Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 02

Total number of words is 4398
Total number of unique words is 1706
31.2 of words are in the 2000 most common words
45.9 of words are in the 5000 most common words
53.7 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
suggestões do raciocinio; porque o homem imprime necessariamente em
todos os actos da vida as condições do seu ser. A favor da manutenção da
Carta não militava só a boa-razão; militavam affectos, e affectos
profundos. A Carta havia sido o grito de guerra do campo liberal em lide
de um contra dez. Havia sido, digamos assim, a traducção moderna do
_Sanctiago!_ de Affonso I, do _S. Jorge!_ do Mestre d'Aviz. Nas
reminiscencias indeleveis de muitos de então, (bem poucos hoje) estavam
ainda os vivas á Carta proferidos por labios que iam cerrar-se na morte,
quando as bayonetas inimigas desciam inexoraveis sobre o peito ou sobre
o ventre dos nossos soldados feridos e derribados[1]. Em nome da Carta
se tinha desfeito o triangulo fatal do patibulo, e quebrado o ferrolho
da masmorra e da enxovia, em nome della se tinham aberto para os
foragidos as portas da patria que davam para os desertos do desterro, do
desterro que é sempre solidão e desventura. A Carta fora como a estrella
polar da esperança nos dias, tão longos, da fome, da nudez, das
tempestades, do desalento. Vivia depois como envolta na saudade desses
dias, acre e quasi dolorosa saudade, que nós os velhos ainda sentimos,
mas que será provavelmente uma cousa inintelligivel para as gerações
novas.
A razão, pois, e o sentimento falavam a muitos energicamente em favor
das instituições annulladas. Falavam tambem a favor dellas a consciencia
e a dignidade humanas. Tinham jurado manter essas instituições milhares
e milhares de homens; milhares e milhares de homens as tinham nobremente
mantido com o sangue, com as privações, com a resignação illimitada no
sacrificio. Podem valer pouco os juramentos politicos; póde, até, ser
absurdo o juramento em geral. Mas a quebra de promessas solemnes e
espontaneas, seja qual for a sua formula, será sempre uma villania
emquanto tiverem culto a honra e a lealdade.
Taes eram os principaes incentivos que induziam grande numero de
liberaes a constituirem um partido hostil á nova ordem de cousas. A
denominação de cartista, que esse partido adoptou, não correspondia
rigorosamente ás causas da sua existencia, nem aos seus intuitos ou á
sua indole. Mas representava até certo ponto isso tudo, ao mesmo tempo
que era conciso, e facilmente comprehensivel para o vulgo. O cartista
não reputava todas as instituições, todos os preceitos da Carta como a
mais alta manifestação da sabedoria humana. Nesta parte os liberaes eram
em geral eclecticos. Tanto o partido da revolução, como o
anti-revolucionario nenhum tinha em si unidade completa de principios;
nem entre um e outro havia senão antinomias parciaes quanto ás doutrinas
de direito politico. No primeiro, que tomava por base das ulteriores
reformas uma constituição democratica, exagerada até o despotismo das
turbas, havia individuos para quem, como o tempo mostrou, as theorias da
democracia ainda mais moderada eram altamente odiosas, ao passo que
outros forcejavam por chegar, senão á republica, ao menos a instituições
republicanas. No partido cartista dava-se o mesmo phenomeno. Todas as
modificações do governo representativo tinham ahi fautores; tinham-nos,
talvez, até, as doutrinas do absolutismo illustrado. A meu ver, a
distincção profunda e precisa entre o cartismo e o septembrismo
consistia em negar o primeiro o principio da revolução, dentro das
instituições representativas livre e solemnemente adoptadas ou acceitas
pelo paiz, e em affirmá-lo o segundo. Tudo o mais em ambos os campos era
fluctuante e vago.
É essa a explicação de um facto que os homens daquelle tempo poderão
testemunhar recorrendo ás proprias reminiscencias. Alistaram-se nas
fileiras cartistas talvez mais individuos que haviam sido adversos aos
ministros derribados, do que amigos e parciaes seus, ao passo que alguns
destes abraçavam sem hesitar a revolução. De uns e de outros se deve
crer que preferiam nobremente as suas opiniões aos seus interesses, ás
suas affeições ou inimizades pessoaes. Para muitas dessas opiniões havia
logar em ambas as parcialidades. Os que, porém, só attendiam á
moralidade e cordura dos actos de administração ordinaria, lançavam-se,
por via de regra, na revolução; os que, sem desattender taes questões,
sem approvarem corrupções ou iniquidades a que eram extranhos e que
tinham condemnado, remontavam a mais elevadas considerações de ordem
moral e politica, abraçavam o cartismo. Não falo dos especuladores que
se resolviam conforme as vantagens que se lhes antolhavam n'um ou
n'outro campo. O proceder destes taes tinha na consciencia publica
então, como depois, como sempre, uma qualificação conhecida.
Mas, dir-se-ha, como nessa epocha se disse, que entre o cartismo e o
septembrismo se dava uma distincção mais radical e profunda. A Carta,
outorgada por D. Pedro IV, representava o direito divino dos reis; era
uma concessão de senhor, em vez de um pacto social, ao passo que a
constituição de 1822, derivada da soberania popular, era a consagração
das doutrinas democraticas. Considerada a esta luz, a revolução adquiria
as proporções de um facto gravissimo, porque assentava a liberdade em
novos fundamentos, e vinha a ser um passo gigante dado na estrada do
progresso politico.
Na epocha, quasi exclusivamente liberal, em que se passavam aquelles
successos, a resposta do cartismo a estas allegacões parecia facil. Não
sei se o seria agora; agora que se tem achado e demonstrado, segundo
parece, não prestar para nada o liberalismo. As intelligencias vigorosas
da mocidade hodierna têem aberto caminho a theorias ou novas ou
rejuvenescidas que nós os velhos de hoje e moços de então ou ignoravamos
ou suppunhamos estereis, e talvez pueris, e de que sorriamos, quando
alguns engenhos que reputavamos tão brilhantes como superficiaes,
buscavam, evangelisando-as, jungir por meio dellas as turbas, más porque
ignorantes, odientas porque invejosas, espoliadoras porque miseraveis,
ao carro das proprias ambições. A questão da soberania popular não era
precisamente o que preoccupava mais os entendimentos, cultos, mas
tardos, daquelle tempo, e a democracia não apaixonava demasiado os
animos, sobretudo os animos dos que haviam pelejado desde os Açores até
Evoramonte as batalhas da liberdade, ou padecido na patria durante cinco
annos, sem o refrigerio sequer de um gemido tolerado, as orgias do
despotismo. Uns tinham visto de perto a face da democracia; tinham-na
visto por entre a selva de oitenta mil baionetas que fora preciso
quebrar-lhe nas mãos para a liberdade triumphar; tinham-na visto nas
chapadas e pendores das collinas que circumdam o Porto, até onde os
olhos podem enxergar, alvejando-lhe nos hombros os cem mil embornaes
preparados para recolher os despojos da cidade da Virgem, da cidade
maldicta, rendida e posta a sacco; outros haviam-na visto de machado e
de cutello em punho, mutilando e assassinando prisioneiros inermes e
agrilhoados. O liberalismo achara a catadura da democracia pouco
sympathica. Restava a soberania popular. Essa funccionara durante cinco
annos e dera mostra de si. A soberania do direito divino, repartindo com
ella o supremo poder, provava que não era tão ignorante como a faziam.
Tinha litteratura. Applicava, modificando-o, o verso:

Divisum imperium cum _plebe_ Caesar habet.

As classes inferiores constituiam então, como hoje, como hão de
constituir sempre, a maioria do paiz, e foi a esta maioria que ella
entregou os direitos que cedia. Era a legitimidade consagrando outra
legitimidade. Amavam-se, comprehendiam-se ambas. É que entre as
extremidades ha contacto ás vezes. A democracia americana cuida ter
inventado a lei do Linch. Puro plagio. Inventou-a em Portugal a
soberania popular. Havia uma differença. Na America a plebe prende,
julga, condemna á morte e executa; em Portugal o direito divino
reservara para si o tribunal excepcional e o privilegio do cadafalso.
Modesta no exercicio do supremo poder, a soberania popular limitou-se á
prisão, ao espancamento, á multa, elevada, quando occorria, até o
confisco. Se o incendio, o estupro, o assassinio se ingeriam ás vezes
nesses actos judiciaes, era por simples casualidade. Manchas, tem-nas o
sol. O mercador, o artista, o industrial, o professor, o proprietario
urbano e o rural, o homem de letras, o cultivador, o capitalista, todas
as desigualdades sociaes, todos esses attentados vivos contra a perfeita
igualdade democratica conservaram por muito tempo dolorosas lembranças
do amplexo das duas soberanias.
O liberalismo, que durante a contenda fora um pouco aspero para com a
democracia, mais de uma vez tambem, empregara sacrilegamente a prancha
do sabre e a coronha da espingarda para cohibir o excesso de zêlo
administrativo e judicial da soberania popular. A brutalidade do
liberalismo obrigara esta a abdicar após a abdicação da soberania de
direito divino. Os dogmas, pois, em que se estribava a constituição de
1822, e contra os quaes protestava a historia, ainda palpitante, dos
ultimos annos, eram inefficazes, porque os tornava impotentes a
heterodoxia das consciencias. Duvido de que nesses rudes tempos de
positivismo liberal elles obtivessem uma só conversão sincera.
O amor do real e do evidente era um dos grandes defeitos dos homens de
então. O cartismo argumentava: «Que nos importa, dizia, d'onde veio a
Carta? A questão é se ella consagra a liberdade humana e a cérca de
garantias. É deficiente? É defeituosa? Esperemos que a razão publica, a
torrente da opinião force os poderes do estado a completá-la, a
corrigi-la. A opinião illustrada largamente preponderante é irresistivel
nos governos livres. O que não é irresistivel é a opinião de alguns ou
de muitos que benevolamente se encarregam de interpretar pelo proprio
voto o voto commum, o voto dos que têem capacidade para o dar.--«Não se
reputaria louco, accrescentava o cartismo, o representante de uma
familia outr'ora opulenta, mas reduzida á miseria por espoliação remota,
que, ao vir, por impulso espontaneo, o descendente do espoliador
restituir-lhe os bens extorquidos, repellisse aquelle acto de nobreza e
virtude, achando desar recuperá-los pacificamente? E se tal desar
existiu; se a outorga da Carta e a tacita acceitação do paiz não podiam,
aos olhos da metaphysica politica, elevá-la á altura de um pacto social,
os immensos sacrificios que o restaurá-la, depois de abolida, custou á
parte mais illustrada, mais rica, mais activa e laboriosa da nação, ás
forças vivas da sociedade, e as torrentes de sangue e de lagrymas que
serviram de sacro encausto á assignatura do paiz não valeriam bem o
plebiscito da maioria inintelligente, o plebiscito daquellas classes
inferiores que pelejaram até o ultimo extremo, senão com valor, de certo
com ferocidade, para conservar essa monstruosa e horrivel soberania que
a servidão lhes trouxera?
Tem passado trinta annos depois daquella epocha; as paixões tempestuosas
de então fizeram silencio, e o cartismo e o septembrismo são dous
cadaveres sepultados no cemiterio da historia. O auctor da _Voz do
Propheta_ contempla tão placidameute o seu opusculo como se mão extranha
o houvera escripto. A experiencia e os desenganos fazem-no sorrir
daquellas coleras, daquellas hyperboles dos vinte e seis annos. Quantos
erros, quantas ignorancias em muitas das suas opiniões desse tempo! E
todavia, ainda os sentimentos que inspiravam o cartismo no seu berço lhe
parecem nobres e elevados, as doutrinas que constituiam a sua essencia
solidas e justas. É innegavel que o credo democratico, em que os
adversarios se estribavam, tem desde essa epocha adquirido numerosos
sectarios. O velho liberalismo passa de moda. O dogma da soberania
popular, proclamado como supremo direito, substitue o unico direito
absoluto que elle reconhecia, a liberdade e os fóros individuaes. Isso
passou: agora a igualdade civil, que era um consectario do dogma
liberal, transfere-se para o mundo politico, e um nivel imaginario passa
theoricamente por cima de todas as desigualdades humanas, perpetuas,
indestructiveis. A paixão da liberdade esmorece, porque a absorve e
transforma a da igualdade, a mais forte, a quasi unica paixão da
democracia. E a igualdade democratica, onde chega a predominar, caminha
mais ou menos rapida, mas sem desvio, para a sua derradeira
consequencia, a annullação do individuo diante do estado, manifestada
por uma das duas formulas, o despotismo das multidões, ou o despotismo
dos cesares do plebiscito.
O partido cartista tinha por si as grandes e recentes recordações, a
consistencia politica, os bons principios que representava, e,
sobretudo, o sensato e practico das theorias que predominavam entre os
seus membros. Mas a eiva moral quasi que lhe começou no berço. O seu
primeiro erro foi adoptar por chefes os homens eminentes que, pela
gerencia dos negocios em situações difficilimas, tinham concitado contra
si, como succede quasi sempre e a quasi todos, a animadversão publica,
talvez a da maioria daquelles mesmos que acceitavam agora a sua direcção
politica. Deviam honrar-se taes homens, embora muitos dos actos da sua
administração não podessem defender-se, porque esses actos eram bem
pequeno desconto aos immensos serviços que a liberdade lhes devia.
Tomá-los, porém, por guias era acceitar uma parte da sua
responsabilidade; era polluir a pureza das doutrinas com as manchas da
fraqueza humana; era, sobretudo, arriscar que a irritação das paixões e
os intuitos de desaggravo dirigissem o procedimento de um partido novo e
cheio de vida, que só deveriam inspirar a razão tranquilla e a
applicação logica das proprias doutrinas. Deste primeiro erro nasceram
as tentativas infelizes de contra-revolução. Essas tentativas não podiam
reputar-se crime, porque o elemento revolucionario tinha entrado como
formula politica no direito publico do paiz, mas eram altamente
illogicas em relação á índole e ao symbolo do cartismo. Por outro lado,
o governo da revolução mostrava-se, ao mesmo tempo, tolerante para com
as opiniões e energico em cohibir excessos. Por isso o partido cartista
podia contar com a victoria incruenta que na urna lhe havia de dar o
paiz; victoria para os principios, e não desaggravo para as paixões
irritadas. Que este resultado era seguro, provaram-no os factos. Vencido
na guerra civil, desauctorisado e moralmente enfraquecido, o cartismo
viu triumphar em grande parte as suas idéas na contextura da
constituição de 1838, votada por umas constituintes onde os vencidos
estavam representados por insignificante minoria. Era a condemnação
solemne da revolução, lavrada por um parlamento eleito debaixo da
influencia della. O que no novo codigo politico parecia mais opposto á
indole da Carta era a organisação da segunda camara, e todavia o
cartismo adquiria por aquelle meio uma arma poderosa para de futuro
reformar constitucionalmente o que havia mau na recente organisação de
um dos corpos colegislativos, de modo que nem se restaurasse o absurdo
pariato hereditario e illimitado, nem a assembléa conservadora
significasse apenas a interposição de uma parede entre duas porções de
parlamento unico. Uma vez que o senado procedia simplesmente da eleição,
logo que o cartismo obtivesse a preponderancia eleitoral, dominaria
completamente em ambas as camaras. Dentro em dous annos, de feito, o
predominio do cartismo era indubitavel.
O ulterior procedimento deste partido estava estrictamente determinado
pela sua origem e pelo seu passado. Como vimos, não era tanto a sua
indole menos democratica, o seu apego á liberdade e aos direitos
individuaes com preferencia a tudo, que o caracterisavam. Sans opiniões,
erradas opiniões, havia-as tanto n'um como n'outro campo. O que
constituia a essencia do cartismo era a lealdade ao juramento; a
lealdade viril no cumprimento da palavra dada pelo homem honrado quando
a dá no pleno uso do seu alvedrio. Os cartistas tinham feito tudo quanto
materialmente podiam, mais do que moralmente deviam, para supprimir a
revolução. Não o tinham conseguido, e ella fechara o periodo da sua
duração, protestando na lei politica decretada pelas constituintes
contra a propria origem, contra a sua razão de ser. A constituição de
1838 era um campo neutro onde todos se podiam encontrar pacificamente e
procurar, sem sair da legalidade, o predominio das respectivas opiniões.
E o cartismo entrou naquelle campo. Quando o paiz viu os homens que tão
tenazmente haviam mantido a fé que deviam ao seu juramento, jurarem
solemnemente o novo pacto, acreditou que falavam verdade, e que o cyclo
das revoluções terminara. Passados tempos, a urna provava aos cartistas,
de modo indubitavel, que nas classes influentes, nas forças vivas da
sociedade, a preponderancia era sua. No fim de tres annos podia-se dizer
que o triumpho moral do cartismo estava consummado. O poder e o futuro
pertenciam-lhe.
Um facto inopinado veio então desbaratar todos os calculos, desmentir
todas as previsões. Uma grande parte, ou antes a maioria desse partido,
cuja essencia era a lealdade a solemnes promessas, e a execração das
revoluções no seio de um paiz livre, hasteou subitamente a bandeira
revolucionaria, substituindo ao motim da plebe o unico motim peior do
que elle, o da soldadesca. Quebrando inutilmente o seu ultimo juramento,
derribava a constituição do estado e proclamava o restabelecimento da
Carta pura, que, sem os acontecimentos de 1836, os mesmos homens que a
achavam agora um codigo perfeito teriam constitucionalmente modificado.
É que á victoria dos principios faltava um laurel, o desaggravo do amor
proprio offendido. O partido cartista suicidava-se juncto, ao altar da
vaidade, e amortalhava-se a si proprio, morrendo, no estandarte da
revolução.
Depois houve muitos que continuaram a chamar-se cartistas, porque os
vocabulos são propriedade dos homens, e a propriedade, conforme o velho
direito, consiste na faculdade de usar e abusar. Era como os graus e
veneras das ordens de cavallaria extinctas. Enfeitam, mas correspondem
ao nada. Symbolos vãos sobre um sepulchro. Para a historia, como a
historia ha-de ser quando de todo houverem calado as paixões dos que
intervieram nessas tristes luctas, o cartismo tinha expirado com a
restauração da Carta.
[Nota de rodapé 1: Assim vi morrerem alguns soldados do 5.° de caçadores
e voluntarios da Rainha no temerario reconhecimento de Vallongo, que
precedeu a batalha de Ponte-Ferreira.]


A VOZ DO PROPHETA

PRIMEIRA SERIE

Et irruet populus, vir ad virum, et
unusquisque ad proximum suum:
tumultuabitur puer contra senem et
ignobilis contra nobilem.
ISAIAS, III-5.

I

O Espirito de Deus passou pelo meu espirito, e disse-me: vai, e faze
resoar nos ouvidos das turbas palavras de terror e de verdade.
E eu obedecerei ao meu Deus no meio dos punhaes de assassinos.
Povo!... breve soará a tua hora extrema: tu mesmo a assignalaste no
decorrer dos tempos.
O anjo exterminador vibra sobre ti a espada da assolação, e tu danças e
folgas ebrio das tuas esperanças.
Essa terra que pisas crês que é um solo remido por tuas mãos: repara
porém; olha que é um sepulchro.
Amplo é o sepulchro de um povo: dentro em breve tu ahi calarás para
sempre.
Creste-te forte, porque sabes rugir como a panthera: mas somente Deus é
grande.
Encheste o vaso das tuas iniquidades; elle trasbordou, e a terra ficou
polluida.
Maldictos os nomes dos que accenderam o volcão popular; nomes
abominaveis perante o céu e a terra.
Portugal foi pesado na balança da eterna justiça, e a Providencia
retirou a mão de cima delle.
Derribem-se os altares, cerrem-se as portas dos templos: Deus já não
acceita os sacrificios, nem ouve as preces deste povo, senão como uma
expressão de escarneo.
E como o aquilão varre a folha secca do outono, o sopro do Senhor
varrerá da face da terra esta raça corrompida e immoral.

II

O que tem ouvidos para ouvir ouça: o que tem olhos para ver veja: o que
tem coração para se contristar, contriste-se.
O povo tinha a liberdade e quiz a licença; tinha a justiça e quiz a
iniquidade: o povo perecerá.
Desgraçado daquelle que anda fóra dos caminhos do Senhor: correndo
despelado por despenhadeiros, sentir-se-ha por fim baqueiar no fundo de
um precipicio.
Porque a lei e a virtude foram postas no mundo para proveito do homem,
não para proveito de Deus.
Quando uma nação quebra todos os laços sociaes, della será todo o damno.
Para as turbas o cheiro do sangue é perfume suave; o roubo gloriosa
conquista.
E ellas se fartarão de sangue e de rapinas com a voluptuosidade atroz do
anthropophago que se banqueteia com os membros semivivos do seu
semelhante.
Porque a plebe desenfreiada é como o phantasma do crime, como o espectro
da morte, como o grito do exterminio.
Horrível é o aspecto do empestado, que, entreabrindo o lençol que lhe
servirá de mortalha, descobre as pustulas, donde mana a podridão e o
cheiro da sanie, e que por entre os labios amarellos e os dentes
cerrados deixa fugir o som rouco do estertor.
Mas para o homem honesto, que contemplar uma scena das raivas da plebe e
ouvir as suas blasphemias e vir as faces hediondas dos homens
dissolutos, será como allivio a asquerosidade das chagas, o halito podre
e o rouco estertor do empestado.

III

E o povo continúa a dançar em roda do seu mesmo sepulchro.
E as outras nações meneiam a cabeça em signal de compaixão.
Os tyrannos sorriem e dizem por escarneo aos homens virtuosos: ide, e
dae a liberdade ás turbas: erguei á dignidade de homens livres servos
devassos e educados no lodo: elles vos pagarão com a unica moeda que
guardam em seus thesouros.
A relé popular é chamada as fezes da sociedade, não porque é humilde,
não porque é pobre, mas porque é vil e malvada.
O sabio e o virtuoso indigentes são mais nobres do que os grandes da
republica, do que os dominadores da terra.
O ferrete da abjecção e da infamia estampa-se em qualquer fronte sem
excepção de berço, e aos que trazem este signal de reprovação é que a
philosophia chama escoria da sociedade.
A medida por que Deus conta os graus dos meritos da vida é a da pureza
de coração; é a do aperfeiçoamento da intelligencia.
Os typos das diversas alturas a que sobe o espirito humano na carreira
indefinita da perfeição formam como uma pyramide, cuja base assenta no
fundo de um tremedal, cujo ápice se esconde no interior dos céus.
Muitos nasceram no infimo da pyramide e subiram a grande altura: outros
de grande altura desceram a mergulhar-se no lodo.
E tanto a uns como a outros julgará a immutavel justiça de Deus.

IV

Os soldados da liberdade morreram nos combates da patria e misturaram o
seu sangue com o sangue dos satellites da tyrannia: os seus ossos
alvejam nas serras e nos valles, como alvejam as ossadas dos servos com
quem combateram.
Foi sasão essa de abundante messe de almas puras para o céu. Consolem as
lagrymas dos justos as cinzas desses valentes.
Eram apenas um punhado; a morte ceifou os mais delles; o resto já não
tem força senão para pranteiar sobre as ruinas da patria.
E o vidente pranteiará com elles, porque o Senhor lhe amostrou o futuro.
Se os homens do desterro e das tempestades podessem levantar-se da sua
jazida, a terra de antigas glorias ainda seria salva: mas elles dormem o
perpetuo somno do repouso.
E foi o ultimo leito honrado em que portugueses se reclinaram no seu dia
extremo.
Felizes os que então se despediram do sol e misturaram com a terra o pó
que lhes emprestara a terra.
Os dias dos que restamos não eram ainda contados; porque nossos erros
pediam a punição do opprobrio.
O Senhor nosso Deus é justo; curvemos a cabeça diante da sua
Providencia.

V

Formosos eram os tempos em que pelejavamos pela liberdade do povo; tão
formosos, quão negros estes em que a plebe peleja pela licença.
As nossas armas vomitavam a morte: semeiava-a tambem o inimigo pelas
nossas fileiras: e nós estavamos firmes nos pincaros das montanhas, ou,
descendo, faziamo-las resoar debaixo de nossos pés.
E arrojando-nos aos contrarios, as bayonetas reluziam á luz do sol; e o
tinido dos ferros encontrados, e o clamor dos feridos, e o estampido dos
tiros reboavam pelas quebradas dos valles.
Quando a victoria, embora sanguinolenta, nos coroava a fronte, o
triumpho era para nós um delirio; porque o combate fora de homens
valentes.
Na historia do soffrimento humano a mais bella pagina é a historia do
nosso soffrimento. Nem a peste, nem a fome, nem a desesperação de todo o
humano soccorro dobraram a robustez de corações ousados.
Porque pelejavamos por uma causa justa, e Deus estava comnosco.
Por serranias agrestes e aridas combatemos debaixo de sóes ardentes, e
as entranhas mirravamse-nos de sede: tinhamos os labios resequidos como
a urze já morta, e humedeciamo-los com as lagrymas da dor, e
supportavamos a sede.
Encostados a mal construídos vallos e cercados por quarenta mil
soldados, vigiavamos pelas noites longas e tenebrosas do inverno. A
chuva cahia-nos em torrentes da atmosphera densa sobre os membros
mal-vestidos, e o oeste sibillava em nossas armas.
Ou se as cataractas do céu se vedavam, o frio leste trazia-nos o seu
sopro envolvido nas geadas dos montes penhascosos.
Cruelissimas eram estas entre as noites crueis desse tempo; porque ao
redor de nós tudo estava devastado, e não havia um unico tronco para
alimentar a fogueira do arraial.
E o frio recalcava a vida toda no coração do soldado; e elle sem um
lamento soffria o rigor de noite dilatadissima.
A fome apresentou-se diante de nós: medonho era o seu aspecto: os
membros desfalleciam-nos e as armas por vezes nos cahiam das mãos.
Mas o amor da patria estava vivo em todos os corações. A Providencia
infundia-nos valor, e soffremos sem murmurar a fome.
Gloria a Deus!--Os ultimos portugueses saíram illesos da prova. Os
antigos cavalleiros os receberam como irmãos lá onde são com o Senhor.
Bemaventurados os que deixaram esta terra de lagrymas, porque não viram
que o seu sangue fôra derramado em vão.

VI

E depois dos combates íamos sepultar os mortos.
No campo da batalha abria-se uma grande cova, e simultaneante se
lançavam nella os cadaveres de amigos e de inimigos.
Porque além do limiar do outro mundo calam todos os humanos odios.
E o tecto de terra estendia-se sobre os muitos que ahi dormiam no mesmo
jazigo.
E algum pranto derramado sobre o pó revolto, e as preces da igreja
proferidas pelo sacerdote consolavam os extinctos.
Plantava-se a cruz sobre a gleba para consagrar a memoria dos mortos;
para pedir a esmola da oração ao que passasse, e para lhe annunciar que
todos os que alli repousavam eram irmãos por Jesu Christo; eram irmãos
pelo sepulchro.
Perdoavamos para sermos perdoados: perdoavamos porque eramos fortes.

VII

Alevantou-se a plebe, e logo commetteu um crime.
Agitava-se e ondeiava pelas ruas com clamor inintelligivel; arrastava-a
o espirito das turbulencias civis.
Um homem inerme passou por entre os amotinados: era um dos votados ao
exterminio: muitos tiros e golpes partiram do meio da turba, e o homem
cahiu exangue e sem vida.
E arrastaram até o cemiterio publico, ao som de injurias e risadas,
esses restos que a morte sanctificara. As maldicções do odio mais
profundo param á beira do tumulo. A maldicção popular, essa é que não
parou ahi.
Soterraram por meio corpo o cadaver e cuspiram naquellas faces lividas
aonde já não podia subir do coração o rubor, e que os olhos cerrados não
podiam já mundificar com lagrymas.
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 03
  • Parts
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 01
    Total number of words is 4340
    Total number of unique words is 1724
    31.4 of words are in the 2000 most common words
    47.1 of words are in the 5000 most common words
    55.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 02
    Total number of words is 4398
    Total number of unique words is 1706
    31.2 of words are in the 2000 most common words
    45.9 of words are in the 5000 most common words
    53.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 03
    Total number of words is 4571
    Total number of unique words is 1688
    31.7 of words are in the 2000 most common words
    46.1 of words are in the 5000 most common words
    53.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 04
    Total number of words is 4525
    Total number of unique words is 1600
    32.4 of words are in the 2000 most common words
    45.9 of words are in the 5000 most common words
    52.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 05
    Total number of words is 4563
    Total number of unique words is 1734
    31.3 of words are in the 2000 most common words
    45.8 of words are in the 5000 most common words
    53.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 06
    Total number of words is 4599
    Total number of unique words is 1851
    33.8 of words are in the 2000 most common words
    49.4 of words are in the 5000 most common words
    57.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 07
    Total number of words is 4482
    Total number of unique words is 1630
    31.1 of words are in the 2000 most common words
    46.8 of words are in the 5000 most common words
    55.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 08
    Total number of words is 4500
    Total number of unique words is 1751
    30.9 of words are in the 2000 most common words
    47.5 of words are in the 5000 most common words
    55.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 09
    Total number of words is 4399
    Total number of unique words is 1484
    33.9 of words are in the 2000 most common words
    48.9 of words are in the 5000 most common words
    56.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 10
    Total number of words is 4441
    Total number of unique words is 1568
    33.9 of words are in the 2000 most common words
    49.5 of words are in the 5000 most common words
    57.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 11
    Total number of words is 4476
    Total number of unique words is 1666
    29.5 of words are in the 2000 most common words
    42.4 of words are in the 5000 most common words
    51.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 12
    Total number of words is 3100
    Total number of unique words is 1246
    31.7 of words are in the 2000 most common words
    46.4 of words are in the 5000 most common words
    52.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.