Opúsculos por Alexandre Herculano - 11

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trocam-nos por cavalgaduras; outros entregam-nos aos mussulmanos em
resgate de captivos: todos podem ser separados da propria familia e do
campo que cultivaram».
N'esta exposição ha uma inexacção chronologica: a doutrina que eu
estabeleci não é que a adscripção se tinha já substituido á servidão
quando occorreu o alevantamento de Pelaio: é que este alevantamento e a
fundação do reino de Oviedo trouxeram de necessidade essa transformação.
Sejam quaes forem a differença ou a semelhança entre o meu modo de
pensar e o sentir do sr. Muñoz sobre a servidão gothica, não é ahi que
está a profunda divergencia entre nós. A divergencia completa refere-se
aos tempos posteriores á invasão dos arabes. É, até, o que se deduz do
titulo do opusculo do sr. Muñoz: é a essa épocha que verdadeiramente se
refere o trabalho publicado na _Revista de Ambos-Mundos_. Eis as suas
palavras: «Um escriptor... do vizinho reino de Portugal estabelece a
doutrina de que a servidão se distinguia, _na épocha de que tractamos_,
em estar vinculada ao solo, não admittindo outra classe de servos senão
a dos adscriptos á gleba. A seu vêr não existia nenhuma outra servidão
pessoal senão a dos arabes captivos na guerra, o que cremos não ser
conforme com o que o mesmo escriptor diz n'outra parte, isto é, que o
serviço domestico dos senhores e nobres parece ter sido desempenhado,
sob o dominio leonês, por membros das familias adscriptas, e que este
serviço se converteu n'um acto espontaneo no seculo XIII. Se os homens e
familias podiam contra sua vontade ser separados da gleba, onde se
achavam estabelecidos, para o serviço domestico, não podiam chamar-se
adscriptos, porque este nome traz comsigo a idéa de inamovibilidade do
colono do torrão que cultiva. Além d'isso, a sua opinião não concorda
com os monumentos da nossa historia.»
N'outra parte do opusculo do sr. Muñoz leem-se as seguintes passagens,
em que elle estabelece positivamente a sua theoria relativa á servidão
dos tempos neo-gothicos. «A condição dos servos era indubitavelmente a
de cousas. Podiam ser vendidos ou dados como um animal domestico, como
uma alfaia... Esta opinião, que sustentámos n'uma obra publicada ha
annos, foi impugnada pelo sr. Herculano n'uma extensa nota sobre o
caracter da servidão na monarchia néo-gothica... Na monarchia
néo-gothica continuaram os servos a ser o mesmo que na dos godos... E se
em Asturias e em Leão se encontram vestigios de servidão diversa da dos
adscriptos, poderão julgá-lo os que examinarem os documentos que já
publicámos e os que damos agora á luz.»
Effectivamente aos documentos impressos na _Colleccion de Fueros
Municipales_, o sr. Muñoz ajuncta muitos outros tendentes, segundo crê,
a corroborar a sua doutrina. Que antes de entrar na apreciação delles,
me seja permittido fazer breves reflexões.
O sr. Muñoz, limitando o debate aos textos dos documentos pospôs os
factos sociaes e politicos de que deduzi, digâmos assim _à priorì_, a
necessidade de uma profunda alteração das classes servis nas origens da
sociedade néo-gothica. Os factos podem não ser como eu os expús, ou as
consequencias que delles tirei ser inexactas, ou finalmente essas
consequencias não ter tido força bastante para mudar a situação
d'aquellas classes: podem peccar de muitos modos as largas observações
que fiz a este proposito no terceiro volume da Historia de Portugal, e
que tentei resumir em poucos periodos deste modesto trabalho. Mas seria
licito deixar ou esquecidas ou inconcussas essas ponderações? O methodo
que segui foi estudar os acontecimentos, examinar qual devia ser a sua
influencia na condição dos servos, e verificar se os documentos
confirmavam _à posteriori_ as illações deduzidas dos mesmos
acontecimentos. Bem sei que, prevenido por essas illações, era possivel,
era até facil, se quizerem, apreciar preoccupadamente os documentos; não
poderia, porém, o sr. Muñoz, interpretando-os sem attender aos factos
geraes, ás consequencias naturaes dos successos historicos, ás leis
moraes que regem as phases das sociedades, dar-lhes uma significação
diversa da verdadeira? Foi, se não me engano, o que de feito lhe
succedeu.
É essa justamente uma das difficuldades capitaes dos trabalhos
historicos relativos á idade media. O historiador tem de attender
constantemente á acção e á reacção mutuas dos factos politicos e dos
factos sociaes uns sobre os outros para d'ahi deduzir factos
desconhecidos; tem de substituir por illações fundadas nas leis que
actuam nas sociedades humanas, independentes da vontade dellas, o
silencio tantas vezes inopportuno dos monumentos. Quando estes existem e
são genuinos, claros e precisos, sem duvida constituem o guia mais
seguro para determinar os factos, e se as illações que tirámos os
contradizem, é necessario confessar que os principios eram inapplicaveis
á hypothese, ou que se applicaram mal. Mas, abstrahindo da questão de
genuinidade, são a clareza e a precisão qualidades vulgares nos
documentos dessas épochas tenebrosas? O sr. Muñoz sabe tão bem como eu
quão raros são os que achamos com taes condições; quantos annos, quantas
vigilias é necessario applicar ao estudo dessas fontes historicas para
nos habituarmos a comprehendê-las. Á difficuldade, que resulta das
referencias a cousas vulgares no tempo em que o documento se redigiu, e
que actualmente são desconhecidas ou conhecidas imperfeitamente,
ajuncta-se a lingua barbara, ás vezes horrivelmente barbara, que nelles
se empregava, mistura monstruosa de latim de todas as epochas com uma
linguagem vulgar que hoje se pode reputar morta, tão transformada se
acha nas linguas modernas da Peninsula: accresce a isto a differença
profunda entre os homens daquelle tempo e os do nosso, no modo de
conceber e exprimir as idéas; ajuncta-se a tendencia, quasi invencivel,
para vermos as cousas da idade media através do prisma dos habitos, das
opiniões, dos costumes, e direi, até, das preoccupações actuaes.
Subjugar esta tendencia é difficil; porque presuppoem um esforço de
abstracção, de que não são capazes ás vezes os mais robustos espiritos.
Mas, vencidos todos estes obstaculos, resta ainda a vencer o que resulta
da comparação dos proprios documentos, especialmente quando nelles
estudamos as instituições, a organisação da sociedade. É ahi que o
talento historico tem de passar por mais dura prova, e onde o
discernimento nas apreciações precisa de ser mais subtil. A idade media
não procedia sempre como nós das idéas geraes para a applicação
especial, ou antes possuia poucas idéas geraes. Os costumes, as
instituições, os usos, os factos tinham principalmente o caracter
individual, local. Essas poucas idéas geraes que havia eram pela maior
parte mal circumscriptas, fluctuantes. D'aqui as antinomias nas
doutrinas, a contradicção frequente nos factos. Na verdade o senso
moral, a tendencia instinctiva para a generalisação produziam a maior
parte das vezes em contraposição ao desordenado, ao repugnante, as
analogias ou a identidade de factos, quando se davam as analogias ou a
identidade de circumstancias; mas o phenomeno era mais casual do que
intencional, e nem por isso faltavam as excepções, a desharmonia, quando
as paixões, os interesses ou a inexperiencia vinham augmentar a confusão
natural dos tempos barbaros. Saber deduzir os caracteres geraes de uma
épocha, debaixo dos seus diversos aspectos, não dos principios que
guiavam os homens na vida practica, porque a maior parte das vezes não
os havia, mas dos factos isolados, dos monumentos especiaes; differençar
a regra da excepção, regra e excepção, que não raro existem só por uma
abstracção para nós, e que não existiam para elles, eis a summa
difficuldade no estudo dos documentos, da legislação, e das memorias
historicas da idade média, mas difficuldade que cumpre superar para se
escrever de modo util a historia daquellas obscuras éras.
Longe de mim a pretensão vaidosa de ter navegado sem naufragios nesse
mar d'escolhos; mas seja-me ainda permittido duvidar de que tal
infortunio me occorresse na questão do estado dos servos do VIII até o
XII seculo; seja-me licito por emquanto suspeitar que fiz fazer um
progresso á historia da Peninsula, collocando á sua verdadeira luz a
situação dessa classe durante aquelle periodo.
Como já disse, o sr. Muñoz, abstrahindo das considerações _à priori_ que
fiz a semelhante respeito, limita-se a combater a minha opinião e a
propugnar a sua com os factos que elle crê resultarem de um grande
numero de documentos que invoca: limitar-me-hei tambem por isso a
apreciar esses documentos e a examinar o que elles provam, recorrendo
sómente a outros quando o julgar indispensavel para estribar melhor as
minhas affirmativas.


III

Estabelecendo a doutrina de que o servo continúa a ser na monarchia de
Oviedo e Leão o que era entre os godos, o sr. Muñoz funda-a n'uma serie
de factos, que em seu entender resultam dos documentos e caracterisam a
condição do escravo, a posse e dominio absolutos do homem sobre o homem,
a servidão na sua fórma mais completa e humilhante, a do homem-cousa, a
do homem animal de trabalho. Estes factos consistem na venda, doação e
troca dos individuos sem dependencia de um contracto ácêrca do solo em
que elles habitam; em serem arrebatados nas guerras privadas os colonos
de herdades privilegiadas ou nobres ou ecclesiasticas, reduzidos á
escravidão dos raptores e vendidos por estes como escravos; na entrega
dos servos christãos aos sarracenos como preço de resgate de nobres
captivos (pag. 5 a 7)[73]; em exercerem os servos os diversos misteres
do serviço domestico e os officios mechanicos, sendo parte de taes
misteres incompativeis com o cultivo do solo; em viverem alguns nos
coutos de igrejas e mosteiros obrigados a serviços geraes, isto é, a
quaesquer que lhes mandassem fazer (pag. 12 a 13). Excluidos da
representação em juizo pela lei (wisigothica), que não admittia o seu
testemunho senão á falta de outras provas, não tinham acção para
perseguir um delicto contra a propria pessoa ou contra os filhos; ao
dono competia sollicitar a indemnisação do damno padecido pelo servo
como de cousa sua. No caso de homicidio, era elle quem tambem obtinha a
compensação pecuniaria; e do mesmo modo se o servo matava, feria, ou
atacava propriedade alheia, o responsavel era seu dono (pag. 15 e seg.).
Os filhos de um servo e de uma serva de diversos donos eram pessoalmente
divididos entre elles (pag. 24 e 25).
Taes são os factos sociaes que o sr. Muñoz apresenta como contrariando a
minha opinião: esses factos estriba-os nos documentos cujas passagens
correlativas transcreve, referindo-se outras vezes aos monumentos por
elle já publicados na _Colleccion de Fueros_, ou a alguns que se
encontram em outros escriptos, principalmente nos appendices da _España
Sagrada_.
Se o meu animo não fosse sincero; se eu não quizesse trazer á evidencia
o erro em que me parece laborar o sr. Muñoz, limitando-me ao que menos
importa, á defesa do meu livro, facil me seria annullar as illações
tiradas dos documentos invocados contra mim, visto que o sr. Muñoz não
nos mostra, nem talvez lhe sería possivel mostrar, que elles se referem
a servos de raça e não a prisioneiros de guerra, a sarracenos captivos
nas continuas luctas entre os reis de Oviedo e Leão e os principes
mussulmanos, ou aos filhos e descendentes desses captivos[74]. Um ponto
em que estamos ambos de acôrdo é que a sorte destes era a de verdadeiros
escravos. Das chronicas de Sebastião de Salamanca, de Sampiro, do
Silense e de outros vemos que o systema de exterminio adoptado a
principio pelos immediatos successores de Pelaio não tardou em ser
modificado, e que milhares de captivos vinham successivamente caír nos
ferros da escravidão, ou reservando-os o rei para si, ou distribuindo-os
pelos seus guerreiros. Uma parte dos edificios religiosos alevantados
por Fernando-magno foram construidos por esses desgraçados, salvos da
morte por uma politica menos deshumana que a dos barbaros reis das
Asturias.
Com um monumento, porém, tão incontroverso como explicito, eu provei[75]
que ainda no meiado do seculo XII a sorte dos mosarabes, aprisionados
com as armas na mão pelos soldados dos principes christãos, era analoga
á dos crentes do islam, sendo como elles reduzidos á escravidão. Não é
crivel que a sua sorte fosse melhor nos seculos anteriores. Ainda
suppondo que os documentos citados pelo sr. Muñoz se devessem entender
em geral como elle pretende que se entendam, ninguem poderia affirmar
que os nomes gothicos a que ahi se allude não fossem sempre e em todos
elles de captivos mosarabes ou de filhos seus e não de mouros
convertidos ou não convertidos. Tambem me parece que poderia limitar-me
a advertir que, fundando-se a minha opinião em muitos documentos, que o
sr. Muñoz não se encarrega de interpretar de um modo acorde com a sua
doutrina, e tendo, alêm disso, a meu favor as illações que tirei dos
successos politicos, poderia considerar todos esses diplomas a que elle
recorre apenas como manifestações das violencias, das excepções; como
mais uma prova da falta de caracteres constantes, de regras geraes
absolutas nos factos sociaes de uma épocha de barbaria e de
transformação.
Mas estas soluções, que talvez bastassem ao debate, não bastariam á
minha consciencia: poderiam abonar uma opinião, aliás estribada em
outros fundamentos, mas deixariam certa duvida no espirito dos que
estudassem o assumpto. Desçamos, por isso, á analyse dos factos e
documentos a que o sr. Muñoz recorre para assentar a existencia da
escravidão pessoal como regra nos quatro primeiros seculos da monarchia
leonesa.


IV

A venda, troca e doação dos individuos da classe servil sem dependencia
de um contracto relativo ao solo em que habitam é o primeiro facto que
affirma o sr. Muñoz, e que estriba nos seguintes documentos:
1.^o Carta de doação á sé de Oviedo por Affonso II em 812. Incluem-se
entre as dadivas _mancipia, id est, clericos sacricantores_, dos quaes
um é presbytero, outro diacono, e os mais simples _clericos_, talvez
ostiarios, psalmistas, exorcistas, etc. Alguns, declara-se terem sido
comprados pelo rei. Os outros _mancipia_ são seculares, declarando-se
tambem que alguns foram havidos por compra. Os nomes tanto de uns como
de outros são godos.
2.^o Carta de dote de 887. O noivo doa á esposa, além de alfaias, bens
semoventes e dinheiro, dez _pueros_ e dez _puellas_, 30 villas (aldeias
granjas) as quaes diz serem situadas _in Nemitos_, e enumera-as
_Generoso_, _Vivente_ etc.
3.^o Doação de marido a mulher, de 1029. Doa, entre outras cousas,
_mancipios et mancipiellas quos fuerunt ex gente hismaelitarum et
agareni_, os quaes nomeia: uns tem nomes godos, outros nomes arabes.
Além destes, doa-lhe _de avolengarum criazone parentum_ varios
individuos cujos nomes parece serem todos godos.
4.^o Carta de agnição de 962 em resultado de uma demanda entre o
mosteiro de Cella-nova e o conde Ordonho Romaniz. Versava a questão
sobre duas granjas ou aldeias, querendo o conde tirar _homines et
hereditates de jure monasterii volens eos ad servitutem abdigare_.
Apresentaram os monges os seus titulos perante elrei, e quando iam a
provar, diz o sr. Muñoz, que o rei Ramiro dera os homens que o conde
usurpava, e o bispo D. Rosendo os entregara ao mosteiro, o conde
supplicou aos magnates que obtivessem dos monges darem-lhe as duas
villas em prestamo vitalicio, _absque homines in adtonitum_, no que os
monges convieram.
5.^o Carta de agnição de 1074, em resultado da demanda entre o mosteiro
de Cella-nova e a condessa D. Guncina, que affirmava ter o rei Ramiro
tirado do testamento (predio ecclesiastico) de Vanate dez homens, os
quaes dera ao mosteiro de Porcária. Replicava o abbade de Cella-nova que
_de hodie, quod est 120 annos nunquam auditum fuit istum tale verbum_.
Julgou-se a favor do abbade.
6.^o Doação de 1094 feita á sé de Lugo por Suario Moniz de varias
_villas cum sua criacione et homines pertinentes... excepto Alvito Pepiz
et suos filios_.
7.^o Carta de arrhas de 1108 em que o noivo doa varios bens de raiz, e
alêm disso, um cavallo baio e _uno homine de creacione_.
8.^o Doação do mosteiro de Sobrado em 1118 feita pela rainha D. Urraca a
Fernando Peres e a seu irmão com todos os termos e coutos antigos e suas
pertenças, _et cum sua criacione, servos et ancillas, exceptis
quibusdam_.
9.^o Memoria da divisão de Rovoredo, sem data, caractéres do seculo
XIII. Na opinião do sr. Muñoz pertence ao seculo XI. Um certo Vermudo
Cresconiz comprara o sarraceno Sendimiro (nome godo) que fora visavô de
Diogo Erit. Este foi a Rovoredo e casou com uma mulher que era vaqueira
de Ardio Dias, uma de duas irmans, que, herdando Rovoredo, haviam
dividido entre si o predio. Veio em busca delle Pelagio Froilaz
(provavelmente herdeiro ou representante de Vermudo Cresconiz) e levou-o
comsigo. Seguiu-se uma manda entre Ardio Dias e Pelagio Froilaz, que
terminou por uma composição, em virtude da qual ficou Diogo Erit em
Rovoredo e foi dada em trôco delle uma irman da vaqueira de Ardio Dias.
Taes são os documentos de doação, vendas e escambos, exclusivamente de
individuos, que o sr. Muñoz cita em prova da inexacção da minha
doutrina.
No 1.^o documento peço que se note que as pessoas doadas são denominadas
_mancipia_, e não _servos_, e que entre elles um é presbytero, outro
diacono, e outros simples clerigos; que os seculares são tambem
denominados _mancipia_, e que todos elles tem nomes godos. Pergunto:
tolerava a disciplina ecclesiastica recebida na Peninsula naquella
epocha, que homens servos, e que continuavam a ser servos, doados ou
vendidos depois a bel-prazer de seus donos, fossem elevados não ás menos
importantes funcções do culto, mas á ordem do presbyterado e ainda do
diaconado? Não era impossivel acumular as condições da servidão e do
sacerdocio? Basta abrir o resumo dos canones da igreja d'Hespanha
publicados por Aguirre e Cenni para nos desenganarmos da impossibilidade
desta associação monstruosa. Todavia o facto da venda de um presbytero,
de um diacono e de outros clerigos deu-se no principio do seculo IX,
como o prova este documento. Não haverá, porêm, atraz desse facto outro
ou outros que o expliquem?
A designação de _mancipium_, applicada a individuos dos mais elevados
gráus do sacerdocio, o presbyterado e o diaconado, é não menos singular.
Notei mais de uma vez no meu livro[76] que a palavra _mancipium_, entre
os godos, sem deixar de se tomar ás vezes na significação lata de servo,
significava de ordinario o servo infimo, o _escravo_, o individuo
reduzido á ultima degradação; significava antes uma _situação_ de
aviltamento do que uma _condição_ originaria. São notaveis a este
proposito dous logares do codigo wisigothico, a lei que tracta dos
_escravos dos servos fiscaes_, e a que tracta dos _mancipia_ dos judeus,
quer _ingenuos_, quer servos. Antes de mim já Masdeu tinha feito com
pouca differença a mesma observação. Entre os romanos _mancipium_ era
synonimo de _servus_, mas a origem dos vocabulos era diversa: _servus_
de _servire_; _mancipium_ de _manu captum_, do homem aprehendido, do
prisioneiro reduzido á á escravidão. Evidentemente a designação de
_mancipium_ serviu a principio para indicar o captivo, o individuo a
quem se deu a vida, que se lhe podia tirar, para o collocar na situação
de um animal de carga, de uma alfaia; representou um facto accidental,
personalissimo, differente da servidão herdada, da servidão de raça, ou
para exprimirmos com dous vocabulos modernos duas idéas semelhantes, mas
diversas, o _mancipium_ era servo, mas _escravo_. Na Russia ha _servos_;
na America ha _escravos_. Note-se, porêm, que com este exemplo não quero
estabelecer analogia completa entre a distincção primitiva e a
distincção actual.
Baste, porém, que _mancipium_ servisse entre os godos para exprimir
especialmente a mais vil servidão, a escravidão. Não teria a palavra na
monarchia neo-gothica este mesmo valor especial, embora ás vezes pela
fluctuação da linguagem (fluctuação que existe sempre, mas que é
grandissima nas epochas barbaras) se tomasse como synonimo de servo, por
isso que, n'um grande numero de relações, a sorte de um e a sorte de
outro eram identicas? No 3.^o documento que cita o sr. Muñoz, os
individuos doados são denominados _mancipios_ e _mancipiellas_, e
exprime-se que são da gente ismaelita e agarena; que são captivos. N'uma
carta de doação á sé de Lugo[77] de 897 Affonso III doa-lhe, além de
outras cousas, _mancipia, quae ex hismaelitarum terra captiva duximus_.
No meio de uma lucta odienta e atroz, como foi durante o seculo VIII e
ainda durante o IX a das monarchias de Oviedo e de Cordova, é natural, é
crivel, sequer, que a sorte dos prisioneiros de guerra que não eram
passados á espada fosse inteiramente a mesma dos servos de raça, classe
a que, além de outros, um documento de 985 chama _servos
originales_[78], por infima que se reputasse a condição destes? E não
haveria um meio de expressar por palavra ou por escripto a differença
das duas situações, quando fosse necessario fazê-la sentir?
É indubitavel, á vista das chronicas coevas e dos documentos, que os
reis de Oviedo e Leão e os seus capitães, alargando os limites da
monarchia ou reduzindo o poder mussulmano por victorias repetidas, por
saltos e correrias inesperadas, por devastações e incendios, conduziam
annualmente para o interior das provincias ovetense-leonesas milhares e
milhares de captivos. Devemos acaso suppôr que nenhum desses contractos
sobre individuos pessoalmente escravos, em que se calla a procedencia
dos mesmos individuos, se refira a prisioneiros de guerra, e que entre
estes não houvesse muitos mosarabes? A pretensão parece-me que sería
insustentavel. Embora eu não queira, nem seja preciso explicar por esse
facto muitos dos documentos citados pelo sr. Muñoz, ha outros em que
semelhante explicação é a mais simples e natural, e a este numero
pertence indubitavelmente a doação de 812.
Civilmente, socialmente, os mosarabes eram sarracenos. Do modo como essa
grande maioria da população romano-gothica buscava em geral assimilar-se
aos conquistadores temos sobejas provas nos escriptos contemporaneos de
Alvaro de Cordova, d'Eulogio, do biographo de João de Gorze, nas actas
dos martyres Voto e Felix e em outros monumentos. Os mosarabes serviam
nos exercitos mussulmanos e por consequencia combatiam contra os seus
correligionarios. Entre os altos officiaes da coroa na corte de Cordova
figuram condes godos, e apparecem-nos a cada passo magistrados,
funccionarios, prelados, sacerdotes godo-romanos nas provincias do vasto
imperio dos Benu-Umeyyas. Quantos destes, pospondo as questões
religiosas, e adoptando a tolerancia dos dominadores arabes, seriam
verdadeiramente addictos á situação politica em que se achavam, elles
que abraçavam não raro os nomes proprios, os costumes, as usanças, a
civilisação e a lingua dos mussulmanos, a ponto de esquecerem
completamente o idioma neo-latino, segundo o testemunho de Alvaro de
Cordova; elles que admittiam, até, a circumcisão, se acreditarmos o
_Indiculum_ e a biographia de João de Gorze? Não achamos nós ainda no
seculo XI os bispos mosarabes, esquecidos das funcções episcopaes, e
dedicados inteiramente á vida politica, empregarem-se no serviço profano
dos respectivos soberanos sarracenos?[79] Se nos proprios estados dos
reis de Leão a mistura dos usos mussulmanos com os christãos dava ás
vezes, nas exterioridades do culto, occasião a factos que seriam
comicos, se não fossem irreverentes[80], o que seria essa mistura entre
mosarabes e ismaelitas nos estados mahometanos?
Imaginar, portanto, que entre os milhares de captivos que annualmente
eram arrastados da Spania para os sertões das Asturias e de Leão não
vinha um grande numero, digamos assim, de _sarracenos christãos_; que
entre uns e outros captivos se fazia distincção, se poderia sequer
fazer; que os violentos e brutaes barões e cavalleiros dos reis leoneses
consentiriam em perder uma parte dos seus escravos, que exteriormente em
nada se differençavam dos restantes, dos verdadeiros mussulmanos, ainda
admittindo gratuitamente que os principes o desejassem, seria suppôr uma
cousa inacreditavel, embora não existisse o testemunho do biographo de
S. Theotonio, testemunho preciso de que a praxe era inteiramente
contraria.
Na adiantada civilisação de hoje não se comprehenderia o direito de vida
ou de morte sobre os prisioneiros de guerra, e nem sequer a escravidão
para o vencido, ou que possa haver outros prisioneiros senão
combatentes. Deste estado da civilisação derivam a distincção entre
prisioneiro e prisioneiro, e os diversos gráus de benevolencia e de
attenções para com os mais qualificados. Entre barbaros ou nas eras
barbaras, o nosso proceder, as nossas idéas actuaes a este respeito
seriam igualmente incomprehensiveis. Na verdade o senhor do captivo,
sabendo que se apoderara de um homem opulento, importante entre os
adversarios, podia por calculo de cubiça tractá-lo melhor, evitar-lhe os
padecimentos e as injurias á espera de avultado resgate. Mas a regra, o
principio, a idéa de então consistia em ser o captivo, fosse quem fosse,
como um ente novo, a cujo nascimento, digamos assim, não se tinha
opposto o gume da espada. O passado desse ente não importava para nada.
Era um animal, uma propriedade do que o captivara e que licitamente
poderia ter feito com que não existisse: era o _manu-captum_, a
acquisição, o escravo; emfim, o _homem-cousa_.
Tendo presentes todos estes factos, que o sr. Muñoz não ignora, mas que
me era necessario recordar aqui, entende-se facilmente a doação de
Affonso II á sé de Oviedo: entende-se como esses clerigos podiam ser em
parte comprados, em parte libertados pelo rei, e unidos á sé ovetense.
Eram mosarabes arrebatados, mau grado seu, por occasião de alguma
correria. Pelos canones da igreja gothica os sacerdotes viviam n'uma
especie de adscripção canonica á igreja a que pertenciam, e Affonso II,
conforme o chronicon de Albaida, foi quem restabeleceu em Oviedo as
jerarchias civis e ecclesiasticas dos godos[81]. Resgatando aquelles
individuos da escravidão, e ligando-os indissoluvelmente á sé ovetense,
respeitava as idéas do seu tempo e mantinha a antiga disciplina
ecclesiastica, embora o fizesse de modo um tanto rude. Se admittissemos,
porêm, a hypothese de que elles eram servos originarios semelhantes aos
servos dos tempos gothicos, que como taes haviam recebido ordens sacras,
que, depois de doados á sé de Oviedo, continuavam a ser o que eram,
segundo a theoria do sr. Muñoz, isto é cousas e não pessoas, e que,
portanto, podiam ser destinados pelo bispo Adaulfo para exercerem os
mais abjectos misteres, o diploma de 812 ficaria não só repugnando á
historia, mas sendo, alêm disso, um indecifravel mysterio.
Este documento não me escapou quando redigia o VII livro da Historia de
Portugal; mas tinha de attender a muitos outros, de condensar muitos
factos sociaes em poucos periodos. Não podia descer á analyse minuciosa
delle. Estava tão convencido da verdade da doutrina que estabeleci, que
não o julguei sufficiente para a destruir. O leitor avaliará se elle
effectivamente a destroe. Suppús que, quando muito, era uma das
anomalias tão frequentes nos factos sociaes dos tempos barbaros, a
manifestação da anarchia que reinava ainda nas idéas e nos factos. A
analyse parece-me provar que nem sequer isso era.
O 2.^o documento explica-se como o antecedente pela existencia
d'escravos captivos. É notavel que nelle tambem se evite a palavra
_servos_, mais generica, para se empregar a singular expressão _pueros_
e _puellas_. Parece haver a necessidade de recorrer a um vocabulo
especial para exprimir uma variedade da servidão. Além disso, este
documento parece igualmente entrar na categoria de varios outros que
citei no meu livro para provar a adhesão do servo originario á gleba,
pelo modo por que indistinctamente se empregava o nome do individuo ou o
da propriedade para designar esta. Doando trinta granjas, o doador
declara que são situadas no districto de Nemitos, e que são _Generoso_,
_Vivente_ &c. nomes proprios de individuos e não de predios.
O 3.^o documento creio servir antes para combater a opinião de sr. Muñoz
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