Opúsculos por Alexandre Herculano - 13

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convier; que, em summa, pode collectiva ou individualmente ser vendida,
escambada, doada; uma tal familia, digo, tem acaso obrigações
determinadas, de que seja necessario conservar a memoria para o futuro?
De que serve declarar a granja, o villar, o casal onde cada uma dessas
familias reside, se, no dia seguinte ao da redacção da ementa, o senhor
pode achar mais conveniente outra distribuição dos seus escravos? Apesar
da facilidade com que hoje se escrevem cousas inuteis, não se reputaria
louco o proprietario que escrevesse e archivasse a seguinte memoria: _A
raça do cavallo N. tem de conduzir madeiras; a raça do touro_ _N. tem de
lavrar taes terras; tal vehiculo tem de servir de transporte a tal
objecto; tal alfaia é destinada a tal uso_?
Na minha opinião, o que estas memorias provam é o mesmo que provam
directa ou indirectamente todos os documentos que se referem á condição
ou aos encargos dos servos originarios, ou homens de creação: é que
estes estão unidos a certos predios indissoluvelmente; que desse
complexo do homem e do predio o senhor tem de auferir prestações
agrarias e serviços determinados. Nesta hypothese o _cobrinellum_ é uma
cousa racional. A _casata_, isto é, a familia que vive n'uma certa
choupana ou grupo de choupanas, (_casa_) tem de satisfazer, de geração
em geração, perpetuamente, aquelles encargos. Os enlaces inevitaveis com
outras familias podem produzir complicações de direitos entre diversos
senhores, mas o _cobrinellum_ ou ementa particular de cada um servirá
para os deslindar, indicando os serviços, independentes das prestações
agrarias, que essas familias devem, _debent_. Esta idéa de dever que se
manifesta nos documentos presuppõem a do direito. O escravo não tem
deveres; porque as _cousas_ são incapazes delles. Nos proprios tempos
barbaros dever e direito são inseparaveis; porque as duas idéas são
forçosamente correlativas.
Conforme o que n'outro logar adverti, a adscripção não era de feito
simplesmente uma grande restricção da liberdade; importava tambem
vantagens, as de uma especie de co-propriedade do servo colono na sua
gleba. O sentimento do servo de gleba devia ser analogo ao do camponês
russo dos nossos tempos. «No momento em que os servos separados da
terra--diz o marquez de Custine--vissem vendê-la, arrendá-la, cultivá-la
independentemente delles, amotinar-se-hiam de golpe, clamando que os
despojavam _dos seus bens_[91]. Do mesmo modo que na Russia, onde se
caminha da barbaria para a civilisação, nas origens barbaras da
monarchia néo-gothica a adscripção como regra succedeu naturalmente á
servidão pessoal, e a servidão da terra cultivada por um colono
pessoalmente livre succedeu á adscripção nos seculos XII e XIII, como me
persuado que demonstrei no meu livro. Suppôr que da escravidão se passou
de salto á liberdade pessoal affigura-se-me a supposição de um
impossivel historico.
Effectivamente: como achamos mais geralmente estabelecido o colonato nos
seculos XII e XIII? O colono é _obrigado_ a morar no predio que cultiva,
mas não é forçado a isso. Se delle sai, não lhe é licito cultivá-lo;
perde-o; não o reconduzem, porém, violentamente a elle. A união do homem
á terra subsiste, mas essa união não é indissoluvel. A liberdade pessoal
nasceu. Entre esta situação e a do homem-cousa, do escravo, ha um
abysmo. Como se transpôs? O meio principal consistiu na servidão da
gleba. O homem-cousa foi-se transformando em _pessoa_ serva: a pessoa
serva em pessoa livre; mas ficou ainda adscripta na qualidade de colono.
Para ser plenamente pessoa livre precisava de desaggregar de si esta
qualidade; de divorciar-se da gleba, a que aliás o prende esse amor
ardente do homem de trabalho ao solo que cultiva. E que importava, se
_podia_ fazê-lo? É por isso que disse no meu livro que a servidão desceu
do homem para a terra. Depois, lentamente, é que veio o colonato na sua
fórma quasi definitiva: o laço unico que liga o colono é a solução do
canon e a prestação dos serviços pessoaes ao já não _senhor_, mas
_senhorio_. Depois, finalmente, chegou-se á formula definitiva: os
serviços pessoaes ou desappareceram ou poderam ser substituidos, á
vontade do colono, pela solução de um _quantum_ que os representasse.
Desde este momento o colonato não conteve mais em si elemento algum que
repugne ás nossas idéas actuaes de direito, e nem sequer ás da economia
politica.
Eu cri ver a liberdade humana despontando tenue nos horisontes da vida
do povo desde os tempos wisigothicos. Para o sr. Muñoz a noite profunda
da escravidão durou nesses horisontes até a fatal jornada do Guadalete.
E não só, na sua opinião, durou até aquella epocha, como tambem
subsistia ainda com todo o peso das suas sombras no seculo XI. Mas em
que periodo collocar a transição para a liberdade pessoal dos seculos
XII e XIII, cuja existencia demonstrei como facto predominante no
colonato dessa epocha, se não for no estado dos servos originarios da
monarchia leonesa? Se assim não houvera sido, singular excepção á lei de
desenvolvimento gradual e constante do progresso humano sería a historia
da Peninsula durante quatro seculos!


VI

O sr. Muñoz contrapõe ainda á minha opinião varios factos, que entende
provarem ser o estado dos servos o de cousas na monarchia de Oviedo e
Leão. Um delles é não ter o servo representação em juizo, nem poder
servir de testimunha, havendo outro meio de prova.
De se me oppôr este facto parece poder inferir-se ter eu affirmado em
alguma parte que o servo se convertera em homem plenamente livre na
monarchia leonesa. Nesta hypothese a objecção poderia parecer plausivel,
ainda que realmente o não seja; porque não se segue da plena liberdade
do individuo, em qualquer estado social, a necessidade positiva de ser
igual em direitos, ainda civis, a todos os individuos livres. O que,
porêm, affirmei, e o que julgo poder continuar a affirmar é que a
servidão mais ou menos absoluta dos wisigodos se tornou na monarchia
néo-gothica em servidão da gleba, e que esta modificação foi um grande
passo para a emancipação das classes populares. Se o servo não podia
desaggregar-se da gleba, é evidente que a gleba tambem não podia
desaggregar-se do servo, e que desse estado resultava para elle uma
especie de co-propriedade de facto, que, por indestructivel, creava um
direito positivo. O alcance deste direito era tal que as suas
consequencias, na successão dos tempos, deviam trazer mais tarde ou mais
cedo a plena liberdade pessoal, como de feito trouxeram. Eis o que eu
estabeleci. Objectivamente, a existencia da pessoa civil resulta da
manifestação da sua capacidade juridica, embora essa manifestação seja
incompleta. Entre os romanos, o servo considerava-se como cousa, porque
objectivamente era incapaz, não de um ou de outro direito, mas de todos
elles, e por isso perdia a personalidade: nas sociedades modernas,
porêm, o privilegio, a jerarchia, a idade do homem, o seu estado physico
ou moral produziram sempre e produzem ainda differenças de direitos, até
civis, que nem por isso destroem a personalidade de ninguem. Fosse o
poder publico, fosse o proprio adscripto que podesse invocar o principio
da adscripção para não ser violentamente separado da gleba nativa; fosse
o costume, a opinião, ou a lei que sanctificasse a união da terra com o
seu cultor, o que é certo é que se invocava, sanctificava e mantinha um
direito, uma vantagem importantissima do adscripto. Fosse qual fosse a
dependencia deste do respectivo senhor, a sua personalidade existia.
Assim, quaesquer que fossem as restricções que houvesse a respeito dos
servos no systema judicial desde o seculo VIII até o XII, essas
restricções nem provam contra a personalidade objectiva dos servos, nem
importam á adscripção ou não adscripção. Sobre aquelle systema judicial
e sobre o papel que os servos representavam nos pleitos poderia
accrescentar aqui algumas ponderações que me parece mereceriam a
attenção do sr. Muñoz, mas que me levariam mais longe do que comportam
as dimensões deste pequeno trabalho, e que seriam sobejas para o fim que
me proponho. Deixando, pois, de parte questões agora inuteis, venhamos a
outros factos juridicos em que o sr. Muñoz vê a morte da personalidade,
e que evidentemente não provam o que elle pretende, antes em parte
demonstram que do mais ou menos incompleto dos direitos civis em
individuos desta ou daquella classe nunca se poderá deduzir a
escravidão, a não-personalidade, a suppressão absoluta desses direitos.
«Competia ao dono sómente--diz o sr. Muñoz--reclamar a indemnisação do
damno padecido pelo servo como cousa de sua propriedade[92].» Os
documentos, aliás numerosos, em que esta affirmativa póde estribar-se
não servem de modo algum para dirimir a contenda; porque para provarem a
não-personalidade dos servos e a sua não-adhesão á gleba (suppondo que o
facto o provasse) cumpria mostrar que elles se referiam aos servos
originarios, e não a escravos captivos. Admittindo, porêm, que taes
documentos se refiram a servos originarios, essa concessão de nada
servirá para revalidar a opinião do sr. Muñoz. A representação pelo
senhor não se limitava ao escravo, e nem mesmo a este e ao servo de
gleba: estendia-se a individuos livres collocados na dependencia
juridica de alguem. Seguir-se-ha d'ahi que semelhantes individuos eram
cousas; não tinham personalidade?
O sr. Muñoz estabeleceu excellentemente no seu opusculo[93] a natureza
da maladía. O malado era o homem livre, que se collocava n'uma especie
de vassalagem para com seu senhor adoptivo, e esta especie de relações
provei eu que eram inteiramente pessoaes e independentes do caracter de
colono, situação em que o malado podia estar em relação a outro senhor,
bem como mostrei a transmissão da maladia de paes a filhos[94]. A
reparação, porêm, dos damnos feitos aos malados revertia ainda no seculo
XI em beneficio do patrono[95]. Admittida a doutrina estabelecida depois
pelo sr. Muñoz, esta jurisprudencia provaria contra elle proprio;
provaria que o malado, longe de ser, como tal, homem livre, era apenas
uma cousa, apenas uma propriedade do _dominus_.
Como os malados, os solarengos (solariegos) eram colonos livres. Di-lo o
sr. Muñoz, e com elle dizem-no os monumentos. Todavia nós lemos no Foro
Velho de Castella[96]: «_Ninguem deve pousar nem entrar por força em
casa de nenhum solarengo, e se alguem o fizer deve pagar 300 soldos ao
senhor, de quem for o solar, e o damno em dobro ao lavrador que recebeu
o aggravo_». Nos foraes do typo de Salamanca lemos tambem: «_Se alguem
matar o creado de qualquer vizinho, receba este a multa do homicidio. O
mesmo é applicavel ao seu hortelão, ao caseiro que lhe paga quartos, ao
seu moleiro e ao seu solarengo_[97]».
A simples relação de vassalagem e clientela produzia ás vezes os mesmos
effeitos. Assim, em alguns desses foraes do typo de Salamanca se estatue
tambem que _se forem assassinados homens que alguem tenha nas suas
herdades, ou que sejam seus vassalos pertencerá ao senhor a multa do
homicidio_[98].
Eis aqui como ainda nos seculos XII e XIII o senhor ou patrono havia a
multa dos crimes commettidos contra os seus dependentes, sem que d'ahi
se possa nem por sombras inferir que a dependencia do cliente, do
vassalo, do malado, do solarengo ou do creado fosse a da escravidão.
Nada direi acerca de o sr. Muñoz qualificar a _calumnia_, a multa
judicial, _de compensação pecuniaria imposta como pena ao matador_. O
sr. Muñoz sabe perfeitamente que não era essa a indole de taes multas:
foi uma phrase inexacta que lhe escapou na rapidez da composição, como
talvez me terão escapado a mim outras analogas. Mas o que não posso
deixar de observar é uma circumstancia que prova como os espiritos mais
elevados e de mais solida sciencia chegam a precipitar-se quando
subjugados por um preconceito. Possuido da idéa da escravidão dos servos
originarios nos quatro primeiros seculos da monarchia leonesa, o sr.
Muñoz, ao passo que viu dimanar a não-personalidade do servo do direito
do senhor ás multas dos crimes perpetrados contra elle, não viu,
buscando estribar-se em documentos, que o primeiro que citava, tirado de
um chartulario do mosteiro de Cellanova, continha a refutação
peremptoria da sua doutrina. Este documento do anno 940 é uma carta ao
mesmo tempo de _agnição_ e de _incommuniação_, em que Pelagio
_incommunía_ os bens que tinha em certas aldeias a D. Ilduara e a seus
filhos, por elle haver com uns clientes seus espancado por tal modo
Froila, _junior_ de D. Ilduara, que o espancado morrera, e Pelagio, não
podendo talvez pagar a D. Ilduara a multa que lhe fora imposta, recorria
ao expediente de lhe _incommuniar_ aquelles bens[99]. Mas Froila era um
_junior_, colono da mais humilde classe, porêm livre. O texto das cortes
de Leão de 1020 e a sua antiga versão em vulgar não consentem que se
interprete de outro modo a palavra _junior_: nisto o sr. Muñoz está
perfeitamente de acôrdo comigo no seu commentario áquelle celebre
monumento legislativo[100]. Como, pois, se invoca um diploma que
formalmente contradiz a doutrina que é destinado a sustentar?


VII

Os consorcios entre individuos das classes servis offereciam varias
hypotheses juridicas: o servo podia casar com uma serva do mesmo senhor,
ou com a de outro: ter um ou mais filhos ou nenhum: o marido podia ir
viver na residencia anterior da mulher, ou a mulher na residencia
anterior do marido: materialmente, essas translações de domicilio podiam
occorrer com licença do senhor ou sem ella. Estes diversos factos
influiam necessariamente nas relações do senhor e do servo. Restam em
Portugal e em Hespanha bastantes documentos de que elles se davam, e de
que se buscavam arbitrios para solver as difficuldades que d'ahi
procediam. Achamos contractos, inqueritos, memorias particulares,
sentenças, em que se previnem, se memoram, ou se remedeiam as
consequencias dessas varias hypotheses em relação aos direitos dos
senhores, e em que, portanto, obtemos a certeza de ellas se haverem dado
desde o VIII até o XII seculo. Para occorrer aos conflictos de
interesses e de direitos, vê-se dos mesmos documentos que se recorria á
divisão das familias. Em que consistia esta divisão? O que é que se
passava na realidade?
O desacôrdo entre mim e o sr. Muñoz já se vê que deve ser completo na
apreciação dos documentos relativos a semelhante assumpto. Elle vê a
escravidão como condição geral dos individuos da classe servil do seculo
VIII ao XII: eu vejo-a só em relação aos captivos sarracenos, e a
servidão da gleba em relação aos _homines de creatione_, aos _servi
originales_. N'uma nota do meu livro[101] mostrei, segundo creio, que os
documentos com que elle pretendera provar que os filhos do servo e da
serva de differentes senhores se dividiam entre estes[102] se deviam
entender de um modo diverso. Na minha opinião, o que se dividia eram os
serviços pessoaes, e em certos casos (como na incerteza de pertencer a
um ou a outro senhor o dominio da gleba habitada pelo homem de creação)
as prestações agrarias. Em relação ás glebas possuidas de paes a filhos
pelas familias servas, a minha theoria era e é que o _dominio_ e o _uso_
de qualquer desses predios se moviam em duas espheras: que o _dominio_,
manifestado, traduzido materialmente na percepção das prestações
agrarias e na exigencia de serviços, era a propriedade do senhor;
constituia o objecto de uma grande parte desses milhares de contractos
do seculo VIII ao XII que restam nos archivos da Peninsula; que o que se
vendia, doava, escambava mais ordinariamente era o direito a haver dos
servos, dos _juniores_, dos malados, dos solarengos, do homem de
trabalho, em summa, ingenuo ou não ingenuo, certas prestações agrarias e
certos serviços pessoaes, que nas glebas servis derivavam da duplicada
servidão do homem e da terra a que estava unido, e que na herdade ou
casal do peão (_junior_), na maladia, no solar, derivavam de um
contracto voluntario, tacito ou expresso; que as prestações e os
serviços do adscripto, representando a renda da terra e a obrigação
servil do individuo nella incorporado, eram duas cousas que facilmente
podiam distinguir-se quando por consorcios, ou por outra qualquer
eventualidade, o direito ás prestações da gleba e aos serviços do homem
ou da familia vinha a achar-se dividido entre dous proprietarios
(_domini_) diversos; que, assim distinctos, tanto aquellas prestações,
como aquelles serviços podiam não só affastar-se, unir-se de novo, mudar
de proprietario separadamente por toda a especie de transmissão, mas até
fraccionar-se em si mesmos ou accumular-se, sem que por isso mudasse a
condição do individuo que usufruia o predio, quer como adscripto, quer
como colono livre.
Não sei se varios documentos que o sr. Muñoz cita, logo no principio do
seu opusculo[103], provam, como elle pretende, que as palavras _servus_,
_homo_, _creatio_, _familia_ se applicavam indistinctamente aos servos,
ás familias da mesma origem, aos adscriptos, e não poucas vezes aos
homens livres, postoque sujeitos a alguma especie de vassalagem. Não vem
isso para esta questão. O que sei é que mostram, como muitos outros, a
verdade da precedente theoria, por ser ella unicamente que os explica.
Assim, lemos alli que em 934 Eximina doou a aldeia ou granja de Malares
ao mosteiro de Sobrado com todos os seus bens e pertenças, _e com todos
os seus homens, assim servos como livres, que serviram na mesma aldeia
no tempo de meus paes e avós_; lemos que em 1016 o mesmo mosteiro fez um
escambo com Gutier Dominico dando este a aldeia de Luzario com as suas
dependencias e _com a sua creação, servos e libertos e homens livres,
quantos servem na mesma aldeia_; vemos que na doação de certas aldeias
ao mosteiro de S. Salvador, em 932, se diz doarem-se _com a familia,
libertos e pessoas livres (que façam) ao dicto mosteiro e aos dictos
senhores o serviço que costumavam fazer_. Como explicar doações e
escambos de pessoas livres e ainda de libertos conjunctamente com os de
servos e com os das aldeias em que tantos estes como aquelles moravam,
se entendermos esses documentos ao pé da letra? Não é evidente que se
tracta das prestações agrarias, que pagavam tanto as glebas servis, como
os predios colonisados por homens livres, e dos serviços que tanto os
adscriptos como os ingenuos, forçadamente uns e por contractos
espontaneos outros, eram obrigados a fazer? Não vemos, até, no 1.^o
documento que os individuos de ambas as categorias são, sem distincção,
_herdeiros_, uns nos predios colonisados, outros nos predios de
adscripção, porque os serviços que delles devem uns e outros vem de
tempos remotos: _tam servis seu ingenuis qui ad ipsam villam
deservierunt in vita aviorum et parentum meorum_?
A hereditariedade do servo na gleba, consequencia forçosa da adscripção,
eis, como já disse n'outra parte, o grande passo dado na Peninsula,
desde o seculo VIII até o XII, pelo homem de trabalho, pelo antigo
escravo, para a liberdade. Quando o artigo VII do concilio ou cortes de
Leão de 1020 diz:--_Ninguem compre_ a herdade do servo da igreja, do rei
ou de alguem. _Quem a comprar perca-a e o que deu por ella_--faz-nos
recordar a doutrina parallela do codigo wisigothico[104]. Mas ha na lei
de 1020 duas palavras que assignalam um abysmo entre as duas
legislações: _haereditatem servi_, phrase que seria monstruosa no seculo
VII, mas que no XI indica apenas um facto assás trivial para exigir
providencias que o regulem e limitem. _Haereditas_ é nas actas daquella
assembléa, como em geral nos documentos das Hespanhas, o _hereditagium_
de além dos Pirenéus; é o predio possuido de paes a filhos, o predio em
que se succede por herança. O servo ligado á gleba sabe que, quando
morrer, ficarão ahi os proprios descendentes; porque tambem sabe que
elles e a gleba mutuamente se pertencem. Nas palavras _herdade do servo_
está resumida a historia de uma transformação social.
Que oppõe o sr. Muñoz a um facto que as leis, os contractos, as decisões
forenses conspiram em mostrar não só como existente, mas tambem como
universal em relação a todos os servos originarios ou homens de creação?
Uma difficuldade practica. Suppõe que o servo de uma gleba poderia ir
casar com uma mulher de uma gleba remota e de diverso senhor. Prestações
agrarias não as podia pagar, porque a terra era de outro dono; serviços
pessoaes não os podia prestar, pela distancia em que vivia. Assim seus
filhos. Dividindo-se estes materialmente, e levando o senhor do pae
metade delles, emquanto a outra metade ficava na gleba materna, aquelles
podiam ter o destino que conviesse a seu dono se eram escravos, ser
repostos na gleba paterna se fossem de raça adscripta. D'aqui a
necessidade de entender os documentos no seu sentido apparente, e de
crer que a praxe de se dividir a prole dos servos de dífferentes
senhores era a geralmente seguida. Ora esse facto, equiparando a classe
servil aos bens semoventes e aos moveis, destruia a personalidade dos
individuos de semelhante classe, escrava em tal hypothese, situação que
o opusculo do sr. Muñoz tende a provar ser a dos servos desde o VIII até
o XII seculo.
Mas este argumento pécca pela sua propria indole. Inferir que não
existiu, ou pelo menos que não foi geral e predominante certa
instituição, de ter ella inconvenientes, que aliás não existiriam
predominando uma instituição diversa ou contraria, e concluir d'ahi que
foi esta a que existiu ou predominou, parece-me que seria um pessimo
raciocinio na historia de épochas e de paizes altamente civilisados,
quanto mais na de eras semi-barbaras e de um paiz semi-barbaro. Que
havia em Oviedo e Leão desde o VIII seculo até o XII no direito publico,
na administração, no estado das pessoas, nas relações civis, que fosse
absoluto, uniforme, sem excepção na practica? Que condições sociaes
havia que não fossem incompletas, antinomicas, obscuras sob um ou sob
outro aspecto? Que foi a idade média, senão a infancia dolorosa e longa
da civilisação moderna; que foi, senão uma serie de experiencias e
tentativas de organisação das nações, que surgiam do singular consorcio
da sociedade romana, corrupta e dissolvida, com as aggregações quasi
selvagens das hostes e das tribus germanicas, mixto tornado ainda mais
confuso na Peninsula pelo influxo da cultura arabe? Que cousa mais
enredada, mais desharmonica, mais cheia de soluções difficeis do que a
vida social d'então? Sem duvida que certas leis supremas, que regem a
humanidade em qualquer situação que ella se ache, actuavam então entre
os povos, como sempre, e as paixões impelliam os individuos do mesmo
modo e produziam effeitos identicos ao que produzem em todos os tempos;
mas disto á perfeição, á harmonia das instituições vai uma distancia
immensa.
Acceitando, porêm, a doutrina do sr. Muñoz sobre a escravidão absoluta
dos servos originarios ficam, acaso, resolvidas as difficuldades de
applicação practica que elle vê na existencia da servidão de gleba? A
hypothese que lembrou póde modificar-se. Supponhamos que o escravo, ido
para outro logar e ahi casado com uma escrava de diverso dono, tinha um
filho só. Como se dividiria materialmente esse individuo? Supponhamos
que tinha um filho e uma filha. Á luz a que os escravos eram
considerados, isto é, como animaes de carga, como machinas de trabalho,
como cousas, emfim, o sexo dos individuos representava forçosamente um
valor diverso. A quem cabia o filho? A quem a filha? Mais: supponhamos a
união infecunda. Conforme quer o sr. Muñoz, o meio ordinario de reparar
a perda do escravo ou escrava, que pelo consorcio ia viver na gleba de
um senhor differente, era a repartição material dos filhos. Na falta
destes, resignava-se, acaso, o senhor do servo fugido a perder os
serviços delle, porque, não podendo dissolver-se o matrimonio e vivendo
a familia escrava a grande distancia, não era possivel exigi-los?
A lei wisigothica, porêm, ainda em vigor na monarchia néo-gothica,
estatuia a respeito destes consorcios, não devidamente consentidos,
entre servos de differentes donos uma regra clara e exequivel. Aquelle
dos dous senhores que se aproveitara desse acto irregular, que se
appropriara por tal meio o servo ou a serva alheios, perdia os dous
conjuges e a respectiva prole em beneficio do que fora espoliado[105].
Se a situação dos servos originarios não tinha mudado, porque não se
applicava a lei? Que a divisão das familias, quer como a entende o sr.
Muñoz, quer como eu a entendo, constituia já a jurisprudencia ordinaria
do seculo XI é uma cousa de que os documentos citados por elle, e outros
que poderia citar, não permittem que se duvide. Porque se oblitterou a
lei wisigothica nesta parte? É evidentemente porque, tendo mudado a
situação dos individuos a que ella era applicavel, devia buscar-se um
meio de reparar a offensa do direito sem tractar os servos como bens
semoventes.
O direito dos senhores das glebas, ás quaes os servos pertenciam, sobre
as prestações agrarias das mesmas glebas e aos serviços dos individuos
ou familias a ellas adscriptos não offereceria realmente os
inconvenientes practicos que suscitaria o systema supposto pelo sr.
Muñoz. Já notei que este argumento é máu; mas é certo que nem esse máu
argamento favorece a sua opinião. O servo, que se desaggregava da gleba
sem consentimento do senhor, podia ser reconduzido violentamente a ella.
Este era o principio. Mas se elle lhe fizesse os serviços pessoaes que
d'antes fazia, parece que devia ser facil o chegar-se a uma transacção,
a um acôrdo. A gleba lá ficava cultivada pelo resto da familia adscripta
e produzindo as mesmas prestações agrarias, ao passo que o individuo
desempenhava os mesmos deveres pessoaes. Suppondo que este fosse residir
a grande distancia (hypothese rarissima n'uma epocha em que não existia
a menor facilidade de communicações) esses serviços podiam ser
transformados em prestações em generos, ou em moeda. Se o servo se
casava e tinha filhos, metade dos serviços da nova familia pertenciam ao
seu antigo senhor, obrigação herdada, que podia ser satisfeita do mesmo
modo. Era um systema complicado, e que daria, como dava, origem a mais
de um pleito entre senhor e senhor, mas que me parece não offereceria
hypotheses insoluveis como a theoria adoptada pelo sr. Muñoz.
Na _noticia_ dos homens do mosteiro de Cartavio publicada na _Colleccion
de Fueros_[106] lê-se _in Garrio, Maria Ectaz medium cum suis filiis
mediis... in Mirites... Savaricum integrum... in Mintes... Petrum Vistiz
integrum cum suis filiis mediis_, etc. Temos, pois, nos proprios
documentos publicados pelo sr. Muñoz a prova de que um individuo morador
em certa granja ou aldeia podia pertencer integralmente ou parcialmente
ao dono dessas glebas. É uma das hypotheses que eu figurei, e que o sr.
Muñoz nos não diz como se resolveria no seu systema.[107]
A interpretação que dou aos documentos que se referem á divisão dos
servos originarios, e que eu supponho geralmente adscriptos, é tão
obvia; esses documentos provam tão pouco que a divisão dos membros da
familia serva se haja forçosamente de entender como uma divisão
material; era tão possivel moverem-se os individuos, em relação ao
dominio, n'uma esphera diversa daquella em que se moviam as prestações
agrarias e os serviços pessoaes; a confusão da terra com o homem, da
obrigação com a pessoa a quem ella imcumbia, era tão vulgar na linguagem
juridica, que o proprio sr. Muñoz adopta o meu systema de interpretação
a proposito de documentos analogos nas expressões áquelles com que
pretende refutar o mesmo systema. Falando de diplomas, em que se faz
doação, venda, ou permutação de solares incluindo os solarengos,
accrescenta: _Obstam muito pouco alguns documentos de venda, doação e
troca feitas junctamente com os solarengos. Não quer isto dizer que se
vendessem as pessoas; mas sim os tributos e serviços que estas tinham
obrigação de prestar._ Se a linguagem dos documentos se póde tomar como
figurada em relação aos solarengos, porque não se poderá entender do
mesmo modo em relação aos servos originarios ou homens de creação? Como
se pretende deduzir dessa linguagem um argumento para provar que estes
eram vendidos, escambados, ou doados como cousas, como bens semoventes,
e sem personalidade, não se permittindo tirar igual inferencia a
respeito dos solarengos?
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