Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 04

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plantas nocivas.
E lançaram boas sementes á terra, e quando a seara foi crescendo,
começaram de mondar-lhe o joio e as outras hervas damninhas.
Promettia naquelle anno ser excellente a colheita, e no coração dos
familiares renascia já a esperança.
Mas o irmão mais novo, possuido do espirito de destruição, colligou-se
com os criados devassos e que aborreciam o trabalho continuo a que eram
forçados.
E fizeram uma união contra o segundo-genito e tiraram-lhe o mando,
valendo-se de muitos clientes do primogenito, os quaes, por via da
dissensão entre os dous mais novos, esperavam triumphasse o mais velho.
Lançaram-se então ao campo, destruiram a sementeira, cortaram as
arvores, e passaram a charrua por cima dos campos arrelvados.
E buscaram sementes exquisitas e arvores exoticas, e atiraram á terra
desalinhadamente com tudo isso, e depois adormeceram.
As arvores, porém, seccaram logo, e as sementes, apenas rebentaram,
morreram; porque os imprudentes não haviam estudado nem a natureza do
clima, nem as propriedades do solo, nem as regras de agricultar.
E a familia inteira no fim do anno tinha perecido de fome.

XXI

Na terra de Cethim houve um rei que era bom e cheio de liberalidade e
valor.
E cançado de reinar, disse em certo dia a seu filho, que ainda era muito
moço:
Pesam-me já demais a coroa e o sceptro, e os esplendores do throno não
me deslumbram. Vem, e assenta-te nelle.
E o filho obedeceu, e começou de reger os povos por certas leis
estabelecidas por seu pae, o qual foi viver em regiões longínquas.
Mas um tyranno alevantou-se com o reino, e o moço principe errou largo
tempo por extranhos paizes com os poucos seguidores de sua má ventura.
E o bom rei que descera do throno correu a restituir ao filho a herança
que lhe legara.
E a sua espada foi como a de Gedeão; o seu braço come o dos Machabeus.
Então o principe desterrado voltou á patria, reassumiu o sceptro que lhe
fora roubado, e a lei e a justiça recobraram o antigo vigor.
Depois o rei virtuoso morreu de puras fadigas, e foi dormir com seus
paes: sobre a sua memoria desceram não só as bençãos dos seus soldados,
mas tambem as de todos os amigos da justiça e da paz.
Nas trevas, porém, homens corrompidos começavam a tramar dissensões
civis; porque pretendiam que os bons soffressem, depois da tyrannia de
um unico mau, a tyrannia de muitos homens ruins.
E estes mysterios da corrupção vieram a lume, e a plebe disse um dia ao
principe e aos cidadãos pacificos:--A força está em nós, e a força é o
direito: obedecei-nos pois, aliás um descerá do throno, outros serão
reduzidos a pó.
E tudo calou diante da plebe; porque era verdade que ella tinha a força.
Os nobres, os prudentes, e os homens bons cubriram-se de dó, e no gesto
lia-se-lhes a amargura do coração.
Mas o moço rei a quem os turbulentos fingiam acatar, porque descera até
elles, mostrou-se contente do seu damno, e engolfou-se nas delicias de
que o rodeiaram os algozes da patria.
Foi então que se apagou em todos os animos honestos o ultimo raio de
esperança.

XXII

Havia naquelle tempo em Cethim um propheta, em cuja boca posera Deus o
verbo da eterna verdade.
E este propheta entrou um dia nos paços do principe e disse-lhe:
Mancebo inconsiderado, emquanto folgas e ris, vai desconjunctar-se
debaixo de teus pés o throno que te herdaram teus paes.
Lembra-te de que subiste a elle por cima das ossadas de vinte mil dos
teus amigos, regadas pelas lagrymas de cem mil familias.
E não te esqueças de que entre esses ossos jaziam os de teu pae: não
maldigas com tuas obras a sua memoria; porque elle foi justificado
diante do Senhor.
Crês tu que os homens do nada te perdoarão o teres nascido do sangue dos
reis? Enganas-te! Crime para elles é este que nunca te será relevado.
O sorriso que na tua presença lhes aclara o torvo das faces, não o
creias de amor: repara, e verás que é o riso infernal do desprezo.
Os filhos da abjecção queriam igualar-se comtigo; não, sendo elles quem
subisse, mas sendo tu quem descesse.
As taboas da lei foram feitas pedaços; se o vê-las partidas te apraz ou
disso não curas, antes de o patenteiar cumpria-te restituir-nos as vidas
e o sangue de nossos irmãos.
Este paiz soffreu tudo por guardar o pacto que jurou, e que também tu
juraste: que direito é o teu para approvares que esse pacto seja
rasgado? Porque não padecerias alguma cousa a bem dos que tanto
padeceram por ti?
Crês, porventura, que é bello e generoso assentares-te em um throno que
a relé do povo conspurcou de lodo e de infamia?
A plebe era forte: embora. Mais forte era o tyranno de outrora, e
baqueiou por terra.
Devias deixar aos maus a consummação do seu crime e não o sanctificares
tu.
Devias confiar na Providencia, e arrojar de ti o manto de ignominia que
sobre os hombros te lançavam.
Devias conservar sem mancha o teu nome, porque está ligado ao do que te
deu o ser, e este será glorioso até o termo dos séculos.
Nós iremos ajoelhar juncto ao sepulchro de teu pae, e ás cinzas do rei
virtuoso pediremos a justiça que não encontramos na face da terra.
Oh, que se fosse possivel alevantar-se elle em pé sobre a campa, um seu
olhar te encheria de remorsos; um brado seu fulminaria os perversos!
Taes foram as palavras que o propheta de Cethim disse ao principe
mancebo: o que depois aconteceu não o sei eu narrar.
E este é um fragmento da historia de eras que passaram ha muito.

XXIII

A justiça de Deus é grande: maior a sua misericordia.
Para o que se arrepende mana do seio do Senhor fonte perenne de perdão,
e as preces do contrito sobem ligeiras até os degraus de seu throno.
Depois dos dias de afflicção, elle envia o consolo e quebra em pedaços o
vaso da sua colera.
Povo, que vagueias desenfreiado pelas sendas da morte, converte-te á
vida, converte-te ao Deus de teus paes.
Elle não se esquecerá dos netos desses fortes que espalharam a luz do
seu Verbo entre os mais remotos barbaros, e os teus erros serão
esquecidos.
Nossos avós souberam ser livres sem ser licenciosos; souberam ser
grandes sem crimes: eterna é a sua gloria.
Ousariamos nós irmos ajunctar-nos com elles no repouso do tumulo
carregados das maldicções do Altissimo, e sepultando comnosco a herança
do nome português cuberta da execração do universo?
Lembrae-vos de que as cinzas dos cavalleiros de João primeiro; dos
valentes de Ceuta, de Tangere e de Arzila, dos conquistadores do
Oriente, estão envoltas na terra que pisaes.
E onde quer que ponhaes os pés levantará o passado um grito de
reprehensão contra a depravação do seculo actual.
Formosa e pura é a luz do sol neste amoroso clima do occidente: não
queiraes convertê-la no facho avermelhado e sinistro que fulgura por
cavernas de salteadores e de assassinos.
Unamo-nos, pois, como irmãos, e abraçando-nos uns com outros, cáiam
algumas lagrymas de reconciliação sobre esta terra tão regada de
lagrymas de amargura; tão ensopada no sangue do fratricidio.
Refloreçamos entre nós a paz e a amizade: tenhamos um nome só, o de
portugueses, um só bando, o da patria.
Ainda algum dia estes rogos do propheta serão ouvidos: mas quando, é um
segredo de Deus.


A VOZ DO PROPHETA

SEGUNDA SERIE

Iniquitas surrexit in virga impietatis;
non ex eis, et non ex populo, neque
ex sonitu eorum, et non erit requies
in eis.
EZECHIEL, VII-11.

I

Lisboa, cidade de marmore, rainha do oceano, tu és a mais formosa entre
as cidades do mundo.
A brisa que varre os teus outeiros é pura como o céu azul, que se
espelha no teu amplo porto, semelhante a grande mar.
Trinta seculos tem surgido depois que tu surgiste, e sorvendo milhares
de existencias cahiram todos no abysmo do passado.
E tu os has visto nascer e morrer; e sorriste-te, porque julgavas que a
vida te estava travada com a vida do universo.
Escondendo nas trevas dos tempos remotissimos a tua origem, dizias ás
demais cidades da Europa:--Sou vossa irmã mais velha.
Nobre e rica outrora, quando o Oriente e a Africa te mandavam o ouro das
suas veias, os extranhos vinham assentar-se-te ao pé dos muros e
abastecer-se com as migalhas cahidas das mesas dos teus banquetes.
Cada um dos teus velhos palacios abrigou já os ultimos dias de um grande
capitão; em cada pedra dos teus templos ha uma recordação das virtudes
passadas; em muitas lousas de sepulturas nomes que não morrerão.
Nas eras de tua gloria, os monarchas dos ultimos confins da terra se
haviam por honrados com chamar irmãos a teus filhos; e filhos teus davam
e tiravam coroas.
As tuas armadas aravam as campinas do oceano, e neste nem uma vaga
deixou de gemer debaixo das naus do Tejo.
Para as frotas da nova Tyro, os golpes de machado resoavam ao mesmo
tempo nos bosques da Europa e da Africa, do Oriente e do Novo-Mundo: os
lenhos do Indostão cosidos com os da Nigricia fluctuavam por mares
distantes, e sobre elles se hasteiava um signal de terror para o orbe:
era o pendão das Quinas.
Então, oh cidade do Tejo, reinavas tu e eras forte, mais do que Roma ou
Carthago; mas o imperio e a força vinham-te das virtudes de teus filhos,
dos homens a quem sem pudor chamamos nossos avós.
Vivificavam-te o seio um sem numero de bem nascidos espiritos, e eras
seminario feracissimo de corações generosos.
Porém, que te resta hoje do antigo esplendor, da gloria de tantos
seculos? Um echo do passado nas paginas da historia, o sol puro da tua
primavera, os restos dos paços e templos que os terremotos te não
consumiram, e o grande vulto das aguas do amplo ádito do Tejo.

II

Mas este echo da historia, que devia ser para ti como um grito de
remorso, não ha ouvidos que o escutem, e soa em vão e morre no meio do
vozeiar descomposto da plebe:
Mas este céu puro que te cobre, e que testemunhará no grande dia as
virtudes de nossos maiores, testificará também perante o Senhor a tua
corrupção actual:
Mas este porto, que a liberdade regrada de tres annos começava a povoar
de entenas, torná-lo-ha o reinado da licença tão ermo como os extremos
dos mares gelados:
Mas pelos palacios de marmore já não retumba a voz dos heroes, e os
templos estão desertos: só por lupanares e praças sussurra o clamor dos
populares, ou entoando os canticos das orgias, ou tumultuando em
assuadas e preparando o dia em que satisfaçam a sede do roubo e do
assassinio.
Viuva prostituida, os vicios corromperam-te a seiva da vida, e a
gangrena e os herpes corroem-te os membros, que ainda vestes de trajos
louçãos, mas onde a morte se encarnou ha muito.
Formosa ainda no aspecto, assemelhas-te ao sepulchro do evangelho, alvo
e polido no exterior, mas cheio de podridão e negrura.
Nova Jerusalém, a dextra do Senhor vergou pesando-te os crimes e, como a
antiga, saberás se por ventura são asperas as angustias que o
Omnipotente manda aos povos no dia da sua justiça.
Rapida é a carreira do malvado pelos atalhos do crime: porque esses
atalhos levam, de despenhadeiro em despenhadeiro, ao abysmo da perdição.
Breve empallidece o outono as folhas das arvores; breve as desprende dos
troncos; breve as espalha e some, arrebatando-as sobre as azas dos
ventos.
Esse curto praso bastou ao povo para esgotar os thesouros da
misericordia divina, que os erros e culpas de seculos não haviam podido
empobrecer.
Os feitos portentosos de dous annos de combates civis foram
amaldicçoados pelo povo em uma noite de sedição, e a arvore da liberdade
cerceiada juncto da terra.
E as esperanças de salvação e de felicidade passaram como o sonho
matutino que se desvanece ao alteiar do sol.

III

Como a antiga Jerusalém se afundou em mar de crimes, assim a moderna
Sião, a grande cidade do occidente, se mergulhou em torrente de
perversidades.
E a maldicção celeste que sumiu aquella d'entre as nações pesará ainda
mais rijamente sobre a desgraçada Lisboa, sobre esta caverna de vicios e
de desenfreiamento.
Á roda dos muros de Solima apinhavam-se os cavalleiros de Babilonia, e
as tendas de Nabuchodonosor estavam assentadas ao pé da torrente de
Cedron.
E as catapultas arrojavam pedras sobre os eirados do templo, no cimo do
Moria: os arietes batiam os baluartes, que vacillavam até os
fundamentos, e o granizo das settas sibilava, passando por entre as mal
defendidas ameias.
E ao longe scintillavam os ferros das lanças e o bronze dos elmos e dos
cossoletes, e ouvia-se o nitrir dos cavallos.
Surgira o dia extremo para a cidade das maravilhas, para a reproba
Solima. E d'alli a um anno, sobre as ruinas della estava assentado um
velho.
Era o propheta de Anathot, que, em cima da ossada dos palacios e do
templo, entoava uma elegia tremenda, a elegia da sua nação.

IV

Tambem o dia em que, entre os vestigios da cidade maldicta, algum vate
levante um grito de agonia, um grito de desesperança, não tardará a
chegar.
Porque Deus ergueu-se no seu furor, e mandou descer sobre este paiz o
anjo do exterminio.
Mais cruel será o teu castigo, oh terra do meu berço, do que o de
Jerusalém: porque ella pereceu a mãos de extranhos, e seus filhos
morreram defendendo os lares paternos.
Mas a ti é um matricidio popular, é a febre ardente das sedições que te
vae arremessar ao sepulchro.
Os teus muros converter-se-hão em circo: pelas praças e ruas
pelejar-se-hão pelejas como de gladiadores, combates como de mastins e
feras.
Porque o temor de Deus saiu do coração do povo, e entraram nelle todas
as raivas do inferno.
Aspero é para o que morre assassinado não poder clamar ao céu justiça
contra o seu matador.
E neste mau caso cahirá o povo; porque serão as suas proprias mãos que
lhe rasgarão as entranhas: será elle quem lavre a sua sentença de morte.
Elle se amaldicçoará a si, e o remorso e a desesperação de toda a humana
piedade lhe dobrarão as agonias do passamento.

V

Os que pelejaram contra os tyrannos purpurados mal sabiam que lhes
quebravam o sceptro de ferro, para metter a espada da assolação na
dextra de tyrannos cobertos de vermes e farrapos.
Mal pensavam que uma raça corrupta não conhece outra estrada senão a da
servidão ou a da licenciosidade.
A nação, esmagada pelos reis, tinha muito tempo gemido debaixo da
propria miseria.
Mas surgiu um principe que deu a liberdade ao povo e que veio morrer
para lh'a restituir, quando elle vilmente a deixou baqueiar por terra.
E estes homens, que pouco antes haviam dobrado o joelho perante o
despotismo, mostraram-se tão orgulhosos e insolentes, quanto, até então
haviam sido abjectos e timidos.
E n'uma orgia popular fizeram resoar gritos insultuosos nos ouvidos
daquelle que duas vezes os libertara, e invocaram-lhe a morte. Nesse
momento longe estavam os seus soldados, e muitos delles arquejavam
moribundos no campo onde se pelejou a ultima batalha da patria.
Em verdade vos digo que tal crime é dos que Deus não perdoa; porque a
ingratidão é a mais horrenda de todas as perversões humanas.
Elles apressaram o repouso do tumulo para o salvador da republica: mas o
nome de parricidas será o que sobre a jazida lhes escreverá a historia.

VI

O sonho da liberdade, o sonho da minha juventude, esta fonte da poesia e
de acções generosas, converteu-se para mim n'um pesadello cansado.
Digno era o povo de compaixão quando estava em ferros, e por bom feito
se tinha entre as almas puras o affrontar-se o homem com a morte pela
salvação dos seus semelhantes:
Porque, subindo ao patibulo ou expirando entre o estrondo das armas, a
voz da consciencia assegurava ao que fenecia as lagrymas e as bençãos
dos vindouros, e que algum dia cyprestes se plantariam na terra que lhe
bebesse o sangue.
Mas isto era crer na virtude popular: era apenas um sonho, e a
consciencia mentia.
A corrupção estava no amago das existencias. A arvore da vida social
carcomiu-a a servidão. Cumpria que as tempestades politicas a
derribassem; que os vermes da sociedade lhe roessem e desfizessem os
troncos.
E estes vermes são as turmas de uma plebe invejosa, que incessantemente
trabalham na grande obra da publica destruição.
Almas virtuosas, que nos paizes ainda escravos preparaes no silencio a
queda dos tyrannos, não apresseis o grande dia da emancipação popular.
Porque nesse mesmo momento sereis amaldicçoados pelos que salvastes, e
cubertos de escarneos e de injurias, sabereis que a plebe lança em
poucos mezes mais crimes na balança da eterna justiça do que os tyrannos
ahi hão lançado por seculos.

VII

Certo dia, o conde de Avranches entrava nos paços de Affonso quinto, e
os cortesãos calumniavam sem pudor o bom duque de Coimbra, o salvador da
republica.
E o conde disse-lhes:--mentis, como desleaes; e aos melhores tres de vós
prova-lo-hei á lança e á espada: innocente e justo é o mui nobre filho
de meu senhor e rei, Dom João de excellente memoria.
E ninguem ousou responder ao velho cavalleiro da Garrotéa; porque bem
sabiam que a sua consciencia era pura e o seu montante pesado.
D'ahi a alguns dias elle provou o dicto. Na batalha de Alfarrobeira,
sobre um montão de cadaveres, cahiu defendendo a innocencia e bom nome
do seu desventurado amigo.
Onde estavam os do valente capitão da nova Diu, do rei soldado da
patria, quando o vulgacho no meio da praça publica, assentado no seu
lodaçal mandava derrocar as leis, as recordações e a gloria d'uma nação
inteira?
Onde estavam os amigos de D. Pedro, quando a memoria do grande homem era
amaldicçoada na condemnação da sua obra; quando sobre as suas cinzas a
dissolução cuspia escarneos; quando a liberdade morria ás mãos da
licença popular?
Quem se ergueu, seguro em boa consciencia, para lançar a luva em defesa
da justiça, e dizer ás turbas:--sois desleaes e mentis?
Ninguem! Todas as espadas ficaram embainhadas. Em Portugal já não ha um
cavalleiro. Na batalha de Alfarrobeira morreu o conde de Avranches, e a
sua espada foi sepultada com elle.

VIII

Quando os reis se assentavam em thronos de ferro; quando a lisonja os
rodeiava de prestigios, e o terror estava assentado ás portas dos seus
palacios, era bello e generoso affrontar-se o homem com a tyrannia e
menoscabar as dores dos supplicios.
Então era ousado o propheta, quando, nos paços de Balthasar, lia nos
muros, escriptas pela mão de Deus, palavras de condemnação.
Eram sublimes os martyres, quando perante os cesares davam testemunho do
evangelho, e escarnecendo dos apparelhos de morte, se deitavam
tranquillamente sobre a cruz da agonia.
Era bello ouvir o poeta de Florença trovejar contra a prostituta Roma,
denunciar ao mundo a corrupção e os crimes dos pontifices do Tibre, e
comer no desterro um pão eivado de lagrymas e esmolado por estranhos.
Era bello, quando nós, assentados sobre os gelos do Norte, saudavamos do
desterro a terra que nos deu o berço, e vinhamos, fracos pelo numero,
mas fortes de coração, lançar as nossas baionetas na balança da
Providencia, onde a tyrannia tinha tambem lançado as suas.
Tudo isto era bello e generoso; porque então os pequenos gemiam
oppressos debaixo dos pés dos grandes, e ao homem justo incumbia fazer
resoar na terra a voz da eterna justiça, o grito da liberdade.
Mas hoje que a plebe reina e, como ampla voragem, ameaça tragar a
virtude, a liberdade, a justiça e todas as recordações sanctas do
passado, para o homem de boa consciencia sê-lo-ha, tambem, o morrer.
Sê-lo-ha o bradar no meio das turbas, e derramar sobre ellas a
condemnação, que Deus confiou em todos os seculos aos labios do
innocente e virtuoso.
Sê-lo-ha chegar aos tribunos populares, apontar-lhes para o céu, e
apresentar a cabeça ao cutello dos lictores.

IX

Povo, hoje és tu quem impera, e absoluto é o teu poder; porque te dizes
unica fonte delle.
Toma, pois, em tuas mãos a vara do magistrado, e assenta-te uma vez mais
no teu throno, amassado com sangue e pó.
Vem assentar-te, e julga-nos, a nós, que tu maldizes, e aos tribunos,
aos instigadores de tumultos, que cobres de amor e de bençãos.
Porque isto diz o Senhor Deus: se a plebe julgar com justiça, a plebe
ainda será salva.
Desça o terror da tua vingança sobre o coração do que te houver
offendido; volvam-se no pó as frontes onde tu achares estampado o
ferrete do crime.
Recorre as acções da nossa vida, recorre as obras passadas das vidas dos
teus tribunos, e por preço do perdão de Deus, julga-nos com justiça.
Quando tu jazias na servidão, e os grilhões, encarnando-se-te nos pés e
nos pulsos, te roçavam pelos ossos, peleijavamos nós por te salvar;
derramavamos o nosso sangue por ti.
Por ti viamos o irmão e o amigo morder o pó dos campos de batalha, e
calavamos; sentiamo-nos descahir de fome, e não soltavamos um queixume.
Porque guardavamos os ais para o silencio das trevas. Soldados da
patria, ousariamos acaso queixar-nos diante da luz do sol?
E elles, que faziam, emquanto as nossas noites eram veladas debaixo de
um céu de ferro e de fogo, emquanto os nossos dias se consumiam entre o
sibilar dos pelouros?
Elles? Nos lupanares e tabernas de paizes extranhos, folgavam nos
banquetes da embriaguez; reclinavam-se no leito da prostituição.
Elles? Cubriam-nos de insultos, chamavam loucura e vaidade á nossa nobre
ousadia, e riam-se do juramento que faziamos de morrer ou dar a
liberdade a nossos irmãos.
Elles? Buscavam por todas as vias semeiar a zizania e os odios, damnar a
nossa causa sancta, e fazer-nos perecer debaixo das ruinas de uma cidade
illustre.
Eis o que elles fizeram em proveito da patria. No meio do foro, diante
de teu tribunal terrivel, descubra quem o ousar o peito, e mostre e
conte as cicatrizes das feridas que recebeu pela salvação da republica.
Um só delles as mostrará; porque esse foi valente e amigo da virtude.
Anjo de luz, porque te despenhaste no abysmo?
A historia escrevia o teu nome na pagina das bênçãos: tu mesmo o
riscaste e o foste escrever na pagina das maldicções...................
.......................................................................
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X

Porém, debalde invocariamos justiça perante o tribunal popular; porque o
povo é abastado de injustiça e ingratidão.
Os que estão cubertos de cicatrizes, os que foram longamente saciados de
angustias por salvá-lo seriam condemnados, e os tribunos, os
concitadores da anarchia, cujas obras unicas tem sido conduzir a patria
ao abysmo da perdição, seriam absolvidos, seriam abençoados.
Embora: a nossa consciencia está tranquilla, e no grande dia é Deus quem
a todos nos julgará.
Houve um propheta outrora em Israel, e chamava-se o Filho do Homem.
E este propheta amava os humildes e os pobres, e reprehendia os
poderosos.
E condemnava os hypocritas da religião, e por isso era abominado pelos
grandes e pelos sacerdotes.
Mas respeitava as leis, e ensinava a obediencia: mandava que se pagasse
o tributo das duas drachmas do templo, e o tributo de Cesar.
E affeiava aos populares os seus vicios e abominações; e por isso era
tambem malquisto da gentalha.
E, condemnado á morte pelos poderosos, o povo, a quem tinha trazido a
luz e a vida eterna, o povo, que elle tanto amava, cubria-o de
opprobrios.
E podendo salvá-lo do supplicio, antepunha-lhe um grande criminoso, e
clamava aos algozes:--Pregae-o na cruz, e cáia o seu sangue sobre a
nossa cabeça e sobre a cabeça de nossos filhos.
E este propheta era o Messias, era o redemptor do genero humano, era o
filho de Deus.
Consolem-se, pois, aquelles que sobre os hombros tomaram o odio dos
tyrannos por amor do povo, e a quem o povo paga com injurias e pragas.
Como Jesu-Christo, os hypocritas e os oppressores das nações
abominam-nos: como a Jesu-Christo, o vulgacho cobre-nos de affrontas, e
pede para nós aos seus tribunos a condemnação e o supplicio.
E que nos cumpre fazer para seguirmos em tudo o exemplo do Justo
assassinado, do Deus que nos deixou na terra o consolo e a esperança?
Pedir morrendo ao Eterno Pae o perdão de nossos perseguidores e, como o
divino Mestre, lançar á conta da ignorancia as culpas de corações
corruptos.
Imitando o Salvador na cruz, seja um pensamento de benção o nosso
pensamento extremo; porque o derradeiro suspiro do christão deve ser um
murmurio de affecto grande para os que o amaram, mas ainda maior para os
que o odeiaram e perseguiram.

XI

E ainda uma vez, filhos da perdição, ainda uma vez vos falarei em nome
do Senhor nosso Deus.
Que foi o que fizestes assassinando as esperanças da salvação publica,
derribando a sancta tradição da patria?
Até no crime fostes apoucados. Porque não se ergue um de vós, perverso,
mas sublime, como o archanjo das trevas, e diz:--fui eu o concitador do
motim popular, fui eu o primeiro que clamei «quebrem-se as taboas da
lei?»
Louvaes a sedição, chamaes-lhe obra illustre, e nenhum de vós acceita a
gloria de ser o bem-feitor do seu paiz?
Quando combatiamos pela liberdade gravavamos os proprios nomes em nossas
armas, e o inimigo que ousasse vê-las de perto, ahi os lería inteiros.
Não combatiamos nas trevas; e os nossos capitães diziam ao
mundo:--Vede:--e mostravam a face diante da luz do sol.
Hypocritas, que enganaes o povo, credes porventura que tambem enganareis
o Senhor e que, semelhantes á prostituta que engeita o fructo de seu
crime, engeitareis diante delle a obra da vossa iniquidade?
Não! Lá se levantarão os nossos e os vossos filhos, para quem preparaes
berço de miseria, vida de amargura e morte de desesperação.
E elles testemunharão contra vós na presença do Altissimo: e haverá ahi
choro e ranger de dentes.

XII

Ambiciosos, que desvairaes o povo, o Senhor leu no fundo dos vossos
corações e revelou-me o que ahi está escripto!
A cubiça do mando e do ouro é o vosso amor de patria; a vossa ancia de
liberdade a sêde de tyrannia.
Merecedores de jazer perpetuamente na escuridade, e ermos de virtude e
de sabedoria, não podendo fulgir com luz celestial, tentastes romper as
trevas de vossos caminhos com o clarão torvo do inferno.
E a serpente vos emprestou a sua vã sciencia, as suas corruptoras
palavras, e alumiados por fulgor de morte, alguns vos creram illustrados
pela luz que mana do throno de Deus.
Mas os que foram enganados vos amaldicçoarão no dia em que patenteardes
a hediondez das vossas intenções, e o Pae de misericordia lhes perdoará
um erro de intelligencia.
Eis o que diz o Senhor:--Vós sois os assassinos da republica, mas
debaixo das suas ruinas ficarão tambem esmagadas as vossas frontes, e os
vossos membros quebrantados e sumidos.
Tambem vós tereis quem maldizer na hora do passamento: os dias futuros
justificarão o Verbo de Deus.

XIII

Os soldados que arrastavam o Justo ao Golgotha, quando o povo de
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