Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 - 10

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impotentes para salvar da rapina ou do desleixo os primitivos e
veneraveis monumentos da antiga metropole da Galliza.
Ainda, em relação áquella remessa de documentos, faz o reverendo cabido
bracharense uma severa increpação á Academia, de que esta Classe não
sabe, Senhor, defendê-la, mas para esquivar a responsabilidade da qual
se offerece em holocausto. O codice e os tres pergaminhos voltaram a
Braga á custa do cabido! É um successo que talvez perturbasse gravemente
a economia da fazenda capitular. Liquide-se aquella divida, e a Classe
restituirá integralmente o frete dos dous codices e dos tres
pergaminhos, como fica provado que se restituiram essas preciosidades.
Se nas suas representações ao Governo, por intervenção do prelado, o
reverendo cabido de Braga calumniou a Academia, no officio ao agente
desta calumniou todos os poderes publicos. Diz ahi o reverendo cabido
que, para se lhe tirarem os documentos de que se tracta, precisa-se de
lei precedente que dispense as formalidades do esbulho da sua
propriedade, ou sentença do poder judicial que o convença de que a deve
largar. Estas poucas phrases, senão são filhas da hallucinação ou de
incrivel ignorancia, são um grave insulto a todos os corpos do Estado. O
cabido offende o Governo, porque lhe attribue um acto de espoliação,
quando a portaria de 11 de setembro não é senão uma providencia
administrativa ordinaria, e que honra por mais de um modo o mesmo
Governo. Offende o poder legislativo, porque o suppõe capaz de fazer
leis inconstitucionaes e absurdas. O legislador nem mantem, nem dispensa
formalidades no esbulho, porque nunca póde determinar o esbulho. Quando
estatue a expropriação por utilidade publica, estatue sempre a
compensação. Offende o poder judicial, porque presuppõe que elle póde
ordenar a alguem por sentença que largue a propriedade que é sua. Quando
o magistrado julga que o individuo deve perder o que possue, é
justamente pelo motivo contrario; é porque se convence de que o
individuo retem o que não é seu; e nesse caso, não tira, mas defende a
propriedade.
Somos chegados, Senhor, a um ponto, ácerca do qual a Classe de sciencias
moraes, politicas e bellas letras tem, por mais de um modo, o dever de
lançar neste papel algumas considerações; porque se tracta de um
assumpto que é da sua competencia, como corpo official scientifico. O
pensamento de qualificar a portaria de 11 de setembro como um acto
exorbitante do Governo contra a propriedade não se manifesta só nas
phrases acima citadas: revela-se tambem, mais ou menos expressamente, na
linguagem de outras corporações desobedientes. Na opinião dellas, os
antigos pergaminhos dos respectivos cartorios são uma cousa em que o
Governo não póde tocar, sem quebra do direito constitucional que garante
a propriedade dos cidadãos; porque esses pergaminhos são os titulos dos
bens que possuem, os quaes as dictas corporações de mão-morta suppõe
gratuitamente que são uma propriedade sua, analoga á de qualquer
individuo ou associação civil.
A Classe disse já e mostrou como muitos dos documentos de que se tracta,
pela sua natureza, pelo sua origem, e por factos historicos sabidos e
certos, pertencem pura e simplesmente ao Estado; disse e mostrou já como
os cartorios das corporações de mão-morta se consideraram sempre
archivos publicos; disse e mostrou como os pergaminhos anteriores a 1280
não são nunca, ou quasi nunca, documentos de uso practico nos litigios
ou nas duvidas administrativas que podem suscitar-se ácerca de alguns
desses bens; e quando o fossem, nem a portaria de 11 de setembro ordena
definitivamente a sua retenção na Torre de Tombo, nem o Governo,
supposto que de futuro assim o ordenasse, deixaria de prover do modo que
estabelece naquella portaria. As corporações obteriam gratuitamente,
quando necessarios, transumptos authenticos, fórma unica em que elles
costumam figurar na tela judicial. Uma ou outra corporação póde achar no
seu seio ou na localidade onde reside um paleographo legalmente
habilitado para authenticar os traslados de antigos documentos; mas, na
maior parte dos casos, dada a necessidade de taes copias, elles teriam
de vir a Lisboa para serem decifrados e reduzidos os seus transumptos a
fórma authentica. Qual seria, porém, mais seguro para os velhos
pergaminhos, e até mais barato para as corporações; isto, ou as
providencias a que se refere a portaria de 11 de setembro?
As corporações falam da propriedade dos pergaminhos, confundindo-a com a
de quaesquer outros bens moveis ou de raiz. Os antigos documentos são ou
foram titulos de propriedade, o que é diverso. Para qualquer cousa ser
materia de propriedade precisa de ter um valor de utilidade; servir aos
fins e necessidades do homem. Não sendo como prova de dominio, elles de
nada servem ás corporações; e a não ser como monumentos litterarios ou
historicos, não tem nenhum valor real. Por este lado as corporações
estão bem longe de poderem utilisá-los. Como prova do dominio, nem o
Governo quer destrui-los, nem guardados no Archivo nacional ficam menos
seguros do que no seio das corporações, antes incomparavelmente mais.
Depois, não é o Estado padroeiro de todas essas cathedraes, collegiadas
e mosteiros desobedientes? Não teve elle sempre o direito de suprema
inspecção sobre o cumprimento dos deveres que resultam para esses corpos
das condições da sua fundação e instituição? Não lhe incumbiu sempre
vigiar sobre a conservação e uso dos bens unidos aos mesmos corpos? Não
deriva immediatamente desse direito o de providenciar do modo mais
conveniente sobre a fiscalisação daquelles bens, e de chamar a si os
titulos delles quando entender, e sobretudo quando se provar, que esses
titulos são tractados com desleixo, ou que podem ser conservados em
melhor ordem ou com maior segurança, ou finalmente quando precisar
delles para verificar se se tem dado abusos que o mesmo Governo possa e
deva corrigir? Se as corporações crêem que os documentos que lhes pedem
ainda tem o valor de titulos, em virtude de que direito recusam obedecer
á portaria de 11 de setembro?
E preciso, Senhor, dizer por uma vez a verdade inteira. As corporações
recalcitrantes, por um capricho insensato, talvez por insinuações
perfidas, e provavelmente por apprehensões infundadas de que o
conhecimento dos diplomas e chartularios que se lhes pedem possa ser
nocivo aos seus interesses como administradoras de rendas e direitos
dominicaes, aparentam por esses velhos pergaminhos, inintelligiveis e
indifferentes para ellas, um zêlo, um affecto que realmente não sentem.
Foi isto que as arrastou a invocarem o direito de propriedade, a falarem
de tal direito em relação aos bens que desfructam. Póde o Governo
tolerar, toleram os bons principios que as corporações se digam
proprietarias dos bens que usufruem? Até aqui a Classe provou por
diversos modos o desarrazoado e illegal das resistencias que suscitaram
esta consulta, ainda dada a situação de proprietarias, em que as
corporações pretendem collocar-se. No caso presente, o antigo direito
publico derivado dos antigos principios, das prerogativas do poder
supremo como então se concebia, e até o direito canonico relativo ao
padroado, bastariam para legitimar o acto practicado pelo Governo e
justificar as intenções manifestadas na portaria de 11 de setembro. Mas
esta Classe tem de ir mais longe. Desde que se querem estender as
actuaes garantias politicas dos cidadãos a corporações de mão-morta, por
um sophisma grosseiro; desde que se proclamam doutrinas subversivas que
mutilam a acção do poder publico, a Classe tem, pela sua indole, pelos
fins da sua instituição, o dever restricto de protestar contra erro tão
perigoso. São as corporações que a fórçam ao cumprimento de uma
obrigação desagradavel.
A propriedade, Senhor, é um direito preexistente ás sociedades, visto
derivar da necessidade que tem o individuo de satisfazer aos fins
racionaes para que foi creado. O direito de propriedade estriba-se na
lei natural, porque é inherente á natureza do homem. Desde que este
direito se não collocar acima das leis positivas, quer constitucionaes
quer civis, e anteriormente a ellas, a sociedade acceitará um elemento
de dissolução e de morte. Se é o legislador que cria esse direito; se
este não o precedeu no mundo, elle póde também crear o direito
contrario. Reduz-se tudo a uma questão de conveniencias moraes e
materiaes e de opportunidade, e tanto é possivel existir só a
propriedade commum, como existir a individual, ou, para exprimir a mesma
idéa com diversa formula, tanto é possível a não propriedade, como a
propriedade. D'aqui nasce que esta é primordial e principalmente
individual. A idéa de propriedade collectiva, como regra, como
principio, depois de andar por seculos ao serviço de um despotismo
espoliador; depois de attribuir ao chefe do Estado o dominio imminente e
aos subditos uma posse e um dominio incompletos, quando o sentimento da
liberdade e a razão esclarecida por tal sentimento collocaram os
direitos dos cidadãos á sua verdadeira luz, veio, apesar de velha e
gasta, pôr-se á mercê das escholas socialistas e communistas. Como em
mechanica dizia Archimedes, dêem a estas esse ponto nas regiões do
direito, e ellas revolverão o mundo.
A propriedade commum nas associações civis voluntarias não é senão uma
forma especial de manifestação da propriedade individual, que lhe muda
os accidentes sem lhe alterar a essencia. Dissolvida a associação, a
propriedade toma immediatamente os caracteres da individualidade. Não
assim nas corporações de mão-morta, cuja existencia depende do poder
publico. Ha, por certo, propriedades collectivas; taes são os bens
nacionaes de uso commum dos cidadãos; mas esta especie de propriedade,
estribando-se puramente na lei, supprime-se, desapparece, transforma-se,
accumula-se, tambem á mercê da lei, e é por isso que se denomina
propriedade legal. As instituições garantem a propriedade individual, a
do cidadão, aquella que se funda n'um direito acima das leis e anterior
a ellas. Não podem ir além sem serem antinomicas comsigo mesmas; sem
darem ao legislador a funcção de crear e não a de extinguir; sem
confundirem o absoluto com o condicional.
Os membros das corporações de mão-morta não gosam menos que outros
quaesquer cidadãos da garantia constitucional pelo que respeita á sua
propriedade particular. Não lhes é applicavel, porém, a mesma garantia
quanto á propriedade collectiva que desfructam, porque essa propriedade
é apenas legal. São proprietarios, como membros d'uma associação? N'esse
caso, porque não podem alienar; porque não podem testar; porque não se
resolverá em propriedade individual esse cumulo de bens, na hypothese de
deixar de existir a corporação? É que a sua existencia não deriva da
natureza; deriva do direito positivo. Assim, era com sobrada razão que
um publicista dizia: «Do mesmo modo que a suppressão de uma corporação
não é um homicidio, a revogação da faculdade que lhe foi concedida de
possuir bens de raiz não é uma espoliação». Pessoas facticias, a lei
póde destrui-las, como as creou; e se a sua existencia é precaria, como
é que possuem por um direito absoluto? Comprehende-se que o clero
hierarchico desfructe uma porção de bens que o Estado não revocou a si.
Como classe de funccionarios, de ministros de uma religião dominante, e
por consequencia official, podem ser retribuidos, no todo ou em parte,
por este modo: é um systema bom ou mau; mas é um systema que presuppõe a
doutrina de que os bens que administram não são propriedade sua e de que
nem sequer usu-fructuarios são por direito proprio. Porque recebem
corporações e individuos pertencentes á jerarchia da igreja, e cujas
congruas estão fixadas, apenas complementos d'essas congruas pelo
Thesouro, quando os redditos dos chamados bens ecclesiasticos
subministram parte d'ellas? Tractando-se de materias temporaes, se a
propriedade ecclesiastica é o mesmo que a propriedade individual, donde
provêm a desigualdade que resulta de uma retribuição desigual, que o
clero acceita sem murmurar? Se é por se attender só a que tenham a
_congrua sustentação_, porque não será esta calculada tambem em relação
aos bens patrimoniaes do sacerdote funccionario? Aquelles que hoje
invocam o seu direito de propriedade como sendo analogo aos dos cidadãos
têem já reconhecido, pelo facto proprio, que entre as duas cousas não
existe paridade.
Mas se nos lembrarmos, Senhor, da origem e historia dos bens
ecclesiasticos em Portugal, quanto mais deploraveis e imprudentes não
acharemos as doutrinas invocadas pelas corporações desobedientes, em
damno da gloria e das letras patrias! Verdadeiramente, entre nós, aos
bens d'esses gremios só quadraria uma qualificação repugnante comsigo
mesma, a de _propriedade anti-legal_. Começaram cedo neste paiz, nos
principios do seculo XIII, as leis de amortisação, e já antes el-rei D.
Sancho I, escrevendo a Innocencio III, affirmava o seu direito de privar
o clero dos bens que possuia para lhes dar uma applicação em seu
entender mais util. Renovadas successivamente as leis de amortisação,
foram tantas vezes vilipendiadas e infringidas pela prepotencia do clero
quantas de novo promulgadas. As corporações julgavam-se então tanto
acima do legislador quanto parece julgarem-se hoje acima do Governo. Sem
recorrer a outros monumentos das varias phases d'essa permanente revolta
de um dos corpos do Estado contra o direito publico do reino, basta
abrir successivamente os tres codigos que, um após outro, regeram este
paiz desde o seculo xv até os nossos tempos, para vermos que os
verdadeiros titulos dos bens usufruidos pelas corporações não são tanto
os antigos pergaminhos que ellas recusam largar da mão para utilidade
commum, como o desprezo insolente de leis que os nossos monarchas nunca
tiveram força para tornar effectivas. As Ordenações affonsinas, as
manuelinas e as philippinas reproduzem sempre o direito antigo, que
prohibia ás corporações de mão-morta possuir bens de raiz, mas a
clausula pela qual se perdoava a desobediencia passada perdia tudo;
porque provava a impotencia da lei, e abria campo a novos abusos, que se
tornavam a perdoar para se tornarem a repetir. O melhor titulo de
propriedade que as corporações podem invocar ácerca dos bens que
desfructam é este. V. M. apreciará a sua legitimidade.
Resta unicamente, Senhor, á Classe de sciencias moraes, politicas, e
bellas letras desempenhar um dever que desde o principio d'esta consulta
reconheceu incumbir-lhe. É o de dar a razão por que aconselhou ao
Governo que conservasse no Archivo da Torre do Tombo os documentos mais
antigos e preciosos das corporações tanto extinctas como existentes,
depois de utilisados pela Academia. Não foi, Senhor, um conselho dado de
leve: foi a triste convicção de que, sem isso, os vestigios e as
memorias authenticas das gerações que passaram irão gradualmente
desapparecendo, como até aqui tem desapparecido. Nos logares onde se
acham, os antigos pergaminhos e chartularios não são entendidos nem
apreciados, nem resguardados de um modo conveniente contra os accidentes
que possam sobrevir-lhes: não ha ordem racional na sua arrumação, nos
raros casos em que estão n'alguma ordem: não ha indices aos quaes se
possa recorrer quando é necessario consultá-los. Por quasi todos os
archivos se encontram pergaminhos nas costas dos quaes se escreveu a
palavra fatal _inutil_. Inutil quer dizer que não serve a algum
interesse material da corporação. Em regra, é no meio d'estas
inutilidades que se vão achar os documentos historicos mais importantes.
Quaes tem sido, porém, os effeitos d'aquella qualificação, quaes
continuarão a ser, facil é adivinhá-lo. N'alguns cartorios a phrase _é
latim_, tambem escripta nas costas do diploma, soa igualmente como
sentença de condemnação. Acham-se frequentemente pergaminhos (e destes
muitos n'um cartorio onde tal barbaridade não era de esperar), cuja
leitura quiz fazer algum curioso inhabil, cubertos de aguadas de galha,
que avivaram momentaneamente as letras sumidas, mas que depois formaram
uma só mancha negra, onde não tornará a ser possivel decifrar uma unica
palavra. Grande parte dos cartorios dão, ao simples aspecto dos seus
documentos, as provas de que durante annos estiveram, e de que estão
ainda expostos á chuva, ao passo que não ha um só que se possa dizer ao
abrigo dos incendios. As abobadas arejadas e enxutas, debaixo das quaes
se guardam a parte antiga e ainda uma grande porção das addições
modernas do Archivo Nacional, uso adoptado tambem por alguns mosteiros
da congregação benedictina, que sabia tractar objectos destes, porque
sabia entendê-los e apreciá-los, não existem em nenhuma parte. É esse um
dos factos que mais instantemente exigem a conservação na Torre do Tombo
dos já tão rareiados documentos dos primeiros dous seculos da monarchia
e dos que a precederam. A imprevidencia de collocar cartorios em logares
não convenientemente isolados fez com que n'uma noite perecessem
inteiros os quatro archivos mais ricos de monumentos da Beira Alta, os
de Salzedas, Tarouca, S. Pedro das Aguias e S. Christovam de Lafões, bem
como o incendio da Casa-pia, do Porto deu aso a perderem-se (dado que
perecessem nas chammas, o que é controvertido) quasi todos os cartorios
monasticos do Minho, que constituiam a parte mais importante das
riquezas do paiz n'este genero. O celebre incendio do Thesouro, que
tambem foi fatal a esta especie de documentos, é outro grande exemplo da
imprudencia que ha em não conservar archivos cuja perda é irreparavel em
edificios isolados ou pelo menos abobadados.
Expostos aos lentos effeitos da humidade e a serem devorados pelas
chammas, os antigos documentos das corporações nas provincias estão,
além d'isso, sujeitos ás devastações das guerras civis e estrangeiras.
Explicam estas em grande parte o não se acharem em quasi nenhumas
camaras do reino documentos originaes anteriores ao reinado de D. Diniz.
Nas tres provincias do norte, esta Classe apenas pôde descubrir a
existencia de um no cartorio da camara de Bragança. Sabemos, todavia,
que ainda certo numero d'elles existia nos fins do seculo passado. Não
teria sido mais util para o paiz, e até para as proprias
municipalidades, que o Governo tivesse feito recolher esses
antiquissimos pergaminhos no Archivo geral do reino? Quando el-rei D.
Manuel mandou expedir os foraes novos, recolheram-se alli as cartas
constitutivas e os privilegios annexos a ellas, respectivos aos
concelhos a quem se concediam aquelles foraes novos. É por isso que, em
parte, os seus primitivos titulos de liberdade ainda hoje existem. E que
é feito de tudo o mais que lá ficou? Desappareceu completamente.
A estes accidentes accresce a deterioração permanente que o desleixo e a
ignorancia produzem. No cartorio de certa corporação, lançado pela
janella fóra durante a guerra peninsular por alguns soldados franceses,
e de que só uma pequena parte foi recolhida, achou-se ainda em 1853
incrustado nos pergaminhos o lodo em que estiveram mergulhados durante
alguns dias; tal tinha sido o desvelo da corporação ácerca dos
monumentos que salvara. Não sabemos se é das que bradam contra a offensa
feita ao seu direito de propriedade. Em outro archivo de um corpo de
mão-morta, os documentos antigos tinham sido lançados em monte na
divisão inferior de um armario humido, cujo pavimento era de tijolo.
Alli haviam apodrecido até a altura de duas ou tres pollegadas,
constituindo, quando se examinaram em 1853, uma massa negra e compacta.
Salvaram-se apenas os que tinham cahido na parte superior d'aquelle
acervo, aonde a podridão ainda não chegava. Outra corporação pediu tempo
ao commissario da Academia para lhe tornar accessivel o cartorio. Estava
este n'um aposento sem vidraças, e pelas roturas das janellas os
passaros tinham estabelecido alli a sua residencia habitual. Era preciso
desimpedir aquella nova especie de estabulo de Augias. A maior parte das
corporações, cujos archivos se examinaram n'esse e no seguinte anno, não
poseram obstaculo algum a que os documentos de que se tomava nota fossem
separados e emmassados á parte, como se fez. A razão era simples. Tanto
importava aquella disposição como outra qualquer, visto não existir ahi
ordem nem indices. Cartorios ha, e dos mais notaveis, onde se adoptou a
distribuição corographica, mas esta distribuição era e é apenas parcial,
e necessariamente incompleta. Os documentos que por algum resumo ou
declaração externa, postos no verso do pergaminho, ou que por serem
modernos podiam facilmente classificar-se como relativos a tal ou tal
propriedade, collocaram-se nos massos respectivos. Todos aquelles,
porém, cujo conteúdo se ignorava, ou que refugiam a este systema
imperfeitissimo, assignalados ou não com o ferrete de _inuteis_, foram
amarrados em feixes e atirados para o fundo de armarios, onde ficaram
jazendo por dezenas e dezenas de annos, cubertos de pó e condemnados ao
esquecimento e a lenta ruína. Em um d'estes cartorios, depois de se ter
concluido o seu exame, achou-se uma gaveta, em logar pouco apparente, na
qual, debaixo de um monte de caruncho, se encontraram 40 a 50 bullas
originaes expedidas pela maior parte do decurso dos seculos XII e XIII.
Talvez durante 50 ou 60 annos ninguem tivera noticia da existencia
d'aquelles diplomas.
Certa corporação clerical teve a singular idéa de enquadernar os seus
pergaminhos avulsos. Era um arbitrio devido, segundo parece, á fecunda
imaginação de uma communidade franciscana, cujos documentos primitivos
se acham n'uma repartição de fazenda da provincia cosidos n'um volume,
podendo ler-se apenas parte de cada um d'elles. A corporação, porém,
encontrara uma difficuldade imprevista em aproveitar o alvitre dos
frades. Os sellos pendentes eram um obstaculo a essa obra meritoria.
Cortaram-nos, ensacaram-nos, e hoje mostram innocentemente aquelle
monumento de sabedoria. Os sellos, sobretudo os dos diplomas
pontificios, esperam pela trombeta final do archanjo para se unirem aos
respectivos corpos, porque só a trombeta final poderá operar tal
maravilha.
Esta mesma corporação possuia um chartulario dos mais conhecidos na
nossa litteratura historica. Esse chartulario tinha saído do archivo,
por ordem do prelado maior, havia quasi vinte annos, para se tirarem
delle copias de varios documentos, de que se carecia para objecto
litterario. Quando em 1854 a Academia mandou examinar os cartorios
provinciaes, o seu commissario perguntou pelo celebre codice. Fôra elle
que tirara aquellas copias quasi vinte annos antes. Disseram-lhe que
existia bem guardado. Pediu-o: apresentaram-lhe uma copia moderna.
Observou que esse volume não passava de um bom ou mau transumpto do
manuscripto de que se tractava. Não se conhecia outro! O commissario da
Academia recordou-se, porém, de uma circumstancia: as copias tiradas por
elle tinham sido feitas em certa livraria vizinha. Teria esquecido alli
o codice? Era um desleixo de vinte annos, absurdo, vergonhoso, incrivel,
mas por isso mesmo, probabilissimo. Propôs que se buscasse, ou antes,
offereceu-se elle proprio a procurá-lo. Acceitou-se a offerta. Não se
enganava. O precioso chartulario vivera desterrado vinte annos, emquanto
o seu pouco leal Sosia lhe usurpava as homenagens daquella corporação
erudita.
No fasciculo já impresso dos _Monumenta_ pertencente á serie intitulada
_Scriptores_ foi inserido um chronicon, cujo original existe no archivo
de uma das corporações ecclesiasticas que representam a V. M. contra a
portaria de 11 de setembro. Havia duas edições discordes entre si, e
ambas inexactas, como depois se viu. Quando se colligiam os monumentos
destinados a entrar naquelle fasciculo, buscou-se obter o codice
original para restabelecer a verdadeira licção. Era impossivel. As
excommunhões contra a extracção dos documentos do cartorio onde elle
existia obstavam a isso. O anjo percuciente velava á porta do cartorio
com a espada de fogo na mão. Á Academia, porém, repugnava manter n'um
trabalho serio, e feito com consciencia, o texto incorrecto. Favoreceu-a
uma circumstancia imprevista. A vigilancia do anjo percuciente fora
entretanto illudida. Pessoa particular obtivera por esse tempo que o
codice viesse a Lisboa. Empregaram-se então meios indirectos para
alcançar copia exacta do chronicon. Mas voltou o codice ao logar d'onde
saíra? Esta Classe ignora qual foi o seu ulterior destino.
É tempo, Senhor, de colher as vellas ao discurso. Parece-nos que o
Governo de V. M. fica habilitado para despachar as supplicas das
corporações conforme a justiça e as conveniencias publicas. A Classe tem
a consciencia de que, tanto nas suas sollicitações como nos seus
conselhos, procurou sempre conciliar o zelo com a circumspecção, e que
não deu neste negocio um único passo que não signifique o cumprimento de
um dever. Resta ao Governo cumprir o seu. Se no assumpto que se debate
ha lucta entre o amor das cousas patrias e um egoismo pueril, entre a
sciencia e a ignorancia, entre a luz e as trevas, não julga esta Classe
que o reinado de V. M. seja a epocha mais propicia para a victoria da
barbaria contra a civilisação.
Deus guarde a vida de V. M. como o paiz e as letras hão mister.


A SUPPRESSÃO
DAS
CONFERENCIAS DO CASINO

1871

A
J.F.


Teve v. s.ª a bondade de me remetter o discurso que o sr. Anthero do
Quental proferiu ou devia proferir no Casino (da sua carta não infiro
claramente se o facto chegou a verificar-se) o que, com os discursos dos
oradores que o precederam, deu aso a serem tolhidas pelo governo
aquellas conferencias. Pede-me v. s.ª que leia o discurso e lhe dê a
minha opinião sobre o seu conteúdo e sobre o procedimento da
auctoridade. Nesta vida positiva que hoje vivo, pouco é o tempo que me
sobeja para a leitura, nem, a falar verdade, o espirito se inclina muito
para esse lado. Depois, as suas perguntas referem-se a assumptos graves,
e até abstrusos, que, porventura, não cabem na capacidade da minha
intelligencia. Accresce que geram em mim tristeza as nossas questões
publicas, e com o egoismo de velho fujo de pensar nellas. Apesar, porém,
de tudo isso, forcejarei por fazer uma excepção a favor deste discurso,
por certa sympathia que sinto pelo auctor, não obstante a profunda
divergencia que ha entre as nossas opiniões. É, talvez, porque no seu
caracter me parece descobrir uma destas indoles nobremente austeras que
cada vez se vão tornando mais raras. Revela o trabalho que me remette as
precipitações e os impetos proprios da idade de quem o delineou. Só os
annos nos curam desse defeito. Quizera eu que o sr. Anthero do Quental
conhecesse melhor a doutrina e a tradição verdadeiramente catholicas,
porque havia de ser menos injusto com o catholicismo, embora não fosse
menos severo, ou talvez o fosse ainda mais, com os padres.
Quanto á prohibição das conferencias, que quer que lhe diga? É peior que
uma illegalidade, porque é um desproposito; e na arte de governar, os
despropositos são ás vezes peiores que os attentados. O que sería
escutado e em grande parte esquecido por cem ou duzentos ouvintes será
agora lido e meditado por milhares, talvez, de leitores. Diz-me que se
tomou por pretexto da suppressão das conferencias o desaggravo da
religião offendida. Erro deploravel. Idéa perseguida, idéa propagada:
lei perpetua do mundo moral, perpetuamente esquecida pelo poder. Por
certo, o governo tem obrigação de manter a religião do Estado, como tem
obrigação de manter todas as instituições do paiz. Mas o respeito pela
inviolabilidade do pensamento entra tambem no numero das suas
obrigações. E quando a religião do Estado e a liberdade do pensamento
collidem, é aos tribunaes judiciaes que cumpre dirimir a contenda. O
discurso oral é manifestação da idéa, como o é o discurso escripto. Não
se póde supprimir o orador, como se não póde supprimir o escriptor. Para
um, como para outro, ha a responsabilidade e a punição.
Depois, creio pouco que o sr. Anthero do Quental, apesar da sua clara
intelligencia, e da auctoridade moral que lhe dá a integridade do seu
caracter, seja assás poderoso para derribar o catholicismo, a religião
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