Opúsculos por Alexandre Herculano - 05

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presenciaram os factos, ou, pelo menos, que os ouviram narrar aos
contemporaneos, quer esses factos sejam naturaes e criveis, quer
sobrenaturaes e incriveis para a razão humana; quer elles nos sejam
transmittidos por narrativas coevas ou quasi coevas, quer por documentos
do tempo, embora descubertos por escriptores modernos. Quando, porém, se
tractar de milagres, a critica deve ser tanto mais severa, quanto é
certo que a isso nos constrange o dever religioso, que nos impõe as
palavras de S. Paulo, o dever de não levantarmos falsos testemunhos a
Deus.
Que podia eu fazer em relação ao supposto milagre de Ourique, escrevendo
a historia do reinado de Affonso I? Faltavam-me absolutamente chronicas,
historias, documentos coevos ou quasi coevos, que o narrassem. O exame
attento de quanto modernamente se escrevera para supprir a falta de
provas daquella celebre tradição, só tinha servido de convencer-me das
aberrações em que se podem transviar ainda os espiritos mais elevados,
quando, em vez de buscarem simplesmente a verdade, buscam accommodar os
caracteres desta a um preconceito. Não me era possivel omittir a batalha
de Ourique. Que podia eu fazer, repito, ácerca do milagre da apparição?
Ou mentir á minha consciencia, alevantar um testemunho a Deus, pospôr as
doutrinas dos homens mais pios e eruditos do orbe catholico, que falaram
de critica historica, calcar aos pés a maxima do mais illustre escriptor
romano, ou então manifestar sem hesitação as proprias convicções, que
julgava e julgo legitimas, isto é, proceder de um modo que v.. mesmo crê
nobre e honroso[26]; affirmativa, que, seja dicto em boa paz, não sei se
está em perfeita harmonia com a idéa geral que predomina nas
considerações que v.. tem tido a bondade de dirigir-me sobre os
inconvenientes que resultam, no entender de v.. para a nossa patria
commum, da manifestação das minhas doutrinas.
Disse, pois, o que suppús e supponho verdade: disse-o sem sobre isso me
dilatar, sem exaggeração, sem pretensões a ter feito um importante
descobrimento historico; porque realmente o não era: disse-o
singelamente, simplesmente: indiquei apenas de passagem as
incongruencias historicas, que desmentiam a importancia que se costuma
attribuir ao successo. E n'esta parte, seja-me licito dizê-lo, nem v..
nem ninguem se encarregou de me refutar; porque, na verdade, seria um
pouco difficil de admittir que houvesse centenas de milhares de
sarracenos para virem combater em Ourique, quando os almoravides
concentravam todas as forças em Africa, para salvarem o imperio da
ultima ruina, exhaurindo a Hespanha de soldados, a ponto de abandonarem
a heroica guarnição de uma praça como Aurelia ao seu triste destino. A
narrativa anterior, o quadro da situação dos lamtunitas e das
perturbações quo agitavam as provincias mussulmanas do Gharb habilitavam
o leitor para por si fazer conceito das dimensões da batalha de Ourique.
Se em alguma cousa cedi da inflexibilidade da historia foi em procurar,
talvez em demasia, achar resultados moraes dessa batalha, para de algum
modo desculpar a significação exaggerada que depois se lhe attribuiu.
Sobre a apparição disse apenas o restrictamente necessario para o leitor
vulgar conhecer que eu não a admittia. Se tivesse o proposito deliberado
de combater quando podesse ferir o chamado sentimento religioso do povo,
crê v.. que eu não teria recursos para aproveitar o lado contradictorio
e até ridiculo, (que cousa ha neste mundo onde elle se não possa
encontrar?) do celebre milagre, sem todavia abandonar o estylo grave da
historia? Crê v.. que se eu intentasse buscar as causas provaveis da
invenção dessa maravilha, e avaliá-las severa ou, se quizerem,
malevolamente, me faltariam meios para assim o practicar? Permitta-se-me
dizer que foi necessaria demasiada prevenção contra mim, ou a favor da
inviolabilidade da apparição, para se não ver que procurei, quanto me
era possivel sem offender a verdade, não converter os factos que se
prendem a esse falso milagre n'um escandalo historico. As extensas notas
com que finalisa cada volume do meu livro são destinadas para os homens
da sciencia, para debater os fundamentos das minhas opiniões. Estas
notas são, portanto, para poucos. A generalidade dos leitores não se
cansa com essas discussões tediosas. Foi, porém, ahi que eu alludi ao
ridiculo instrumento do cartorio d'Alcobaça, o que fiz apenas pelo
desejo de dar uma satisfação aos homens professionaes. Se eu fosse o
impio, o atheu, e não sei que mais, que por ahi me chamam os padres
ignorantes e mal procedidos, não tiraria vantagem dessa falsificação
insigne, para mostrar como a hypocrisia costuma fazer joguete das cousas
do céu para fins terrenos? Não practicaria ao menos aquillo que a
justissima indignação de qualquer homem religioso o levaria talvez a
practicar? Se tal se houvesse de crer, não deveriam qualificar-me de
impio, mas sim de insigne mentecapto.
Em ambos os opusculos que v.. me fez a honra de escrever contra as
minhas opiniões, v.. insiste em que, citando naquella nota a Memoria de
Fr. Joaquim de Sancto Agostinho contra a genuinidade do diploma de
juramento conservado em Alcobaça, eu fiz uma citação
contraproducente[27]. Contraproducente?! Pois o erudito augustiniano não
nega ahi redondamente a authenticidade do diploma? O que dizia eu ao
citar a Memoria sobre os codices d'Alcobaça?--«_Quem desejar conhecer a
impostura desse documento famoso consulte a Memoria, etc._»--Se o auctor
concorda comigo em que elle é falso, onde está a improcedencia da
citação? Se v.. me permitte que seja interprete do seu pensamento, o que
v.. queria talvez dizer era, que Fr. Joaquim de Sancto Agostinho affirma
que acreditava na apparição, posto negasse a genuinidade do pergaminho
de Alcobaça, e que eu não creio nem no documento, nem no facto.
Exprimindo-se assim, v.. teria sido exactissimo. Não era, porém, para a
opinião manifestada pelo academico em relação ao successo, mas sim para
as suas razões contra o diploma que eu remettia o leitor. E realmente, o
que elle diz em favor do facto não é mais do que repetir o que outros
disseram antes delle, e citar uma copia de 1597 existente em S. Vicente
de Fóra vista por elle, e a qual, duas paginas adiante, dá como
provavelmente tirada _de outro original falso_. O que se vê de tudo
aquillo é que o pobre frade, conhecendo o risco de mostrar o que era e o
que valia O ridiculo thesouro dos monges d'Alcobaça, quiz ao menos
salvar-se, protestando pela pureza da sua crença no milagre de Ourique.
Talvez, se eu vivesse então, fizesse o mesmo, em attenção á
circumstancia que nos recorda Gmeiner: «_onde vigorou o terrivel
tribunal da inquisição, a fogueira estava prompta para a verdade_».
Soffra-me v.. dizer eu aqui que me envergonho pelo meu paiz desta
necessidade de disputar ácerca de um diploma falso, que se acha
depositado nos archivos do estado, onde qualquer pessoa póde examiná-lo.
Qualquer pessoa, sim; porque não é preciso ter a menor idéa de
paleographia para o reconhecer por falso. Basta pôr-lhe ao lado dous ou
tres diplomas genuinos do meiado do seculo XII, e comparar. Esses
multiplicados recursos que possue a diplomatica para desmascarar
falsarios são aqui perfeitamente inuteis. Estou certo de que v.. nunca o
viu; porque tambem estou certo de que, se o houvera visto, eu acharia
v.. a meu lado para dizer aos homens sem pudor que ainda ousam inculcar
como legitima essa invenção torpe: «_Sois uns miseraveis!_»
Sinto sinceramente que v.. se dignasse de tomar para si, a favor da
apparição, um argumento que devia pertencer precipuo aos apologistas dos
clerigos ignorantes e devassos. Consiste elle em que, negando eu que a
tradição de Ourique remonte aos tempos a que se refere, devo dizer
quando, como, e para que a forjaram. Onde existe semelhante canon de
critica historica? O que sei é que ella começou a apparecer no ultimo
quartel do seculo XV, mais de trezentos annos depois da epocha em que se
diz succedido o milagre; o que sei é que em nenhum escriptor, nem em
nenhum documento legitimo, coevo ou quasi coevo, ha o menor vestigio de
semelhante tradição; o que sei é que os escriptores modernos que a
publicaram não se referem a testemunho contemporaneo ou proximo; o que
sei, portanto, é que as regras de critica adoptadas por homens não menos
pios que sabios me obrigam a rejeitá-la. Diga-me v..: se um devedor seu
pretendesse pagar-lhe certa quantia em moeda falsa, v.., depois de a
examinar e convencer-se da sua falsidade, o que fazia? Pelos principios
por que pretende julgar-me, devia reconhecê-la por boa e acceitá-la,
emquanto não podesse mostrar quando, como, por quem e para que fora
forjada. Não vê v.. que uma tal regra de critica nos obrigaria a adoptar
como verdadeiras até as lendas indicas de Vishnú e de Brahma?
Outro argumento me faz v.. que eu tambem desejara tivesse deixado aos
ex-frades ignorantes e hypocritas: é o da impossibilidade de nossos avós
terem adoptado uma tradição que não fosse verdadeira. Quer v.. que lhes
concedamos a mesma critica, a mesma intelligencia, a mesma honra, o
mesmo amor da propria fama e dignidade que nós temos. Concedo por um
momento. Mas o patriotismo de v.. não será tão inimigo da logica, nem
tão cego, que recuse os mesmos dotes aos avós dos actuaes castelhanos,
franceses, italianos e allemães. Por aquella doutrina, v.. deve
acreditar todas as lendas desses paizes, ainda quando a critica
historica as tenha feito abandonar aos castelhanos, franceses, italianos
e allemães de hoje. Mais: v.. deve, por exemplo, acreditar _à fortiori_
a historia da papisa Joanna, embora já os proprios protestantes se riam
dessa calumnia ridicula, porque a Europa inteira a acreditou por
seculos. Mais ainda: v.. é assaz instruido para não ignorar qual foi a
civilisação dos arabes nos seculos IX, X, XI, sobretudo dos arabes
hespanhoes, qual a sua sciencia e litteratura, qual a nobreza do seu
caracter. Apesar disso, elles nunca deixaram de crer na tradição dos
milagres de Mafoma. Não é de esperar da justiça de v.. que recuse a esse
povo tão culto os dotes intellectuaes e moraes que attribue a nossos
avós. Adoptará v.. as lendas mussulmanas ácerca do propheta de Mekka?
Principios que provam tanto, ou antes que provam tudo, permitta-me v..
desconfiar de que não provam nada. Deus nos livre de pensar que uma
fabula que se generalisa, se converte por isso em verdade. Semelhantes
doutrinas, deixe-as v.., christão, cavalheiro, e homem de letras, para
essa parte da cleresia, que quer lucrar com as illusões populares. A
nós, christãos, incumbe recordar-nos daquellas tremendas palavras do
divino Mestre:
«Guardae-vos do fermento dos phariseus, que é a hypocrisia:»
«_Porque nenhuma cousa ha occulta que não venha a descubrir-se; e
nenhuma ha escondida que não venha a saber-se_....»
«E todo o que proferir uma palavra contra o filho do Homem ser-lhe-ha
dado perdão; mas _áquelle que blasphemar contra o Espirito Sancto, não
lhe será perdoado_.»
V.. sabe, tão bem como eu, que, segundo Sancto Agostinho, uma das
blasphemias contra o Espirito Sancto _é o negar a verdade conhecida por
tal_.
E é isto o que responde a todas as considerações que v.. me faz sobre a
conveniencia de não desilludir o povo ácerca das suas tradições
mentirosas: são estas palavras do Salvador, que fulminam os phariseus
modernos, como fulminaram os antigos, que me obrigam a falar verdade
escrevendo a historia. Ainda que essas considerações fossem exactas, a
patria verdadeira do christão é o céu, cujas portas ficarão cerradas,
conforme a doutrina de Christo, aos que tiverem desmentido a verdade na
terra. A patria deste mundo é nosso dever amá-la, sacrificar-lhe tudo,
menos a honra, menos as esperanças de além do tumulo, menos a fé. É esta
a mais sancta das tradições que herdámos de nossos paes. O crucifixo
sobre o qual deposeram o derradeiro suspiro os que nos geraram, não o
insultemos na vida, para podermos tambem despedir o ultimo alento,
abraçados com elle, sem terror, sem remorsos, e para o legarmos
immaculado a nossos filhos; para que elles, no momento de o
transmittirem moribundos a nossos netos, não se lembrem horrorisados de
que essa imagem do Redemptor já foi bafejada pelo extremo respirar de um
blasphemo. Amemos e respeitemos a tradição divina, e tenhamos esforço
bastante para repellir mentiras, sobretudo quando, segundo as palavras
do apostolo, ellas envolvem um falso testemunho contra Deus.
Isto é para os christãos. Para os falsos politicos, que cuidam ser a
religião apenas um instrumento que serve para conter os humildes e
pobres, a que Christo chama os grandes do seu reino, e a que elles
chamam massas brutas; para esses, que não crendo acaso em Deus, accusam
os que escrevem sinceramente a historia, de demolidores de nossa gloria;
para esses liberaes e até democratas, que desprezam o povo ainda mais do
que o desprezavam os poderosos de outros tempos; para os taes não
applico eu só o dicto de Fleury, de que são ignorantissimos em materias
de religião; digo tambem que o são em materias de politica. Para o povo
ser livre, é necessario que seja religioso e honesto; não que seja
credulo. Para que elle seja religioso e honesto é necessario que conheça
as doutrinas do evangelho, que não são mais do que a confirmação divina
da moral universal. Em vez de inculcar crendices ao povo, cumpre
inculcar-lhe os principios do christinanismo, e as consequencias
daquelles principios: cumpre illustrá-lo, em vez de o conservar na
ignorancia; fazer-lhe sentir que a força de practicar grandes e nobres
sacrificios, tão recommendados por Jesus, é o caracter que distingue o
espirito immortal do homem do instincto que anima as alimarias. É
preciso convencê-lo de que o patriotismo, de que esse puro e sancto
affecto que nos faz abandonar os commodos domesticos, as affeições do
coração, e arrostar com a fome, com a sede, com a nudez, com a
intemperie das estações, para irmos morrer n'um campo de batalha,
salvando a terra em que dormem nossos maiores, defendendo a cruz do
nosso adro, a vida de nossos paes, a honra de nossas irmãs e mulheres, é
a manifestação mais solemne da energia do espirito humano, e da
abnegação christan. E estas verdades eternas; estas verdades, que,
gravadas nos corações do povo, tantas vezes têm salvado as pequenas
nações dos intentos ambiciosos das grandes, d'onde se deduzem? É das
invenções dos milagreiros e falsarios, ou das divinas paginas da biblia?
V.. deve conhecer, como homem de letras que é, a historia dos povos
mussulmanos. Houve nunca no mundo crença que se estribasse tanto como o
islamismo em falsos milagres, quasi sempre conducentes a inspirar o amor
da guerra e o enthusiasmo das multidões credulas? E todavia, quaes foram
os effeitos desse enthusiasmo, que não correspondia a doutrinas accordes
com os instinctos naturaes da nossa alma, que não se fundava em
convicções reflectidas, na certeza moral do dever, mas que se inspirava
de promessas fingidas do céu? Os mussulmanos devastaram e submetteram a
melhor porção da Asia e da Africa, e ainda uma pequena parte da Europa:
formaram quinze ou vinte nações de falsos crentes, e estas nações
cresceram e civilisaram-se combatendo sempre. E depois? Depois, quando
foi preciso conservar o edificio; quando se tractou de defender a
patria, em vez de a tirar aos outros; quando foi preciso repellir em vez
de aggredir, mostrar essa perseverança, que nem se exalta com o
triumpho, nem desanima com o revés; que padece, calada e soffrida; essa
perseverança que é a mais poderosa arma dos povos ameaçados na sua
existencia, tudo faltou. As nações mussulmanas desmembraram-se,
fundiram-se, annullaram-se umas, desappareceram outras, e conservando
todas as suas crenças, todos os seus milagres, ei-las ahi estão as que
restam, ludibrio da humanidade, corruptas, decadentes, vivendo ao
crepusculo da passada gloria, lançando nos dias da afflicção e do perigo
os olhos para o occidente, a vêr se os filhos da cruz estendem o braço
para proteger o crescente. As tradições das victorias, as maravilhas
celestes dos tempos heroicos de Islam lá estão gravadas na memoria de
todos. Porque não salvam, não regeneram ellas essas sociedades
atrophiadas e moribundas?
Ainda hoje ha homens das novas idéas, os quaes se dizem cheios de
illustração e de philosophia, que, abandonando os milagres suppostos,
não porque os tenham por infundados ou absurdos em si, mas porque suppõe
que o fanatismo póde lucrar com elles, não querem que se toque nas
tradições humanas que se ligam á gloria nacional. É verdade que não
sabem bem que deva consistir a gloria de uma nação, porque nunca
pensaram nisso. Para elles, que vivem no seculo XIX, onde quer que
pereceram milhares de homens, combatendo por interesses que não
comprehendiam, ou por torpe cubiça; onde quer que o ferro e o fogo
arrasaram as cidades, despovoaram os campos, embora dessas cidades e
campos nenhum mal tivesse vindo aos seus destruidores, ha uma gloria sem
mancha, immensa, immarcessivel. Herdeiros pequeninos e pacificos dos
gigantes da assolação, dos Tamerlans, dos Attilas e dos Gengiskans,
avaliam pela estimativa daquelles illustres selvagens as façanhas dos
proprios avós. Se a historia pergunta:--«Acaso esses combates, em que,
sem duvida, se practicaram grandes feitos, foram uteis ao progresso
moral e material do povo em cujo nome se peleijaram, ou trouxeram a sua
decadencia? Está ou não essa gloria militar, aliàs indisputavel,
assombrada por grandes crimes? Foi a intenção, a qual só determina o
valor moral das acções, nobre, grandiosa, pura, ou teve motivos menos
elevados? Foi um arrojo, um impeto nacional, ou um impulso dado pela
ambição, ou pelo capricho de algum principe?»--A historia que faz estas
perguntas ou outras analogas, porque esse é o seu dever, commette aos
olhos dos taes um crime de leso-patriotismo. O castelhano, por exemplo,
que disser:--«As barbaridades e crimes commettidos por Cortez, Pizarro,
ou Almagro, na conquista da America, deshonram as emprezas arriscadas e
longinquas dos filhos da Peninsula, embora o descubrimento do Novo Mundo
demonstre a sua pericia, o seu ardimento de navegadores e de soldados.
Os effeitos dessa conquista foram o corromperem-se os costumes, morrerem
as industrias nascentes, despovoarem-se os campos da Hespanha,
seccarem-se, em summa, todas as fontes da sua prosperidade solida e
legitima: foram amontoarem-se nas mãos do fisco e dos poderosos o ouro e
a prata, que, obtidos sem custo pelos crimes, se desbarataram sem pudor
pelos vicios; foram o perderem-se as velhas liberdades, e com ellas o
sentimento da dignidade humana, cujo ultimo brado soou nas rebelliões
contra a tyrannia de Carlos V:»--o hespanhol que disser isto é um mau
cidadão aos olhos dos mansos guerreadores destes nossos tempos. E
porque? Porque, affirmam elles, o povo ha de moralisar-se, elevar-se
pelas tradições da sua grandeza e gloria. O povo! Pois o povo que tantas
vezes tracta de perto a fome e a nudez; cuja vida, desde o berço de
farrapos até a enxerga rota em que fenece, vai travada de receios, de
sobresaltos, de desalentos, e de agonias, pensa lá nas cutiladas que se
deram, nas bombardadas que se despediram, ha tres ou quatro seculos, por
mãos d'uns homens, cujos nomes e cujas façanhas se memoram n'uns livros
que elle nunca leu, porque não sabe ler, nem tem dinheiro para pão,
quanto mais para livros? Que são essas palavras retumbantes de
regeneração pelas tradições, senão sons ôcos, que não correspondem a
nenhuma idéa? Supponhamos, porém, que todas essas recordações chegavam
ao povo. Podem ellas servir-lhe de exemplo, de licção para as suas
necessidades actuaes? N'um paiz onde a riqueza passageira destruiu os
habitos do trabalho e da economia, entorpeceu pela miseria, resultado
infallivel da prosperidade ficticia, a energia do coração, que faz
luctar o homem com a adversidade e vencê-la, de que serve estar de
contínuo a prégar ao povo:--«Teus avós levaram o terror do seu nome aos
confins do mundo, saquearam e queimaram emporios opulentos em plagas
remotas, metteram a pique poderosas armadas, derribaram os templos
alheios, violaram as mulheres extranhas, passaram á espada os que eram
menos valorosos que elles, abriram caminho ao engrandecimento dos outros
povos da Europa, e affeitos a gosos faceis, deposeram aos pés do
absolutismo as suas velhas franquias, beijaram os grilhões que lhes
deitavam aos pulsos por que eram dourados, e tornaram-se ludibrio do
mundo.»--Estas licções é que hão-de ensinar a actividade no trabalho, a
severidade nos costumes, o amor da liberdade moderada, mas verdadeira, o
desejo de cultivar as artes da paz, no meio de um paiz decadente, cuja
unica esperança de salvação está em se desenvolverem nelle essas e
outras tendencias analogas? Não! O povo, que tem mais logica do que os
prégadores de vãos apophtegmas, ha-de concluir outra cousa d'ahi: ha-de
concluir que é assaz fidalgo para não contrahir habitos villãos e ruins.
De historias d'aggressões e de conquistas brilhantes não se deduz a
necessidade de morrer obscuramente em defesa da terra da patria; não se
deduz a moderação revestida de firmeza, que faz respeitar pelas grandes
as nações pequenas; não se deduzem nem o amor do trabalho, nem o amor da
virtude. Em vez de contarem ao povo as façanhas da Africa e do Oriente,
contem-lhe qual era o commercio de Lisboa, e o movimento agricola do
paiz no no seculo XIV. Estejam certos de que a noticia desses e de
outros factos analogos lhe é mais proveitosa, material e moralmente, de
que recordar-lhe a gloria de batalhas e de conquistas.
Falsas lendas religiosas, falsas ou verdadeiras lendas humanas nunca
salvaram um paiz, quando a podridão penetrou no amago da arvore social.
Onde e quando o homem renega da sua origem divina, vende a liberdade a
troco de delicias, esquece que o elevar-se acima de viciosas paixões
traz um goso interior que vale bem todos os que dão os sentidos, não é
lisonjeando-lhe vaidades, que, nem sequer respeitam a magestade de Deus,
que o havemos de revocar ao sentimento da dignidade e do dever. V..
sabe, talvez melhor do que eu, a historia do imperio romano, e
nomeadamente a historia do baixo-imperio. Não leio essas paginas
melancholicas, sem que involuntariamente volva os olhos para o estado
actual de algumas nações modernas: as analogias que encontramos entre
estas e aquella são symptomas dolorosos; mas não vem para aqui. Eu peço
a v.. que reflicta sobre essa historia em relação á efficacia das
tradições. Ella completa o quadro que nos offerecem as nações
mussulmanas. Não foi no tempo da republica, foi sob o ferreo dominio dos
cesares, que os poetas cantaram os mythos da gente romana, que os
historiadores celebraram as suas glorias, e deram a importancia da
verdade a centenares de lendas tradicionaes e fabulosas, que a sciencia
moderna, as investigações do grande Niebuhr, reduziram já ao seu justo
valor. De que serviram, porém, essas glorias, esses milagres do
polytheismo, contados gravemente a um povo servo e gasto, que apodrecia
aos pés dos tyrannos? Nos ultimos tempos do imperio os rhetoricos
espraiavam-se em exaggerações sobre as grandezas passadas, emquanto os
cidadãos recusavam combater por uma patria que se tornara em nome vão, e
preferiam o jugo dos barbaros a uma nacionalidade mentida. Os hymnos, as
gloriosas recordações romanas serviram só para acompanhar ao cemiterio
da historia o ataúde de Roma.
Consinta v.. que a estas rapidas considerações eu ajuncte ainda um
exemplo domestico, sobre o qual peço a v.. que medite. Na lucta violenta
e tenaz que Portugal sustentou nos fins do seculo XIV para repellir o
dominio estrangeiro, ninguem se lembrou de fortalecer os animos
invocando o milagre de Ourique; ao menos não espero que v.. me aponte o
menor vestigio historico que me desminta. A razão para desaproveitar tal
auxilio foi demasiado forte; foi a razão do cordeiro da fabula--_o
milagre ainda não era nascido_. E todavia o triumpho coroou os heroicos
esforços de um povo pequeno, que quiz verdadeiramente ser livre.
Dous seculos depois o milagre de Ourique dominava, absoluto e não
contradicto, no commum dos espiritos. V.. se encarregou de o provar de
modo innegavel. E todavia, quasi sem combate, as espadas castelhanas
acabaram com a independencia de Portugal n'um dia.
Entre os dous factos está, além do milagre, a grande gloria das
conquistas, gloria que não era uma tradição remota, quasi oblitterada na
memoria do vulgo, mas um facto vivo, recente, e a bem dizer actual.
Alguns dos que mais tinham contribuido para ella ainda viviam.
Estes dous phenomenos, que determinam duas epochas principaes da nossa
historia, assim aproximados, são a negação mais solemne da utilidade dos
embustes religiosos, ou para melhor dizer, anti-religiosos, e do orgulho
selvagem de ter annaes escriptos com o sangue humano vertido em guerras
não provocadas, em guerras de aggressão, e sobretudo de cubiça.
Mas concedamos que, n'um ou n'outro caso singular, um general ou um
homem d'estado tirasse vantagem dessa deploravel força moral que se
estriba nas superstições, ou nas idéas de uma gloria feroz. A questão é,
se hoje o povo português tem alguma vantagem que tirar dessas tradições,
na situação em que a Providencia o collocou. Sejamos sinceros. Póde elle
sonhar em ser conquistador, ou sequer em constituir uma potencia
maritima ou continental que pése com demasiada força na balança dos
acontecimentos politicos? Parece-me que nenhum sisudo o dirá. Somos
pequenos; mas nem isso é vergonha, nem impedirá que as grandes nações
nos respeitem, se formos respeitaveis. Para obtermos consideração basta
que os nossos progressos intellectuaes e moraes mostrem á Europa que
sabemos, queremos, e podemos regenerar-nos pela sciencia, pelo trabalho
e pela morigeração.
Morigeração, trabalho, sciencia, eis as armas com que a philosophia
politica deste seculo ensina as nações civilisadas a combaterem n'uma
lucta generosa. Os espiritos mais altos, seja qual fôr a sua crença
religiosa e politica, proclamam a paz e a fraternidade entre os homens.
E não só as proclamam, mas até empregam a poderosa alavanca da
associação para promoverem, digamos assim, uma cruzada sancta contra as
tendencias guerreiras. Os esforços collectivos desses homens summos
serão baldados? Não o cremos. Elles tem um alliado irresistivel. Quando
os exercitos permanentes e as grandes marinhas militares tiverem
devorado todo o peculio de cada povo, e exhaurido a melhor e mais pura
seiva da sua vida economica, é então que a philosophia politica hade
alcançar um triumpho decisivo. Mas esse triumpho que outra cousa será
senão o ultimo termo de uma sorites immensa, composta dos factos de
dezenove seculos, de uma demonstração practica e invencivel, de que a
lei moralmente necessaria das sociedades modernas é o christianismo, é o
verbo de amor e da paz revelado no Evangelho?
Nesses dias, que porventura tardam menos do que muitos pensam, que
destino darão os sacerdotes da bombarda, da lança e da espada aos seus
deuses fulminados? As palavras «façanhas, gloria guerreira, conquistas,»
como serão definidas nos diccionarios das linguas vivas, dentro de um ou
dous seculos? Como julgará a historia os milagres inventados para
sanctificar o derramamento de sangue humano?
Desculpe v.. esta digressão, que não creio nem inutil nem extranha ao
assumpto. De novo entrarei directamente nelle, para proseguir nas
explicações que devo aos meus adversarios sinceros, honestos e
instruidos, e não á ignorancia malevola e presumida de hypocritas
insignificantes.
Começarei por dar a v.. a razão moral, a razão suprema, porque rejeito
não só o milagre de Ourique, mas tambem os outros milagres, como o de
Alcacer, a que ou a má fé, ou a piedade pouco illustrada quizeram
attribuir a sorte das batalhas, sorte dependente dos occultos designios
da Providencia e de mil accidentes, previstos ou fortuitos, explicaveis
ou inexplicaveis para a historia. Não creio que essas guerras contra os
infiéis fossem cousa excessivamente christan, e por isso o meu espirito
recusa-se a acceitar como factos verdadeiros os testemunhos de
approvação divina a um procedimento anti-evangelico. Na idade média
passava como cousa corrente, que o guerrear os infiéis e fazer-lhes
acceitar á força o jugo, aliàs tão suave e tão livre, do christianismo,
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