
na senilidade. Urgiam, porém, as circumstancias. Á falta de outra cousa,
proclamou-se irreflexivamente a constituição de 1822 com as modificações
que decretassem as futuras constituintes.
Tinha-se, pois, feito uma revolução para obter um projecto, um texto de
discussão constitucional? Se o intuito dos amotinados fôra só derribar
os ministros, o facto era excessivo, injustificavel e portanto
illegitimo e criminoso; se porém o motim, nobilitado em revolução, tinha
por alvo alterar as instituições, não menos digno de reprovação se
tornava, porque era um crime inutil. A Carta encerrava em si o processo
da propria reforma, processo aliás prudente, regular, exequivel. Partir
da constituição de 1822, acervo de theorias irrealisaveis, se theorias
se podiam chamar, de instituições talvez impossiveis sempre, mas de
certo impossiveis n'uma sociedade como a nossa e na epocha em que taes
instituições se iam assim exhumar do cemiterio dos desacertos humanos,
era mais que insensato. A revolução, reconhecendo a necessidade de
reformar o codigo que restabelecia, condemnava-o, e condemnava-se.
Parece-me que me não engano se disser que, em geral, aos liberaes mais
illustrados e sinceros a nova situação politica repugnava altamente.
Ponderavam que a mudança das instituições politicas de qualquer paiz por
via de uma revolução é sempre um abalo profundo cheio de riscos, e que
mais de uma vez, longe de produzir o bem, tem conduzido as sociedades á
sua ruina. Sem rejeitar de modo absoluto as revoluções como elemento de
progresso, é certo que ellas são um meio extremo. Só, talvez, a
necessidade de combater o despotismo as justifique, porque só debaixo de
tal regimen são impossiveis quaesquer outras manifestações da opinião
publica, e não existe campo diverso onde a lucta do direito contra a
força, das idéas novas contra os velhos abusos possa travar-se. Em 1836
essas manifestações não tinham porém obstaculo algum, e o campo onde as
doutrinas podiam debater-se, os interesses contrapor-se, os partidos
digladiar-se, era amplissimo. Se em taes circumstancias uma revolução
fosse legitima, quaes seriam aquellas em que se lhe negasse a
legitimidade?
Depois, nas proprias relações politicas, o espirito humano não se dirige
unicamente pela reflexão. As paixões e affectos modificam e alteram as
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