Opúsculos por Alexandre Herculano - 12

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do que a minha. O doador distingue em dous grupos os servos doados: a
1.^a dos _mancipios_ e _mancipiellas que foram das gentes dos ismaelitas
e agarenos_, e dos quaes, todavia, uns tem nomes godos, outros nomes
arabes: a 2.^a dos _homens de creação havidos de avoengas_ (heranças de
familia) _dos antepassados_ (do doador) e cujos nomes são todos godos.
Porque a divisão em dous grupos, se a condição dos que pertencem a uma e
a dos que pertencem a outra é absolutamente identica? Porque uns são
chamados _mancipios_, outros _homens de creação_, equivalente de servos
de raça? Porque entre os _mancipios_ tem uns nomes godos e outros
arabes, emquanto os de _criazione_ são todos godos? Peço ao sr. Muñoz
que aproxime estes factos das ponderações que acima fiz, e que decida
depois se o documento prova contra a minha, se contra a sua doutrina.
Refere-se no 4.^o documento a historia de uma demanda entre o conde
Ordonho Romaniz e o mosteiro de Cellanova ácêrca de certas herdades do
mosteiro e dos homens que n'ellas viviam. O que neste documento importa
para a questão é o desfecho da contenda. Convencido de que não tinha
razão, o conde propôs aos monges uma transacção, que acceitaram, e que
consistia em elle possuir as granjas emquanto vivo _absque homines in
adtonitum_. Nestas ultimas palavras o sr. Muñoz vê a separação dos
homens da terra. Será essa a verdadeira interpretação?
_Adtonitum_ é evidentemente a traducção latino-barbara da palavra
_atondo_. _Atondo_ significava alfaia, _traste de uso_, _objecto de
serviço_. As obrigações do servo de gleba, como depois as dos colonos
livres em seculos mais proximos de nós, eram, em relação ao senhor da
gleba, e depois em relação ao senhorio directo do predio, de duas
especies--prestações agrarias e serviços pessoaes; estes abrangiam
serviços de todo o genero, ainda os mais baixos; alguns, até, que
poderiam ser feitos por animaes domesticos. Nada mais facil, portanto,
do que applicar a palavra _atondo_ ao serviço pessoal dos servos, n'uma
épocha que de certo se não distinguia pela precisão rigorosa da
linguagem[82]. Que ficava percebendo Ordonho por aquella concessão dos
frades? As prestações agrarias. Os serviços pessoaes ficavam ao
mosteiro. E os monges procediam assisadamente fazendo uma concessão
restricta ao homem poderoso. Pelos individuos que agricultavam as
glebas, cujos redditos senhoriaes elles cediam vitaliciamente ao conde,
ficando aliás esses individuos ligados pelos serviços pessoaes ao
mosteiro, era facil provar a todo o tempo a quem o solo pertencia, se,
como eu creio, o servo se achava unido ao predio que agricultava e onde
vivia.
Não comprehendo como possa applicar-se á materia debatida o 5.^o
documento citado pelo sr. Muñoz. Para elle servir ao intento era
necessario que a condessa D. Guncina provasse o que affirmava. Não o
provou, porque a sentença deu-se a favor dos frades. Logo a separação
dos dez homens pelo rei Ramiro nunca existiu conforme o que pretendia o
abbade de Cellanova. Supponhamos, porém, que fosse verdade o que ella
dizia. N'esse caso perguntaria: d'onde consta que dez glebas do
testamento de Vanate não passaram com os dez homens para o dominio do
mosteiro de Porcária? A contenda podia versar sobre os dez servos e os
dez predios, embora se falasse unicamente de homens: esta confusão da
linguagem juridica nos documentos daquelles tempos é uma cousa que me
parece ter demonstrado no meu livro até a evidencia.
No 6.^o documento doam-se varias granjas _com sua criacione et homines
pertinentes_, exceptuando um d'estes homens com seus filhos. Não
comprehendo igualmente como se possa invocar contra mim um documento de
que me poderia ter servido, cumulativamente com tantos outros, para
estribar a minha theoria, se o houvera conhecido. A phrase
latino-barbara acima citada exprime exactamente a situação dos servos:
doam-se as glebas com a _sua_ creação, com os homens _que lhes
pertencem_. Supponhamos que a reserva que se faz de uma familia
signifique o que o sr. Muñoz pretende. Sería um acto legitimo ou
illegitimo; mas o que é certo, pelo menos, é que até ahi essa familia
pertencia áquellas glebas como os outros homens de creação. Isoladamente
este documento não seria bastante para provar o facto geral da
adscripção, embora prove que havia adscriptos; mas o que elle de certo
não prova é que a situação dos servos na sociedade leonesa fosse a mesma
dos tempos gothicos.
A adhesão á gleba era um facto de indole complexa. Por um lado era um
progresso immenso das classes laboriosas no caminho da liberdade; por
outro uma garantia para os donos do solo; porque, circumscrevendo,
coarctando a acção do senhor sobre o servo, a tornava por isso mais
legitima e por consequencia mais solida. Nas relações entre ambos havia
vantagens mutuas, de que espontaneamente se podia ceder de parte a parte
para as trocar por outras vantagens maiores. A adscripção não era uma
lei escripta, como na Russia moderna; pelo menos nenhuns vestigios
restam de que o fosse: era um facto social, um costume, uma praxe, que
resultava da natureza das cousas, de factos politicos anteriores. É
possivel apparecerem exemplos de separação entre o servo e a gleba por
um acto violento do senhor. De que actos violentos deixa de nos
subministrar exemplos a idade media? Mas o senhor tambem podia quebrar
os laços que prendiam o servo ao predio com vantagem e assenso delle,
como por exemplo para o unir a uma gleba mais productiva ou mais vasta,
sem que por isso se reputasse offendida a praxe, a especie de lei mental
que a força das cousas trouxera, e sem que hajamos de inferir d'ahi a
não existencia do facto contrario como regra. Isto explicaria a reserva
de Alvito Pepiz e seus filhos na doação de 1094 á sé de Lugo, se não se
podesse tambem entender que com elles fora exceptuada a respectiva
gleba.
Depois do que fica dicto a analyse dos 7.^o, 8.^o e 9.^o documento do
sr. Muñoz parece-me inutil, e a theoria da adscripção não obstará por
certo á sua facil interpretação. Seja-me, todavia, licito fazer algumas
observações a respeito do ultimo documento. Não me lembra ter jámais
visto mencionado, nem nos historiadores nem nos monumentos, um unico
mussulmano cujo nome seja godo. E comtudo na memoria da divisão de
Rovoredo menciona-se o _sarraceno_ Sendimiro. Não sería um captivo
mosarabe? Mosarabe, porêm, ou arabe, elle não fora um homem de creação,
fora um escravo. Diogo Erit fugindo para Rovoredo casou ahi. Mas porque
não sería a mulher da sua condição e da sua raça? E então porque não se
daria em troco d'elle uma irmã da sua mulher? Que póde esse facto provar
contra a adscripção dos servos originarios? Onde neguei eu que a
escravidão dos sarracenos ou de seus filhos fosse a servidão pessoal?


V

Outra ordem de factos, que o sr. Muñoz recorda como vehemente indicio de
que a condição dos servos era a mesma dos tempos gothicos, é que ás
vezes os poderosos nas suas depredações roubavam uns aos outros os
colonos e iam vendê-los, o que não poderia acontecer se a servidão
pessoal não existisse; que se davam servos aos mouros em resgate
d'illustres captivos[83]; que os servos eram obrigados ao serviço
domestico, a trabalhos mechanicos da industria, como por exemplo, a
serem cozinheiros, padeiros, tecelões, carpinteiros, ferreiros,
alfaiates, etc.; que alguns tinham os mais baixos encargos, como limpar
os logares immundos, concertar os caminhos, tractar das cubas em que
seus senhores se banhavam etc.[84]; o que tudo, no entender do sr.
Muñoz, repugnava á adscripção. Lembra-se então de alguns monumentos em
que esses factos podem estribar-se, e que crê servirem para condemnar a
minha opinião. Examinemo-los.
N'uma doação de Bermudo III á sé de Santiago fala-se de um certo
Galiariz, que, entre outras rapinas que fez, roubou seis homens alheios
e vendeu-os como captivos (_et vendivit eos sicut captivos_). Se eu
procurasse um documento que positivamente contradissesse a doutrina do
sr. Muñoz, não o acharia por certo mais a proposito. Galiariz vendeu os
servos alheios _como se fossem captivos_, e este acto enumera-se entre
os seus delictos. O que pois se vendia sem offensa dos usos e costumes
era o prisioneiro, _captivum_. Vender como tal o servo alheio é uma
circumstancia que aggrava o roubo, e porque? Porque o servo, o homem
d'alguem, não era um captivo, uma _cousa_ venal. Peço que se reflicta
neste documento.
Dous nobres de Galliza, conforme refere a Historia Compostellana, foram
aprisionados pelos sarracenos. Tractou-se do seu resgate, e deram-se
para os remir LX _captivos christianos, tamen ex servili conditione_. E
é sobre semelhante texto que o sr. Muñoz assenta a idéa de que se
entregavam servos originarios aos sarracenos em resgate de cavalleiros
leoneses! Que é o que se deu pelos dous nobres? Captivos christãos. Pois
_captivo_ foi nunca synonimo da palavra generica _servo_? _Captivo_, na
idade media, significava o que significa hoje, o que significou sempre,
o prisioneiro. O que houve foi uma troca de prisioneiros. Deram-se por
dous sessenta, facto que o historiador explica: _tamen ex servili
conditione_. Se dessem sarracenos nobres dariam um, dous, quatro, ou
seis. Não tinham prisioneiros de mais elevada jerarchia ou não os
quizeram entregar: deram sessenta de condição servil. Mas esses homens
eram christãos. Por certo; mas tambem eram indubitavelmente captivos. A
Compostellana é igualmente explicita a ambos os respeitos. Eis a
necessidade de nunca esquecer a população mosarabe. Por ella se explica
facilmente a existencia de prisioneiros christãos em poder de christãos.
Aprisionados com seus senhores ou sem elles n'uma batalha ou n'uma
correria dos leoneses na _Spania_, tinham mudado de donos, e agora
entregavam-nos a outros donos em cujo poder de certo a sua condição
desgraçada não melhoraria. Eis o que unicamente se pode inferir com
plausibilidade da narrativa da Compostellana.
Não escrevendo a historia de Leão, ou dos outros estados da Peninsula,
mas a de Portugal, eu era obrigado a esboçar rapidamente a organisação
social da Hespanha de que se desmembrara a monarchia portuguesa; só,
porêm, até onde fosse necessario para se entender a historia social do
meu paiz. Apesar disso, creio que fui o primeiro que tentei fazer sentir
aos escriptores hespanhoes a importancia de dedicar profundas
investigações á historia dos mosarabes, dessa população distincta, que,
em meu entender, devia constituir a maioria dos habitantes da Peninsula,
ainda dous ou tres seculos depois da invasão dos arabes e da tentativa
de Pelaio, pela simples razão de que a grande massa da população de um
vasto paiz não se pode substituir como o poder supremo, como o
predominio de um precedente conquistador, sobretudo quando se tracta de
uma nação civilisada, e não de tribus selvagens, sempre insignificantes
em numero, e que a atrocidade fria e permanente dos vencedores chega a
destruir no decurso de seculos. Depois das invasões e conquistas
germanicas, a grande massa da população do imperio romano ficou sendo
celto-romana: depois da invasão e conquista da China pelos tartaros
mantchús, a maioria dos habitantes daquelle immenso paiz ficou sendo
chim: o sangue inglês é o sangue anglo-saxonio, apesar do predominio
normando. E todavia nenhuma daquellas raças de conquistadores foi tão
moderada, tão benigna para com os vencidos como os arabes na Hespanha.
Por essa mesma brandura e tolerancia certa ordem de factos politicos e
sociaes, que se dão depois dos grandes cataclysmos das nações, deviam
ser mais prominentes, mais efficazes na Hespanha, e portanto influir
mais poderosamente nas phases dos acontecimentos posteriores tanto
politicos como sociaes. Nós, os homens d'hoje, que vimos ou ouvimos
contar a nossos paes as scenas do dominio francês na Peninsula no
principio d'este seculo, deveriamos saber adivinhar o estado moral da
população romano-gothica depois do estabelecimento do imperio dos
khalifas, se aliás os monumentos fossem menos explicitos ou guardassem
silencio a tal respeito. O transitorio dominio francês na Peninsula não
deixou de produzir logo um grande numero de _afrancesados_ na Hespanha e
de _jacobinos_ em Portugal. Qual sería o jacobinismo, permitta-se-me a
expressão, entre os godo-romanos em relação aos sarracenos pode
imaginar-se tendo presente o estado de dissolução moral do imperio
wisigothico, anniquilado n'uma unica batalha; o longo dominio dos
arabes; a superioridade da sua civilisação material; a sua tolerancia
para com a religião dos vencidos; o respeito guardado ás instituições
civis destes; a benevolencia, emfim, dos principes mussulmanos para com
os seus subditos christãos. Não quero dizer com isto que o patriotismo
wisigothico; que a impaciencia do jugo extranho; que o sentimento de
hostilidade religiosa não ardessem em muitos corações, e até subissem ao
gráu de fanatismo. Pelo contrario. Não era preciso que os monumentos nos
dissessem que a reacção se manifestava até na corte de Cordova. O
conhecimento da indole das paixões humanas dispensa ás vezes em historia
o testemunho dos monumentos. O homem é essencialmente o mesmo em todas
as epochas. Mas é por isso que os interesses, a reflexão, os vicios, as
virtudes, os habitos, a educação, as mil causas moraes que impellem e
dirigem o individuo e lhe determinam os affectos e as tendencias, deviam
impellir outros, e talvez o maior numero, a manifestações oppostas. O
_Indiculo Luminoso_ de Alvaro de Cordova, especie de extenso artigo de
fundo de jornal partidario, libello apaixonado contra o mosarabismo,
revela-nos quão numeroso e importante era o partido arabe entre os
romano-godos da Spania, partido que abrangia nobres, guerreiros,
prelados, sacerdotes, magistrados, povo. Se não existisse este
testemunho insuspeito, a razão e a experiencia nos diriam o mesmo que
elle nos diz[85].
Imagine-se agora qual sería durante a lucta entre a monarchia
néo-gothica e o imperio dos Benu-Umeyyas o papel dessa maxima parte da
população peninsular chamada os mosarabes: uns indifferentes á contenda,
acceitando do mesmo modo o dominio dos reis d'Asturias e Leão ou o dos
principes sarracenos, no meio dos éstos da guerra; outros forcejando por
identificar-se com a nova sociedade que se constituia á semelhança da
patria wisigothica; outros, emfim, addictos por esperanças, por cubiça,
por beneficios recebidos, e até por laços de sangue, resultado dos
consorcios mixtos, á manutenção do dominio mussulmano, e calcule-se
quantos factos politicos haviam de dimanar de um estado de cousas tal;
quantas peripecias, quantas violencias se dariam em qualquer districto
ou provincia da Hespanha a cada invasão, a cada correria, quer dos
sarracenos, quer dos leoneses; como se traduziriam em vinganças acerbas
os odios occultos; como as paixões mais oppostas trariam a mudança de
partido e até de crença; como os homens da mesma raça e da mesma
religião se perseguiriam, se denunciariam por desleaes a um ou a outro
dos dous poderes publicos, que pelos accidentes da guerra se succediam
tão frequentemente nos variaveis limites dos dous estados; como a
condição do mesmo individuo mudaria mais de uma vez; como o nobre, o
rico, o funccionario, o sacerdote poderiam cair de repente da situação
mais elevada na mais abjecta servidão, e os mais humildes elevarem-se
por acontecimentos imprevistos até as mais altas graduações sociaes;
como, finalmente, os monumentos na sua linguagem, nos factos que delles
resultam podem illudir-nos, se entre os elementos a que devemos recorrer
para a sua apreciação esquecermos o elemento mosarabico.
Que se me permitta referir aqui uma anecdota que pinta a vida agitada da
população mosarabe nos territorios submettidos ora pelos arabes, ora
pelos leoneses, no meio das vicissitudes da guerra, e que está
confirmando o que precedentemente disse ácêrca do mosarabismo e das
peripecias a que estavam sujeitos os individuos naquella situação
incerta e cambiante. Dos territorios da Hespanha nenhum, talvez, mudou
mais vezes de senhores durante a lucta do que os districtos d'entre
Douro e Tejo, sobretudo nas proximidades do oceano, e porventura que em
nenhum ficaram mais vestigios da existencia da sociedade mosarabica, da
sua civilisação material, das suas paixões, dos seus interesses
encontrados, e até dos seus crimes e virtudes. A publicação, que a
Academia prepara, dos documentos dessas epochas, e especialmente dos que
nos foram conservados nos archivos da cathedral de Coimbra e do mosteiro
de Lorvão, lançará grande luz sobre o assumpto. É um desses documentos,
tirado do chartulario de Lorvão, o Livro dos Testamentos, e que foi
publicado já por Fr. Munuel da Rocha, mas horrivelmente deturpado, que
me subministra os elementos de uma narrativa, a qual reproduz, embora
apenas n'uma das suas phases, o viver daquelles tumultuarios tempos.
Era nos fins do seculo X e regia o abbade Primo o cenobio de Lorvão.
Coimbra, em cujo territorio estava situado o mosteiro, pertencia á coroa
leonesa pouco antes da epocha em que a espada irresistivel do hadjib
Al-manssor fez recuar de novo as fronteiras da monarchia néo-gothica
para além do Douro (987). Os districtos ao sul deste rio, que depois da
invasão de Tarik e Musa tinham pertencido a maior parte do tempo aos
sarracenos, encerravam uma população essencialmente mosarabe. Cordova
era ainda para ella a capital da industria, das artes, da civilisação. O
architecto cordovês Zacharias viera a Lorvão, provavelmente chamado pelo
abbade Primo para alguma obra do mosteiro. Sabendo isto, os regedores de
Coimbra falaram com o abbade para que o architecto cordovês construisse
algumas pontes sobre os rios das circumvizinhanças. Primo accedeu, e
acompanhou Zacharias na empreza. Edificaram-se então quatro pontes, em
Alviaster (Ilhastro), em Coselias (Coselhas), em Latera Buzat (Ladeiras
do Bussaco?) e na ribeira de Forma (Bossão?) Aqui, em memoria da ambos,
e por conselho do architecto, Primo construiu umas azenhas que ficaram
pertencendo ao mosteiro. Taes foram os factos succedidos nos fins do
seculo X que narra o documento de Lorvão.
Passaram tres quartos de seculo. Coimbra e o seu territorio, submettidos
de novo por Al-manssor, tinham-se conservado sob o jugo do islam.
Fernando magno veio, porêm, a unir definitivamente aquella provincia á
coroa de Leão nos meiados do seculo XI. As azenhas da ribeira de Forma
já não eram do mosteiro. Fernando I restituiu-lh'as, ajunctando o
senhorio da ponte. Pelagio Halaf, nome que indica um mosarabe christão,
fora, segundo parece, espoliado naquella restituição. Demandou os
monges, affirmando que seu avô Ezerag edificara as azenhas, ao passo que
o abbade Arias invocava os nomes de Primo e Zacharias. O mosarabe
Sisnando, conde ou wasir de Coimbra, exigindo o juramento de Arias
ácêrca do que este affirmava, manteve a restituição. Surgiu então novo
contendor. Era Zuleiman Alafla, primo-coirmão de Pelagio, talvez
mussulmano, talvez christão, mas como elle da raça mosarabe. Sisnando
enviou os contendores á curia do rei. Ahi, longe de estribar o seu
direito na fundação do avô, Zuleiman recorreu a um titulo que hoje sería
singular, mas que então elle cria assás natural, e sufficiente para
legitimar a sua pretensão. Era a historia do que se havia passado quando
Al-manssor se apoderara de Coimbra. Ezerag habitava em Condeixa quando
se restabeleceu o dominio de Cordova. No tumulto da invasão os
habitantes das aldeias internavam-se nos bosques. Ezerag pensou então
que a desordem geral podia enriquecê-lo. Dirigiu-se ao chefe sarraceno
Farfon-ibn-Abdallah, e abraçou o islamismo. Depois pediu trinta soldados
sarracenos, escondeu-os nas brenhas, e dirigindo-se á gente foragida,
aconselhou-os a voltarem aos seus lares, asseverando-lhes que tudo
estava pacificado. Acreditaram-no e voltaram ás aldeias. Os soldados
sarracenos, saindo então dos escondrijos, captivaram muitos, e
levando-os a Santarem venderam-nos por grossas sommas. Os captivos foram
conduzidos a Cordova com guia de Ibn-Abdallah e com o preço por que
tinham sido vendidos. Então Ezerag pediu em recompensa os moinhos de
Forma e diversas aldeias. Al-manssor concedeu-lhe tudo; porque
Al-manssor era um heroe, e os heroes não tem tempo para pensar nos
direitos da humanidade conculcados[86]. Era nesta concessão que Zuleiman
fundamentava a sua justiça.
A doação do hadjib aos olhos de Alafla, do neto do renegado, era um
titulo legitimo, embora essa mercê tivesse tido por causa uma atroz
villania, e procedesse de um acto de auctoridade que o tribunal leonês,
conforme as ideas de hoje, não poderia reconhecer. Zuleiman, porêm,
suppunha tão legitima, tão respeitavel a concessão de Al-manssor como o
julgamento da curia de Fernando-magno. Era um poder que passara na
terra: era outro que nella existia agora. Nisto se resumia,
necessariamente, a crença politica de uma grande parte dos proprietarios
e agricultores mosarabes. Mas o mais importante neste documento é o
proceder d'Ezerag e os factos que d'ahi resultaram. Elles nos explicam
como quaesquer individuos da grande maioria da população podiam descer
ao misero estado d'escravos. Sem duvida a historia de Ezerag não é a
unica da sua especie succedida naquelles quatro seculos de uma terrivel
lucta: devia repetir-se com circumstancias variadas. E é mais que
provavel que as conversões ao christianismo por baixos intuitos de
cubiça, de vingança ou de traição, fossem, pelo menos, tão frequentes
como as conversões mussulmanas.
Insisti neste ponto, porque o reputo capital. Passemos agora á objecção
deduzida de serem os servos originarios obrigados a trabalhos
industriaes e ao serviço domestico dos senhores, trabalhos e serviços
que, no entender do sr. Muñoz, repugnavam á adscripção da gleba.
No opusculo do sr. Muñoz parece-me haver duas preoccupações que
allucinam o illustre escriptor. A primeira é a das idéas modernas
applicadas ás expressões, ás phrases e aos factos da idade media. Desta
é facil possuirmo-nos, e nella terei eu caído mais de uma vez. A outra é
na verdade singular, mas em boa parte deriva da primeira. Consiste em
suppôr a impossibilidade de accumular os trabalhos da vida rural com os
industriaes e mechanicos, ou com os serviços pessoaes feitos a outro
individuo. Entre as nações onde o progresso das industrias fez
predominar quasi exclusivamente o principio economico da divisão do
trabalho, effectivamente não se dá tal associação: o official mechanico,
o operario fabril, o creado domestico não associa de ordinario a
occupação a que se entregou com o grangeio dos campos. Mas assim como a
divisão e subdivisão dos misteres se vai multiplicando com o
desenvolvimento industrial, assim quanto mais atrazado se acha um povo,
mais o homem varía de occupações, porque é obrigado a variar, e porque
justamente a imperfeição das industrias, a simplicidade e grosseria dos
artefactos favorecem a accumulação e a variedade das occupações
individuaes. Não sei o que succede em Hespanha: em Portugal, nos
districtos ruraes, mais de uma industria fabril se associa com a
agricultura sob o tecto do lavrador. E todavia, por atrazado que esteja
este paiz nos progressos fabris, está sem comparação mais adiantado do
que a monarchia leonesa no seculo X ou XI.
Recusar admittir que o servo da gleba podesse separar-se do cultivo da
mesma gleba para se empregar de outro modo no serviço do senhor, não é
só negar o passado; é negar o presente. O camponês russo é servo da
gleba, e nem por isso deixa de separar-se della para exercer outros
misteres. O que não pode é ser vendido como os brutos. Muda de senhor,
ao menos legalmente, só quando é alienada a terra a que pertence.
O V volume da Historia de Portugal, ainda não publicado, conterá uma
parte relativa ao systema do tributo, da renda, e do serviço publico nos
seculos XII e XIII. Ahi se encontrarão numerosas provas de que n'uma
épocha em que já a adscripção voluntaria succedera á forçada existiam
para o colono, pessoalmente livre, ao lado das prestações agrarias esses
mesmos encargos de serviço pessoal que ao sr. Muñoz parece repugnarem,
não ao colonato livre, mas á propria servidão da gleba; e o mais é que
continuamos a encontrá-los ainda nos contractos emphyteuticos de seculos
mais modernos. Por singulares, por extranhos á vida rural que esses
serviços se nos affigurem nos documentos citados no opusculo que
examino, os dos colonos portugueses do seculo XIII, colonos
indubitavelmente livres de uma gleba serva, não são menos singulares e
extranhos. Lembrarei, entre outros, o encargo que pesava sobre os
moradores de tres casaes de Tras-os-Montes. Deviam ir servir de espias
em Leão quando a isso os enviassem.[87] Era, por certo, um serviço mais
abjecto do que o _purgare tristigas_ de que falam os documentos
leoneses.
Mas o mais notavel é que o proprio sr. Muñoz se encarregou de combater a
sua opinião. Ao lado da servidão _pessoal_ dos servos _originarios_
admitte a existencia da servidão de gleba, a existencia simultanea de
adscriptos, de que fórma uma classe á parte. Depois de enumerar as
prestações agrarias que pagavam esta especie de colonos-servos, o sr.
Muñoz adverte[88] que, além de uma quota de fructos, e de variadas
foragens, esses colonos forçados estavam adstrictos a serviços pessoaes,
que consistiam nos amanhos de predios diversos da propria gleba, em
construcções de edificios, e _em fazer quanto se lhes ordenasse_. Suppôs
o sr. Muñoz que havia contradicção em dizer eu que os servos originarios
eram todos adscriptos e ao mesmo tempo obrigados a serviços pessoaes
fóra da respectiva gleba, e todavia não só acceita essa doutrina
contradictoria no seu mesmo opusculo, mas, além disso, acceita-a depois
de affirmar a sua impossibilidade, para desta inferir contra mim a
continuação na monarchia ovetense-leonesa da servidão wisigothica. Se os
serviços pessoaes alheios ao cultivo da gleba importavam forçosamente a
não-adscripção, é necessario confessar que a adscripção, cuja existencia
o sr. Muñoz crê descubrir ligada com quaesquer encargos de serviço
pessoal ao senhor, é um sonho, e que os documentos que se referem a esse
estado de cousas, ou são falsos, ou se hão de entender, custe o que
custar, de escravos semelhantes aos dos wisigodos ou aos captivos
sarracenos.
Na _Colleccion de Fueros Municipales_[89] publicou o sr. Muñoz dous
interessantes documentos sem data, mas que parecem do seculo IX,
relativos aos encargos pessoaes dos servos originarios. A estes
documentos se reporta igualmente no seu opusculo para abonar a these que
estabelece da existencia simultanea de adscriptos e de escravos
originarios. É o primeiro uma memoria dos serviços a que era obrigada
para com a sé de Oviedo cada familia serva da terra de Gauzon: é o
segundo uma memoria especial das obrigações dos servos de Pravia, logar
ou aldeia incluida no mesmo territorio de Gauzon. Na _Colleccion_ vê-se
que as idéas do sr. Muñoz fluctuavam ainda. Estas duas memorias
suppõe-nas elle ahi relativas indistinctamente aos servos da sé ovetense
residentes naquelle territorio, quer adscriptos, quer não: no
opusculo[90] suppõe-nas, porém, relativas exclusivamente aos
não-adscriptos, isto é, aos servos de raça, que, segundo a sua doutrina,
continuaram a ser na monarchia néo-gothica de condição identica á dos
servos do VI e do VII seculos.
Permitta-me, todavia, o sr. Muñoz pensar que se houvera reflectido mais
detidamente nestes documentos elles o teriam, talvez, conduzido a
diverso resultado. Suppondo que se refiram a servos que, no seu
entender, equivaliam a cousas, e de que seu antes dono que senhor podia
dispôr livremente, a propria existencia dessa especie de memorias sería
incomprehensivel. Na idade media não se escreviam cousas absolutamente
inuteis, porque a arte de escrever poucos a possuiam, e até a materia da
escriptura era assaz rara. Ora nada mais completamente inutil do que
esses _cobrinellos_ ou ementas, dada a theoria do sr. Muñoz. Para que
escrever n'um pergaminho: _a familia de fulano de tal aldeia ou granja_
(villa) _é obrigada a tal serviço_? Pois uma familia de escravos, que
pode ser empregada a bel prazer do senhor nos mais oppostos misteres
dentro do mesmo anno, do mesmo mez, do mesmo dia, como um animal
domestico; que por arbitrio delle pode mudar de domicilio quando isso
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