Opúsculos por Alexandre Herculano - 07

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juramento d'Alcobaça_ o haver, antes de Brito o publicar, testemunhos
_da tradição_ de Ourique (argumento na verdade singular!) o padre
Pereira prosegue:
«Mas quanto a verificar o caso da apparição, tem a dita demonstração _o
defeito de que nenhum dos testemunhos em que ella se funda remonta a
maior antiguidade que o reinado d'elrei D. Manuel_. E assim _poderão_ os
emulos das nossas glorias _repôr_ que uns _testemunhos do principio do
XVI não são sufficientes_ para extorquir delles o assenso a um facto,
que se suppõe _acontecido no meio do seculo XII_.»
Depois d'isto, que digam todas as pessoas que lerem esta carta, não
sendo algum clerigo mau e ignorante; diga v.. mesmo, pondo de parte
quaesquer prevenções, o que se deve esperar no opusculo? O auctor
confessa que a favor da apparição não bastam os testemunhos posteriores
ao anno de 1495, insufficientes para provas de um facto succedido em
1139, logo elle vai offerecer-nos documentos, trezentos, ou, pelo menos,
duzentos annos anteriores. Eu digo o que nos offerece Pereira em logar
dos _testemunhos insufficientes_.
1.^o A narrativa de Olivier de la Marche na introducção ás suas
Memorias.
Esta introducção foi começada a escrever em 1492, conforme o proprio
auctor das Memorias declara[32]: isto é, as passagens relativas ás armas
reaes de Portugal foram escriptas dous ou tres annos antes de começar a
epocha em que os testemunhos ácerca de um milagre succedido 357 annos
antes nada provam, segundo confessa o padre Pereira, advertindo que, por
esses não prestarem, nos ía expor quatro novos, _todos de tanto peso e
authoridade, que não ha para que se desejem outros mais graves_. Destas
premissas segue-se, que o testemunho dado a favor de um facto 357 annos
depois do tempo em que se diz succedido é _defeituoso e insufficiente_,
mas dado 354 annos depois do successo é igual ao de qualquer pessoa, ou
de muitas pessoas que houvessem presenciado este, visto que _nada ha
mais grave_, do que um testemunho posterior de 354 annos, emquanto o
posterior de 357 não presta para nada.
Pereira estava doudo, ou gracejava com o publico? Deixo a escolha a v..
postoque estou certo de que das duas explicações ha-de preferir a
ultima.
Mas o caso não pára aqui. Tenha v.. paciencia, porque não fui eu que
quiz discutir o milagre de Ourique; foram os padres, que me têm
insultado porque o tractei como elle merecia, que me compelliram a isso.
Hão-de esgotar o calix da ignominia até as fézes. Elles dizem do pulpito
abaixo que era melhor que eu não tivesse falado em tal; e eu digo-lhes
da imprensa, do meu pulpito, que era melhor continuarem a aleijar o
latim do breviario e do missal, e deixarem-me em paz escrever a historia
verdadeira do meu paiz.
Digo que o caso não pára aqui, porque o modo como é narrada a historia
da apparição por Olivier de la Marche, descrevendo as armas portuguesas,
é curiosissimo. Segundo elle, o conde Henrique tinha escudo branco:
depois este escudo adornou-se por quatro vezes: 1.^a quando Affonso I,
passando o Tejo, desbaratou em campo d'Ourique (_Cambdorick_) os cinco
reis mouros, e, em allusão a cinco bandeiras que lhes tomou, pôs no
escudo branco cinco escudetes azues. 2.^a Houve nova mudança quando _o
mesmo rei foi a Roma_ emprazado pelo papa. Reprehendido em pleno
consistorio por varias culpas, o bom do rei respondeu pondo-se
inteiramente nú, e desafiando o papa e os cardeaes para que lhe
mostrassem todos junctos tantas chagas no corpo como as cicatrizes das
que elle tinha recebido pela fé de Christo. Era maravilhoso, de feito, o
numero d'ellas: cinco com visiveis indicios de deverem ter sido mortaes,
a não se haver dado milagre no caso. O argumento fora peremptorio. O
papa e os cardeaes disseram-lhe que vestisse a camisa; e para lhe darem
uma satisfação da injusta pronuncia, mandaram-lhe que em cada um dos
escudetes posesse cinco besantes ou arruellas, em memoria daquellas
famosissimas lançadas de que os mouros o haviam servido. 3.^a Tendo o
infante D. Fernando, rei de Portugal, casado em França com a condessa
Maria de Bolonha, teve um filho, chamado Henrique, o qual accrescentou a
orla do escudo em que estão os castellos. E sobre este ponto discute o
auctor o erro que havia nos dictos castellos, estribando-se na opinião
de portuguêses notaveis. Entre estes devo advertir, para o que v.. logo
verá, que elle havia já mencionado especialmente _e com elogios
extraordinarios_ o celebre Vasco Fernandes de Lucena, que tinha a
dignidade de escanção de Madama Margarida, viuva de Carlos o
Temerario[33]. A 4.^a alteração, que vinha a ser a quinta fórma das
armas reaes portuguesas, foi o pôr-lhes uma cruz firmada no escudo um
rei de Portugal (já se vê que muito posterior a Affonso I), facto cuja
origem _alguns attribuiam (aucuns veulent dire) a ter-lhe apparecido uma
cruz no céu_ durante uma batalha com os sarracenos, o que vendo o
principe dissera, orando a Deus, que _mostrasse_ antes a _cruz_ aos
infieis, e _assim se fez_, com o que os mouros ficaram desbaratados.
Accrescenta Olivier de La Marche que talvez o milagre seja verdadeiro;
mas que _para elle a verdade é que o bom rei João_ (D. João I) foi quem
ajunctou ás armas portuguesas os quatro braços floreteados firmados no
escudo.
Aqui tem v.. o testemunho de Olivier de la Marche em toda a sua força e
pureza, postoque resumido. Não lhe faço commentarios. Deixo a v.. e a
todos homens instruidos que os façam. Eu por mim estou satisfeito.
Inverterei aqui a serie dos quatro _irrecusaveis_ testemunhos do padre
Pereira, porque tenho uma razão de ordem que me obriga a reservar o
segundo para o ultimo logar. Falarei, portanto, do terceiro.
Gomes Eannes de Azurara, na continuação da chronica de D. João I por
Fernão Lopes, transcreve um discurso feito áquelle principe pelos seus
confessores, frei Vasco Pereira e frei João Xira, a quem elrei pedira
lhe dissessem se era serviço de Deus intentar a conquista de Ceuta. A
resposta dos frades foi affirmativa, estribando-se no exemplo de muitos
outros principes e cavalleiros famosos, que haviam acommettido os
infiéis na persuasão de que practicavam uma obra meritoria,
offerecendo-se á morte. Os que a tinham alcançado, entendiam os dous
frades que ficavam equiparados no céu aos martyres, e que os que não a
haviam obtido, nem por isso deixavam de ser sanctos, estando resolvidos
a morrer alegremente pela fé. Os theologos terminaram a serie dos
exemplos (nos quaes figuram entre aquella especie singular de
bemaventurados o Cid Ruy Dias e o conde de Castella Fernão Gonçalves,
que nunca desconfiaram de que eram sanctos) pela seguinte passagem,
conforme se lê na edição de 1644:
«...temos ante nossos olhos a memoria do mui notavel, fiel e catholico
christão elrei D. Affonso Henriques, cujas reliquias tractamos entre
nossas mãos. Vêde, senhor, os signaes que trazeis em vossas bandeiras, e
perguntai e sabei como e por que guisa foram ganhados; os quaes
certamente de todas as partes mostram a paixão de Nosso Senhor
Jesu-Christo, _por cuja reverencia e amor o bemaventurado_ rei offereceu
o seu corpo em o campo de Ourique, vencendo aquelles cinco reis, como
vossa mercê sabe. Considerae _isso mesmo_ (do mesmo modo) Senhor, _se
elle duvidara se o seguinte trabalho era serviço de Deus, não tivereis
vós hoje em dia esta mui nobre cidade_ (Lisboa) nem a villa de Santarem,
com outros logares, etc.»
Este ultimo periodo supprimiu-o Pereira, porque illustrava o sentido das
phrases relativas á batalha de Ourique. O que frei João Xira queria
dizer era evidentemente, que Affonso I se offerecera a morrer por
Christo em Ourique, entendendo que fazia serviço a Deus, como depois, na
tomada de Lisboa, Santarem, etc. Onde se fala aqui no milagre? Se
houvesse outras testemunhas daquella epocha (1415), que positivamente
referissem a apparição, ainda se poderia, embora com violencia, suppôr
nas phrases do frade uma allusão ao successo; mas faltando-nos
absolutamente esses testemunhos, nada auctorisa tal supposição. Trazer
esta passagem para provar, que já em 1415 existia a tradição, ao passo
que, para ella poder ter a significação forçada que se lhe quer dar é
necessario suppôr a existencia da mesma tradição, o que é, senão um
circulo vicioso, uma petição de principio? Não é, porém, só isso. Nestas
lendas, inventadas com fins humanos por milagreiros e falsarios, quasi
que não é possivel dar um passo sem encontrar falsificação. A chronica
de Gomes-Eannes, publicada no fervor da guerra contra os castelhanos,
depois da revolução de 1640, e precedida por uma gravura representando a
apparição, foi viciada nesta passagem, provavelmente para se ver nella
uma allusão obscura ao milagre, como depois viu, ou fingiu ver, o padre
Pereira. No codice authentico do Archivo nacional, onde no impresso se
lê «_vencendo_», está escripto «_vendo_». «Vendo» torna o sentido da
passagem claro. O rei _vendo_ os _cinco_ reis mouros, offereceu o seu
corpo a Jesus, e pôs nas suas bandeiras os _cinco_ escudos. Substituida,
porém, a palavra _vendo_ por _vencendo_, a phrase obscurece-se; a causa
de se pôrem os cincos escudos nas bandeiras, isto é, o serem os reis
mouros cinco, desapparece; e a lenda, de que se cria tirar vantagem em
1644, ganha em frei João Xira um novo, postoque bem debil, alliado.
Mas supponhamos tudo quanto quizerem. Adoptemos como exacto o texto
impresso de Azurara: vejamos ahi a apparição, embora não haja lá uma
unica palavra a semelhante respeito. O testemunho singular de frei João
Xira em 1415 não seria um pouco tardio para provar um successo de 1139,
profundamente esquecido nos chronicons e monumentos coevos? Não o
rejeitam as regras da critica sincera; regras estabelecidas accordemente
por tantos e tão respeitaveis escriptores ecclesiasticos; regras, emfim,
cuja solidez a experiencia demonstra de contínuo aos que se votam a
serios estudos historicos? Quer v.. um exemplo domestico da utilidade
das doutrinas dos Mabillons, dos Melchior-Canos, dos Fleurys,
desprezadas só por aquelles que desprezam tudo, menos os dezeseis
tostões de um sermão de milagres? É exemplo que não está no cartorio da
camara de Evora, nem nos Commentarios ideaes de Affonso X, mas no
Archivo Nacional, onde todos o podem vêr. Consiste n'uma especie de
summario historico dos reis de Portugal, lançado no 4.^o volume de
Inquirições de Affonso III, no reinado de D. João I. No preambulo
daquelle summario, destinado a avaliar-se, á vista dos factos
historicos, a genuinidade das doações dos reis anteriores, affirma-se
que para o escrever se averiguara com extrema exacção a verdade,
fixando-se assim a serie chronologica dos principes portugueses. Sabe
v.. qual é a exacção desse monumento destinado a servir de padrão legal,
para por elle se afferirem diplomas que importavam á fortuna particular
e aos direitos da corôa? Citarei só os erros relativos a Affonso I.
Segundo o summario official, elle nasceu em 1092, foi casado com a filha
de D. Affonso de Molina, neta do rei de Castella, e morreu em dezembro
de 1184. D'aqui verá v.. o credito que deveriam merecer-nos os
testemunhos do seculo XIV ou XV, para admittirmos um milagre do seculo
XII, quando esses testemunhos existissem, e não fossem um rol vergonhoso
de falsificações e mentiras.
O quarto testemunho do padre Pereira é o proprio instrumento da
apparição, que existiu em Sancta Cruz de Coimbra, antes de se conhecer o
de Alcobaça. O auctor dos Novos Testemunhos diz que não sabe se os dous
foram uma e a mesma cousa, passando o celebre documento do archivo
daquelle mosteiro para o d'Alcobaça. Como demonstra elle, porém, essa
existencia? Pelo depoimento de um frade de Sancta Cruz, dado em 1556, e
publicado por outro frade cruzio, insigne forjador de textos e diplomas,
e chronista da ordem, frei Nicolau de Sancta Maria, declarado falsario
pelos seus proprios confrades[34]. Se acreditarmos este, os conegos de
Sancta Cruz, _empenhados em fazer canonisar Affonso I_, requereram se
tirasse um depoimento de testemunhas sobre os milagres do primeiro rei
português, do _Pharaó obdurado_ dos monges de Cella-Nova. Quem
primeiramente depôs foi um _dos conegos empenhados_, e foi este que
disse constar o milagre de Ourique pelo juramento que existia do mesmo
rei. Desse juramento original tiraram-se então em duplicado copias
authenticas; uma para se guardar no mosteiro, outra para ir a Roma, o
que não chegou a verificar-se. Havia, pois, em Sancta Cruz o original e
uma copia em instrumento, e fóra d'alli outra copia authentica. Tudo
isto se perdeu, e nada resta de um documento de tanta valia, que
forçosamente se havia de guardar com recato, senão a grosseira impostura
dos frades bernardos, restando tambem, nos fins do seculo passado, um
traslado que se dizia transcripto de _um original_, diverso no seu theor
do _outro original_ de Alcobaça, e só semelhante a elle em ter sellos
pendentes, cousa que não existia na epocha em que o juramento se diz
exarado.
O que tudo isto vem a ser é uma serie de vergonhas e miserias
repugnantes, e sobretudo de falta de juizo. Se o houvesse nos falsarios,
elles nos dariam hoje mais trabalho para atinar com os seus embustes. Se
frei Nicolau, ou os conegos de 1156 (porque eu não sei se a historia do
depoimento se verificou, ou se é invenção do chronista) se lembrassem do
que passou antes d'elles, teriam procedido com mais cautela nas suas
mentiras. Quem lê a façanhosa chronica dos conegos regrantes conclue que
no tempo de frei Nicolau os pergaminhos originaes eram aos milhares em
Sancta Cruz de Coimbra. Pois aqui está o que não só elle proprio,
postoque fraca testemunha, mas tambem escriptores mais serios, que se
reportam a um documento coevo, nos referem como acontecido em 1411. No
dia de Corpo de Deus desse anno, uma tempestade que estourou sobre
Coimbra produziu uma chuva espantosa, que quasi destruiu o mosteiro de
Sancta Cruz. «A agua (diz o auto que sobre isto se redigiu) levou, além
de muitas outras cousas, quatro caixas de escripturas de memorias
antigas e de doações que os reis fizeram ao dicto mosteiro, que _todas_
foram molhadas _e a mór parte dellas perdida_». Sabendo elrei D. João I
do successo, segundo confessa o mesmo frei Nicolau, ordenou se
trasladassem em publica fórma as _doações e mais escripturas_ que
restavam dando-se a este transumpto a mesma força dos originaes, «_com o
que_, prosegue o chronista, _se restaurou parte da perda de tantas e tão
antigas escripturas que hoje nos fazem grande falta_». De duas uma: ou o
instrumento da apparição depositado em Sancta Cruz pereceu em 1411, ou
escapou. Se escapou, devia ser trasladado no chartulario em que, segundo
a ordem delrei, se lançou o que restava. Esse chartulario existia ainda
no tempo do chronista, e provavelmente existe ainda hoje. Para que
inventaram, pois, o ridiculo pergaminho de Alcobaça? Porque, em vez de
imaginarem cem mentiras para amparar a tradição, não foram a Sancta Cruz
extrahir desse traslado authentico dez ou cem traslados novos, que
tambem seriam historica e até legalmente authenticos? Porque não vão lá
buscá-los ainda hoje para confundirem a minha impiedade? Se, porém, o
pergaminho original pereceu em 1411, que são essas historias de
publicas-fórmas _do original_ feitas pelos notarios Manso e Thomé da
Cruz, e não sei por quem mais, senão embustes, ou copias tiradas de um
documento falso. Porque eu não disputo, nem me importa, que elle fosse
forjado pelos frades de Sancto Agostinho ou pelos de S. Bernardo.
Falta o segundo testemunho, que deixei para ultimo logar, porque se
prende com o que me resta a dizer a v.. sobre a lenda da apparição. Esse
testemunho é o de Vasco Fernandes de Lucena, que, indo como orador da
embaixada enviada por D. João II ao papa em 1485, referiu a historia da
apparição no discurso que recitou perante Innocencio VIII e perante a
curia. Como prova do successo, elle tem pouco mais ou menos o valor do
de Olivier de la Marche. Se aos historiadores que escreveram depois de
1495 se não póde attribuir, segundo Pereira, e muito mais segundo as
doutrinas dos pios e eruditos escriptores a que me referi na carta
antecedente, auctoridade bastante para nos compellirem a acceitar a
tradição de Ourique, tê-la-ha, porventura, o testemunho singular de um
homem que o refere apenas dez annos antes, tractando-se de um milagre
que se diz succedido n'uma epocha anterior de mais de tres seculos? É
impossivel que v.. não sinta que semelhante auctoridade nada vale.
Eis aqui os testemunhos que Pereira colligiu. O primeiro e o segundo são
dos fins do seculo XV, e ainda assim, ao que parece, reduzem-se a um só.
Persuadem-no o affirmar Olivier de la Marche que sobre a questão das
armas portuguesas ouvira pessoas _notaveis_ de Portugal com quem
tractara[35] tendo-se espraiado pouco antes em encarecidos elogios á
sciencia e talento de Vasco de Lucena. O terceiro é uma passagem, aliàs
viciada, de Gomes Eannes, a qual, quer viciada, quer correcta, não
contém uma unica palavra ácerca da apparição. Finalmente, o quarto é o
juramento de Affonso Henriques, que _consta_ existia em Sancta Cruz
muito antes de Fr. Bernardo de Brito encontrar o de Alcobaça, o qual se
não sabe se é o mesmo que estava em Sancta Cruz, mas que nós sabemos
perfeitamente que é falso. Eis aqui os testemunhos do milagre de
Ourique, «_de tanto peso e auctoridade, que não ha para que se desejem
outros mais graves_».
Ainda uma vez lembrarei a v.. que lhe deixo a decidir se o padre Pereira
escreveu isto em seu juizo, ou se estava dando largas á sua jovialidade.
Resta-me só fazer um esforço para acceder, até onde é possivel, a uma
pretensão de v.. embora já ficasse provado que ella era infundada. Diz
v.. que para refutar plenamente a fabula da apparição deveria eu dizer
quando, como, para que, e por quem fora inventada. É evidente que o
falsario havia de precaver-se para não o descubrirem, e só elle poderia
dizer positivamente qual era o seu intuito quando forjou a patranha.
Sendo homem astuto, saberia não somente guardar segredo, mas tambem
fazer espalhar com arte a fabula. Que calumnias não tem alevantado uns
aos outros os partidos politicos nestes nossos tempos? Muitas dellas,
passando primeiro de boca em boca, vindo á imprensa, combatidas pelos
calumniados, nem por isso hão deixado de generalisar-se, e de tomar ás
vezes tal consistencia, que é possivel passarem algumas, d'aqui a um
seculo, por factos historicos, até que uma critica severa e
desapaixonada as reduza ao seu justo valor. Sobre a origem da fabula de
Ourique não se podem produzir factos decisivos, mas podem reunir-se
alguns, que, assim aproximados, offerecerão fundamento a suspeitas
vehementes sobre a epocha do nascimento da tradição, sobre seus
auctores, e sobre os fins com que foi inventada. Note v.. que eu falo da
tradição e não do juramento, que provavelmente, no estado em que hoje o
temos, é mais moderno. Quanto a esse invento grosseiro, considerado em
si, confesso que me fallece o animo para o analysar.
Partamos de um facto. O primeiro testemunho sobre a existencia da
tradição relativa ao milagre de Ourique, preciso, incontroverso, é o de
Vasco Fernandes de Lucena em 1485: tudo o mais são chronicas que _se
perderam_, vestigios que _se apagaram_, obras que _ninguem conhece_.
Isto faz lembrar o gracioso livro das _Antiguidades de Evora_, que
muitos tem tomado por obra de um tolo, e que na realidade são a satyra
dos falsarios e crendeiros, feita por um homem espirituoso e engraçado.
Tudo quanto se cita anterior a 1485 são embustes e ridicularias, sem
exceptuar as chronicas do tempo de Affonso Henriques attribuidas aos
imaginarios chronistas João Camello e Pedro Alfarde, onde se diz que
_talvez_ se achasse a tradição. A invenção dos taes chronistas, frades
de Sancta Cruz, tinha já sido reduzida a pó pelo cruzio D. Thomás da
Incarnação, e por frei Manuel de Figueiredo, frade d'Alcobaça. A
referencia a semelhantes mentiras feita por Pereira e por Cenaculo, que
escreveram depois de ellas estarem refutadas, prova a _sinceridade_ com
que foram redigidos nesta parte os _Cuidados Litterarios_, e tambem os
_Novos Testemunhos_.
Temos, pois, um homem celebre, um castelhano, erudito, valido de D. João
II, que, n'um discurso recitado perante Innocencio VIII, menciona pela
primeira vez a apparição. Singular origem de uma fabula, que, revelada
por um estrangeiro, vem á luz em terra estrangeira, regida por um
governo theocratico, que tem por fundamento primitivo do seu dominio
temporal um titulo falso.
A memoria de D. João II é odiosa. Entre todos os reis legitimos
portugueses, é elle o unico ao qual sem injustiça a historia póde
attribuir a qualificação de tyranno. Elle foi quem deu o golpe mortal
nas velhas liberdades desta nossa terra. No seu reinado tem de ir buscar
o historiador a causa fundamental da nossa decadencia, que começa com o
estabelecimento do absolutismo, embora a podridão que corroe a arvore se
esconda por alguns annos no cerne. É tambem singular por esta
circumstancia a origem da tradição. Nasce, dilata-se, cresce, firmando
as raizes no tumulo da liberdade.
Vivia em Roma nos primeiros annos do reinado do _principe perfeito_ um
foragido português, seu inimigo entranhavel, o cardeal D. Jorge da
Costa. Depois do assassinio judicial do duque de Bragança, o cardeal
aproveitou o ensejo para malquistar o rei português com Sixto IV. Em
consequencia d'isso (ao menos assim se acreditava), o papa enviou em
1483 um nuncio a Portugal, a queixar-se dos abusos do poder temporal
contra as pretendidas immunidades da igreja, que o filho de Affonso V
respeitava tanto como os foros politicos do reino. Foi o rei emprazado
para apparecer ante o papa, por si ou por procurador, para dar
explicações ácerca do seu procedimento. Nomearam-se embaixadores; mas
antes de partirem, Sixto IV relevou o rei da citação, diz-se que a
instancias do mesmo cardeal que excitara a tempestade, receioso de que
os ministros portugueses, chegando a Roma, lhe pagassem em igual moeda,
fazendo-lhe perder parte do poder e credito de que gosava[36].
Parece, porém, que, emquanto proseguia em Portugal a lucta tenebrosa e
encarniçada de uma aristocracia suberba com um rei ambicioso e
inexoravel, o cardeal não dormia em Roma. Invectivava-se ahi ou
fingia-se invectivar contra a frouxidão de Sixto IV, que deixava o rei
português quebrar os privilegios do clero sem se lhe comminarem
censuras[37]. Deste clamor sincero, ou desta farça, resultou uma bulla
concebida em durissimos termos, que se expediu nos primeiros mezes de
1484. A linguagem della era a linguagem habitual da curia, insolente e
grosseira; mas havia ahi uma circumstancia digna de reparo. O papa
recordava uma cousa de que os reis portugueses se haviam esquecido;
recordava a D. João II que _tinha a dignidade real por dadiva da sé
apostolica e de que era seu tributario[38]_. Uma bulla destas faria hoje
desatar a rir quaesquer ministros portugueses, até em pleno parlamento.
Naquelle tempo, porém, ainda o negocio era um pouco serio. D. João II,
se riu, foi em particular.
O arcebispo D. João Galvão, um dos valídos do rei e inimigo figadal da
familia de Bragança[39], tinha sido transferido, ainda em tempo de
Affonso V, da sé suffraganea de Coimbra para a metropolitana de Braga. O
arcebispo olhava para as cousas ecclesiasticas como certos prégadores
d'hoje olham para a prédica; pelo lado solido. Sem lhe importar obter o
pallio, foi usando do titulo de arcebispo e tomando conta das rendas da
mitra. Ligado com o rei, que lhe deixava devorar pacificamente tão bom
quinhão na mesa ecclesiastica, ajudava-o do modo que podia a opprimir o
clero[40]; mas até que ponto eram graves as culpas do arcebispo, que
assim se arriscava a perder a dignidade archiepiscopal (como tem
succedido a muitos outros) não sei eu dizer: falo pela boca do papa, que
lhe dirigiu tambem uma carta de ameaças. O que é certo é que o movedor
das fulminantes bullas de Sixto IV, o cardeal da Costa, não devia
esquecer-se de carregar a mão no valído do seu adversario. Odio de padre
contra padre ainda é mais profundo e tenaz do que contra qualquer
secular.
As relações com Roma offereciam, pois, um aspecto pouco agradavel,
quando Sixto IV veio a fallecer (agosto de 1484) na mesma conjunctura em
que elrei apunhalava em Setubal o Duque de Viseu, mandava envenenar o
Bispo d'Evora, assassinar D. Gotterre no fundo de um calabouço, e
degolar e esquartejar em praça outros fidalgos. D. João I tomara da
côrte de Inglaterra o esplendor, os habitos cavalleirosos, o amor da
cultura litteraria, as virtudes domesticas, que ainda hoje distinguem as
classes elevadas na Gran-Bretanha. Seu bisneto tomava da côrte de França
apenas um typo, o de Luiz XI, pelo qual buscava modelar as manifestações
da sua alma.
A casa de Bragança procedia de D. João I, mas de D. João I antes de rei
e simples mestre da ordem d'Aviz. A cruz dessa ordem tinha-se enlaçado
com as armas de Portugal, porque D. João I não se esquecera, depois de
rei, de que fora o chefe dos freires portugueses de Calatrava.
Com as mãos tinctas do sangue do duque de Viseu, D. João II arrancou a
cruz do escudo de Portugal, e alterou a posição dos escudetes lateraes,
collocados até ahi horisontalmente, dando assim nova fórma ás armas do
reino. Dir-se-hia que até d'alli quizera affastar a memoria da linhagem
dos seus principaes adversarios.
Era essa a causa da mudança? Não o sei. Ruy de Pina, um dos amoucos do
principe perfeito, attribue-a a outros motivos. Podemos acceitar ou
recusar o seu testemunho, assaz suspeito. O que é certo é que a
alteração se fez no mesmo anno de 1484.
Hoje a heraldica e os brasões são dixes com que se entretem as creanças
barbadas: o jogo do xadrez é cousa incomparavelmente mais grave. Nos
fins do seculo XV não era, porém, assim. A attenção da Europa devia
volver-se principalmente para o ensanguentado drama que se representava
na côrte de Portugal; mas a cruz de Christo expulsa das moedas, dos
sellos e das bandeiras do reino, pelas mãos de um rei algoz, havia de
dar occasião a mais de um commentario pouco favoravel.
Todavia, se, como resavam as lendas, os cinco escudetes representassem
uma cruz, e ao mesmo tempo contivessem uma allusão mysteriosa á paixão
de Christo; se as arruellas que os ornavam representassem os trinta
dinheiros por que Judas vendeu o Senhor, que falta faria a cruz
floreteada de Aviz nas armas de Portugal? Não ficava ahi uma cruz
mystica, um symbolo piedoso?
Fallecido o papa que recordara a D. João II qual era a origem da
independencia de Portugal relativamente a Leão, e que ainda ousava
lembrar-se do signal de vassallagem que outr'ora se offerecera á igreja
de Roma, elle fora substituido por Innocencio VIII. Sabido o successo,
elrei resolveu mandar a Roma uma embaixada, para orador da qual escolheu
um homem de plena confiança, o castelhano Vasco de Lucena.
Quem sabe se elrei tinha algum titulo melhor que as bullas de Lucio II e
de Alexandre III ácerca da independencia do reino, e que talvez Affonso
Henriques houvesse dado a guardar aos seus chronistas, João Camello e
Pedro Alfarde? Se o tivesse, bom seria que os embaixadores advertissem
dessa circumstancia o novo papa, tirando assim á curia a vontade de
repetir as doutrinas carunchosas e oblitteradas da bulla de Sixto IV.
Porei aqui a parte mais interessante do discurso, que o orador de
Portugal fez ao papa rodeado dos seus cardeaes, em cujo numero se
contava o implacavel velho D. Jorge da Costa. O padre Pereira já
traduziu uma porção desse discurso; mas era um preguiçoso aquelle bom do
padre Pereira. V.. hade permittir que eu o seja menos, e dê um talho
mais largo.
Depois de indicar em poucas phrases as origens de Portugal, o orador
fala dos primeiros annos do governo de Affonso I e da pequenez dos seus
estados; diz-nos em seguida quaes as suas empresas e conquistas: Leiria,
Santarem, Lisboa tomadas, o Tejo transposto, a provincia transtagana
submettida, com Evora sua capital, Cezimbra e Palmela, fortalezas
inexpugnaveis, reduzidas, sendo por elle desbaratados _milhares
infinitos_[41] de mouros com poucos cavalleiros. «Outra vez (ou
_novamente_)--prosegue Lucena--no campo de Ourique, naquelle sitio a que
o _vulgo_ chama _agora_ Cabeças dos Reis, com um pequeno exercito venceu
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