Opúsculos por Alexandre Herculano - 10

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tudo o mais que vem na passagem seria um rol de mentiras; porque as
consequencias materiaes desse recontro foram nenhumas. Como já disse,
Affonso Henriques voltou aos seus estados sem conquistar um palmo de
terra, e foi annos depois que submetteu a Estremadura e o Alemtéjo,
ficando no paiz os mussulmanos que curvaram a cabeça ao jugo christão.
Aqui tem o bom redactor da _Semana_ o que é e o que vale o papel da
tenda de Marrocos, que devia vir pulverisar o que eu escrevi firmado nos
monumentos coevos, e em argumentos de congruencia irresistiveis. É o
dicto vago e obscuro de um viajante moderno, dicto que se torce para se
fazer com que o pobre mouro diga aquillo em que nem sequer pensou. Que
terra esta nossa, meu amigo, em que o auctor de um livro serio é ás
vezes obrigado a acceitar o triste encargo de refutar taes miserias!
O famoso texto do viajante marroquino é reforçado com um contraforte
tirado do Abdel-halim do uso particular do auctor do opusculo; digo do
uso particular, porque nem em Conde, nem em Moura se encontra semelhante
passagem, nem no logar indicado, nem em outro qualquer. Vamos ver o
texto _inedito_ de Assaleh ou de Ibn-Abi-Zara, que o meu critico trouxe
á luz do dia:
«E neste anno 533 (8 de septembro de 1138 a 27 d'agosto de 1139)
desbaratou o general Taxefin as multidões dos christãos _nos campos de
Attibbat_; e fez perecer delles um numero extraordinario; e levou de
seus prisioneiros _seis mil captivos: em consequencia do que_ partiu
para Marrocos, e á sua chegada _lhe saiu ao encontro seu pae_, o
imperador dos mussulmanos, _que ficou em profundo desgosto e cheio de
grande susto_.»
No capitulo 33 do Karttás traduzido pelo padre Moura não vem esta
passagem. Entretanto não devo crer que o auctor do opusculo a
inventásse. Cumpre suppôr que elle se serviu de algum exemplar mutilado,
viciado, ou extremamente incorrecto da obra de Abdel-halim. Na versão de
Moura é no capitulo 40 que se contém as ultimas acções do Tachfin na
Hespanha, antes de partir para a Africa. Eis o que ella nos diz:
«No anno 532 (19 de septembro de 1137 a 7 de septembro de 1138) passou o
principe Taxefin de Hespanha para a Mauritania, depois do ter combatido
e tomado de assalto _a cidade de Segovia_, levando comsigo _seis mil
captivos_; e tendo chegado a Marrocos _veio seu pae encontrá-lo_ com
grande pompa e _se alegrou com elle_, etc.[71]»
As duas passagens são, se não identicas, por certo parallelas. Tracta-se
em ambas da partida de Tachfin para a Africa, depois de obtido um
triumpho em que captivou seis mil homens. A differença está nas
circumstancias, e _na data_. Qual dessas se deve preferir? Vejamos.
Conde refere a partida de Tachfin menos precisamente: mas põe-na como
immediata á reducção de Cuenca, a qual fixa em 531 (29 de septembro de
1136 a 18 de septembro de 1137) e assim concorda com Assaleh quanto ao
anno da partida, visto que, se Cuenca fosse reduzida nos fins de 531, a
saída do principe almoradive para a Africa devia verificar-se já em 532,
isto é, nos fins de 1137 ou nos principios de 1138.
Com esta data concorda o auctor da chronica de Affonso VII, mencionando
a partida de Tachfin para além-mar entre os successos de 1138, e
descrevendo a mensagem que lhe enviaram á Africa os defensores de
Aurelia durante o cerco posto a esse castello por Affonso VII _em abril
de_ 1139. O chronista christão vai de accordo na chronologia com os
historiadores arabes sem os conhecer, e limitando-se a narrar os factos
que _ouvira ás pessoas que os tinham presenciado_[72].
Não quero suppôr, torno a repetir, que o auctor do opusculo forjasse a
passagem que cita, ou que alterasse a data da hegira para provar que
Tachfin estava em Hespanha em julho de 1139. N'uma questão em que se tem
procurado associar á idéa de que caí n'um erro historico a de que tive
em mira deshonrar o meu paiz, tal procedimento fora duplicadamente
torpe. Todavia o _digno_ academico ainda assim tem d'escolher entre a
ignorancia e a má fé. Se conhecia a chronica de Affonso VII, a narrativa
de Conde e a versão de Assaleh por Moura, tinha que fazer duas cousas:
primeira, provar que essas auctoridades em que eu me estribava eram
insufficientes; segunda, mostrar que o seu manuscripto tinha uma
importancia, uma auctoridade tal, que as annullava. Onde o fez? Como o
fez? Acaso só porque se mandaram escrever n'uma pedra lithographica uns
poucos de caracteres arabicos ou o que quer que seja, provou-se que as
palavras que resultam da sua união são indubitaveis como o evangelho, ou
sequer que é preferivel a leitura do codice de que se tiraram á leitura
de codices já conhecidos e traduzidos por outros arabistas, que pelo
menos sabiam tanto arabe como o auctor do opusculo?
Á vista destas simples e claras reflexões, o texto de Abdel-halim citado
pelo digno academico vale tanto e prova tanto como o de Hamed-el-Nabil.
Eu, porém, acceito-o por um momento. Vamos a discuti-lo em si.
Que diz o tal texto? Que Tachfin desbaratou no campo da total destruição
(Attibbat) as multidões dos christãos; que aprisionou seis mil homens, e
que partiu para Marrocos, com o que seu pae ficou cheio de desgosto e de
susto. Onde se fala aqui em Ourique? Para entender _Ourique_ por
_Attibbat_ o auctor faz o seguinte raciocinio:--«a batalha de Ourique
foi de _total destruição_ para os mussulmanos, logo _Attibbat_ é
Ourique:»--e querendo provar que o recontro de Ourique foi uma grande
batalha, faz outro raciocinio do mesmo jaez:--«Attibbat quer dizer
Ourique, logo em Ourique houve uma _total destruição_.»--Todos os
argumentos, todas as erudições do folheto nesta parte, embora por outras
phrases, reduzem-se a isso; reduzem-se a duas petições de principio.
Depois, não é admiravel o desgosto e susto de Aly-Ibn-Iussuf vendo seu
filho voltar á Africa depois de uma victoria em que desbarata os
christãos, mata muitos, e leva seis mil captivos? Felizmente para Aly,
Tachfin não levou, em vez de seis, doze mil captivos, e não deixou o
resto passado inteiramente á espada. Se tal acontece, o pobre amir
el-moslemin caía fulminado por uma apoplexia. Até o auctor do opusculo
achou a cousa absurda. Mas como saíu da difficuldade? Dizendo-nos que o
texto arabe tanto póde significar «_Tachfin desbaratou os christãos_»
como «_os christãos desbarataram Tachfin_.» Estava eu tão desgostoso por
não saber arabe como o velho Aly por seu filho ganhar victorias, quando
veio esta declaração consolar-me. A historia é impossivel na lingua
arabe; porque a mesma phrase significa branco e significa preto; exprime
os dous factos mais oppostos. Os traductores de historias sarracenas tem
andado a debicar com a Europa: onde dizem que tal batalha foi ganhada
por A contra B, podiam ter dicto com a mesma veracidade que fora ganhada
por B contra A. Isto, meu amigo, não se discute: está discutido por si.
Depois de vermos sacrificada a logica e até o simples senso commum á
necessidade de achar um texto arabe que prove a importancia da batalha
de Ourique, o que é mais divertido é o completo esquecimento em que o
auctor do opusculo sarraceno, enlevado no seu Abdel-ha-lim _particular_,
deixa os monumentos christãos coevos que referem o successo. A chronica
lamecense, a conimbricense, a dos godos, todas dizem que o general
sarraceno era Ismar (_præside rege Smare_). Se Ismar não significa
Tachfin como Attibbat significa Ourique, segue-se que ou mentem as
chronicas coevas, ou mente o Abdel-halim _particular_, que diz ter sido
o general dos sarracenos o proprio Tachfin, ou a passagem citada não se
refere ao successo de Ourique. Daqui parece-me que não ha fugir. A
ultima explicação é sem duvida a verdadeira. Essa passagem é
evidentemente a que Moura traduziu, e Conde substanciou; passagem que se
combina chronologicamente com a narrativa da chronica de Affonso VII, e
que no opusculo apparece alterada nas circumstancias e na data. Quem a
alterou, e para que fim? Isso pertence a Deus, que vê os corações, e nos
ha de julgar a todos no dia de juizo.
Depois, como accommodar os factos, que o auctor do opusculo acceita do
seu Abdel-halim particular em demonstração da grandeza da batalha, com o
que nos diz a chronica dos godos e com o resultado daquella jornada?
Pois os mussulmanos são postos em fuga ao primeiro recontro, por um
troço de cavalleiros escolhidos (_electi milites_) ficando
entrincheirados os restantes dos poucos soldados (_paucis suorum_), de
Affonso Henriques, e Tachfin, que foge, leva seis mil prisioneiros? Que
digo eu, seis mil! Segundo o commentario do digno academico eram muitos
mais. Aquelles seis mil foram escolhidos um a um, no meio do grande
vagar que para isso tinham os sarracenos fugitivos, entre milhares de
christãos de rebotalho, aos quaes iam cortando os pescoços. As causas
determinantes da escolha (que eu deixarei nas paginas do opusculo,
porque não as consentem as paginas da _Semana_) deviam tornar os bons
dos sarracenos demasiado pechosos na selecção, e pelas minhas contas,
para apurarem seis mil como lhes eram precisos, não podiam deixar de
refugar os seus cento e noventa quatro mil, esmando pelo baixo. A mim
parece-me, salvo o respeito devido a um representante da parte sarracena
da Academia, que era melhor ter traduzido do Abdel-halim particular,
(lithographando tambem no fim do opusculo o original mourisco e
subministrando assim mais abundante alimento á pasmaceira dos parvos)
uma carta de Tachfin dirigida ao principe português, escripta ao começar
a retirada, e concebida pouco mais ou menos nos seguintes termos: «Meu
Affonso-Ibn-Errik. Estou capaz de renegar Mafoma com a grande róta que
me déste. Vou para Africa amuado, metter-me em casa de meu pae, que se
chama Aly-Ibn-Iussuf, embora os _ulmá-i_ academicos da tua terra queiram
á fina força chamar-lhe Aly-Ben-Taxefin. A guerra é guerra, e uma
batalha perdida ou ganhada não é motivo para nos desestimarmos. Eu
preciso de levar comigo em ar de prisioneiros uns seis mil rapazes
christãos airosos e bempostos. Se os podéres dispensar, far-me-has nisso
particular favor e uma acção de cortezia. Só Deus é Deus e Mohammed o
seu propheta. Aos 26 de zilkhada da Hegira 533.»--Com isto ficava tudo
explicado. Os seis mil prisioneiros tinham sido uma generosidade do
_Pharaó obdurado_, embora fingida; porque, tendo Christo acabado de lhe
asseverar que havia de vencer sempre os sarracenos, não só podia fazer
presente a Tachfin de todos os soldados imberbes do exercito, mas tambem
de quanto soldado barbudo, velho e relho, achasse alli á mão vasculhando
o acampamento, os quaes, se não prestassem para mais nada, prestariam
para bichos da cozinha do amir-el-moslémin.
Meu amigo, n'outro qualquer paiz, uma academia, cujos membros fossem
capazes de escrever opusculos destes, dissolvia-se para se reconstruir
com outros elementos, aproveitando só, e com grandes cautellas, o pouco
que ahi houvesse de aproveitar. A nossa Academia, especie de congregação
bernarda que come e dorme, acodem-lhe ás vezes á pelle estes tumores
litterarios, estas secreções eruditas, que, longe de a matarem, lhe
fortificam a compleição. Deus lhe dê uma longa vida.


DO ESTADO
DAS
CLASSES SERVAS NA PENINSULA
DESDE O VIII ATÉ O XII SECULO

1858


I

Por mais que a tradição de antigas malquerenças e o ciume da nossa
autonomia nos affaste dos outros povos da Hespanha, dos quaes os eventos
politicos fizeram, mais ou menos forçadamente, uma só nação, é certo
que, apesar de todas as repugnancias entre portugueses e hespanhoes, nas
opiniões, nos costumes, nas tendencias moraes de ambas as nações se está
revelando a cada passo uma origem commum. Postoque cada uma dellas tenha
defeitos especiaes, como os ha de provincia para provincia, dão-se
alguns tão nossos e tão hespanhoes, que de per si, sem outros
adminiculos, provam de sobejo essa communidade de origem.
Esta reflexão occorreu-me naturalmente ao começar um escripto, em que
tenho de dizer poucas palavras ácêrca do homem a quem elle é dirigido.
Ha na Academia da Historia, de Madrid, um modesto empregado, envolvido
na obscuridade da sua situação, sem cargos publicos, sem condecorações,
sem pingues sinecuras, e de que talvez se podesse dizer--sem pão--se a
Academia não o houvera encarregado das suas collecções litterarias. Este
empregado modesto, este homem socialmente obscuro, é todavia um dos
maiores eruditos da Hespanha, um dos que mais profundamente e com mais
san consciencia (dote raro nestes nossos tempos) tem cavado na rica e
tão pouco explorada mina das antigas instituições e costumes da
Peninsula, isto é, do que na historia della ha mais serio, mais
importante e mais difficil d'estudar. Falo de Thomás Muñoz y Romero, do
auctor da _Colleccion de Fueros Municipales_, obra notavel, que, sendo
de um homem só, honraria uma corporação litteraria, que a houvesse
emprehendido e executado. E todavia, esse livro importante foi
interrompido, segundo me affirmam, por falta de protecção; e Muñoz y
Romero ainda nada mais é hoje do que era ha dez annos, quando publicou
aquelle seu primeiro trabalho, o modesto official da bibliotheca da
Academia da Historia!
É o que provavelmente succederia ao livro e ao homem nesta terra, neste
fragmento da Peninsula chamado Portugal, irmão gemeo desse maior
fragmento, que chamam especialmente a Hespanha.
Na _Revista Española de Ambos-Mundos_, nos numeros correspondentes a
novembro de 1854, appareceram successivamente dous artigos, assignados
por Muñoz y Romero, sobre o estado das pessoas nos reinos de Asturias e
Leão nos primeiros seculos posteriores á invasão dos Arabes. Escriptos
como aquelles, manifestações tão brilhantes de verdadeira sciencia, não
são frequentes em publicações periodicas, ainda além dos Pirenéus. Li-os
com avidez e interesse sempre crescentes. Ahi encontrei que aprender, e
sobretudo pude emfim assentar as minhas idéas ácêrca da origem, ou antes
da denominação dos malados e das maladias, ponto em que a propria
opinião que adoptara no terceiro volume da Historia de Portugal não me
satisfazia completamente. Vi, porém, que discordavamos n'uma questão
capital d'historia; no modo de apreciar o estado das classes servis nas
Asturias e Leão durante os seculos immediatos á reacção christan, e tive
o desgosto de não poder, apesar de todas as considerações do sr. Muñoz,
abandonar a propria opinião para adoptar a sua. Ou seja por um modo
errado de interpretar os antigos monumentos, a que o meu espirito se
tenha affeito, ou porque a razão esteja do meu lado, é certo que nenhum
dos muitos documentos que o sr. Muñoz oppõe ás minhas opiniões me
pareceu contrariá-las: alguns, pareceu-me que até serviam para as
corroborar. Desde esse momento entendi que não sería absolutamente
inutil ao progresso dos estudos historicos da Peninsula expôr as duvidas
e reflexões que me occorriam sobre a materia, deixando depois aos homens
competentes comparar os dous systemas e escolher entre elles.
Quando pensava em realisar este designio, sobrevieram acontecimentos que
durante quasi dous annos me forçaram a abster-me dos trabalhos
historicos. Affastado por tão largo tempo dos meus habituaes estudos,
se, á custa de serios desgostos, aprendi muito a respeito dos homens e
das cousas do meu tempo e do meu paiz, esqueci tambem muito do que sabía
ou cria saber ácêrca dos homens e das cousas do passado. Aberto para mim
de novo o caminho dos trabalhos historicos pela força da opinião em
lucta com a immoralidade do poder, renovei esses abandonados estudos,
mas renovei-os como um dever de consciencia, como um serviço que me
exigem, como o cumprimento de um contracto tacito com o publico. O amor,
diria antes a religião ardente, com que cultivava a sciencia da
historia, perdi-o no campo de batalha. Escrever é hoje para mim o mesmo
que ser vereador, jurado, ou membro de um conselho de districto: é um
encargo e mais nada. No horisonte das minhas ambições, e Deus sabe se
falo sincero, só vejo o dia em que possa depôr a penna, e sumir-me em
completa obscuridade. Será esse o melhor da minha vida. Na situação
d'animo em que por tanto tempo me achei, a questão dos servos na
Peninsula durante os seculos medios esqueceu-me completamente. Veio
recordar-m'a, porêm, uma circumstancia casual. Tendo de examinar um
volume da _Revue Historique du Droit Français et Étranger_, passou-me
pelos olhos um artigo de M. de Rozière (julho e agosto de 1855) sobre o
escripto do sr. Muñoz, escripto que o illustre professor, a quem devo
mais de uma prova de benevolencia, resume com a sua habitual lucidez, e
cuja doutrina acceita como a mais verosimil. A doutrina, porêm,
expressamente combatida pelo auctor do opusculo sobre o estado das
pessoas nos reinos de Asturias e Leão, nos primeiros seculos depois da
invasão arabe, é unicamente a minha. É de mim que elle declara discordar
completamente sobre a natureza da servidão na monarchia néo-gothica
desde o VIII até o XII seculo. A verosimilhança da sua opinião torna
portanto menos provavel para o illustre professor da _École des Chartes_
a doutrina que estabeleci. Se a questão pendesse tão sómente entre mim e
o sr. Muñoz, demorar, ou, até, pospôr completamente a defesa da minha
theoria ácêrca da servidão n'aquelle periodo não teria grande
inconveniente. Os documentos invocados pelo sr. Muñoz e as suas
ponderações, e bem assim os documentos que eu citei e as conclusões que
delles deduzi estão ao alcance dos homens de letras da Peninsula que se
dedicam aos trabalhos historicos; e os archivos de Portugal e de
Hespanha encerram centenares de outros monumentos ainda não estudados,
que poderiam lançar nova luz sobre o assumpto. Nada mais facil, até, do
que conduzirem-nos novas investigações, a mim ou ao sr. Muñoz, a
abandonar o proprio systema, porque ambos buscamos sinceramente a
verdade. Mas desde que a materia do debate, transpondo os Pirenéus, foi
exposta a uma luz que não creio verdadeira, por um homem como Mr. de
Rozière, e a um publico privado dos meios de apreciar por si proprio os
documentos e raciocinios em que se fundam as duas opiniões oppostas,
entendo que é do meu dever publicar as observações que se me offerecem
relendo os artigos do sr. Muñoz, observações que, feitas ha dous annos,
quando estas materias eram quasi a unica occupação do meu espirito,
seriam sem duvida mais efficazes para a defesa de um systema que ainda
hoje me parece ser o que melhor se estriba nos antigos documentos, e que
ao mesmo tempo melhor os explica.
Antes de tudo cumpre determinar bem a materia controversa e
circumscrevê-la. Tanto eu como o sr. Muñoz falámos da servidão no
periodo em que por successivas transformações o homem de trabalho, o
homem escravo, o homem _cousa_ dos romanos chegou a ser a pessoa civil,
a pessoa livre, o cidadão mais ou menos humilde dos tempos modernos.
Deixando de parte maiores ou menores differenças de opinião entre nós
quanto aos tempos da monarchia gothica, ou que se possam deduzir das
nossas palavras quanto aos tres ultimos seculos da idade média,
limitar-me-hei a expôr o que contradictoriamente entendemos ácerca da
situação das classes servis do VIII até o XII seculo. Escrevendo um
artigo e não um livro, procurarei affastar todas as questões secundarias
que se ligam a esse grande facto da transformação das classes
trabalhadoras, e abstrahindo das causas e consequencias da situação em
que se acharam os servos depois da invasão arabe e da reacção asturiana
(successos coevos e quasi simultaneos) em tudo o que não fôr
indispensavel para a clareza da materia, reduzirei o discurso ao que a
razão persuade e os monumentos confirmam ácerca do facto geral da
transformação gradativa da população serva naquelle periodo de quatro
para cinco seculos.


II

O estudo reflectido dos historiadores arabes e dos monumentos christãos
da épocha da conquista e do dominio sarraceno tem feito sentir que essa
conquista e esse dominio extranho foram, na historia das invasões e da
sujeição de raça a raça, de povo a povo, entre os factos de semelhante
ordem, um dos que custaram á humanidade menos tyrannias, menos lagrymas
e menos sangue. Tem-se dado o devido desconto ás exaggerações das
chronicas e á linguagem de certos escriptores christãos contemporaneos,
aonde auctores mais modernos foram buscar os lineamentos dos seus
quadros de terror, quando ahi mesmo se encontram as provas de que os
factos não correspondem ás expressões genericas com que é descripto como
um dos mais crueis flagellos o predominio dos sarracenos na Peninsula.
Se juncto ao Guadalete se desmoronou o imperio dos godos, a sociedade
wisigothica ficou. As provincias ou as cidades que acceitaram sem
resistencia o jugo dos novos senhores não tiveram que padecer senão as
consequencias dos grandes movimentos militares sobre qualquer
territorio, as violencias accidentaes e individuaes durante a lucta. Em
geral, a ordem das relações civis, e uma parte das publicas continuam a
subsistir do mesmo modo que d'antes. O tributo e o exercicio das altas
funcções da administração do Estado é que mudam. Nas provincias
meridionaes da Hespanha fica, até, por algum tempo um simulachro do
imperio gothico, o reino de Theodemiro, tributario mas livre, que se
incorpora obscuramente depois nos dominios do khalifa. No meu livro
busquei desenhar com fidelidade essa nova situação; dar aos successos o
seu verdadeiro valor, estribando-me nos monumentos coevos, e fazer
sobresair a população mosarabe (godo-romana), tão esquecida em geral
pelos historiadores.
Entre os mosarabes a situação dos servos devia ser a mesma que entre os
godos antes da conquista. Não é provavel que esta formula da sociedade
civil se alterasse quando todas as outras se mantinham. Nessa parte a
conquista arabe não trouxe o que trazem sempre os grandes abalos
politicos, um progresso de civilisação.
Succedeu o mesmo com a reacção asturiana? Podia succeder? Pús este
problema a mim mesmo, e resolvi-o negativamente; porque a razão e os
documentos me forçavam a essa solução negativa.
O levantamento de Pelaio não chegou a ser uma revolução: foi uma
resistencia: resistencia feliz nos primeiros passos e que não tardou a
converter-se n'um perigo serio para o dominio mussulmano. Dentro de
poucos annos a reacção obscura de um punhado de soldados godos fundava
uma monarchia christan e independente, que se contrapunha ao islamismo
triumphante, que estabelecia fronteiras, embora variaveis, e que tomava
ou fundava logares fortes, onde os novos senhores da Hespanha
encontravam dura repulsa ás suas diligencias para suffocar esta perigosa
entidade politica. Da desproporção das forças entre as duas potencias
mussulmana e christan, se o nome de potencia póde dar-se aos estados de
Pelaio e dos seus immediatos successores, resultava necessariamente um
facto. Todo o homem válido devia ser chamado ás armas nas Asturias, mas
de um modo em que interviesse a espontaneidade individual. Não alcanço
sequer como podesse ser de outro modo. A servidão dos godos; os senhores
levando os servos armados ao combate, sem crença, sem ardor, sem
interesses moraes ou materiaes que defender, como nos tempos gothicos,
sería um facto que não sei como poderia dar em resultado a fundação e
engrandecimento da monarchia de Oviedo.
Na verdade, com o tempo, as instituições wisigothicas foram-se
restaurando á medida que se engrandecia o novo reino, que uma parte do
territorio deixava de ser perenne campo de batalha, e que a segurança,
maior ou menor, favorecia o maior ou menor desenvolvimento da
agricultura e de uma especie de industria. Uma parte da população
mosarabe, ou pelas migrações tanto forçadas como espontaneas, ou pela
aggregação successiva de territorios habitados por ella, incorporava-se
gradualmente na sociedade néo-gothica, e, trazendo comsigo a
jurisprudencia antiga, que tinha conservado intacta sob o jugo
sarraceno, devia exercer naquelle sentido uma influencia, digamos assim,
reaccionaria. Mas o que não podia era destruir a força das
circumstancias; o que não podia, n'uma sociedade em cuja origem, em cujo
amago estava a resistencia, a espontaneidade, a liberdade, era
restabelecer a servidão pessoal antiga em toda a sua plenitude.
Supponhâmos um nobre, e até um simples _possessor_, acolhendo-se ás
Asturias, a Oviedo, nos tempos de Pelaio ou dos seus immediatos
successores. Como arrastará elle comsigo os servos que o rodeiam?
Invocará a força publica, a auctoridade mussulmana para os constranger a
acompanharem-no? Sería absurda a hypothese. Esse nobre, ou esse
_possessor_ ha-de descer á persuasão; ha-de falar de manumissão, ha-de
approximar de si o homem envilecido, ha-de recorrer aos afagos, ás
promessas. Ficar onde se acha é para o servo a liberdade, quando o
senhor abandona o lar domestico. Devemos acaso crer que nelle estão
inteiramente mortos todos os instinctos humanos?
Supponhâmos a conquista; a accessão de territorio. O mosarabe senhor de
servos, que se incorpora por esse facto na sociedade ovetense, acha
actuando energicamente nesta o sentimento da liberdade e da
espontaneidade individuaes, as classes servis armadas, os antigos laços
hierarchicos quebrados em grande parte. Esse facto não influirá em nada
nas suas relações com os proprios servos? Depois, além, pouco além,
estão os castellos sarracenos, a administração mussulmana. Se elle não
affrouxar os rigores da servidão; se não ligar a si o homem de trabalho
por algum interesse, por algum motivo racional, será difficil que esse
homem o abandone, e que conquiste pela fuga, e talvez pela mudança de
fé, a sua emancipação?
Se os documentos nos não provassem que a servidão de gleba fora o passo
immediato dado pelas classes infimas para a liberdade, a razão, longe de
nos persuadir que a servidão se mantivera em Oviedo e Leão como nos
tempos gothicos, far-nos-hia antes acreditar que ella fora substituida
pelo colonato espontaneo. O colonato, eis o grande meio de ligar o homem
de trabalho á terra, por este instincto, por este amor quasi connubial,
que une a mãe commum ao individuo que a faz fructificar. Da servidão
gothica, porém, para a adscripção havia um passo gigante, e as classes
servis eram assás rudes para não perceberem toda a differença do
colonato á adscripção, porque essas differenças são pela maior parte de
ordem moral. Na practica, materialmente, sobretudo em tempos de bruteza
e violencia, n'uma sociedade perturbada e vacillante, as distincções
entre a posse e o uso da terra pelo colonato ou pela adscripção não
podiam ser demasiado sensiveis. O sentimento, a aspiração do individuo
que cultivou o solo, que construiu a choupana, que plantou a arvore é
principalmente o não separar-se do campo, da choupana, da arvore. A este
sentimento correspondem ambas as formulas de consorcio entre o homem e a
terra, mais ou menos imperfeitamente, não tanto em virtude das condições
theoricas de cada uma das duas formulas, como do estado mais ou menos
civilisado da épocha em que se applicam. Acaso a historia não nos
subministra provas de oppressões exercidas sobre colonos espontaneos, e
consagradas até por contractos, tão barbaras como as que padeciam os
adstrictos á gleba, quando já a adscripção do homem tinha cedido o campo
á servidão exclusiva da terra?
Assim comprehende-se como a transformação do servo em adscripto podia
resultar da situação em que se achou a monarchia ovetense-leonesa no
seculo VIII, em vez de resultar della o colonato livre, que á primeira
vista a razão nos pinta como mais provavel, e que de feito o era, se
abstrahirmos das circumstancias sociaes para só attendermos ás
politicas.
Mr. de Rozière, expondo o debate entre mim e o sr. Muñoz, diz: «Esta
transformação (a da servidão para a adscripção) tinha-se realisado de
todo quando os christãos se refugiaram nas Asturias sob o mando de
Pelaio? Não o crê o sr. Muñoz, e combate, neste ponto, a opinião dos
historiadores de maior credito. Os exemplos, em que esteia o seu pensar,
dão a este um alto gráu de verosimilhança. Nelles se vêem escravos
destinados ao serviço domestico; uns são cozinheiros, padeiros,
sapateiros ou alfaiates; outros empregam-se no commercio e servem nas
lojas de venda. Nada ha fixo nas suas funcções, que dependem do capricho
do dono. A sorte dos escravos agricolas não é mais segura: uns
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