Opúsculos por Alexandre Herculano - 03

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parece indubitavel é que alguma convicção historica preoccupava o
espirito de v.. quando nas minhas expressões vagas e geraes viu um
ataque directo e especial á memoria daquelles homens extraordinarios,
cujos meritos não neguei, nem tenho empenho em negar.
Entretanto não pense v.. que com isto pretendo lançar fóra de mim a
responsabilidade de julgar severamente Hildebrando ou Innocencio III.
Não tenho a minima dúvida em lhes applicar as designações de
intelligencias violentas e cubiçosas, como não a tenho em chamar
corruptos a outros papas, como, por exemplo, a Innocencio IV. É verdade
que v.. cobre Hildebrando com a egide da canonisação, e Innocencio III
com a da sua sciencia e litteratura. Mas nem vejo que a sciencia e
litteratura sejam synonimos de virtude, nem creio que uma canonisação
constitua dogma de fé, e obste á liberdade do historiador para avaliar
como entender os caracteres historicos. V.. sabe perfeitamente que,
fundando-se as canonisações em provas humanas, e não em factos
revelados, as decisões pontificias a tal respeito são sempre falliveis,
o que bem se manifesta da oração que ainda no seculo XIV os papas faziam
na solemnidade das canonisações, pedindo a Deus permittisse que não se
houvessem enganado. Esta doutrina é corrente, e v.. não a ignora, nem
poderia ignorá-la[6].
Recorda-me v.. que os escriptores protestantes fazem a estes dous
pontifices a justiça que merecem. Tambem eu a fiz, ao menos como a
entendi, a elles e aos seus successores, e sobretudo ao papado, em mais
de um logar do meu livro. Ninguem admira mais do que eu os progressos
que a civilisação lhes deve. Dos historiadores protestantes modernos não
conheço nenhum mais celebre, dos que exaltam Gregorio VII, do que o
professor Leo. Mas, para isso, elle proprio sentiu a necessidade de se
valer exclusivamente da idéa em que se resume a historia do progresso
humano. Esta idéa é a _lucta do espirito com a sua manifestação, com a
fórma, com a materia; o desenvolvimento do raciocinio predominando no
meio da força do acaso_[7]. Elle vê-a representada, incarnada, digamos
assim, em Gregorio VII e nos seus immediatos successores, na indole e
tendencias desses individuos; eu vejo-a no papado, na indole da
instituição. É inquestionavel que nenhuns pontifices levaram mais longe
a manifestação da idéa, e em philosophia historica os defeitos desses
papas desapparecem, quando se considera a maneira _vasta e energica_ por
que elles desempenharam a missão providencial do papado n'aquella
epocha. Todavia, na apreciação _moral_ dos seus actos como individuos, é
por outros principios que devemos regular-nos. Tanto o professor Leo
conhecia que Gregorio VII ficava mal collocado a essa luz, que a excluiu
da historia «_No mundo dos phenomenos_--diz elle--_a luz da verdade não
se derrama sobre uma face unica, mas reparte-se por todas. Não são os
phenomenos individualmente que constituem a verdade, mas sim o complexo
delles_.» Para avaliar o pontifice como representante e typo da
instituição, a regra é exacta; para o avaliar como homem, não; porque a
_intenção_, a causa moral dos actos, é necessaria para a apreciação
abstracta de um caracter. A suberba, a ambição e até a cubiça de
Gregorio VII estão pintadas nos factos a que accidentalmente me referi
n'um logar do meu livro[8]. Destruam, se é possivel, documentos
irrefragaveis.
Queremos, porém, saber, por testemunho insuspeito, qual era essa
intenção moral, qual o caracter de Hildebrando? Ouçamos um seu
contemporaneo, um sancto padre. Tenho gosto especial em citar nestas
cousas os sanctos padres. São respeitaveis auctoridades! «_De
resto_--diz um delles--_rogo humildemente ao meu S. Satanaz que não se
enfureça tanto comigo, e que a sua veneranda suberba não me fustigue com
tão longa flagellação_[9]».
De quem se escrevia isto? Do cardeal Hildebrando. Quem o escrevia? Um
pobre velho: S. Pedro Damião n'uma carta dirigida a Alexandre II e ao
proprio cardeal. Verdade é que não sabía quão grande sancto havia de vir
a ser o seu _S. Satanaz_. Nessas palavras amargas do veneravel monge
está explicada a actividade irresistivel com que Gregorio VII proseguiu
na lucta gigante entre o espirito e a materia. Superior
intellectualmente aos outros homens, a ambição de os dominar a todos
fê-lo até negar a realeza, não só como facto, mas tambem como principio.
Houve, ha hoje um democrata mais virulento do que Hildebrando? Não o
creio. V.. conhece por certo uma passagem singular das suas cartas.
«Que!--diz elle--uma dignidade inventada pelos homens do seculo (a dos
principes) não estará sujeita á que Deus estabeleceu para gloria
propria? Quem não sabe que os reis, que os chefes procedem dos principes
pagãos, os quaes por instigações do diabo, _que é o verdadeiro principe
do mundo_, movidos por cega paixão e levados por intoleravel presumpção,
_usurparam o poder supremo sobre os seus iguaes_, pondo por obra, com
esse intuito, a rapina, a perfidia, o homicidio, em summa quasi todos os
crimes?[10]» Não lhe parece a v.. que se hoje Hildebrando resuscitasse,
o tinhamos presidente da republica democratica e social? Veja v.. o caso
que o sancto varão fazia do famoso texto biblico: _Per me reges
regnant._ Dir-se-hia que tinha lido: _Per diabolum reges regnant._
Podemos nós os monarchistas (embora o sejamos por differente feitio)
acceitar as idéas do celebre S. Satanaz? Não ha nessas idéas um orgulho,
uma intolerancia para com os poderes da terra, que não
comprehenderiamos, talvez, hoje, se não tivesse vivido no nosso seculo
uma intelligencia igualmente _vasta e energica_, chamada Napoleão
Bonaparte?
Vamos ás ultimas censuras de v.. em que me parece não ter mais razão do
que nas primeiras. Diz v.. que Roma, _significando o poder pontificio_,
não póde jurar o exterminio do catholicismo. Que!?--Pela palavra Roma
não se póde entender senão o poder pontificio, não se póde significar
senão o papa? V.. ha de permittir-me que eu recorra ainda uma vez a S.
Bernardo para me salvar da condemnação eminente. Nesta contenda, não sei
porque, o meu espirito recorda-se a cada momento daquelle illustre padre
da igreja. Falando das horriveis desordens que produziam as appellações
para o papa, e alludindo a dous bispos allemães carregados de crimes,
que, tendo appellado para Roma e levando comsigo bastante dinheiro,
haviam sido repellidos nas suas pretensões e offertas, S. Bernardo
exclama: «_Grande novidade! Quando até o dia de hoje rejeitou Roma
dinheiro?_[11]» Note-se que o sancto vivia no seculo immediato ao
governo de Hildebrando e que S. Bernardo dirigia o discurso ao papa
Eugenio III, que frequentemente louva, e a quem, por certo, não
pretendia affrontar. Que significa pois a palavra _Roma_ na bôca do
grande abbade de Claraval? A curia romana; essa curia, onde, segundo a
opinião do severo cluniacense, «_era mais facil entrar honesto, do que
tornar-se lá homem de bem_[12]»; essa curia que me obrigaria a encher
paginas e paginas de citações se quizesse colligir as passagens
relativas ao seu desprezo por todas as leis divinas e humanas, quando se
tractava de receber ouro, passagens que se encontram ás dezenas nos
escriptores mais respeitaveis, e onde se memoram, até, versos das
cantigas populares contra a cubiça da curia, o que prova ter-se tornado
proverbial a corrupção de Roma[13].
Mas concedamos que, ultrapassando além da curia romana, eu tivesse em
mente o pontifice. Como homem, como principe temporal, os seus actos
publicos são do dominio da imprensa; se esses actos pelos seus effeitos
moraes e politicos poderem trazer graves turbações, dias de amargura á
igreja, não é licito a todo e qualquer christão deplorar essas
consequencias, reprehender esses actos? Quando eu digo que Roma _parece_
ter jurado o exterminio do catholicismo, accuso o papa, a curia, alguem
de ter a intenção directa de o destruir? Ou eu não sei português, ou
empreguei uma phrase trivial, cujo alcance todos comprehendem. Que se
diz do valetudinario que despreza os conselhos dos medicos? _Parece que
se quer matar!_ E quando dizemos isto passa-nos acaso pelo espirito a
idéa de attribuir a esse individuo a intenção directa do suicidio? Ou
será que as expressões simples, as phrases innocentes dos outros homens
se convertem em peste e veneno, quando saem da bôca do feroz herege que
ousou duvidar do testemunho posthumo, e bem posthumo, de S. Bernardo
ácerca do milagre de Ourique?
Em que tempos estamos nós? Para onde caminha a reacção religiosa? Que!?
Eu não poderia apreciar como entendesse o procedimento politico de um
papa, em relação aos futuros destinos da igreja, e S. Thomás de
Cantuaria poderia sem ser um reprobo lançar em rosto a Alexandre III as
gravissimas accusações de o trahir, e de querer conduzi-lo á morte[14]?
Poderia S. Thomás de Aquino, o mais profundo philosopho do seculo XIII,
ao observar-lhe Innocencio IV que tinha passado o tempo em que S. Pedro
dizia «_não possuo nem ouro nem prata_»--responder-lhe «_que tambem era
passado o tempo em que S. Pedro dizia ao paralitico--levanta-te e
anda_[15]» epigramma pungente atirado ás faces de um papa, cuja cubiça
não conheceu limites; poderia, digo, S. Thomás ser um doutor da igreja,
depois deste attentado? Podia sequer ser papa o successor do mesmo
Innocencio, Alexandre IV, que lhe chamava o _vendilhão de igrejas_[16]?
Riscae do catalogo dos bemaventurados S. Antonino de Florença, que não
duvidou de pintar com as mais negras côres os vicios hediondos de
Clemente V[17]. Não chameis o ultimo padre da igreja a Bossuet, porque
taxou de velhaco o papa Eugenio IV[18]. Rejeitae do gremio catholico o
erudito e pio Fleury, porque escreveu o 4.^o discurso sobre a historia
Ecclesiastica. Para serdes logicos despovoae a igreja de sanctos, de
doutores, de homens illustres, se credes que, dentro della, eu, que não
sou nenhuma dessas cousas, não tenho direito de aferir pelos principios
eternos da moral, da justiça e da caridade evangelica as acções dos
papas sem renegar da igreja.
Não disputarei com v.. sobre os successos de Roma nos ultimos tempos.
Cada qual póde vê-los á luz que julgar verdadeira. Ao que, porém, eu
tenho jus é a averiguar se é exacta a proposição absoluta de v.., de que
o futuro da igreja é muito sabido, claro e indisputavel _para os
catholicos_. Por este modo v.. parece excluir-me do gremio do
catholicismo, porque hesito sobre o seu futuro. Advertiu acaso v.. em
que a proposição assim absolutamente enunciada, conduziria ao
impossivel? O que é certo, sabido e claro para a igreja, e para cada um
dos seus membros, é que ella será perpetua, indestructivel. Mas por
quaes phases tem de passar; se a esperam dias serenos, se dias de
tribulação; se acres resentimentos, imprudentemente preparados, virão ou
não como a procella despir a folhagem, lascar os troncos da arvore
eterna do christianismo, eis o que nem a igreja, nem eu, nem v..
sabemos. Está acaso v.., que eu creio profundamente catholico,
habilitado para me dizer de um modo _certo e claro_, se a idea
revolucionaria da Italia apodreceu para sempre encharcada no sangue que
as balas e bayonetas francesas e austriacas derramaram á voz da curia
romana? Se a politica das masmorras, dos desterros, da compressão
inexoravel, preferida á politica evangelica da tolerancia, do perdão das
injurias, da caridade sem limites, poderá varrer para sempre dos animos
italianos o odio do dominio estrangeiro (quer directo quer indirecto) e
o amor da liberdade politica? Esse odio e esse amor póde v.. julgá-los
legitimos ou illegitimos: não disputarei sobre isso. Mas que elles não
existam; que elles não possam triumphar algum dia, eis o que v.., por
certo, não affirmará com a mão na consciencia. E nessa hypothese, quem
saberá dizer até onde chegarão os excessos da colera e da vingança,
azedadas pelo padecer, e até certo ponto legitimadas por elle, se
legitimidade se póde dar em taes sentimentos? Parece-me que ao homem
catholico é licito imaginar, sem que por isso vacille a sua fé ácerca da
perpetuidade do catholicismo, que a igreja se entristece, ou deve
entristecer, aterrada pelo porvir; é licito suppôr que as lagrymas dos
seus futuros martyres vem já de antemão cair-lhe ardentes sobre o seio
materno. Se attribuir ao gremio dos fiéis, composto de homens, os
affectos de dor e amargura desdiz de alguma cousa, não é, de certo, das
tradições evangelicas, nem das tradições dos antigos padres. Já no
seculo IV S. Hilario de Poitiers observava quão frequente era pintar-nos
o evangelho como triste e afflicto o Filho de Deus[19]; e S. Gregorio
Magno não duvidava de dizer: «_A sancta igreja, emquanto vive esta vida
de corrupção, não cessa de chorar os damnos das vicissitudes por que
passa_»: e n'outra parte: «_A dor esmaga a igreja quando vê os perversos
prosperarem na propria maldade_»[20]. É dessas vicissitudes a que allude
o sancto pontifice que eu falo; é a essas vicissitudes, demasiado
provaveis, que os erros dos homens, as paixões anti-christans do
sacerdocio triumphante ajunctam, nas minhas previsões, um caracter de
terribilidade.
Tenho dado razão de mim. Diz v.. que poderia accrescentar mais. Sinto
que o limitado espaço de uma folha periodica, ou outro qualquer motivo,
o inhibisse de assim o practicar. Gósto de ser advertido dos erros em
que caio, quando é a sciencia e o talento quem se incumbe deste mister,
e certifico a v.. de que facilmente me retractaria, se nas suas
ulteriores observações v.. me convencesse de que eu errava. Á ignorancia
presumida, ou á insolencia estupida, é que não costumo fazer a honra de
responder. Quanto a esta questão, que não suscitei, e que até deploro,
ella terminou para mim. Que os hypocritas façam visagens beatas contra a
minha impiedade; que me proclamem herege ou o que elles quizerem, cousas
são essas com que nenhum homem de juizo se afflige, porque as assaduras
inquisitoriaes, mercê de Deus, acabaram para sempre. A raça dos escribas
e phariseus, o peior flagello que Christo encontrou na terra, e que elle
mais cordealmente amaldiçoou, é immortal e immutavel; mas deixá-la
viver. Quem diz ao sapo:--«não sejas asqueroso?»--Quem diz á
vibora:--«não sejas peçonhenta?»--Babem e mordam; é o seu destino,
coitados!
O que não tolerarei é que me chamem de novo, a mim ou aos meus
escriptos, a figurarmos no meio das parvoices sacrilegas com que se
deshonram os pulpitos. Que os prelados façam ou não o seu dever a este
respeito, pouco me importa. Estejam certos de que não será a suas
excellencias que pedirei desaggravo.


III
SOLEMNIA VERBA

AO SR. A. L. MAGESSI TAVARES
(_Outubro, 1850_)

Porque virá tempo em que muitos homens não soffrerão a san
doutrina; mas..... accumularão para si mestres conforme aos seus
desejos:
E assim apartarão os ouvidos da verdade e os applicarão ás fabulas.
_S. Paulo, Epistola II a Thimoteo c. 4. v. 3, 4._

Permitta-me v.. que, sem existirem entre nós outras relações que não
sejam aquellas que fortuitamente nascem entre os homens de letras quando
se encontram no campo da imprensa, eu dirija, por essa mesma imprensa,
uma carta a v..
Esta carta será um pouco extensa. Será talvez seguida de outras. Não o
sei ainda. N'uma questão litteraria, a meu ver de bem pouco valor, que o
procedimento de alguns individuos da ordem sacerdotal converteu n'uma
contenda que não sei até onde chegará, v.. fez-me a honra de ser meu
adversario, escrevendo dous opusculos em que combate as minhas opiniões
n'um, ou para melhor dizer, em alguns pontos d'historia patria.
Naquelles dous opusculos, escriptos em diversas epochas, v.. se houve
sempre para comigo com a nobreza de um cavalheiro, e com a cortesia de
um espirito cultivado. Póde haver ahi uma ou outra expressão mais viva,
que feriria certas vaidades demasiado mimosas; se, porém, as ha, não me
feriram a mim, endurecido já nestes recontros, e que tambem não sou dos
menos sujeitos a ceder ás vezes aos impulsos da vivacidade.
No meio dos que me tem combatido, v.. representa a meus olhos a parte
san, os homens sinceros do gremio, da eschola, do partido (como quizerem
chamar-lhe, porque os nomes importam pouco) a que v.. pertence.
Representa, digo, essa parte, postoque, e ainda bem que assim é, não a
resuma. Igual testemunho devo deixar aqui, se os meus escriptos tem de
viver mais algum dia que eu, ácerca dos Redactores do jornal _A Nação_.
Meus adversarios tambem, não recebi delles na impugnação das minhas
doutrinas, senão provas de consideração e de urbanidade.
Consinta, pois, v.. que, alargando a orbita em que quiz encerrar-se no
seu ultimo e recente opusculo, eu fale, dirigindo-me a v.., com esses
homens probos e leaes que estimo e respeito, embora julgue erroneas,
deploraveis até, as suas opiniões n'uma contenda, que, não por minha
culpa, vai tomando na imprensa portuguesa uma direcção fatal. Deus
queira que os imprudentes que lhe deram origem não tenham de chorar a
sua loucura com lagrymas amargas!
Sería bem triste que essa porção de compatricios meus em cujos corações
o amor do passado é um sentimento puro, postoque, a meu ver, ás vezes se
manifeste de modo pouco reflectido, me cressem traidor á sancta causa da
patria. Se os erros de nossos paes e os erros de todos nós os que
vivemos, erros que nos trouxeram a uma situação que não posso, que não
quero definir aqui, fizerem algum dia com que o velho Portugal, ameaçado
na sua independencia e nacionalidade, brade por todos os seus filhos
para um esforço supremo, para o salvarem ou para morrerem, espero em
Deus, e depois de Deus na minha consciencia, que, sem crer no milagre de
Ourique, não serei o ultimo a acceitar esse terrivel convite. O passado!
Quem mais o amou do que eu nesta terra? Quem volveu nunca os olhos com
mais saudade para as suas tradições? Mas as tradições de que tenho
saudade; mas o passado que eu amo, não o são essas lendas absurdas
(desculpe v.. o epitheto, que espero justificar) inventadas por
interesses mundanos, dos quaes, por mais graves que sejam, nem a
philosophia nem o christianismo consentem se faça o céu instrumento. Nos
tempos que foram o que me sorri, não só como saudade, mas (porque não
direi agora o que hei-de dizer mais largamente um dia?) tambem como
esperança, são as tradições dessa liberdade primitiva, postoque
incompleta, filha primogenita do evangelho, que elle gerara para mãe,
para abrigo das sociedades da Peninsula; dessa liberdade, rude e
turbulenta como uma creança educada á lei da natureza, mas como ella
robusta e viçosa; dessa liberdade que se estribava nos habitos, que
resultava de instituições positivas e exequiveis, e não de instituições
copiadas quasi ao acaso da primeira theoria que tivesse transposto os
Pyreneus; dessa liberdade que tornava a monarchia uma cousa sancta,
necessaria, indestructivel, e que a monarchia, por desgraça sua e nossa,
foi lentamente esmagando debaixo do seu throno, formado dos infolio,
politicamente fataes, do Digesto, do Codigo e das Glossas e Commentarios
das escholas d'Italia; dessa liberdade, que, desenvolvida e organisada
logicamente com a sua origem, nos teria poupado talvez á gloria immensa,
mas para nós mais que esteril, de nos convertermos em victimas da
civilisação da Europa, de revelar o Oriente á sua cubiça, para logo
virmos assentar-nos extenuados n'um occaso de tres seculos; dessa
liberdade que nos teria salvado por certo de um longo estrebuxar em
esforços impotentes de emancipação, que tomámos como licções
d'extranhos, e que era mais velha para nós do que o era para elles.
Eis-aqui a maravilha, melhor que milagres imaginarios, na qual não só
creio, mas tambem espero.
Peço a v.. e aos animos honestos que pensam como v.. se persuadam de que
o homem que não admitte certas narrativas infundadas, nem por isso deixa
de ser bom português, e que, se não está excessivamente inclinado a
adorar o Deus de Ourique, nem por isso deixa de crer em Deus.
Com elles, com v.. a discussão grave, pausada, modesta, é possivel; é
mais, é uma necessidade do espirito, em que este se sente viver da vida,
a elle tão congenita, do raciocinio. Mas como replicar seriamente a
homens, não só ignorantes e ineptos, do que elles não tem culpa, mas que
falsificam, truncam, omittem as palavras do adversario, que lhe alteram
as ideas, que, mettidos no charco mais fetido dos becos da Alfama ou do
Bairro Alto, atíram ás faces do _impio_ que passa quanto lodo lhes cabe
nas mãos, contrahidas e convulsas pela colera? A taes desgraçados que se
póde fazer, senão dar-lhes a triste celebridade dos Cotins ou dos freis
Gerundios, e enviá-los á geração futura, envolvidos no sudario do
escarneo, para lhe distrahir os tedios?
Se as expressões, talvez severas e acres em demasia, que me escaparam
n'um impeto de indignação contra a maioria do nosso clero, e não contra
os homens honestos e instruidos que pertencem a essa classe, como sem
pudor se inculca, não estivessem justificadas pelos actos que as
suscitaram, as consequencias do meu escripto tê-las-hiam remido. Dos que
me impugnaram, foi aos seculares que coube a moderação, a lealdade, e a
elevação dos pensamentos; foi a sacerdotes que couberam as manifestações
de odio incrivel[21], a transfiguração das minhas ideas, e a linguagem
sem nome das prostitutas. Isto é significativo. É que esses seculares
nunca tinham trajado a roupeta, usada a cubrir mais hypocritas e
devassos ignorantes do que varões religiosos e sabios: tinham, sim,
vestido a farda de soldado, costumada a despertar tantas vezes nobres e
grandes instinctos. E que me importam a mim esse odio impotente, essa
linguagem vergonhosa? O que o futuro ha-de deduzir delles sei eu; sabe-o
v.. As ameaças, que ahi se murmuram pelos cantos, essas causam-me dó. Se
ao poder publico faltasse a força para manter illesa a segurança dos
cidadãos, devolvia-se a estes o direito da propria defesa. Mas os
Jacques-Clementes não apparecem senão onde a sinceridade das convicções
degenerou em delirio, e não onde as crenças são especulação. Para ser
Jacques-Clemente requer-se mais alguma cousa do que saber assassinar; é
necessario saber morrer.
Entrarei na materia.
Na questão suscitada pelo modo como tractei na Historia de Portugal a
lenda de Ourique, e ainda outras lendas analogas, é necessario confessar
que se tem partido sempre de um ponto nebuloso e fluctuante. Para se
chegar a um resultado preciso era necessario ter convindo em certo
numero de principios, acceitar certas formulas de raciocinio. Não se fez
isso. E todavia, a crítica historica tem regras para a credibilidade,
regras a que todo aquelle que tracta de taes materias deve sujeitar-se,
porque se estribam, não só na acceitação dos homens de sciencia, mas
tambem na razão commum. Estes preceitos são no nosso seculo, em que os
estudos historicos têm feito na Europa tantos ou mais progressos que as
outras sciencias, assaz severos; mas essa severidade começou a
desenvolver-se desde os fins do seculo XVII, em que a congregação de S.
Mauro, aquelle brilhante seminario de homens illustres, creou a
diplomatica. O estudo dos archivos, estudo alumiado pela philosophia
crítica, mostrou quanto havia a desprezar nessas vastas compilações de
trabalhos historicos dos seculos anteriores. É de S. Germão dos Prados,
de S. Brás da Selva Negra, e dos outros mosteiros benedictinos da França
e da Allemanha, que partiu o movimento intellectual da Europa nesta
parte do saber humano. O que o seculo presente, amestrado por maior
experiencia, tem feito é apertar mais as condições da credibilidade,
evitando ao mesmo tempo todo o genero de preoccupação que possa proceder
dos interesses de partido politico ou da incredulidade em materias de
religião; é tambem o ter dirigido as indagações historicas mais para o
estudo da indole das sociedades, do que para os actos dos individuos.
Não nega as tradições da antiga sciencia; completa-as, aperfeiçoa-as. No
exame dos monumentos, na sua confrontação, tem dado exemplos de
imparcialidade e de paciencia, que mereceriam os applausos dos grandes
reformadores benedictinos, se podessem contemplar os resultados da
eschola que elles crearam, embora a sciencia moderna, como era natural,
os tenha deixado bem longe de si. Os doutos que têm comparado os
_Monumenta Germaniæ Historica_ de Pertz, os _Monumenta Historiæ Patriæ_,
publicados em Turin, a Collecção dos Archivos d'Inglaterra, a
continuação dos _Scriptores Rerum Francicarum_, e emfim as demais
publicações desta ordem com o que os maurienses nos deixaram nesse
genero, sabem que passos gigantes tem dado a crítica das fontes
historicas. O uso dessas fontes, a applicação dos preceitos a ellas, tem
produzido historiadores como Ranke, Guizot, Eichhorn, Savigny, Amári,
Maccaulay e tantos outros que a Europa inteira conhece e admira. É a
estes typos que hoje forçosamente ha-de tentar aproximar-se quem
escrever historia, se não quizer deshonrar-se e deshonrar a litteratura
do seu paiz. Foi essa aproximação que eu tentei, persuadido de que bem
merecia por isso da terra em que nasci. Se é assim ou não, pertence
decidi-lo áquelles que vierem após nós. No meio de uma revolução
litteraria não ha desafogo de animo bastante para se fazer inteira
justiça, nem aos meus esforços, nem á candura das minhas intenções.
Conheço a difficuldade de se abandonarem antigas preoccupações, e seria
louco se me irritasse com isso.
Mas para refutar as impugnações que até aqui têm apparecido não me
parece necessario invocar a sciencia no seu estado actual, e nem sequer
a sciencia anterior na sua applicação á historia profana. Bastam-me as
regras acceitas pelos historiadores ecclesiasticos mais respeitaveis,
inculcadas por theologos, estabelecidas por membros illustres do clero,
a quem nem uma unica voz ousará accusar de menos crentes, ou sequer de
menos piedosos. É, creio eu, e v.. o julgará, acceitar a situação mais
desvantajosa possivel: é tambem o que eu já tinha feito invocando a
regra de Vicente de Lerins. Se a religião (cuja base é a crença em
cousas que excedem a comprehensão humana, e que nos impõe a synthese, o
dogma, sem que nos seja licito recorrer previamente á analyse) exige dos
factos tradicionaes, antes de os acceitarmos, as condições de terem sido
acreditados _sempre, em toda a parte, e por todos_, quem pede para crer
ou deixar de crer factos puramente humanos (sujeitos pela sua natureza a
toda a discussão possivel) apenas as garantias de liberdade intellectual
que a igreja, tão parca em concedê-las, concede aos fiéis para
acceitarem uma parte das suas crenças, não abdica evidentemente de uma
liberdade, de uma vantagem que é sua, que ninguem lhe disputaria? Mais
de uma vez terei talvez de appellar para a probidade litteraria e para a
intelligencia de v.. e dos homens sinceros e honestos que pensam como
v..; mas aqui, parece-me tão evidente a materia, que a deixo á discrição
do espirito mais vulgar, da consciencia mais prevenida. Se Galileu,
quando descobriu que era a terra e não o sol que andava, tivesse
presentes as condições do Comonitorio, não o teria affirmado, e evitaria
as perseguições da inquisição, postoque deixaria para outro a gloria de
ter descuberto um facto importante. Aquelle canon, applicado á sciencia,
é mais perigoso para a verdade nova do que para o erro antigo.
Eu disse que as auctoridades que estabeleceram as regras historicas
acceitas por mim serão ineluctaveis para aquelles mesmos que mais
ferrenhos se mostram em conservar quanto os tempos passados nos
transmittiram. Essas regras, pois, ao menos as principaes, permitta-me
v.. que as transcreva aqui. Pasme Portugal de ver uma parte do clero
insultar-me nos pulpitos e na imprensa, calumniar-me nas praças e
corrilhos, porque segui como historiador as doutrinas estabelecidas
_para se estudar e escrever a historia da igreja_ por homens que são a
gloria e honra da classe sacerdotal. Se diante dos olhos de todos, na
consciencia de todos não estivesse quanto escrevi ácerca da decadencia
intellectual da maioria do nosso clero, parece-me que o que vou
transcrever sería medida sobeja para por ella se aferir essa verdade. Já
que falei dos religiosos da congregação de S. Mauro, começarei pelo mais
celebre membro d'aquella ordem, o grande Mabillon. Eis o que elle nos
ensina:
1.^o «Aquillo em que sobretudo devemos acautelar-nos no estudo da
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