Opúsculos por Alexandre Herculano - 04

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historia é em evitar todos esses vicios em que é facil cair; quero
dizer, evitar admittir por verdadeiro o que é falso, ou deixar-nos
dominar pelas affeições particulares dos historiadores. É necessario,
primeiro que tudo, pesar attentamente os dotes do auctor; se é idoneo e
sincero; o que o moveu a escrever; se pertence a algum bando ou
seita...»
2.^o «Devemos averiguar _se o auctor que lemos é synchrono_
(contemporaneo); se escreveu elle proprio, ou se copiou outro; se é
prudente nas suas affirmativas, ou se apenas se estriba em conjecturas;
porquanto, dada a paridade no demais, deve preferir-se a opinião do
auctor coevo á do mais moderno. Digo--dada a paridade no demais--porque
póde acontecer, e acontece ás vezes, escrever a historia com inteira
madureza o auctor não synchrono, estribado _em monumentos serios_ e boas
razões, e o contemporaneo muito ao contrario, ou seja por negligencia,
ou seja por ignorancia dos factos, ou seja por alguma prevenção, ou
finalmente porque o _subjuga a força do proprio interesse_.»
3.^o «Segue-se d'aqui _não se dever confiar demasiado naquelles factos
sobre que os escriptores rigorosamente contemporaneos, ou quasi
contemporaneos, guardaram silencio_; postoque possa acontecer que um
auctor mais moderno consultasse alguns monumentos importantes, guardados
em logar occulto quando os factos aconteceram, ou visse escriptores
synchronos, ou quasi synchronos, cujas obras depois se perdessem.
«_Se, porém, esses escriptores, ou os que lhes succederam, no intervallo
de um até dous seculos, nada dizem a tal respeito, e não obstante isso,
um historiador mais moderno, sem se estribar em testemunho ou
auctoridade alguma, se atreve a asseverar temerariamente esses factos,
bem pequena conta se deve fazer delle_, aliás abririamos ampla estrada
para errarmos, e para enganarmos os outros.»
4.^o «Com todo o cuidado nos devemos premunir para não sermos
illaqueados por alguns auctores suppositicios, inventados nestes nossos
tempos...»
5.^o «Não se deve proscrever qualquer auctor por um ou outro defeito de
paixão ou allucinação, pela rudeza do estylo, ou por outra imperfeição
propria da natureza humana, comtanto que seja sincero e pontual no
resto...»
6.^o «Não se devem desprezar os antiquarios, auctores de resumos
historicos, e compiladores...»
7.^o «Quando as narrativas variam, não nos devemos deixar attrahir pela
consideração do numero, mas sim pelo merito e gravidade[22] dos
auctores; visto que muitas vezes acontece que a auctoridade de um auctor
grave e sincero merece preferir-se ao testemunho de cem de menos fé,
_porque estes se foram repetindo uns aos outros sem madura discussão e
diligente exame das cousas_...»
8.^o «Por este mesmo motivo não deve fazer-se grande fundamento na quasi
innumeravel multidão de casos que muitos modernos costumam amontoar nas
vidas de certos sanctos... Dizendo isto, sinto apertar-se-me o coração,
e com magua devo accrescentar, que são muitissimo mais exactos os
auctores profanos escrevendo vidas de ethnicos, do que muitos christãos
relatando vidas de sanctos, o que já não receou affirmar Melchior Cano,
referindo-se a Diogenes Laercio e a Suetonio.»
Ouçamos ainda n'outra parte o fundador da diplomatica francesa:
«É necessaria a crítica para distinguirmos as historias verdadeiras das
falsas; para não darmos temerariamente credito a narrações
supersticiosas, a vans opiniões, a delirios aereos, a _milagres fingidos
ou duvidosos_, a _escriptos suppostos dos sanctos padres_. O veneravel
Guigo, quinto geral dos Brunos, estabeleceu utilmente uma norma de
crítica: ..._Buscae a prova de tudo; o bom respeitae-o. Quem crê de
prompto é leve de coração._»
Agora Fleury, o pio mas illustrado historiador da igreja catholica.
Depois de varias considerações sobre os documentos falsos com que o
clero innundou a Europa nos seculos de trevas, e da falta de instrucção
que entre elle reinava, o historiador observa:
«Outro resultado da ignorancia é tornarem-se os homens credulos e
supersticiosos, por falta de principios seguros de crença e de exacto
conhecimento dos deveres religiosos. Deus é poderosissimo, e os sanctos
têm alto valimento para com elle: verdades são estas que nenhum
catholico rejeita: logo devo acreditar todos os milagres attribuidos á
intercessão dos sanctos. Má conclusão. Cumpre examinar as provas delles,
e com tanta mais exacção, quanto esses factos mais incriveis e
importantes forem. Porque, dar por certo um milagre falso nada menos é,
segundo S. Paulo, que dar testemunho falso contra Deus, como mui
judiciosamente observa S. Pedro Damião. Assim, longe de ser acto de
piedade crê-los de leve, é a propria piedade que nos obriga a
averiguarmos com rigor as provas em que se fundam. _O mesmo se deve
dizer das revelações, das apparições de espiritos, das operações do
demonio... Em summa, toda a pessoa dotada de bom juizo e religiosidade
deve ser cautelosissima em acreditar factos sobrenaturaes._»
Mas observemos as precauções de que Fleury se rodeava, as balisas que
para si proprio punha, ao começar o immenso lavor da sua _Historia
Ecclesiastica_, ainda hoje não substituida, apesar de tantas
monographias excellentes com que depois tem sido illuminada, por um ou
por outro aspecto, n'uma ou n'outra epocha, a historia da igreja. Eis os
limites que elle estabeleceu á credibilidade n'um genero de escriptos
onde esta poderia ser mais ampla, limites que á _fortiori_ não será
nunca licito ultrapassar em matéria de tradições humanas. Mas antes
permitta-me v.. que cite algumas passagens, as quaes me parecem
grandemente applicaveis a essa parte do clero, que, em vomitando, no
pulpito ou na imprensa, contra quem diz a verdade, quantos adjectivos
injuriosos contém o diccionario da lingua, pensam que salvaram a honra
dessas fabulas e crendices que estão costumados a propalar entre o povo,
provavelmente pela mesma razão por que prégam mal, isto é _porque os
festeiros gostam d'isso_, embora os concilios lh'o prohibam, os
apostolos os condemnem, os membros mais doutos e pios da igreja
catholica lhes mostrem o abysmo em que se precipitam! Para onde has tu
fugido, oh religião de Christo?!
«Vejo bem--diz Fleury--que a minha historia não ha-de agradar aos
espiritos acanhados, atidos ás suas preoccupações, e sempre promptos em
condemnar os que pretendem desenganá-los; aos que tapam os ouvidos
quando a verdade soa, para se abraçarem com as fabulas, buscando
doutores que vão com elles. Não lhes faltarão livros acommodados ao
paladar. Escrevo em vulgar para ser util aos homens de juizo...»
«Dous excessos vejo eu que ha a evitar: um de credulidade, outro de
critica. Nem só a simpleza faz credulos. Pessoas ha que o são por
politica e por deploravel sobranceria. _Julgam que o povo é incapaz ou
indigno de saber a verdade; e tem por necessario alimentar-lhe todas as
opiniões que lhe foram inculcadas como religião_, receiosos de abalar o
que é solido, atacando o que é frivolo. Na essencia, estes suberbos
politicos são ignorantissimos. Desconhecendo a religião, não a tomam a
serio, e nada os liga a ella senão as preoccupações da infancia e os
interesses temporaes. Nunca examinaram as seguras provas do evangelho,
nem sentiram a excellencia da sua moral e a esperança dos bens eternos.
_É por isso que não ousam profundar as cousas antigas e temem
conhecê-las_: sabem que lhes não são favoraveis. Querem crer que sempre
se viveu como hoje, porque não querem mudar de vida, como se nos fosse
proveitoso enganar-nos a nós mesmos, ou se a verdade podesse trocar-se
em mentira á força de averiguações. Graças a Deus, a fé christan passou
pelo chrysol; o que ella _teme_[23] é que não a conheçam.
«A outra especie de pessoas credulas em demasia são christãos sinceros,
mas fracos e escrupulisadores, que á propria sombra da religião
respeitam, e sempre receiam crer de menos. Falta a uns a instrucção;
cerram os outros os olhos, e não querem fazer uso do entendimento. É
para os taes objecto de devoção crer quanto escreveram os auctores
catholicos e quanto crê o ignorante vulgo. A meu vêr, a _legitima
devoção consiste em prezar a verdade e a pureza da religião, e em
observar, primeiro que tudo, os preceitos expressamente estabelecidos na
sagrada escriptura_. Ora, vemos que S. Paulo recommenda repetidas vezes
a Tito e a Timotheo que evitem as fabulas, predizendo tambem que uma das
desordens do fim do mundo será o affastarem-se os homens da verdade para
se aterem a crendices; vemos que as fabulas eruditas não merecem menos
desprezo a S. Pedro que os contos de velhas de S. Paulo; e do mesmo modo
que elle condemna as fabulas judaicas, teria condemnado as christans, se
já então as houvesse. Que dirão a isto aquelles que a timidez torna tão
credulos? Não terão escrupulo em menosprezar semelhante auctoridade?
Dirão que nunca houve fabulas entre os christãos? Seria desmentir a
antiguidade em peso...»
«A critica é portanto, necessaria. Sem deixar de respeitar as tradições,
deve averiguar-se quaes são dignas de credito; devemos fazê-lo, até, se
não queremos desacatar as verdadeiras, confundindo-as com as falsas. Sem
que duvidemos da omnipotencia de Deus, podemos e devemos examinar se os
milagres estão bem provados, para lhe não levantarmos falso testemunho,
attribuindo-lhe os que elle não fez.»
Eis como pensava o grande historiador ecclesiastico ácerca dos milagres,
estribado nos livros que Deus inspirou. Quem será, pois, o impio, o
incredulo? O que seguiu os conselhos dos apostolos e as doutrinas dos
homens mais piedosos e sabios do gremio catholico, ou aquelles que
esquecidos dos deveres, não digo do sacerdocio (porque neste caracter, o
seu procedimento não tem nome), mas do simples christão, ousam perguntar
ao historiador sincero: «_Se é necessario, se é util que o historiador
se constitua campeão acerrimo contra essas tradições que deturpam a
historia?_ e que respondem:--_É um arrojo mui imprudente e reprehensivel
no historiador semelhante intento. Que precisão, que vantagem ha em
destruir as crenças theocraticas[24], que uma tradição de seculos fora
radicando no coração do povo? Nenhuma ha:_» e depois accrescentam esta
maxima impia de Laharpe--«_a politica sabia e devia tirar partido do
poderoso movel da geral crença, cujos effeitos são geralmente bons em
todo o governo, mesmo quando a crença é erronea!_» Não peço a v.. tão
cavalheiro e tão indulgente para comigo; peço ao homem que mais me
odiar, mas que conserve um resto de pudor, que seja juiz entre mim e os
desgraçados que não se envergonham, christãos e sacerdotes, de invocar
contra a Historia de Portugal taes principios e taes maximas, e que
insultam, não a mim, nem o meu livro, mas os apostolos, mas a biblia,
mas os escriptores mais sabios, mais respeitados do catholicismo.
Mancebos, cujos corações generosos a indignação póde desvairar! No meio
destas saturnaes hediondas que vedes passar; no meio dos gritos
descompostos da hypocrisia, que, embriagada de colera, deixa tombar dos
hombros seu velho e já tão roto manto, e nua e vinolenta pragueja a
verdade, atira com a fé aos pés da politica, rasga as sacras paginas,
maldiz as cinzas dos sanctos, dos martyres, e dos sabios, não volteis,
cheios de horror e de tedio, as costas ao Calvario. Não! A philosophia,
a honesta liberdade do pensamento, bem vedes que estão sanctificadas no
livro dos livros, O Christo foi o Deus da verdade. Se ao entrardes no
templo ouvirdes dizer que a mentira é sancta, que o povo só póde ser
virtuoso se crer em falsos milagres, saí, porque o templo está polluido
pela blasphemia e pela calumnia; mas não renegueis da cruz. A cruz está
pura; a cruz será eterna. Se esta gangrena que corroe o sacerdocio
chegasse, o que não creio, a corrompê-lo inteiramente; se não achassemos
uma ara, juncto da qual orassemos _em espirito e verdade_, a cruz lá
está hasteada nos cemiterios, sobre os ossos de nossos paes, para nos
irmos abraçar com ella: os mortos não tem ouro, os mortos não são
festeiros, que paguem para se lhes falar a sabor: ahi não se tem
blasphemado.
Mas, reprimindo a amargura que deve causar a todo o christão sincero o
ver sacerdotes sacrificarem assim a conveniencias mundanas o verbo de
Deus, e semelhantes ao apostolo desleal contarem e recontarem o preço
por que o venderam, acolhamo-nos ás placidas discussões da sciencia, e
vejamos, como já disse, as mais importantes dessas regras que o pio e
douto Fleury punha a si proprio para evitar os erros da nimia
credulidade.
«Não tenho em conta de provas, senão o testemunho dos auctores
originaes, isto é, daquelles que escreveram _contemporaneamente, ou
pouco depois_. Porque a memoria dos successos não póde subsistir por
muito tempo sem ser escripta. _Bastante será se durar um seculo._ O
filho póde lembrar-se passados cincoenta annos do que o pae ou avô lhe
referiram cincoenta annos depois de o haverem presenciado. Os successos
que tem passado por varias gerações não obtem a mesma certeza: cada qual
lhes vai accrescentando alguma cousa de sua lavra, talvez sem o pensar.
_É por isso que as tradições vagas de factos muito antigos, que tarde ou
nunca se escreveram, nenhum credito merecem_, principalmente repugnando
a factos provados. _Nem se diga que as historias pódem ter-se perdido;
porque, dizendo-se isso sem provas, posso tambem eu affirmar que ellas
nunca existiram._ O mesmo direi dos escriptores que escreveram successos
anteriores a elles muitos seculos; _se não citam os auctores d'onde os
tiraram, temos o direito de desconfiar de que acreditaram de leve os
rumores vulgares_.....»
«Os proprios auctores contemporaneos não devem adoptar-se sem exame...
deve averiguar-se bem se o escriptor é digno de fé, quasi como quem
inquire testemunhas n'um processo... _O que se encontra em cartas, ou em
outros diplomas da epocha, deve ser preferido ás narrativas dos
historiadores._»
Até aqui Fleury. Para estas largas citações preferi dous homens de
indubitavel sciencia e de catholicismo insuspeito. V.. sabe que eu
poderia tambem citar escriptores da primeira ordem, pagãos ou
protestantes, mas cuja auctoridade nem por isso seria menor n'uma
questão que evidentemente não interessa os dogmas da nossa fé. Poderia
invocar a bella sentença de Cicero: _«Quem ignora que a primeira lei da
historia é não ousar dizer a menor falsidade, e a segunda não nos faltar
jámais valor para dizermos a verdade?_» É certo que uma parte do clero
português do seculo XIX se ergueria para lhe responder:--«_Ignoramo-lo
nós._»--Eu poderia tambem repetir as palavras do luminar da critica no
seculo XVII, as palavras de João Leclerc:--«Quando se escreve a
historia, _sobretudo de tempos antigos_, não é licito dissimular a
minima cousa; porque a verdade, sem ser nociva aos mortos, aproveita
muito aos vivos; e pelo contrario a dissimulação, inutil para aquelles,
é profundamente damnosa a estes.»--Não me quiz aproveitar dessas
auctoridades summas, porque um não era christão, outro não era
catholico. Parece-me que é levar longe o escrupulo. E todavia, o
protestante Leclerc estribava-se na opinião de S. Isidoro
Pelusiota--«Aquelles--diz o sancto--que com artificiosas palavras
encobrem a verdade, muito mais desgraçados me parecem de que os que não
a comprehenderam. Porquanto, os que por curteza de engenho não a
alcançaram, estes não são talvez indignos de desculpa; mas os que, sendo
dotados de agudeza, investigaram a verdade e criminosamente a occultam,
commettem mais grave e imperdoavel peccado.»
Mas, apesar de catholicos e pios, Mabillon e Fleury eram sobretudo
eruditos. Haveria nelles menos luzes theologicas? Serão os theologos de
profissão mais indulgentes para com as lendas e tradições não provadas?
Exigirão, ao menos em referencia á historia da igreja, maior credulidade
nos que a estudam ou escrevem? Ouçamos o celebre Melchior Cano, o qual
ninguem accusará de excessivo amor pelos fóros e liberdades do
raciocinio: eis algumas das suas observações ácerca do credito que deve
dar-se ás tradições infundadas.
«A principal regra (para distinguir as narrativas falsas das
verdadeiras) deduz-se da probidade e inteireza humanas; regra
perfeitamente applicavel quando os historiadores _testificam terem
presenciado os successos que narram, ou terem-nos sabido daquelles que
os presenciaram_...»
«É cousa averiguada que esses que escrevem fingida e enganosamente a
historia ecclesiastica não podem ser gente boa e sincera, e que toda a
sua narrativa é tecida _para d'ahi tirarem lucro_, ou para persuadirem o
erro; _torpes no primeiro caso_, perniciosos no segundo. Justissimas são
as queixas de Luiz Vives ácerca das historias inventadas no seio da
igreja; _prudentes e graves as arguições que dirige áquelles que julgam
obra pia fazerem de mentiras religião_, cousa altamente perigosa e
profundamente inutil. Do mentiroso nem a propria verdade ousamos
acreditar. Por isso _os que pretendem concitar os animos ao culto dos
bemaventurados com falsos e mentirosos escriptos, nenhum outro resultado
tirarão, talvez, se não negar-se fé ás cousas verdadeiras por causa das
falsas, e tornar-se duvidoso aquillo mesmo que referem com severa
consciencia auctores de inteira veracidade_.»
Preciso de implorar toda a indulgencia de v.. para transcrever em
seguimento a esta passagem, admiravel de cordura e de legitima piedade,
outro bem diverso extracto. Juro que não o faço com o intento de
humilhar os homens sinceros e honestos, a quem, a meu vêr, cega um erro
deploravel. É para vingar a religião injuriada; é para dar ao paiz um
desses espectaculos repugnantes, mas salutares, a que os lacedemonios
recorriam para evitar um vicio hediondo, mandando assistir um escravo em
completa embriaguez ao jantar commum da mocidade d'Esparta. Só advirto
que a passagem é concepção de um sacerdote, que celebra por certo
tranquillamente o tremendo sacrificio do altar, sem que em todas as
paginas do missal[25] leia, escriptas em letras de fogo, estas palavras
que Jesus, o inimigo da mentira, dizia aos escribas e phariseus de outro
tempo:
«Hypocritas! Bem prophetisou ácerca de vós Isaias, quando disse:
«Esta gente honra-me com os labios; mas o seu coração está affastado de
mim.»
Eis a inqualificavel passagem, que, ainda uma vez, peço venia de lançar,
depois das doutrinas de Melchior Cano, n'um papel que é dirigido a um
homem tão delicado como v..
«Os historiadores têm advertido que os factos maravilhosos, os prodigios
singulares, que registavam em seus escriptos _não eram fundados senão em
rumores populares_; outras muitas vezes tem-nos tambem referido sem esta
precaução, já porque _elles mesmos fossem povo a tal respeito_... já
porque elles não julgassem dever abalar a crença vulgar; bem convencidos
que á sombra de um prejuizo repousava ás vezes uma verdade util, a que
talvez tivessem vergonha de prejudicar.»
«Eis aqui os _dictames prudenciaes_, adoptados pelos mais distinctos
historiadores, ácerca dos successos de caracter maravilhoso, que devem
dirigir todo o escriptor sensato. _O contrario é querer campar por uma
anomalia extravagante e ridicula..._»
«Se, porém, gravemente offende o melindre patriotico de uma nação
aquelle que simplesmente contradiz os pontos _theocraticos_ das suas
tradições historicas constantemente recebidos e venerados; quanto não se
torna mais altamente _réu d'este attentado_ aquelle escriptor, que não
só os nega, mas tem a _asquerosa villania_ de á cara descuberta os vir
insultar? Se alguem ha no orbe litterario que mais demonstrativamente
tenha commettido _tão reprehensivel e extranho excesso_, é por certo o
auctor da carta aviltante, a respeito da Apparição de Christo a D.
Affonso Henriques. _É uma das ulceras mais pustulentas que conspurcam e
aviltam esse escripto sandeu_, que rancorosamente a impropéra...»
«Como é crivel que uma fabula... fosse sustentada como facto verdadeiro
por seculos...? _Quando, porventura, o tivesse sido, teria, não receio
dizê-lo_, por effeito dessa universal crença dos sabios, _perdido a sua
natureza e deixado de o ser!!!_...»
Basta! Refujamos deste hediondo espectaculo, para continuarmos a
averiguar tranquillamente se os theologos de profissão concordam com os
eruditos de reconhecida piedade nas bases da critica historica. Ainda
algumas palavras de Melchior Cano.
«Achareis outros, não tão ineptos, mas quasi tão imprudentes, que não
buscam a verdade das cousas onde a deviam buscar, mas naquelle logar
onde é raro encontrá-la, _em aereos e vagos rumores_. Acontece isto
frequentemente aos inconstantes e leves de cabeça; _porque os homens
graves e severos não costumam andar á caça dos dictos vãos do vulgo_.»
Desçamos já aos fins do seculo XVIII, quando a incredulidade corria como
lava ardente pela face da Europa, e devorava as crenças mais sanctas e
legitimas em milhares de corações. Vacillou, acaso, por isso a critica
dos homens probos e pios nos seus principios de severidade? No meio de
tantas ruinas, quizeram elles salvar com os restos do edificio a sua
falsa miragem? V.. o julgará pelas doutrinas de muitos varões religiosos
dos ultimos tempos, inteiramente accordes com as dos que os haviam
precedido. Por exemplo, o theologo piemontês Denina, diz-nos:
«Acontecem algumas cousas fóra da ordem natural, que, de per si só, são
incriveis... a esta categoria pertencem, na igreja de Deus, os milagres,
os quaes, _nem é licito rejeitar na sua totalidade, nem se devem
acceitar todos sem selecção_...»
«Pertence á prudencia do historiador _nada escrever, que não saiba por
si proprio, ou não se estribe na auctoridade de pessoas fidedignas_,
cumprindo-lhe, não menos, ser pouco credulo. Mas _ninguem póde ter
conhecimento do que narra, se não viveu no tempo em que os factos
aconteceram; nem sabê-los de pessoas fidedignas, se estas não os
presenciaram_; nem escapa de credulo, se não explicar e expender as
razões, causas e circumstancias do que relata. Auctores que assim o
fazem _nenhum credito merecem_...»
«Nem tudo quanto o historiador relata do seu tempo se ha-de acreditar;
salvo constando que fôra curioso em indagar e explorar...»
«Se o historiador referir cousas, não do seu tempo, mas succedidas
muitissimo antes, dar-se-lhe-ha credito, _se individuar os auctores
d'onde as tirou_, sendo _aliàs daquelles que as podiam saber_...»
«Não duvido de chamar _máu historiador_ a todo aquelle que devendo ter
por norma o não ousar dizer a menor falsidade, _nem faltar-lhe animo
para dizer qualquer verdade_, encubrir esta aos leitores, _seja por que
motivo for_...»
Assim pensavam os theologos d'Italia nos fins do seculo passado: assim
pensavam tambem os theologos catholicos da Allemanha, ou antes do paiz
mais religioso d'ella, a Austria. Citarei dous, um dos quaes, ou ambos,
a nossa universidade honrou, escolhendo as suas instituições de historia
ecclesiastica para compendios nas faculdades de theologia e de direito
canonico. Falo de Gmeiner e Dannenmayr. As secções desses compendios
relativas ao _criterium_ da verdade historica nada mais são do que o
desenvolvimento das doutrinas de Cicero, de Mabillon, de Fleury, de
Melchior Cano, de Riegger, de Leclerc, de Muratori, de Baumeister; em
summa de todos os criticos, historiadores, e philosophos, que falaram
ex-professo ou accidentalmente da crítica historica. Andam esses livros
nas mãos de todos, menos nas do clero ignorante e corrupto, porque este,
coitado, não sabe ler. Não serei, por isso, demasiado extenso em
citá-los, escolhendo apenas as passagens mais frisantes, e que fazem
sobretudo ao intento.
«Como os narradores--diz Gmeiner--por falta de _habilidade_ sufficiente,
ou de sciencia, nos _possam_ enganar, ou por falta de _sinceridade_, ou
por vontade nos _queiram_ illudir, só podêmos acquiescer ao seu
testemunho, se não houver razões sufficientes para duvidar da sua
habilidade ou sinceridade.»
«A auctoridade das testemunhas não é uma e a mesma, e portanto deve
attender-se a esta diversidade. Observa-se ella 1.^o em relação aos
sentidos, 2.^o em relação ao entendimento, 3.^o em relação á vontade. Em
relação aos sentidos, essas testemunhas ou são de vista ou de ouvida.
_As de ouvida ou são coevas, ou não coevas mas que ouviram aos coevos o
que narram_...»
«D'aqui se segue, _que pouca fé deve dar-se áquillo que os escriptores
ou absolutamente contemporaneos, ou quasi contemporaneos deixaram de
mencionar_...»
«A verdade dos conhecimentos historicos não depende de modo nenhum da
abundancia dos historiadores, visto que _não provém maior certeza a um
facto historico de ser relatado em livros de muitos auctores mais
modernos, cada um dos quaes foi copiando o que outro tinha dicto. Todos
elles junctos não valem mais do que o primeiro que o referiu_...»
«A consideração do paiz em que o escriptor viveu, e do tempo em que
escreveu importa muito em relação ao seu intuito de falar verdade.
N'alguns paizes a liberdade de escrever é franca; n'outros opprimida;
n'outros, emfim, ha premios para a lisonja, odio e castigo para a
verdade... Ensina-nos a historia que os escriptores lisonjeiros da curia
romana receberam ás vezes em premio _de suas fadigas_ o barrete
cardinalicio ou a dignidade do episcopado. _Naquellas provincias onde
vigorou o terrivel tribunal da inquisição, a fogueira estava prompta
para a verdade._»
«Não faltaram impostores e falsarios, que trabalharam em alterar varias
passagens nos antigos monumentos, e que tiraram a uns e accrescentaram a
outros.»
Consinta-me v.. que ainda transcreva poucas linhas do theologo
Dannenmayr:
«Para tirarmos proveito... da historia ecclesiastica--diz elle--devemos
principalmente ter em mira, _que nem se nos inculquem fabulas sobcolor
de verdades, nem consideremos como duvidosos factos absolutamente certos
e largamente provados._»
Tenho talvez sido prolixo. Mas era necessario estabelecer uma doutrina,
uma norma, por onde os animos imparciaes, e ainda os prevenidos, mas
sinceros nas suas prevenções, houvessem de julgar-me, não tanto no foro
da sciencia, que era o meu foro, que era aquelle para onde eu tinha
direito de trazer o litigio, mas nó da mais restricta piedade. Em these,
a contenda dos que blasphemam contra a verdade, que fazem a apologia (e
que apologia, meu Deus!) das tradições fabulosas, não é comigo; é com os
apostolos, com os sanctos, com os historiadores do catholicismo, com os
theologos, com todos aquelles e com tudo aquillo a que mais importava á
hypocrisia mentir acatamento nesta comedia beata. A tonta e imprudente
não se lembrou de que lhe caía a mascara, e de que alguem poderia
levantá-la para a entregar ao povo, que nos seus grandes instinctos de
justiça lhe fustigaria as faces com ella. Na hypothese, no que me diz
respeito, o meu dever é provar aos homens sinceramente pios que,
rejeitando falsas lendas, não ultrapassei os limites de uma crítica
irreprehensivel. Será esse o objecto da carta immediata, que em breve
espero dirigir a v.. Nas seguintes darei razão das minhas opiniões
ácerca da maioria do nosso clero, e ácerca da curia romana.
Compelliram-me a isso; fá-lo-hei gemendo. Quizeram que o paiz os
conhecesse: hão-de ser satisfeitos.
Emquanto os ecclesiasticos virtuosos e instruidos choram em silencio a
vergonha da sua classe, e emquanto os prelados dormem tranquillos nas
suas cadeiras episcopaes, Deus salve a igreja portuguesa dos tristes
dias de tempestade!


IV
SOLEMNIA VERBA

SEGUNDA CARTA
AO SR. A.L. MAGESSI TAVARES
(_Novembro, 1850_)

Na minha antecedente carta deixei eu, ou para me exprimir com mais
exacção, deixaram muitos e mui piedosos escriptores catholicos apontadas
as principaes regras da critica, em relação ás fontes historicas. Dessas
regras resulta o que a boa razão está por si indicando; que é necessario
premunir-nos contra a credulidade, não só por honra da sciencia e pela
consideração do proprio credito litterario, mas tambem, o que é mais
grave, para não deslizarmos da doutrina dos apostolos, inculcada nos
livros sanctos. O mais necessario canon, em que de certo modo todos os
outros se consubstanciam, é o atermo-nos unicamente aos testemunhos
synchronos ou quasi synchronos, aos testemunhos daquelles que
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