Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 08

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Para esta, ao contrario, o espaço onde labora é um dos menos importantes
elementos da sua existencia. Para produzir indefinidamente, só carece de
uma condição essencial; é a que a faz triumphar da industria das nações
rivaes, a do preço inferior ao do producto alheio com igual valor da
utilidade. A machina, ou aperfeiçoada ou nova, e a reducção dos
salarios, ou o augmento de horas de trabalho, o que é perfeitamente
identico, são os seus meios heroicos. Não lhe importa se o instrumento
homem se quebra, porque o renovará sem custo no meio das multidões
famintas. Vive de produzir barato, e os seus obreiros hão de viver de se
afadigarem em procura da morte. Cumpre que a industria inglesa triumphe
na batalha incessante que se peleja entre as nações industriaes, batalha
onde se não vê o fuzilar da espingardaria, nem se ouve o troar dos
canhões, mas descortina-se o revolutear do fumo das chaminés monstruosas
e soa o murmurar confuso da machina e do homem que lidam: terrivel
batalha, onde não corre sangue, mas corre o suor do trabalho, e depois o
suor da agonia.
D'esta situação, exteriormente esplendida e interiormente violenta e
dolorosa, estamos nós bem longe. Não receiamos dizer que em Portugal
será raro o operario válido que por meio de severa e intelligente
economia não possa depositar annualmente na caixa economica alguns
cruzados, ou para occorrer a desgraça imprevista, ou para crear um meio
de subsistencia na velhice, ou finalmente para adquirir a independencia
de proprietario. Com o modo de ser da população portuguesa, póde-se
prever que, diffundindo-se pelo reino as caixas economicas, a
estatistica destas será bem differente da estatistica das de Inglaterra,
e ainda das de França. Nestes dous paizes apenas a quarta parte das
quantias depositadas pertence aos operarios, e a classe que predomina
como credora dellas é a dos creados domesticos. Entre nós a proporção
tem de vir a ser diversa. Os donos de pequenos predios, os seareiros, os
creados de lavoura, os operarios, não só de officinas, mas tambem de
fabricas, hão de provavelmente predominar. E se assim acontecer,
poderemos affirmar que a nação progride largamente no caminho da
civilisação material e moral.
Alguém achará, talvez, que estas sinceras esperanças na futura
regeneração economica do nosso povo são contradictas pelo facto da
perfeita analogia que se dá entre a França e a Inglaterra, em serem
tanto n'um como n'outro paiz as mesmas classes as dos depositantes nas
caixas economicas. Na França, dir-se-ha, a divisão da propriedade é
facilitada até o ultimo ponto pelas leis, e o numero dos pequenos
proprietarios é proporcionalmente maior que em Portugal: a agricultura
também lá predomina sobre a industria fabril; finalmente a situação do
rendeiro e do trabalhador rural é mais semelhante á dos nossos que á dos
de Inglaterra. Como, pois, não dão as caixas economicas na Franca
resultados estatisticos diversos dos que subministram os _saving's
banks_ ingleses? Não se deve concluir d'ahi que não tem a influencia que
se lhes attribue, e vice-versa, que no seu progresso ou na sua
decadencia não influe nem a situação relativa das classes sociaes, nem o
estado da propriedade?
Não. A analogia dos dous paizes na desproporção, contraria á ordem
natural das cousas, entre os operarios e as outras profissões, em
relação aos depositos nas caixas economicas, tem causas em parte
semelhantes, em parte diversas, mas iguaes nos resultados. As fabricas
francesas seguem o rapido progresso das inglesas, e nos grandes centros
industriaes da França notam-se já em larga escala a miseria e a
dissolução das cidades manufactoras da Gran-Bretanha. Lille, Mulhouse,
Rheims, Ruão, reproduzem o triste quadro de perversão que apresentam as
classes laboriosas em Manchester, Birmingham, Leeds, Glasgow, etc. A
pobreza extrema, sem esperança e sem limites, já ahi golfa tambem das
caldeiras de vapor. A industria individual tende rapidamente a
converter-se na industria, digamos assim, collectiva. A officina
desapparece diante da fabrica, o homem diante da machina. A questão de
saber se isto é, em absoluto, um mal ou um bem, relativamente aos
interesses geraes de qualquer paiz, não a ventilaremos aqui; mas é
indubitavel que esse transtorno completo na forma do trabalho torna
altamente angustiosa a situação dos operarios, e inhabilita-os para
depositarem nas caixas economicas sobras de salarios diminutos e
frequentes vezes interrompidos.
Por outra parte, o modo de ser dos bens de raiz em França é exactamente
o contrario da indole da propriedade territorial em Inglaterra. O solo
inglês é, por assim dizer, um grande vinculo aristocratico; a França um
vasto allodio popular. A terra neste paiz está retalhada em cento e
vinte e cinco milhões de chãos ou courellas e tende a subdivir-se ainda
mais. Dão-se casos já em que o preço da venda de uma parcella de terreno
pouco excede o total das despesas necessárias para legalisar a
transmissão. Muitos homens pensadores começam a ter serios receios de
que a extrema divisão do solo venha a impossibilitar em certas
circumstancias uma cultura remuneradora; e ainda os que julgam estes
receios infundados confessam a conveniencia de uma lei que, distinguindo
na propriedade o seu modo de ser, quando este modo de ser importa á
causa publica, do direito do individuo á mesma propriedade, consinta em
todas as divisões possiveis deste direito, mas prohiba que se retalhem
indefinidamente os pequenos predios. O systema dos _quinhões_ do
Alemtejo, que tem uma razão de ser, mas que está longe de ter a
importancia que teria quando applicado ás glebas de moderada grandeza,
prova que a doutrina que distingue o modo de ser da propriedade do
direito de propriedade é reduzivel á praxe. Em França, porém, fora
difficil entrar nesta senda que repugna a habitos inveterados da vida
civil da nação. No estado actual das cousas alli, o lavrador
proprietario ou ainda o simples rendeiro acha facilidade em empregar
immediatamente na acquisição de terras as suas economias, sem que lhe
seja necessario accumulá-las por largos annos nas caixas economicas.
Quatrocentos, duzentos, cem francos que, lhe sobejem, deduzidas as
despesas de cultura e domesticas, é quanto basta; lá encontra logo um
prado, uma courella, um cerradinho, que comprado e cultivado com esmero,
lhe produzirá um lucro maior que o limitado juro da caixa economica:
prefere, portanto, aquelle expediente. Para elle esta bella instituição
torna-se realmente inutil.
Eis, quanto a nós, a explicação da analogia entre a França e a
Inglaterra pelo que respeita á proporção das diversas classes de
contribuintes das caixas economicas. A condição dos operarios fabris é
semelhante nos dous paizes. Quanto á população rural, essa, em
Inglaterra não contribue, porque a sua situação pouco melhor é que a do
obreiro da industria, e o proprietario da pequena gleba é uma excepção
pouco vulgar; em França, porque é facilimo para os pequenos capitaes o
transformarem-se em propriedade territorial. Assim naturalmente
explicada, essa analogia não invalida as considerações anteriormente
feitas.
Em Portugal o caso é diverso. Entre nós o modo mais commum de possuir a
pequena propriedade é a emphyteuse. Para o sabermos não precisamos de
estatistica: basta olhar ao redor de nós. Nas provincias do norte, pode
dizer-se, talvez, que é rara outra especie de propriedade. Sommados os
prazos, os vinculos, as vias publicas, os terrenos chamados _nullius_,
pouco faltaria para ter a medida superficial dessas provincias, e ainda
ao sul do reino são por milhares os terrenos emphyteuticos tanto ruraes
como urbanos. Os vastos allodios só predominam no Alemtejo, se é que os
vinculos lhes não levam a palma. Ora a caracteristica da emphyteuse é
ser um meio termo entre o systema de propriedade em Inglaterra, que não
passa, na essencia, de uma odiosa e anti-economica aggregação de
morgados, e aquelle systema illimitadamente parcellario da França, que
suscita as apprehensões dos pensadores. A emphyteuse, collocada no meio
destes dous extremos, se for simplificada e constituída de um modo
accorde com as idéas e costumes das sociedades modernas, será sempre uma
das mais sensatas e beneficas instituições civis, e os seus resultados
immensos nas crises sociaes que despontam no horisonte. Radicada nos
habitos nacionaes, parece-nos que não corre o perigo de ser abolida; mas
se alguem o tentasse e o obtivesse, faria um bem mau serviço ao seu
paiz. O prazo fateusim hereditario realisa o desejo, por tantos
manifestado em França, de que os terrenos que por successivas divisões
desceram a um limitado perimetro, passassem indivisos, sem que por isso
deixasse de ser divisivel o direito de propriedade sobre elles.
É n'um paiz assim, se nos não enganamos, que a vantagem da existencia de
caixas economicas é immensa. Em geral os prazos de certa grandeza
excedem em valor as economias annuaes que qualquer lavrador mediocre ou
seareiro pode realisar; mas estas economias, accumuladas por alguns
annos, bastarão não raro para a acquisição de um desses prazos, que
diversas causas tão frequentemente attrahem ao mercado. Quem conhece os
habitos do homem do campo sabe que, poupado durante a maior parte do
anno, porque os recursos lhe não sobejam, quasi sempre desbarata uma
porção do producto do seu suor na occasião das colheitas. Pagos as
rendas, fóros e impostos, reservadas as sementes, provida a sua parca
dispensa, acha-se ainda com sobras mais ou menos avultadas. Illude-se
então por alguns dias e suppõe-se rico. Quer gosar; e essas sobras, que
poderiam constituir lentamente um peculio consideravel, vão-se em luxo e
em festas, quando não no jogo, na embriaguez ou na devassidão. Se
houvesse, porém, um estimulo de cubiça que lhe excitasse o animo, essas
sobras assim malbaratadas converter-se-hiam em capitaes uteis, e tanto
mais uteis quanto, pertencendo ao mesmo homem de trabalho, iriam
fecundar duplicadamente a terra.
Depois, n'um paiz cuberto de baldios, para promover cuja cultura é
impossivel se não olhe seriamente quando posermos treguas á furia das
nossas paixões politicas, qual não deve ser o fructo das caixas
economicas?! Hoje, se estes baldios se offerecessem gratuitamente,
libertando de todos os impostos directos quem os cultivasse,
achar-se-hiam, provavelmente, muitos que se aproveitassem do beneficio.
Mas, quem seria? Os grandes proprietarios e lavradores e alguns dos
raros argentarios que as doçuras do agio não trazem captivos. Os
pequenos cultivadores, os rendeiros, os seareiros, aquelles, em summa,
que, mais que ninguem, importaria se convertessem em proprietarios do
solo, esses justamente é que ficariam no maximo numero excluidos,
porque, por mais diminuto que supponhamos o cabedal necessario para o
arroteamento de poucas geiras quando é o próprio dono que o faz, sempre
deve ser algum, e as classes trabalhadoras não possuem capitaes nem
grandes nem pequenos. É evidente, porém, que as caixas economicas,
estabelecidas, propagadas, favorecidas por todos aquelles que podem e
devem fazê-lo, preparariam os elementos necessarios para, com verdadeira
utilidade social, se poder tomar tão importante providencia.
Hoje entende-se que o melhor instrumento de moralisação e de ventura
social consiste em derramar entre o povo o desejo da independencia e o
amor da propriedade, associando por esse modo o capital ao trabalho em
vez de os conservar em mutua hostilidade, como infelizmente os vemos. Se
os modestos peculios se forem successivamente alistando no campo do
trabalho, este ha de frequentes vezes triumphar dos capitaes, embora de
maior vulto, mas combatendo isolados. Supponhamos que o rico concorre
com o homem do povo para adquirir a courella, o prazo, a pequena vinha,
o pequeno olival que se levou ao mercado. O primeiro calcula que somma
lhe será necessaria para instrumentos, para sementes, para pagar aos
obreiros que hão de amanhar o predio, e é por este calculo e pelo lucro
comparado com o de outras applicações do seu dinheiro, que se regula
para determinar o maximo que pode offerecer. O homem de trabalho, porém,
que tiver o sufficiente para viver até as primeiras colheitas, e
occorrer a poucas despesas prévias que não pode evitar, não compara
lucros com lucros, não conta com os obreiros. Dono e obreiro é elle;
são-no a mulher e os filhos. O lavor da familia valerá o dobro do
trabalho salariado que paga o rico, e o primeiro lucro do trabalhador
proprietario será o seu jornal e o dos seus, ganho no proprio campo. Põe
o signal de _mais_, por assim nos exprimirmos, onde o abastado põe o
signal de _menos_. Do operario rural quando trabalha no seu predio
costumam dizer os outros: «_anda comsigo_», expressão admiravel de
exacção economica. É isto que explica o phenomeno geralmente observado,
de, no mercado, o valor proporcional da propriedade rustica ser na razão
inversa da respectiva grandeza. O que não sería, se o homem do campo de
humilde condição poupasse tudo quanto desbarata!
Sinceramente confessamos que o unico meio simples, exequivel, pacifico,
não de cohibir os abusos do capital pela negação das suas funcções
economicas, e pela condemnação da propriedade; mas de o cohibir nos
excessos com que muitas vezes opprime o operario, consiste em habilitar
este para se transformar de proletario em modesto proprietario. O
estabelecimento e o progresso das caixas economicas é o instrumento mais
poderoso de quantos se poderiam excogitar para obter, sem offensa de
nenhuns direitos e sem convulsões sociaes, tão salutar resultado.
Que, pois, todos aquelles que se condoem das miserias populares: que
desejam ver augmentada a prosperidade publica, reformarem-se os
costumes, enraizar-se no animo do povo o aferro ao solo natal, protejam
por quantos modos souberem esta bella instituição. Exigem-no o
christianismo, a philosophia, a moral e a politica. Que as tres grandes
forças intellectuaes da sociedade, o sacerdocio do altar, o sacerdocio
da imprensa e o sacerdocio da eschola se liguem para esta grande obra de
civilisação. Será trahirem a sua missão negarem-se a fazê-lo; porque a
idéa a cuja realisacão tendem as caixas economicas é, embora ao primeiro
aspecto o não pareça, um consectario do evangelho, da philosophia e da
boa politica. Essa idéa é a manifestação da caridade judiciosa, porque
se encaminha a combater os vicios e a miseria, e a alargar a esphera da
liberdade humana, contribuindo para a assegurar ás classes laboriosas,
tantas vezes escravas da necessidade do salario. A liberdade pode
facilmente ser theoria, pode ser doutrina proclamada na constituição de
qualquer paiz; facto, realidade, só o pode ser onde a maioria dos
cidadãos possuam com que serem independentes.
Que a experiencia das nações extranhas nos aproveite; que o pudor do
patriotismo nos incite. Já que fomos a ultima nação da raça latina em
plantar entre nós esta instituição bemfazeja, não nos deshonremos
deixando-a logo definhar. Passariamos aos olhos do mundo attonito por
barbaros, e todos os nossos protestos de querermos o melhoramento moral
e material do paiz seriam havidos por hypocrisia insigne. Sem civilisar,
morigerar e felicitar as classes populares, todo o progresso é futil.
Dirigimos estas ponderações especialmente á classe media e ao clero.
Naquella reside a illustração, a riqueza e verdadeiramente o poder; nas
mãos deste a preponderancia que dá o predominio sobre as consciencias.
Que tanto uma como outro usem da sua influencia para attrahir o povo ao
caminho da previsão, da economia e das legitimas ambições e esperanças.
Não só elle, hoje rude, pobre e inclinado a vicios ignobeis, lucrará com
isso; mas tambem as classes mais elevadas ganharão na paz e ordem
publicas, que se irão firmando á proporção que as classes inferiores se
melhorarem nos costumes e na ventura domestica. Empreguemos o exemplo e
a persuasão: uns poucos de cruzados postos nas caixas economicas não
produzirão, de certo, vantagens apreciaveis para o que possue uma
fortuna avultada ou ainda mediana; mas fructificarão para o povo,
gerando a confiança e despertando nelle o instincto da imitação.
Conspiremos todos para esta grande catechese; e que n'um paiz, onde o
habito da leitura ainda é limitadissimo, a persuasão oral, as relações
de familia ou de dependencia ajudem as diligencias da imprensa nesta
obra de alta moralidade. Deus abençoará os obreiros que semeiarem e
cultivarem essa rica sementeira de regeneração na terra patria; e o
povo, com a sua futura gratidão, dará testemunho da bençam da
Providencia.
[Nota de rodapé 2: O sr. Antonio de Oliveira Marreca.]
[Nota de rodapé 3: A associação do Monte-pio geral.]


AS FREIRAS DE LORVÃO
*1853*
A
ANTONIO DE SERPA PIMENTEL


Meu amigo.--Escrevo-lhe do fundo do estreito valle de Lorvão, defronte
do mosteiro onde repousam as filhas de Sancho I; deste mosteiro
melancholico e mal-assombrado como as montanhas abruptas que o rodeiam
por todos os lados: escrevo-lhe com o coração apertado de dó e repassado
de indignação. Descendo a examinar o archivo das pobres cistercienses,
penetrei no claustro por ordem da auctoridade ecclesiastica. Lá dentro,
nesses corredores humidos e sombrios, vi passar ao pé de mim muitos
vultos, cujas faces eram pallidas, cujos cabellos eram brancos. Esses
cabellos nem todos os destingiu o decurso dos annos: a amargura
embranqueceu os mais delles. Quasi todas essas faces tem-nas
empallidecido a fome. Morrem aqui lentamente umas poucas de mulheres,
fechadas n'uma tumba de pedra e ferro. Estas mulheres ouvem de lá, do
seu tumulo, o ruido do burgo apinhado na encosta fronteira, e dividido
do mosteiro apenas por um riacho. Naquellas casas de telha-van, negras,
gretadas, desaprumadas, com o aspecto miseravel da maior parte das
aldeias da Beira, vive uma população laboriosa, que até certo ponto se
pode chamar abastada, e a que, pelo menos, não falta o pão nem a
alegria. No mosteiro sumptuoso, vasto, alvejante, com um aspecto
exterior quasi indicando opulencia, é que não ha pão, mas só lagrymas.
Lorvão é peior do que um carneiro onde se houvessem mettido vinte
esquifes de catalepticos, sellando-se para sempre a lagea da entrada. O
cataleptico, fechado no seu caixão, ouve, sente, tem a consciencia de
que foi sepultado vivo. Nas trevas e na immobilidade, o terror, a
desesperação, a falta de ar matam-no em breve: a sua agonia é tremenda,
mas não é longa. Aqui é outra cousa: aqui vê-se, por entre as grades de
ferro, a luz do céu, a arvore que dá os fructos, a seara que dá o pão, e
tudo isto vê-se para se ter mais fome. Todos os dias uma esperança
duvidosa e fugitiva atravessa aquellas grades de envolta com os
primeiros raios do sol: todos os dias essa esperança fica sumida debaixo
das trevas que á tarde se precipitam sobre Lorvão das ladeiras do
poente. Depois as noites de insomnia; depois o choro; depois, sabe Deus
se a blasphemia!
Dez vezes que tenhamos lido o Dante, ao chegarmos á descripção da torre
de Ugolino erriçam-se-nos sempre os cabellos. Mas Lorvão é uma torre de
Ugolino. A differença está em que no carcere da _Divina Comedia_ havia
um homem forte de alma e de corpo, affeito á dor e ás scenas de dôr:
aqui ha dezoito ou vinte mulheres na idade decadente, que se affizeram
na juventude aos commodos, aos regalos, e até ao luxo compativel com as
condições da vida monastica. Lá o _fiero pasto_ acabava, e depois
morria-se rapido. Aqui não: aqui ha justamente quanto basta para
prolongar por mezes e por annos o martyrio. Dir-se-hia que existe uma
providencia infernal para que não falte ás freiras de Lorvão o
restrictamente indispensavel para, lento e lento, se lhes irem os
membros mirrando n'um longo expirar, debeis e senis.
Imagine, meu amigo, uma noite de inverno, no fundo desta especie de poço
perdido no meio da turba de montes que o rodeiam: imagine dezoito ou
vinte mulheres idosas, mettidas entre quatro paredes humidas e
regeladas, sem agasalho, sem lume para se aquecerem, sem pão para se
alimentarem, sem energia na alma, e sem forças no corpo, comparando o
passado, sentindo o presente e antevendo o futuro. Imagine o vento que
ruge, a chuva ou a neve fustigando as poucas vidraças que ainda restam
no edificio; imagine essas orgias tempestuosas da natureza que passam
por cima das lagrymas silenciosas das pobres cistercienses, e as horas
eternas que batem na torre. Imagine tudo isto, e sentirá accender-se-lhe
no animo uma indignação reconcentrada e inflexivel.
Ha poucos dias passou-se em Lorvão uma scena tremenda. N'um accesso de
desesperação, parte destas desgraçadas queriam tumultuariamente romper a
clausura; queriam ir pedir pão pelas cercanias. Custou muito contê-las.
Tinha-se apoderado dellas uma grande ambição; aspiravam á felicidade do
mendigo, que póde appellar para a compaixão humana; que póde fazer-se
escutar de porta em porta. Era uma vantagem enorme que obtinham. A sua
voz é demasiado fraca, e os muros de Lorvão demasiado espessos. Gemidos,
brados, prantos, tudo é devorado por esse tumulo de vivos. Ao menos,
surgiam como Lazaro da sua sepultura.
Gemidos, brados, prantos, nada disso chega aos ouvidos dos homens que
exercem o poder nesta terra; nada disso os incommoda. Entretanto, se eu
falasse com elles, dar-lhes-hia um conselho. Talvez o ouvissem, porque a
minha voz é um pouco mais forte que a das velhas freiras. Era o de
enviarem aqui sessenta soldados, formarem as monjas de Lorvão em linha
no adro da igreja e mandarem-lhes dar três descargas cerradas.
Desapparecia, a troco de poucos arrateis de polvora, um grande
escandalo, e resolvia-se affirmativamente um problema a que nunca achei
senão soluções negativas, o da utilidade da força armada neste paiz.
Sim, isto era util, porque era atroz; porque era uma festa de cannibaes;
porque se gravava na mente dos homens; porque ficava na historia, como
um padrão maldicto, para instaurar no futuro o processo desta geração.
Mas não era infame, não era covarde; não era o assassinio lento,
obscuro, atraiçoado, feito com a mordaça na boca das victimas. Corria o
sangue durante alguns minutos: não corria o suor da agonia durante
annos. Era uma scena de delirio revolucionario; mas não era um capitulo
inedito para ajunctar aos annaes tenebrosos do sancto officio.
A historia recente de Lorvão é simples. Os bens acumulados naquelle
cenobio durante dez seculos tinham-no tornado demasiadamente rico. A sua
renda annual dizem que orçava por mais de oitenta mil cruzados. Como
mosteiro cisterciense, Lorvão dependia dos monges brancos. Cem freiras
de que se compunha a communidade, e que viviam opulentamente, gastavam
muito, mas não gastavam tudo. Cinco frades bernardos, aposentados n'um
palacete contiguo ao mosteiro, consumiam o resto. Eram elles que
administravam as grossas rendas da casa. Os banquetes e as festas
succediam-se alli sem interrupção. Os hospedes eram continuos. O manto
da religião cobria todos os excessos da opulencia. A chronica dos
bernardos em Lorvão subministra mais de um capitulo curioso para a
historia dos _bons tempos_ que já lá vão.
Até aqui nada ha extranho. Mas os frades entenderam que deviam comer a
renda e o capital das cenobitas laurbanenses. Refere-se que certa vez,
não sabendo explicar plausivelmente o dispendio de uma verba de 600$000
réis, escreveram n'umas contas irrisorias que mostravam annualmente á
abbadessa: _Palitos--600$000 réis_. Pode ser fabula. O que, porém, não é
fabula é que durante muitos annos o dinheiro das decimas que o mosteiro
devia pagar esqueceu em Alcobaça, dando-se em conta como pago. Por outro
lado as _necessidades da casa_ tinham feito com que suas reverencias
empenhassem a communidade em 6:000$000 ou 8:000$000 réis. Os juros desta
divida também se não pagaram. Veio o anno de 1833. Desappareceram os
dizimos, principal rendimento do mosteiro. Os direitos senhoriaes
desappareceram tambem. Os frades, enxotados do seu feudo de Lorvão,
sairam d'alli, mandando primeiramente derribar todas as arvores que
povoavam aquellas encostas e vendendo as madeiras. Era o ultimo _vale_
que davam a suas irmãs. Ainda assim, ficava ás monjas uma honesta
subsistencia. Passado, porém, apenas um anno, o fisco arrebatou-lhes
quasi tudo pela divida de 25 contos de réis de decimas, e os credores
particulares levaram-lhes depois os demais bens. Restavam-lhes apenas
alguns pequenos foros espalhados por diversos districtos, os quaes
geralmente lhes são recusados, ou cuja difficil cobrança quasi consome o
producto delles. Vacillantes entre a vida e a morte, as freiras de
Lorvão prolongam uma existencia de dôr e miseria pendente das
eventualidades desse tenue rendimento. Ha um ou dous annos, o governo
deu-lhes a esmola de um subsidio: este subsidio, porém, cessou.
Ignora-se o motivo. Por ventura alguma secretaria de estado precisava de
novos estofos nas suas commodas poltronas, ou os felpudos tapetes das
salas ministeriaes tinham perdido o brilho das suas côres variegadas, e
cumpria renová-los. São despezas inevitaveis, e é necessaria a economia.
Se assim foi, respeitemos as exigencias imperiosas da dignidade
governativa. Alta noite, durante o inverno, vinte mulheres curvadas pela
inedia e pela velhice podem dirigir-se ao coro, calcando quasi descalças
as lageas humidas e frias destes claustros solitarios; mas as botas
envernizadas de suas excellencias devem ranger mollemente sobre um
pavimento suave, e as suas cabeças, afogueiadas pelas profundas
cogitações, reclinarem-se em fofos espaldares. Todavia a magestade das
secretarias e os apices da economia não excluem a tolerancia, nem a
indulgencia. Faço essa justiça ao poder. Quando a ultima freira de
Lorvão expirar de miseria, ou debaixo de alguma dessas paredes
interiores do mosteiro que ameaçam desabar, os ministros soffrerão com
animo paternal que mãos piedosas vão lançar o cadaver da pobre monja no
ossuario de sete seculos, onde repousam as cinzas de milhares de suas
irmãs. Depois venderão o edificio e a cerca a algum destes judeus do
seculo XIX, a que chamamos agiotas, se algum houver a quem passe pelo
espirito ter uma casa de campo em Lorvão.
Meu amigo: se a indignação consentisse o riso, se não se tractasse de
uma questão grave e triste, eu riria do afan da imprensa em ventilar os
meios de acudir á desgraçada ilha da Madeira. O remedio ha de ser o
abandono. Quando vejo a facilidade com que a sorte das freiras de
Portugal se tornaria feliz, e considero o estado de Lorvão, de Cellas, e
de tantos outros mosteiros, como hei de esperar que remedeiem um mal
cuja cura é mil vezes mais difficil?
Na secretaria da justiça encontram-se as provas de que a renda dos bens
que ainda possuem os conventos do sexo feminino em Portugal excede a
200:000$000 réis, e todavia ha centenares de freiras que morrem á
mingua. São dous factos que não carecem de commentario. É a manifestação
mais eloquente de que não ha governo nesta terra. Existem mosteiros,
cujas habitadoras vivem na opulencia, e onde o superfluo se desbarata de
um modo escandaloso. Não digo quaes. E para que apontá-los? Aposto meia
moeda, uma moeda até, contra mil acções da companhia Hislop, que se
lembravam logo de reduzir esses mosteiros á mendicidade para fazerem com
o rendimento delles sessenta coroneis e duas secretarias de estado
novas. Antes assim como está. Defendiam-nos mais, e administravam-nos
mais. Deus nos livre disso!
É certo, porém, que para as freiras de Lorvão viverem tranquilamente os
seus ultimos dias, bastava que nos homens do poder tivesse existido um
leve instincto de equidade. Os frades de Alcobaça roubaram 25:000$000
réis a Lorvão. Eram responsaveis por elles. A sua responsabilidade
passou para o fisco seu herdeiro e successor. As decimas de Lorvão
deviam ir buscar-se aos bens de Alcobaça, logo que se provasse que
Alcobaça espoliara fraudulentamente Lorvão. Averiguou-se o facto? Não. O
fisco executou as freiras, e recebeu duas vezes a mesma divida. Onde
houvesse moralidade na administração publica practicava-se isto?
Mas porque o importuno com esta larga historia? Não é, meu amigo, só
para desabafo: é para lhe pedir um favor. Supponha que viu, como eu vi,
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