Opúsculos por Alexandre Herculano - 08
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cinco poderosissimos reis mouros. Na qual batalha, para se ver quão
porfiada fosse, e quão excessivo o seu valor, cinco vezes lhe quebraram
as lanças dos barbaros os escudos que embraçava na mão esquerda. Desta
singular e famosa victoria procedeu _fixar elle as insignias e armas dos
reis de Portugal_, pondo nellas cinco escudos, e collocando em cada um
delles cinco dinheiros, sendo sabido que até então as armas eram um
escudo só, todo semeado de besantes. Estes cinco escudos _postos em
fórma de cruz_, e estes besantes quinarios _tambem distribuidos em
cruz_, que nos indicam senão os trinta dinheiros, preço do sangue de
Christo, pelo qual este foi entregue aos judeus pelo crudelissimo Judas?
Antes de dar o signal para a batalha, este rei, orando de joelhos, viu o
Salvador pendente da cruz, e foi tal a confiança do regio animo, tal a
fé gravada no seu coração, que, sem se aterrar com a estupenda
maravilha, _se atreveu_ a dizer que _não convinha_ que Christo
apparecesse a um firmissimo crente, mas que tal apparecimento era
necessario aos hereges, aos que se afastavam da fé christan. D'isto e
d'outras cousas, que por brevidade calo, vossa sanctidade conhecerá mais
claro que esta luz que nos alumia _por qual constancia d'animo, por qual
ardor de virtude, por que prendas, por quaes degráus e successos subiu
ao fastigio regio_; como esse varão tão religioso, forte e pio augmentou
os estreitos limites do reino, e o libertou do tristissimo jugo da
servidão; com que razão, por força da _clarissima vontade e da suprema
direcção_ (optimo auspicio) _da eterna magestade_, com _auxilio do povo_
e _adjutorio_ da sancta igreja romana, _tomou o regio nome com direito
perfeito_ (optimo jure) _e o legou aos seus successores_; mais feliz
nisto que outros principes, dos quaes muitos aspiraram ao titulo real
pelo favor dos povos; outros por temor dos seus satellites armados;
poucos, a quem o justo Jupiter amou, pelo verdadeiro caminho da
virtude.»
Aqui tem v.. o que se lê na oração de Lucena relativamente a Affonso I.
Note v.. que o orador passava por um dos homens mais instruidos do seu
tempo, e não podia por ignorancia fazer o que fez; isto é, inverter a
ordem dos successos do reinado d'aquelle principe. Deste discurso o que
se deduz é que a batalha de Ourique foi a ultima façanha notavel delle,
posterior a tudo, inclusivamente á tomada de Evora, e quem sabe se á
bulla de Alexandre III, que concedeu ao principe português a
qualificação de rei? O que é certo é que, se a chronologia fingida por
Lucena fosse verdadeira, a batalha e o milagre de Ourique, em que elle
visivelmente quer fundar a independencia de Portugal, _embora com o
favor do povo e de Roma_, teriam sido posteriores á carta de feudo á sé
apostolica e á bulla de acceitação de homenagem expedida por Lucio II.
Assim, a dignidade do rei e a independencia de Affonso I assentariam
n'um titulo, não só incomparavelmente melhor, qual era a vontade de Deus
milagrosamente manifestada, mas tambem posterior á offerta e acceitação
da homenagem feita em 1144, que por esse facto ficavam invalidadas por
inuteis. Presupposto isto, a impertinente recordação da curia romana,
inserida na bulla «_Ut saluti_» de Sisto IV, ficava tambem de todo o
ponto refutada.
Mas dirá v..--o cardeal D. Jorge da Costa, presente ao acto, não podia
impugnar este inaudito milagre?--Não se impugnam assim milagres.
Reflicta v.. na furia dos padres actuaes contra mim, porque no seculo
XIX não creio n'uma fabula provada tal até a saciedade, e imagine se um
padre se atreveria a rejeitar o minimo milagre nos fins do seculo XV; e
quando se atrevesse a dizer alguma cousa, seria em particular ao papa e
aos cardeaes. Outra flagrante mentira dizia ahi Lucena sem temor de que
D. Jorge o contradissesse: era a historia dos cinco dínheiros em cada
escudete, desmentida por todas as armas reaes gravadas nos sêllos e
moedas dos nossos antigos reis da primeira dynastia, começando em Sancho
I. Restam muitos desses sêllos e moedas; muitos mais deviam restar
naquella epocha: o cardeal era homem instruido e pessoa notavel: havia
de ter visto muitissimos; mas nem por isso Lucena titubeou, antes nesta
parte o seu discurso, geralmente frio, melifluo, calculado, tem certo
sabor de colerica invectiva contra os que disso duvidassem. O
descaramento é, ha muitos seculos, um dos dotes do homem d'estado.
Outro facto: Vasco Fernandes tinha sido orador de Portugal no concilio
de Basiléa, e na embaixada a Roma de 1450; tinha recitado as orações de
abertura nas côrtes de 1478 e de 1481. Todas essas orações, que não
deviam ser menos elegantes e curiosas, se perderam; apenas escapou a da
embaixada de Roma de 1485, e não só escapou, mas tambem foi impressa, e
não só foi impressa, mas ainda mais; fizeram-se della duas edições em
caracteres gothicos e sem data, ao que parece, estampadas _fóra do
reino_ e com todos os signaes de _pertencerem aos primeiros tempos da
arte da impressão_[42]. Se de feito a oração foi reproduzida pela
imprensa pouco depois de recitada, devia sê-lo fóra do reino, onde a
imprensa de livros latinos e vulgares não consta que existisse ainda.
Mas duas edições da mesma epocha, que provam, senão que _alguem
interessava em dar áquelle discurso a maxima publicidade_?
Recorde-se v.. do que eu disse a proposito de Olivier de la Marche, e da
influencia que é provavel Lucena tivesse na narrativa do chronista
flamengo ácerca das armas de Portugal. Vê-se que em 1492, em que este
escrevia, as opiniões andavam encontradas. As armas que ahi mais se
deviam conhecer eram as antigas com a cruz d'Aviz, porque a reforma de
D. João II tinha apenas oito annos. Entretanto a noticia do milagre de
Ourique, postoque alterada, corria já alli, e a alteração provinha de
quererem _alguns_ acommodar a fabula ás armas antigas. Consequentemente,
outros não queriam: logo disputava-se ácerca disso: logo a historia da
apparição era uma cousa nova e incerta. Se ella fosse a explicação
sabida e ordinaria, como Lucena dissera em Roma, teria De la Marche
accumulado a serie de despropositos que anteriormente transcrevi? Elle
falara ácerca d'isto com muitos portugueses, e escrevia á vista das suas
informações. O que indica essa completa confusão d'idéas do chronista?
Que o milagre de Ourique, caindo inesperadamente no meio das lendas que
se ligavam ao brazão dos reis de Portugal, as tinha inteiramente
baralhado.
Agora note v.. que por estes mesmos annos de 1491 e 92 Lucena devia
estar em Flandres, porque é neste tempo que elle começa a intitular-se
conde palatino (titulo que parece provir-lhe do cargo d'escanção da
viuva de Carlos o Temerario), ao passo que nessa conjunctura o achamos
ausente de Portugal[43]. V.. ajuisará das illações que destes factos se
podem tirar.
Mais ou menos inexactas que sejam as noticias que nos restam ácerca da
existencia em Sancta Cruz de Coimbra de um monumento relativo á
apparição, parece todavia que alguma cousa ahi houve, e o transumpto do
juramento de Affonso I, feito pelo notario Manso _em tempo d'elrei D.
João II_, não é de desprezar, logo que um homem como frei Francisco
Brandão affirma tê-lo visto. Tal transumpto, se não prova a existencia
de um documento verdadeiro, faz crer que _alguma cousa sobre a apparição
tinha_ apparecido _em Sancta Cruz no tempo daquelle rei_.
Advirta, porém, v.. que D. João Galvão, o arcebispo de Braga, valído de
João II, tinha sido prior mór de Sancta Cruz, devendo por isso conservar
estreitas relações com os frades, e que a familia Galvão parece ter tido
particular tendencia para aquelle mosteiro; um outro D. João Galvão era
seu prior crasteiro no principio do seculo XVI, e, como vimos, diz-se
que em 1556 um frade cruzio, velho de oitenta annos, o _cartorario_ D.
Manuel Galvão, depôs que existia o auto do juramento de Affonso I, _em
que os prelados e os grandes da corte estavam assignados_, grossa
mentira, seja de passagem dicto, porque o estylo constante, sem excepção
no seculo XII e ainda no XIII, era escrever nos diplomas regios o mesmo
notario que os exarava os nomes dos prelados e ricos-homens
confirmantes. Mas os Galvões não acabam aqui. Duarte Galvão, _irmão do
arcebispo valído_, escrevendo depois de 1500 a chronica de Affonso
Henriques (no fim da qual adverte _innocentemente_ que seu irmão o
arcebispo lhe dissera que tinha motivos para crer _que Affonso Henriques
fora sancto_,) introduz na narrativa da batalha de Ourique a historia da
apparição, aperfeiçoada com a scena do ermitão que esquecera a Lucena.
Galvão refere-se nesta parte ao que _elle mesmo_ (Affonso I) _disse, e
dentro da sua historia se contém_, o que parece alludir a uma especie de
memoria ou diploma em que figura o filho de D. Theresa, o _Pharaó
obdurado_. Tudo o mais, pelo que se colhe da narrativa, andava em fama;
isto é, a reprehensão dada pelo rei a Christo por lhe apparecer a elle;
as promessas da protecção perpetua do reino feitas por Deus; emfim tudo
aquillo que os frades de Alcobaça metteram para dentro do _seu original_
do juramento, porque em verdade era pena que andasse tanta cousa boa só
em _confirmada fama_, como diz Duarte Galvão. Mas se os frades bernardos
souberam aproveitar esses fragmentos soltos para delles fazerem um
juramento vistoso, e de uma apparição rachitica uma apparição ancha e
acabada, o chronista não tinha mostrado menos juizo em lhe dar uma
applicação util. Para D. João II, morto e sepultado, não servia ella já
de nada. A bulla _Ut Saluti_, e Sixto IV, e o seu successor Innocencio
VIII tinham desapparecido da scena politica. Na cadeira de S. Pedro
estava assentado o sancto padre Alexandre Borgia, que tinha assaz que
fazer em administrar piamente a igreja de Deus, para não cogitar na
sujeição politica de Portugal á sancta sé. O milagre de Ourique andava
de todo desaproveitado. Era uma lastima. O chronista olhou para o
mosteiro de Sancta Cruz, especie de viveiro dos Galvões, e entendeu que
a apparição lhe podia ser util. Descobriu, portanto, a causa efficiente
da apparição, no que ninguem até ahi sonhara. Fora a causa de tamanha
mercê do céu o ter Affonso I fundado e enriquecido Sancta Cruz _com
grande devoção_. Na verdade isto era em parte mentira; porque as grandes
doações de terras, castellos e padroados, feitas por Affonso Henriques
áquelles frades, são todas posteriores a 1139 e anterior á batalha de
Ourique apenas a de uma horta em Coimbra[44]. Antes, porém, da
pontilhuda dialectica dos diplomaticos não se olhava de tão perto para
as cousas. A mentira util tornava-se em verdade pelo consenso dos
sabios, e sabios eram os inventores de pias fraudes. Ora a utilidade de
explorar a tradição em beneficio dos conegos cruzios era indisputavel.
Os caseiros e emphyteutas do mosteiro, raça dura e rebelde em pagar suas
rendas e foros, não pagava, e ria-se das excommunhões; os officiaes da
coroa quebravam impiamente os privilegios da ordem, e até,
anteriormente, os villãos de Montemor tinham ousado accusá-la de haver
obtido com dolo e mentira parte das suas rendas e direitos
senhoriaes[45]. Depois, naquella conjunctura, o mosteiro estava gasto e
desbaratado das guerras que pouco antes o prior D. João de Noronha
tivera com o bispo de Coimbra, em razão de uma pouca de carne furtada da
cozinha do bispo pelos criados do prior; guerras em que se deram cruas
batalhas nas praças de Coimbra, sendo necessario que o poder publico
mandasse marchar tropas para pacificar á força os dous reverendos
campeões[46]. Postos o dominio directo, os direitos senhoriaes, os bens
e rendas de Sancta Cruz sob a protecção de um bom milagre, naquella
occasião desoccupado, d'ahi só podia provir utilidade aos cruzios sem
damno de terceiro. Valia a pena, por isso, de achar a causa verdadeira
do milagre de Ourique, com que ninguem ainda tinha atinado.
Paro aqui; e peço desculpa a v.. da minha linguagem. Ha cousas que
nenhuma equanimidade basta para dellas se falar sem indignação, ou sem
riso. É necessario escolher, e eu prefiro o ultimo quando se tracta de
embustes e miserias que já não fazem mal. V.. tomará na conta que
merecem os factos e as reflexões que no decurso desta carta lhe
submetto, e de que no seu foro intimo tirará as conclusões que julgar
razoaveis. Terminarei por dizer que sinto haver v.. declarado pela
imprensa que se retirava da arena da discussão. Por mais oppostas que
sejam em tantas cousas as nossas doutrinas, a contenda pacifica com um
homem honesto, cortez e instruido, era-me summamente agradavel. Mas
d'hoje avante, dirigindo-me a v.. diz-me a consciencia que não faria uma
acção boa. Até certo ponto sería ferir pelas costas um adversario leal.
Cessou por isso a nossa correspondencia. Restam mil outros meios de
falar com o geral dos homens de bem e sinceros, e de dizer ao meu paiz
as verdades em que a guerra da maioria do clero me obriga, por propria
defesa, a fazê-lo pensar.
V
A SCIENCIA ARABICO-ACADEMICA
AO SR. A. J. DA SILVA TULLIO
(_Março, 1851_)
Meu amigo.--Remette-me v.. o folheto de A. C. P. (que me diz ser um
«academico» o sr. Antonio Caetano Pereira) destinado a mostrar os
crimes, as fabulas, as contradicções, as ignorancias e não sei quantas
cousas mais, em que o peccador de mim caiu na narrativa da batalha de
Ourique. Pede-me v.. que diga eu alguma cousa no seu jornal acerca desta
publicação, a qual fez, segundo v.. affirma, certo effeito, por causa
das garabulhas ou gregotins mouriscos, appensos por lithographia ao
folheto, como prova dos progressos da arte typographica entre nós, que é
o mais que podem provar aquellas esgaratujadas rabiscas. Sabe o bom
redactor da _Semana_ a primeira impressão que o folheto me causou? A que
em mim produzem muitas cousas que se publicam nesta nossa terra.
Lembrei-me da Divina Providencia, para lhe agradecer que o estudo da
nossa lingua esteja tão pouco generalisado na Europa. A reputação
litteraria do paiz ganha immensamente com isso. Dizem que não se deve
nunca desesperar da patria; mas eu confesso-lhe que litterariamente
desesperava della, se não fosse a mocidade, á qual Deus queira dar
bastante amor do estudo, e alumiá-la com um sancto horror a cruzar os
umbraes da Academia. A dizer a verdade, meu amigo, começa a fallecer-me
a paciencia e a vontade para discutir cousas que nos escorregam para o
chão quando tentamos submettê-las á analyse. Demais, do que eu tracto
agora é de pôr quanto antes na imprensa o quarto volume da _Historia de
Portugal_, que, em consciencia, me tem dado mais que pensar do que todas
as criticas academicas, presentes e futuras. Com a mão no coração,
digo-lhe que, _exceptis excipiendis_, o areopago censorio mais
inoffensivo, mais divertido até, que ha em todo o mundo é a Academia de
Lisboa. Collectivas ou individuaes, as censuras que partem d'alli nem
sequer arranham a supposta victima. Se não escorchassem, por via de
regra, a grammatica e o senso commum, não só seriam suaves e morbidas;
seriam até, permitta-me dizê-lo, voluptuosas. Traduzidas em chim,
tomavam-nas por obra de algum collegio de mandarins letrados do celeste
imperio. O opusculo que o meu amigo me remette é pasmoso no genero: é um
botaréu da maravilhosa fabrica das memorias e actas academicas tirado do
seu logar, e a que fizeram perder aquella parte de formosura que lhe
houvera resultado da harmonia do todo. Sinceramente, é uma cousa que
lastimo.
Agora o que, tambem sinceramente, eu não esperava era achar no opusculo
certa cortezia nas fórmas que o auctor empregou. Sabía que se estava
imprimindo contra mim um cartapacio mourisco. Pensei que fosse obra dos
reverendos, que, tão pobres de saber e de intelligencia como ricos de
odio, resfolgam pelo respiradouro da injuria a colera que os abafa. E
ainda bem! Apesar do nojo que tenho desses pobres-diabos, não quero que
elles estourem, porque são meus irmãos, como em gira jesuitica se
costuma dizer a cada punhalada que se dá no proximo. Estou já tão
affeito aos improperios da imprensa devota, á caridade dos nossos
khatibs e ul-máis, que não esperava no imminente opusculo senão mais uma
prova a favor da minha crença na atrophia moral e intellectual da
maioria do nosso clero, crença que elle se encarregou de demonstrar até
a saciedade. Enganei-me: era obra secular; academica, porém cortez;
cortez (entendamo-nos) até o ponto de não usar o auctor das phrases dos
prostibulos e das tabernas, mas não até o ponto de respeitar o meu
caracter moral, porque ahi sou accusado de _falto de sinceridade_ (pag.
10), de _critico cheio de fel_, de _criminoso_ (pag. 15), de _aviltador
do valor português_ (pag. 18). Isto, porém, pode ser violento, mas não é
immundo. Os mentecaptos indecentes são os que a minha dignidade de
escriptor e de homem me não consente refutar. Assim, ser-me-ha licito
satisfazer aos desejos do bom redactor da _Semana_ e remetter-lhe
algumas notas ácerca deste curioso papel.
Uma explicação. Quando digo que não posso refutar mentecaptos
indecentes, não quero significar que essa guerra que se me faz, atroz na
intenção, ridicula nos effeitos, ha de ficar sem punição. Não sou homem
disso; mas tambem não sou homem que gaste polvora com guerrilhas. Hei de
ir buscar a seu tempo as columnas de infanteria e os macissos de
cavallaria que estão atraz dellas. As miserias que ahi vão pela imprensa
contra mim são um veu que encobre, ou antes descobre por demasiado raro,
negocio mais grave. Tracta-se hoje de saber se a Europa catholica se
hade infeudar de novo ás corrupções da curia romana, com o seu cortejo
de jesuitas de todos os formatos, de todas as idades e de todas as
mascaras; com os seus titeres inquisitoriaes, com os seus Torquemadas em
miniatura. Tentêa-se este solo de Portugal: manda-se hostilisar em mim o
progresso das novas idéas, a independencia das opiniões, não porque eu
seja o mais forte, mas porque circumstancias, que não preparei nem
provoquei, me collocaram na primeira linha do combate. O que é certo é
que alguem se ha de enganar ácerca do desfecho da lucta, ou nós, ou esse
grupo, essa cousa, que por ahi anda a ajunctar quanto pó e podridão ha
no cemiterio dos seculos e a tentar insufflar-lhe vida; essa cousa
hedionda, que, incapaz das ambições grandiosas, do despotismo esplendido
da Roma de Gregorio VII; repellida pelo evangelho que ella desmente,
fulminada pela philosophia que ella detesta, depois de apurar as suas
doutrinas espirituaes nas fontes catholicas das margens do Neva, vem
refocilar-se para a peleja, e desafiar a justiça de Deus e dos homens
atraz dos olhos buliçosos da madona de Frosinone. Aqui, no ultimo
occidente, o recontro final ha de ser mais tarde. Que a mocidade não
durma, porém! Prepare-se para os dias de prova, e talvez de tribulação,
com a severidade dos costumes, que dá a energia moral, e com a
severidade do estudo, que subministra as armas para a victoria. Por ora
pedem-nos só jesuitas; o perigo da petição não é grande. A igreja da
_Memoria_, cujas grimpas vejo d'aqui, collocada lá a meia encosta, vigia
a foz do Tejo. Os filhos de Loiola não passariam áquem da barra sem que
o sangue de D. José I gemesse nos fundamentos do templo, e este gemido
retumbaria pelo reino de Portugal, porque a imprensa tem echos.
Entretanto, meu amigo, forcejemos todos por não deshonrar esta terra:
empreguemos unidos os nossos esforços para augmentar os thesouros da
civilisação no paiz; associemo-nos lealmente a quantas idéas generosas e
puras de progresso material e intellectual surgirem no meio de nós.
Filhos da imprensa, os nossos deveres são arduos; mas é necessario
cumpri-los. Porque estou eu tranquillo no meio da tormenta que ruge?
Porque tenho a consciencia de os haver desempenhado escrevendo a
historia. Se transigisse com vaidades e mentiras; se vendesse a minha
penna a paixões pequenas e más; se recuasse diante de considerações
miseraveis, as horas da solidão e do silencio, que são as mais da minha
vida, não seriam tão repousadas para mim. Alumiado por essa luz moral,
que nunca devemos perder de vista, espero levar ao cabo o empenho que
tomei, até porque a historia de Portugal é uma das mais ricas em licções
para nos prevenirmos contra as astucias de hypocritas, e essas licções
são hoje altamente proficuas. Não ha nella, sob tal aspecto, uma só
epocha infertil, desde os tempos barbaros em que o arcebispo João
Peculiar, furioso contra o seu suffraganeo de Coimbra, se apoderava dos
paços episcopaes deste, convertia a cathedral em estabulo dos seus
cavallos, e espalhava por terra as sacras fórmas, n'um impeto de bruta
colera, até aquelles, não barbaros mas corruptos, em que os devotos e
pios inquisidores, depois de mandarem desconjunctar nos tractos do potro
os membros delicados das virgens hebreas, ou das tidas por taes, iam,
curvados sobre o leito da dôr, pousar mollemente os olhos lubricos nos
debeis corpos das martyres, e fartar a sua luxuria de tigres palpando
aquellas carnes pisadas e sangrentas. Quando a justiça de Deus põe a
penna na dextra do historiador, ao passo que lhe põe na esquerda os
documentos indubitaveis de crimes que pareciam escondidos para sempre
debaixo das lousas, elle deve seguir ávante sem hesitar, embora a
hypocrisia ruja em redor, porque a missão do historiador tem nesse caso
o que quer que seja de divina.
E o opusculo sarraceno? Perdoe, meu amigo! O opusculo tinha-me
profundamente esquecido.
O eruditissímo academico meu adversario declara-me inhabilitado para
escrever a historia do dominio mussulmano na Hespanha, porque não sei
arabe.
Pois então dou-a por não escripta. Largo o titulo de historiador; mas
consolo-me com a boa companhia. Masdeu, Noguera, Ferreras não sabiam
arabe; Barros não sabia o sanskrito; Raynal não sabia as linguas bunda,
tupinamba e iroquesa; Bossuet não sabia as setenta e duas linguas da
torre de Babel.
O auctor do opusculo passa a demonstrar como eu não sei arabe. Não era
preciso: nas notas do meu livro estou mais que confesso. Nunca citei um
texto escripto nessa lingua, que não dissesse de que traducção me tinha
valido.
Eis, todavia, as provas _da minha_ insciencia:
Primeira: Attribuo ao nome do Guadiana origem phenicia.
E continúo a attribuir-lh'a. O nome radical do rio é _Ana_: e os
eruditos concordam geralmente em que a palavra é phenicia. _Guadi_,
_wadi_, ou como em mouro direito for, é árabe, e significa rio. Até ahi
chega o meu arabismo. Mas não são essas syllabas que o distinguem,
porque os sarracenos as ajunctavam a muitos _nomes proprios_ de rios.
_Guadiana_ nada mais é que o _rio Ana_.
Segunda: Digo que _Alcacer_ significa _paços reaes_.
E porque não o havia de dizer? Os _Vestigios arabicos_ de Moura dão-lhe
a significação de _palacio acastellado_; e eu, que não sei arabe, mas
que sei outras cousas que o auctor do opusculo ignora, affirmo-lhe que
naquella epocha o _Al-kassr_ ou _Al-kassba_ (aqui me colhe n'alguma
tropelia arabica) era isso, ou mais exactamente, um _castello
apalaçado_. Quanto ao adjectivo _reaes_, asseguro-lhe á fé de christão
(e tanto da gemma, que não entendo o alcorão) que em virtude das
instituições politicas d'aquelles tempos, assim entre sarracenos como
entre nazarenos, o _alcacer_ era necessariamente _real_, isto é,
dependente do poder publico.
Terceira: Chamo a _Ourique_ nome proprio de logar.
Sobre isso falaremos d'espaço.
Quarta: Interpreto _Iman_ dignidade religiosa.
Esta accusação deixou-me quasi academico. Para um arabista parece-me
gracejo forte de mais. Pois _Iman_ não significa dignidade religiosa? O
auctor do opusculo devia então dizer-nos se o _iman_ era algum capitão
de mar e guerra, mercador de retalho, dentista, ou que demonio era o
_iman_. Quem a mim me metteu nestes trabalhos sei eu. Foi o celebre
traductor e refutador do alcorão, Marraccio, que teve a insolencia de
dar sempre á palavra _iman_ a significação de _chefe do culto_, de
_principal sacerdote (sacrorum antistes)_[47]: foi o orientalista
Von-Hammer[48], que sabe mais das cousas mussulmanas, que toda a eschola
arabica de Lisboa desde a sua fundação até hoje: foram todas as
exposições da organisação religiosa entre os mussulmanos, não só da
Peninsula, mas de todo o mundo.
Quinta: Digo ser _Ismar_ corrupção de _Omar_ ou de _Ismael_.
É possivel que eu me enganasse: todavia, porque não me fez o auctor do
opusculo um favor especial; porque não me citou na historia de
Abdel-Halim, na de Conde, na de Al-Makkari, ou na de Al-Keiruani, onde
se mencionam milhares de individuos mussulmanos, um só que se chamasse
_Ismar_? Assim fico em duvida, e desconfiado de que tenhamos outra
anecdota como a d'_Iman_.
Felizmente as provas não continuam. Se o auctor proseguisse, temo que
demonstrasse contra mim que eu sabía arabe. Era um aperto em que me
punha; porque na realidade eu não sei decifrar um unico daquelles
engaços de passas, que elle lithographou ao cabo do seu opusculo.
Passado o preambulo, o auctor annuncia que vai provar-me pelos
historiadores arabes que a batalha d'Ourique foi uma grande batalha e o
_golpe fatal dado no dominio mussulmano_. Sancto breve da marca! Sempre
são mouros! Se tal affirmam, digo ao illustre arabista que não os
acredite. Os monumentos christãos, ainda os mais exaggerados, não contam
tanto. O dominio mussulmano ficou como estava depois da jornada
d'Ourique. Affonso I voltou muito depressa para os seus estados, ao
norte do Mondego, porque sabía do officio de soldado. Sessenta annos de
lucta depois da bulha d'Ourique não bastaram para expulsar de todo do
actual territorio português os mussulmanos. Apesar da celebre jornada de
1139, Affonso Henriques teve de ir conquistando palmo a palmo a
Estremadura e o Alemtejo. Que _golpe fatal_ foi, portanto, esse de
Ourique? Ah mouros, mouros! Isso é debicar com o proximo.
Depois de citar o que eu refiro como introducção á narrativa da batalha,
o opusculo vem deitar-me tudo por terra com um sopro. Errei a
chronologia, os nomes dos imperadores almoravides, tudo. Oh peccador de
mim!
Lá vai o texto do nosso academico arabico:
«Nada tem o facto de Ourique, succedido no reinado de
Ali-Ben-Taxefin, com Aly-Ibn-Iussuf; porque este Aly-Ibn-Iussuf foi
o primeiro imperador da dynastia dos morabethins e falleceu no anno
496 da Hegira, 1103 da era Christã...»
«Não foi, _portanto_, no reinado de Aly-Ibn-Iussuf, nem durante o
de Aly-Ben-Taxefin, que começou a pretensão do celebre El-Mohdy,
mas sim no reinado de Taxefin-Ben-Aly, que succedeu a
Aly-Ben-Taxefin, isto é, principiou no reinado do III imperador e
só tomou seu maior incremento no meio do reinado do IV imperador da
dynastia dos morabethins, que foi Ibrahim-Ben-Taxefin: logo no
reinado de Aly-Ben-Taxefin, em cujo tempo foi a batalha de Ourique,
não houve revolução, nem politica, nem religiosa, que distrahisse
as tropas; o que tudo confirmamos, convidando nossos leitores a que
leiam os capitulos desde 32 até 36 inclusivamente da Historia
Genealogica dos imperadores mussulmanos, escripta por
Abu-Mohammed-Salihn-Abd-Alihim.»
Transcrevi todas estas blasphemias historicas, para que se veja com
quanta razão dou graças a Deus de que a nossa lingua seja pouco
conhecida, e o que se deve esperar de uma academia onde ha destes
eruditos. Pús á vista de todos o corpo de delicto. Vamos ao auto.
A serie dos imperadores almoravides que resulta das precedentes
passagens é a seguinte.
1.^o Aly-Ibn-Iussuf 1103 (morto)
2.^o Aly-Ben-Taxefin 1139 (batalha d'Ourique)
3.^o Taxefin-Ben-Aly (apparecimento do Mahadi)
4.^o Ibrahim-Ben-Taxefin.
Em que se funda o auctor? Que é o que cita em seu abono?
Unicamente os capitulos 32 a 36 da Historia de Assaleh-Ben-Abdel-Halim,
ou Salihn Abd-Alihim, conforme for em mouro a graça de sua mercê, porque
não ha dous arabistas que escrevam um nome de gente do mesmo feitio.
Ora os capitulos citados[49] têem apenas o pequeno inconveniente de se
referirem ás primeiras conquistas dos lamtunenses, e ao estabelecimento
do seu dominio na Africa _na segunda metade do seculo XI_. É no capitulo
37 que se narra a primeira passagem á Hespanha de Iussuf-Ibn-Tachfin e a
victoria de Zalaka em 1080; no 38 a segunda passagem; no 39 a terceira
porfiada fosse, e quão excessivo o seu valor, cinco vezes lhe quebraram
as lanças dos barbaros os escudos que embraçava na mão esquerda. Desta
singular e famosa victoria procedeu _fixar elle as insignias e armas dos
reis de Portugal_, pondo nellas cinco escudos, e collocando em cada um
delles cinco dinheiros, sendo sabido que até então as armas eram um
escudo só, todo semeado de besantes. Estes cinco escudos _postos em
fórma de cruz_, e estes besantes quinarios _tambem distribuidos em
cruz_, que nos indicam senão os trinta dinheiros, preço do sangue de
Christo, pelo qual este foi entregue aos judeus pelo crudelissimo Judas?
Antes de dar o signal para a batalha, este rei, orando de joelhos, viu o
Salvador pendente da cruz, e foi tal a confiança do regio animo, tal a
fé gravada no seu coração, que, sem se aterrar com a estupenda
maravilha, _se atreveu_ a dizer que _não convinha_ que Christo
apparecesse a um firmissimo crente, mas que tal apparecimento era
necessario aos hereges, aos que se afastavam da fé christan. D'isto e
d'outras cousas, que por brevidade calo, vossa sanctidade conhecerá mais
claro que esta luz que nos alumia _por qual constancia d'animo, por qual
ardor de virtude, por que prendas, por quaes degráus e successos subiu
ao fastigio regio_; como esse varão tão religioso, forte e pio augmentou
os estreitos limites do reino, e o libertou do tristissimo jugo da
servidão; com que razão, por força da _clarissima vontade e da suprema
direcção_ (optimo auspicio) _da eterna magestade_, com _auxilio do povo_
e _adjutorio_ da sancta igreja romana, _tomou o regio nome com direito
perfeito_ (optimo jure) _e o legou aos seus successores_; mais feliz
nisto que outros principes, dos quaes muitos aspiraram ao titulo real
pelo favor dos povos; outros por temor dos seus satellites armados;
poucos, a quem o justo Jupiter amou, pelo verdadeiro caminho da
virtude.»
Aqui tem v.. o que se lê na oração de Lucena relativamente a Affonso I.
Note v.. que o orador passava por um dos homens mais instruidos do seu
tempo, e não podia por ignorancia fazer o que fez; isto é, inverter a
ordem dos successos do reinado d'aquelle principe. Deste discurso o que
se deduz é que a batalha de Ourique foi a ultima façanha notavel delle,
posterior a tudo, inclusivamente á tomada de Evora, e quem sabe se á
bulla de Alexandre III, que concedeu ao principe português a
qualificação de rei? O que é certo é que, se a chronologia fingida por
Lucena fosse verdadeira, a batalha e o milagre de Ourique, em que elle
visivelmente quer fundar a independencia de Portugal, _embora com o
favor do povo e de Roma_, teriam sido posteriores á carta de feudo á sé
apostolica e á bulla de acceitação de homenagem expedida por Lucio II.
Assim, a dignidade do rei e a independencia de Affonso I assentariam
n'um titulo, não só incomparavelmente melhor, qual era a vontade de Deus
milagrosamente manifestada, mas tambem posterior á offerta e acceitação
da homenagem feita em 1144, que por esse facto ficavam invalidadas por
inuteis. Presupposto isto, a impertinente recordação da curia romana,
inserida na bulla «_Ut saluti_» de Sisto IV, ficava tambem de todo o
ponto refutada.
Mas dirá v..--o cardeal D. Jorge da Costa, presente ao acto, não podia
impugnar este inaudito milagre?--Não se impugnam assim milagres.
Reflicta v.. na furia dos padres actuaes contra mim, porque no seculo
XIX não creio n'uma fabula provada tal até a saciedade, e imagine se um
padre se atreveria a rejeitar o minimo milagre nos fins do seculo XV; e
quando se atrevesse a dizer alguma cousa, seria em particular ao papa e
aos cardeaes. Outra flagrante mentira dizia ahi Lucena sem temor de que
D. Jorge o contradissesse: era a historia dos cinco dínheiros em cada
escudete, desmentida por todas as armas reaes gravadas nos sêllos e
moedas dos nossos antigos reis da primeira dynastia, começando em Sancho
I. Restam muitos desses sêllos e moedas; muitos mais deviam restar
naquella epocha: o cardeal era homem instruido e pessoa notavel: havia
de ter visto muitissimos; mas nem por isso Lucena titubeou, antes nesta
parte o seu discurso, geralmente frio, melifluo, calculado, tem certo
sabor de colerica invectiva contra os que disso duvidassem. O
descaramento é, ha muitos seculos, um dos dotes do homem d'estado.
Outro facto: Vasco Fernandes tinha sido orador de Portugal no concilio
de Basiléa, e na embaixada a Roma de 1450; tinha recitado as orações de
abertura nas côrtes de 1478 e de 1481. Todas essas orações, que não
deviam ser menos elegantes e curiosas, se perderam; apenas escapou a da
embaixada de Roma de 1485, e não só escapou, mas tambem foi impressa, e
não só foi impressa, mas ainda mais; fizeram-se della duas edições em
caracteres gothicos e sem data, ao que parece, estampadas _fóra do
reino_ e com todos os signaes de _pertencerem aos primeiros tempos da
arte da impressão_[42]. Se de feito a oração foi reproduzida pela
imprensa pouco depois de recitada, devia sê-lo fóra do reino, onde a
imprensa de livros latinos e vulgares não consta que existisse ainda.
Mas duas edições da mesma epocha, que provam, senão que _alguem
interessava em dar áquelle discurso a maxima publicidade_?
Recorde-se v.. do que eu disse a proposito de Olivier de la Marche, e da
influencia que é provavel Lucena tivesse na narrativa do chronista
flamengo ácerca das armas de Portugal. Vê-se que em 1492, em que este
escrevia, as opiniões andavam encontradas. As armas que ahi mais se
deviam conhecer eram as antigas com a cruz d'Aviz, porque a reforma de
D. João II tinha apenas oito annos. Entretanto a noticia do milagre de
Ourique, postoque alterada, corria já alli, e a alteração provinha de
quererem _alguns_ acommodar a fabula ás armas antigas. Consequentemente,
outros não queriam: logo disputava-se ácerca disso: logo a historia da
apparição era uma cousa nova e incerta. Se ella fosse a explicação
sabida e ordinaria, como Lucena dissera em Roma, teria De la Marche
accumulado a serie de despropositos que anteriormente transcrevi? Elle
falara ácerca d'isto com muitos portugueses, e escrevia á vista das suas
informações. O que indica essa completa confusão d'idéas do chronista?
Que o milagre de Ourique, caindo inesperadamente no meio das lendas que
se ligavam ao brazão dos reis de Portugal, as tinha inteiramente
baralhado.
Agora note v.. que por estes mesmos annos de 1491 e 92 Lucena devia
estar em Flandres, porque é neste tempo que elle começa a intitular-se
conde palatino (titulo que parece provir-lhe do cargo d'escanção da
viuva de Carlos o Temerario), ao passo que nessa conjunctura o achamos
ausente de Portugal[43]. V.. ajuisará das illações que destes factos se
podem tirar.
Mais ou menos inexactas que sejam as noticias que nos restam ácerca da
existencia em Sancta Cruz de Coimbra de um monumento relativo á
apparição, parece todavia que alguma cousa ahi houve, e o transumpto do
juramento de Affonso I, feito pelo notario Manso _em tempo d'elrei D.
João II_, não é de desprezar, logo que um homem como frei Francisco
Brandão affirma tê-lo visto. Tal transumpto, se não prova a existencia
de um documento verdadeiro, faz crer que _alguma cousa sobre a apparição
tinha_ apparecido _em Sancta Cruz no tempo daquelle rei_.
Advirta, porém, v.. que D. João Galvão, o arcebispo de Braga, valído de
João II, tinha sido prior mór de Sancta Cruz, devendo por isso conservar
estreitas relações com os frades, e que a familia Galvão parece ter tido
particular tendencia para aquelle mosteiro; um outro D. João Galvão era
seu prior crasteiro no principio do seculo XVI, e, como vimos, diz-se
que em 1556 um frade cruzio, velho de oitenta annos, o _cartorario_ D.
Manuel Galvão, depôs que existia o auto do juramento de Affonso I, _em
que os prelados e os grandes da corte estavam assignados_, grossa
mentira, seja de passagem dicto, porque o estylo constante, sem excepção
no seculo XII e ainda no XIII, era escrever nos diplomas regios o mesmo
notario que os exarava os nomes dos prelados e ricos-homens
confirmantes. Mas os Galvões não acabam aqui. Duarte Galvão, _irmão do
arcebispo valído_, escrevendo depois de 1500 a chronica de Affonso
Henriques (no fim da qual adverte _innocentemente_ que seu irmão o
arcebispo lhe dissera que tinha motivos para crer _que Affonso Henriques
fora sancto_,) introduz na narrativa da batalha de Ourique a historia da
apparição, aperfeiçoada com a scena do ermitão que esquecera a Lucena.
Galvão refere-se nesta parte ao que _elle mesmo_ (Affonso I) _disse, e
dentro da sua historia se contém_, o que parece alludir a uma especie de
memoria ou diploma em que figura o filho de D. Theresa, o _Pharaó
obdurado_. Tudo o mais, pelo que se colhe da narrativa, andava em fama;
isto é, a reprehensão dada pelo rei a Christo por lhe apparecer a elle;
as promessas da protecção perpetua do reino feitas por Deus; emfim tudo
aquillo que os frades de Alcobaça metteram para dentro do _seu original_
do juramento, porque em verdade era pena que andasse tanta cousa boa só
em _confirmada fama_, como diz Duarte Galvão. Mas se os frades bernardos
souberam aproveitar esses fragmentos soltos para delles fazerem um
juramento vistoso, e de uma apparição rachitica uma apparição ancha e
acabada, o chronista não tinha mostrado menos juizo em lhe dar uma
applicação util. Para D. João II, morto e sepultado, não servia ella já
de nada. A bulla _Ut Saluti_, e Sixto IV, e o seu successor Innocencio
VIII tinham desapparecido da scena politica. Na cadeira de S. Pedro
estava assentado o sancto padre Alexandre Borgia, que tinha assaz que
fazer em administrar piamente a igreja de Deus, para não cogitar na
sujeição politica de Portugal á sancta sé. O milagre de Ourique andava
de todo desaproveitado. Era uma lastima. O chronista olhou para o
mosteiro de Sancta Cruz, especie de viveiro dos Galvões, e entendeu que
a apparição lhe podia ser util. Descobriu, portanto, a causa efficiente
da apparição, no que ninguem até ahi sonhara. Fora a causa de tamanha
mercê do céu o ter Affonso I fundado e enriquecido Sancta Cruz _com
grande devoção_. Na verdade isto era em parte mentira; porque as grandes
doações de terras, castellos e padroados, feitas por Affonso Henriques
áquelles frades, são todas posteriores a 1139 e anterior á batalha de
Ourique apenas a de uma horta em Coimbra[44]. Antes, porém, da
pontilhuda dialectica dos diplomaticos não se olhava de tão perto para
as cousas. A mentira util tornava-se em verdade pelo consenso dos
sabios, e sabios eram os inventores de pias fraudes. Ora a utilidade de
explorar a tradição em beneficio dos conegos cruzios era indisputavel.
Os caseiros e emphyteutas do mosteiro, raça dura e rebelde em pagar suas
rendas e foros, não pagava, e ria-se das excommunhões; os officiaes da
coroa quebravam impiamente os privilegios da ordem, e até,
anteriormente, os villãos de Montemor tinham ousado accusá-la de haver
obtido com dolo e mentira parte das suas rendas e direitos
senhoriaes[45]. Depois, naquella conjunctura, o mosteiro estava gasto e
desbaratado das guerras que pouco antes o prior D. João de Noronha
tivera com o bispo de Coimbra, em razão de uma pouca de carne furtada da
cozinha do bispo pelos criados do prior; guerras em que se deram cruas
batalhas nas praças de Coimbra, sendo necessario que o poder publico
mandasse marchar tropas para pacificar á força os dous reverendos
campeões[46]. Postos o dominio directo, os direitos senhoriaes, os bens
e rendas de Sancta Cruz sob a protecção de um bom milagre, naquella
occasião desoccupado, d'ahi só podia provir utilidade aos cruzios sem
damno de terceiro. Valia a pena, por isso, de achar a causa verdadeira
do milagre de Ourique, com que ninguem ainda tinha atinado.
Paro aqui; e peço desculpa a v.. da minha linguagem. Ha cousas que
nenhuma equanimidade basta para dellas se falar sem indignação, ou sem
riso. É necessario escolher, e eu prefiro o ultimo quando se tracta de
embustes e miserias que já não fazem mal. V.. tomará na conta que
merecem os factos e as reflexões que no decurso desta carta lhe
submetto, e de que no seu foro intimo tirará as conclusões que julgar
razoaveis. Terminarei por dizer que sinto haver v.. declarado pela
imprensa que se retirava da arena da discussão. Por mais oppostas que
sejam em tantas cousas as nossas doutrinas, a contenda pacifica com um
homem honesto, cortez e instruido, era-me summamente agradavel. Mas
d'hoje avante, dirigindo-me a v.. diz-me a consciencia que não faria uma
acção boa. Até certo ponto sería ferir pelas costas um adversario leal.
Cessou por isso a nossa correspondencia. Restam mil outros meios de
falar com o geral dos homens de bem e sinceros, e de dizer ao meu paiz
as verdades em que a guerra da maioria do clero me obriga, por propria
defesa, a fazê-lo pensar.
V
A SCIENCIA ARABICO-ACADEMICA
AO SR. A. J. DA SILVA TULLIO
(_Março, 1851_)
Meu amigo.--Remette-me v.. o folheto de A. C. P. (que me diz ser um
«academico» o sr. Antonio Caetano Pereira) destinado a mostrar os
crimes, as fabulas, as contradicções, as ignorancias e não sei quantas
cousas mais, em que o peccador de mim caiu na narrativa da batalha de
Ourique. Pede-me v.. que diga eu alguma cousa no seu jornal acerca desta
publicação, a qual fez, segundo v.. affirma, certo effeito, por causa
das garabulhas ou gregotins mouriscos, appensos por lithographia ao
folheto, como prova dos progressos da arte typographica entre nós, que é
o mais que podem provar aquellas esgaratujadas rabiscas. Sabe o bom
redactor da _Semana_ a primeira impressão que o folheto me causou? A que
em mim produzem muitas cousas que se publicam nesta nossa terra.
Lembrei-me da Divina Providencia, para lhe agradecer que o estudo da
nossa lingua esteja tão pouco generalisado na Europa. A reputação
litteraria do paiz ganha immensamente com isso. Dizem que não se deve
nunca desesperar da patria; mas eu confesso-lhe que litterariamente
desesperava della, se não fosse a mocidade, á qual Deus queira dar
bastante amor do estudo, e alumiá-la com um sancto horror a cruzar os
umbraes da Academia. A dizer a verdade, meu amigo, começa a fallecer-me
a paciencia e a vontade para discutir cousas que nos escorregam para o
chão quando tentamos submettê-las á analyse. Demais, do que eu tracto
agora é de pôr quanto antes na imprensa o quarto volume da _Historia de
Portugal_, que, em consciencia, me tem dado mais que pensar do que todas
as criticas academicas, presentes e futuras. Com a mão no coração,
digo-lhe que, _exceptis excipiendis_, o areopago censorio mais
inoffensivo, mais divertido até, que ha em todo o mundo é a Academia de
Lisboa. Collectivas ou individuaes, as censuras que partem d'alli nem
sequer arranham a supposta victima. Se não escorchassem, por via de
regra, a grammatica e o senso commum, não só seriam suaves e morbidas;
seriam até, permitta-me dizê-lo, voluptuosas. Traduzidas em chim,
tomavam-nas por obra de algum collegio de mandarins letrados do celeste
imperio. O opusculo que o meu amigo me remette é pasmoso no genero: é um
botaréu da maravilhosa fabrica das memorias e actas academicas tirado do
seu logar, e a que fizeram perder aquella parte de formosura que lhe
houvera resultado da harmonia do todo. Sinceramente, é uma cousa que
lastimo.
Agora o que, tambem sinceramente, eu não esperava era achar no opusculo
certa cortezia nas fórmas que o auctor empregou. Sabía que se estava
imprimindo contra mim um cartapacio mourisco. Pensei que fosse obra dos
reverendos, que, tão pobres de saber e de intelligencia como ricos de
odio, resfolgam pelo respiradouro da injuria a colera que os abafa. E
ainda bem! Apesar do nojo que tenho desses pobres-diabos, não quero que
elles estourem, porque são meus irmãos, como em gira jesuitica se
costuma dizer a cada punhalada que se dá no proximo. Estou já tão
affeito aos improperios da imprensa devota, á caridade dos nossos
khatibs e ul-máis, que não esperava no imminente opusculo senão mais uma
prova a favor da minha crença na atrophia moral e intellectual da
maioria do nosso clero, crença que elle se encarregou de demonstrar até
a saciedade. Enganei-me: era obra secular; academica, porém cortez;
cortez (entendamo-nos) até o ponto de não usar o auctor das phrases dos
prostibulos e das tabernas, mas não até o ponto de respeitar o meu
caracter moral, porque ahi sou accusado de _falto de sinceridade_ (pag.
10), de _critico cheio de fel_, de _criminoso_ (pag. 15), de _aviltador
do valor português_ (pag. 18). Isto, porém, pode ser violento, mas não é
immundo. Os mentecaptos indecentes são os que a minha dignidade de
escriptor e de homem me não consente refutar. Assim, ser-me-ha licito
satisfazer aos desejos do bom redactor da _Semana_ e remetter-lhe
algumas notas ácerca deste curioso papel.
Uma explicação. Quando digo que não posso refutar mentecaptos
indecentes, não quero significar que essa guerra que se me faz, atroz na
intenção, ridicula nos effeitos, ha de ficar sem punição. Não sou homem
disso; mas tambem não sou homem que gaste polvora com guerrilhas. Hei de
ir buscar a seu tempo as columnas de infanteria e os macissos de
cavallaria que estão atraz dellas. As miserias que ahi vão pela imprensa
contra mim são um veu que encobre, ou antes descobre por demasiado raro,
negocio mais grave. Tracta-se hoje de saber se a Europa catholica se
hade infeudar de novo ás corrupções da curia romana, com o seu cortejo
de jesuitas de todos os formatos, de todas as idades e de todas as
mascaras; com os seus titeres inquisitoriaes, com os seus Torquemadas em
miniatura. Tentêa-se este solo de Portugal: manda-se hostilisar em mim o
progresso das novas idéas, a independencia das opiniões, não porque eu
seja o mais forte, mas porque circumstancias, que não preparei nem
provoquei, me collocaram na primeira linha do combate. O que é certo é
que alguem se ha de enganar ácerca do desfecho da lucta, ou nós, ou esse
grupo, essa cousa, que por ahi anda a ajunctar quanto pó e podridão ha
no cemiterio dos seculos e a tentar insufflar-lhe vida; essa cousa
hedionda, que, incapaz das ambições grandiosas, do despotismo esplendido
da Roma de Gregorio VII; repellida pelo evangelho que ella desmente,
fulminada pela philosophia que ella detesta, depois de apurar as suas
doutrinas espirituaes nas fontes catholicas das margens do Neva, vem
refocilar-se para a peleja, e desafiar a justiça de Deus e dos homens
atraz dos olhos buliçosos da madona de Frosinone. Aqui, no ultimo
occidente, o recontro final ha de ser mais tarde. Que a mocidade não
durma, porém! Prepare-se para os dias de prova, e talvez de tribulação,
com a severidade dos costumes, que dá a energia moral, e com a
severidade do estudo, que subministra as armas para a victoria. Por ora
pedem-nos só jesuitas; o perigo da petição não é grande. A igreja da
_Memoria_, cujas grimpas vejo d'aqui, collocada lá a meia encosta, vigia
a foz do Tejo. Os filhos de Loiola não passariam áquem da barra sem que
o sangue de D. José I gemesse nos fundamentos do templo, e este gemido
retumbaria pelo reino de Portugal, porque a imprensa tem echos.
Entretanto, meu amigo, forcejemos todos por não deshonrar esta terra:
empreguemos unidos os nossos esforços para augmentar os thesouros da
civilisação no paiz; associemo-nos lealmente a quantas idéas generosas e
puras de progresso material e intellectual surgirem no meio de nós.
Filhos da imprensa, os nossos deveres são arduos; mas é necessario
cumpri-los. Porque estou eu tranquillo no meio da tormenta que ruge?
Porque tenho a consciencia de os haver desempenhado escrevendo a
historia. Se transigisse com vaidades e mentiras; se vendesse a minha
penna a paixões pequenas e más; se recuasse diante de considerações
miseraveis, as horas da solidão e do silencio, que são as mais da minha
vida, não seriam tão repousadas para mim. Alumiado por essa luz moral,
que nunca devemos perder de vista, espero levar ao cabo o empenho que
tomei, até porque a historia de Portugal é uma das mais ricas em licções
para nos prevenirmos contra as astucias de hypocritas, e essas licções
são hoje altamente proficuas. Não ha nella, sob tal aspecto, uma só
epocha infertil, desde os tempos barbaros em que o arcebispo João
Peculiar, furioso contra o seu suffraganeo de Coimbra, se apoderava dos
paços episcopaes deste, convertia a cathedral em estabulo dos seus
cavallos, e espalhava por terra as sacras fórmas, n'um impeto de bruta
colera, até aquelles, não barbaros mas corruptos, em que os devotos e
pios inquisidores, depois de mandarem desconjunctar nos tractos do potro
os membros delicados das virgens hebreas, ou das tidas por taes, iam,
curvados sobre o leito da dôr, pousar mollemente os olhos lubricos nos
debeis corpos das martyres, e fartar a sua luxuria de tigres palpando
aquellas carnes pisadas e sangrentas. Quando a justiça de Deus põe a
penna na dextra do historiador, ao passo que lhe põe na esquerda os
documentos indubitaveis de crimes que pareciam escondidos para sempre
debaixo das lousas, elle deve seguir ávante sem hesitar, embora a
hypocrisia ruja em redor, porque a missão do historiador tem nesse caso
o que quer que seja de divina.
E o opusculo sarraceno? Perdoe, meu amigo! O opusculo tinha-me
profundamente esquecido.
O eruditissímo academico meu adversario declara-me inhabilitado para
escrever a historia do dominio mussulmano na Hespanha, porque não sei
arabe.
Pois então dou-a por não escripta. Largo o titulo de historiador; mas
consolo-me com a boa companhia. Masdeu, Noguera, Ferreras não sabiam
arabe; Barros não sabia o sanskrito; Raynal não sabia as linguas bunda,
tupinamba e iroquesa; Bossuet não sabia as setenta e duas linguas da
torre de Babel.
O auctor do opusculo passa a demonstrar como eu não sei arabe. Não era
preciso: nas notas do meu livro estou mais que confesso. Nunca citei um
texto escripto nessa lingua, que não dissesse de que traducção me tinha
valido.
Eis, todavia, as provas _da minha_ insciencia:
Primeira: Attribuo ao nome do Guadiana origem phenicia.
E continúo a attribuir-lh'a. O nome radical do rio é _Ana_: e os
eruditos concordam geralmente em que a palavra é phenicia. _Guadi_,
_wadi_, ou como em mouro direito for, é árabe, e significa rio. Até ahi
chega o meu arabismo. Mas não são essas syllabas que o distinguem,
porque os sarracenos as ajunctavam a muitos _nomes proprios_ de rios.
_Guadiana_ nada mais é que o _rio Ana_.
Segunda: Digo que _Alcacer_ significa _paços reaes_.
E porque não o havia de dizer? Os _Vestigios arabicos_ de Moura dão-lhe
a significação de _palacio acastellado_; e eu, que não sei arabe, mas
que sei outras cousas que o auctor do opusculo ignora, affirmo-lhe que
naquella epocha o _Al-kassr_ ou _Al-kassba_ (aqui me colhe n'alguma
tropelia arabica) era isso, ou mais exactamente, um _castello
apalaçado_. Quanto ao adjectivo _reaes_, asseguro-lhe á fé de christão
(e tanto da gemma, que não entendo o alcorão) que em virtude das
instituições politicas d'aquelles tempos, assim entre sarracenos como
entre nazarenos, o _alcacer_ era necessariamente _real_, isto é,
dependente do poder publico.
Terceira: Chamo a _Ourique_ nome proprio de logar.
Sobre isso falaremos d'espaço.
Quarta: Interpreto _Iman_ dignidade religiosa.
Esta accusação deixou-me quasi academico. Para um arabista parece-me
gracejo forte de mais. Pois _Iman_ não significa dignidade religiosa? O
auctor do opusculo devia então dizer-nos se o _iman_ era algum capitão
de mar e guerra, mercador de retalho, dentista, ou que demonio era o
_iman_. Quem a mim me metteu nestes trabalhos sei eu. Foi o celebre
traductor e refutador do alcorão, Marraccio, que teve a insolencia de
dar sempre á palavra _iman_ a significação de _chefe do culto_, de
_principal sacerdote (sacrorum antistes)_[47]: foi o orientalista
Von-Hammer[48], que sabe mais das cousas mussulmanas, que toda a eschola
arabica de Lisboa desde a sua fundação até hoje: foram todas as
exposições da organisação religiosa entre os mussulmanos, não só da
Peninsula, mas de todo o mundo.
Quinta: Digo ser _Ismar_ corrupção de _Omar_ ou de _Ismael_.
É possivel que eu me enganasse: todavia, porque não me fez o auctor do
opusculo um favor especial; porque não me citou na historia de
Abdel-Halim, na de Conde, na de Al-Makkari, ou na de Al-Keiruani, onde
se mencionam milhares de individuos mussulmanos, um só que se chamasse
_Ismar_? Assim fico em duvida, e desconfiado de que tenhamos outra
anecdota como a d'_Iman_.
Felizmente as provas não continuam. Se o auctor proseguisse, temo que
demonstrasse contra mim que eu sabía arabe. Era um aperto em que me
punha; porque na realidade eu não sei decifrar um unico daquelles
engaços de passas, que elle lithographou ao cabo do seu opusculo.
Passado o preambulo, o auctor annuncia que vai provar-me pelos
historiadores arabes que a batalha d'Ourique foi uma grande batalha e o
_golpe fatal dado no dominio mussulmano_. Sancto breve da marca! Sempre
são mouros! Se tal affirmam, digo ao illustre arabista que não os
acredite. Os monumentos christãos, ainda os mais exaggerados, não contam
tanto. O dominio mussulmano ficou como estava depois da jornada
d'Ourique. Affonso I voltou muito depressa para os seus estados, ao
norte do Mondego, porque sabía do officio de soldado. Sessenta annos de
lucta depois da bulha d'Ourique não bastaram para expulsar de todo do
actual territorio português os mussulmanos. Apesar da celebre jornada de
1139, Affonso Henriques teve de ir conquistando palmo a palmo a
Estremadura e o Alemtejo. Que _golpe fatal_ foi, portanto, esse de
Ourique? Ah mouros, mouros! Isso é debicar com o proximo.
Depois de citar o que eu refiro como introducção á narrativa da batalha,
o opusculo vem deitar-me tudo por terra com um sopro. Errei a
chronologia, os nomes dos imperadores almoravides, tudo. Oh peccador de
mim!
Lá vai o texto do nosso academico arabico:
«Nada tem o facto de Ourique, succedido no reinado de
Ali-Ben-Taxefin, com Aly-Ibn-Iussuf; porque este Aly-Ibn-Iussuf foi
o primeiro imperador da dynastia dos morabethins e falleceu no anno
496 da Hegira, 1103 da era Christã...»
«Não foi, _portanto_, no reinado de Aly-Ibn-Iussuf, nem durante o
de Aly-Ben-Taxefin, que começou a pretensão do celebre El-Mohdy,
mas sim no reinado de Taxefin-Ben-Aly, que succedeu a
Aly-Ben-Taxefin, isto é, principiou no reinado do III imperador e
só tomou seu maior incremento no meio do reinado do IV imperador da
dynastia dos morabethins, que foi Ibrahim-Ben-Taxefin: logo no
reinado de Aly-Ben-Taxefin, em cujo tempo foi a batalha de Ourique,
não houve revolução, nem politica, nem religiosa, que distrahisse
as tropas; o que tudo confirmamos, convidando nossos leitores a que
leiam os capitulos desde 32 até 36 inclusivamente da Historia
Genealogica dos imperadores mussulmanos, escripta por
Abu-Mohammed-Salihn-Abd-Alihim.»
Transcrevi todas estas blasphemias historicas, para que se veja com
quanta razão dou graças a Deus de que a nossa lingua seja pouco
conhecida, e o que se deve esperar de uma academia onde ha destes
eruditos. Pús á vista de todos o corpo de delicto. Vamos ao auto.
A serie dos imperadores almoravides que resulta das precedentes
passagens é a seguinte.
1.^o Aly-Ibn-Iussuf 1103 (morto)
2.^o Aly-Ben-Taxefin 1139 (batalha d'Ourique)
3.^o Taxefin-Ben-Aly (apparecimento do Mahadi)
4.^o Ibrahim-Ben-Taxefin.
Em que se funda o auctor? Que é o que cita em seu abono?
Unicamente os capitulos 32 a 36 da Historia de Assaleh-Ben-Abdel-Halim,
ou Salihn Abd-Alihim, conforme for em mouro a graça de sua mercê, porque
não ha dous arabistas que escrevam um nome de gente do mesmo feitio.
Ora os capitulos citados[49] têem apenas o pequeno inconveniente de se
referirem ás primeiras conquistas dos lamtunenses, e ao estabelecimento
do seu dominio na Africa _na segunda metade do seculo XI_. É no capitulo
37 que se narra a primeira passagem á Hespanha de Iussuf-Ibn-Tachfin e a
victoria de Zalaka em 1080; no 38 a segunda passagem; no 39 a terceira
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