Lendas e Narrativas (Tomo I) - 05

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sabeis vós que faz fugir: inveja sabemos nós todos que faz
imaginar..."
"Descaro e gargantoice que faz mendigar:--interrompeu Ayras
Gil, vermelho de colera, cerrando os punhos, e descahindo para
o ichacorvos, como galé que vae afferrar outra em combate naval.
"Excommunicabo vos"--murmurou Fr. Roy, fazendo-se prestes para
resistir ao abalroar do petintal.
E o vulgacho que estava de roda ria e batia as palmas.
N'isto os gritos de alcacer! alcacer! reboaram para outro lado
da praça: o povo correu para lá. Os dous campeadores voltaram-se:
era o alfaiate.
Sem dizer palavra, o beguino olhou com gesto de profundo despreso
para Ayras Gil; e tomando uma postura entre heroica e de inspirado,
estendeu o braço e o index para o logar onde passava Fernão Vasques.
Depois partiu com a turbamulta que o rodeava, em quanto o petintal
o seguia de longe, lento e cabisbaixo.
O alfaiate, cercado de outros cabeças da revolta da vespera,
encaminhou-se para a alpendrada de S. Domingos. Trazia vestida
uma sáia[4] de valencina reforçada, calças de bifa, çapatos de
pelle de gamo, chapeirão de ingres com fita de momperle, e cincta
de couro, tudo escuro ao modo popular. Com passos firmes subiu
os degraus do alpendre. D'alli, em pé, com os braços cruzados,
correu com os olhos a praça, onde entre o povo apinhado se fizera
repentino silencio. Depois, tirando o chapeirão, cortejou a
turbamulta para um e outro lado; os seus gestos e ademanes eram
já os de um tribuno.
"Alcacer, alcacer pela arraya-miuda! Alcacer por elrei D. Fernando
de Portugal, se desfizer nosso torto e sua vilta, senão!..."
Esta exclamação d'um alentado alfageme que estava pegado com a
balaustrada do alpendre, foi repetido em grìta confusa por milhares
de bôcas.
De repente da banda da rua de Gileanes sentiu-se um tropear de
cavalgaduras, que pareciam correr á redea solta: todos os olhos
se volveram para aquella banda: muitos rostos empallideceram.
Uma voz de terror girou pelo meio das turbas.--"São homens d'armas
d'elrei!"--Aquelle oceano de cabeças humanas redemoinhou a estas
palavras, e começou a dividir-se como o mar vermelho diante de
Moysés. N'um momento viu-se uma larga faixa esbranquiçada cortar
aquella superficie movel e escura: era ampla estrada que se abríra
desde a rua de Gileanes até S. Domingos. As paredes desta
adelgaçavam-se rapidamente. Para a banda da Mouraria e da Pedreira
os becos e encruzilhadas apinhavam-se de gente, e os reflexos dos
ferros das ascumas populares, que erguidas scintillavam ao sol,
começaram a descer e a sumir-se como as luzinhas das bruxas em
sitio brejoso aos primeiros assomos do alvorecer. Fernão Vasques
olhou em redor de si: estava só. Descórou; mas ficou immovel.
Entretanto o tropear aproximava-se cada vez com mais alto ruído:
os bésteiros do concelho, postados ao longo dos paços do almirante,
eram talvez os unicos em quem o terror não fizera profunda impressão:
alguns já haviam estendido sobre o braço da bésta os virotes
hervados, e revolvendo a polé faziam encurvar o arco para o tiro.
Os bésteiros de garrucha tinham já o dente desta embebido na
corda, promptos a desfechar ao primeiro refulgir dos montantes
nús dos cavalleiros e escudeiros reaes. Do resto do povo os ousados
eram os que recuavam; porque o maior numero voltava as costas e
internava-se pelas azinhagas dos hortos de Valverde e vinhas
d'Almafalla, ou trepava pelas ruas escuras e malgradadas do bairro
do almirante.
Mas no meio deste susto geral apparecêra um heroe. Era Fr. Roy.
Ou fosse imprudente confiança no cargo occulto que lhe dera D.
Leonor, ou fosse robustez d'animo, ou fosse finalmente a persuasão
de que o habito de beguino lhe serviria de broquel, longe de
recuar ou titubear, correu para a quina da rua d'onde rompía o
ruído, e mirando pela aresta do angulo um breve espaço, voltou-se
para o povo, e curvando-se com as mãos nas ilhargas, desatou em
estrondosas gargalhadas.
Tudo ficou pasmado; mas vendo e ouvindo o rir descompassado do
ichacorvos, o povo começou a refluir para a praça. Aquellas risadas
produziam mais animo e enthusiasmo que os quarenta seculos vos
contemplam de Napoleão, na batalha das Pyramides. Os amotinados
recobraram n'um instante toda a anterior energia.
Esta scena tinha sido rapidissima: todavia ainda grande parte dos
populares hesitava entre o ficar e o fugir, quando se conheceu
claramente a causa daquelle temor que apertára por algum tempo
todos os corações. Era a còrte que chegava.
Montados em mulas possantes, os officiaes da casa real, os
ricos-homens, conselheiros e juizes do desembargo vinham assistir
ao auto solemne, em que da bôca d'elrei a nação devia ouvir ou
uma resolução conforme com os desejos tanto da arraya-miuda como
dos senhores e cavalleiros, ou a confirmação de um casamento, mal
agourado por muitos nobres e por todos os burguezes, e condemnado
de um modo nada duvidoso por estes ultimos. No meio das variadas
côres dos trajos cortezãos negrejavam as garnachas dos letrados
e clerigos do paço, e entre o reluzir dos esplendidos arreios
das mulas alentadas e fogosas dos vassallos seculares, dos
alcaides-móres e senhores, viam-se rojar as gualdrapas dos mestres
em leis e degredos, dos sabedores e letrados, que constituiam o
supremo tribunal da monarchia, a curia ou desembargo d'elrei.
A numerosa cavalgada atravessou o terreiro por entre o povo apinhado,
e em todos os rostos transluzia o receio ácerca de qual seria
o desfecho deste drama terrivel e immenso, em que entravam
representantes de todas as classes sociaes.
Entre os membros daquella lustrosa companhia distinguia-se por
seu porte altivo o conde de Barcellos, D. João Affonso Tello,
tio de D. Leonor, a quem nos diplomas dessa epocha se dá por
excellencia o nome de fiel conselheiro. Quando os amores d'elrei
com sua sobrinha começaram, elle fizera, sincera ou simuladamente,
grandes diligencias para desviar o monarcha de levar ávante seus
intentos. D. Fernando persistíra, todavia, nelles, e então o
conde, junctamente com a infanta D. Beatriz[5] e com D. Maria
Telles, irman de D. Leonor, suscitára a idéa de a divorciar de
João Lourenço da Cunha. O povo sabia isto, e posto que houvesse
estendido a sua má vontade a todos os parentes de Leonor Telles,
odiava principalmente o conde como protector daquelles adulteros
amores. Foi, portanto, nelle que se cravaram os olhos dos populares,
que, tendo-se em poucas horas elevado até á altura do throno,
ousavam tambem dar testemunho publico do seu odio contra o mais
distincto membro da fidalguia[6].
"Velha raposa, em que te pese, não será a adultera rainha da
boa terra de Portugal!--gritava um carniceiro, voltando-se para
uma velha que estava ao pé delle, mas olhando de través para
o conde que passava.
"Leal conselheiro de barregnices, por quanto vendeste a honra
do compadre Lourenço?--perguntava um alfageme, fingindo falar
com um vizinho, mas lançando tambem os olhos para D. João Affonso
Tello.
"Que tendes vós com o lobo que empece ao lobo?--acudiu um lagareiro
calvo e acurvado debaixo do peso dos annos.--Deixae-os morder
uns aos outros, que é signal de Deus se amercear de nós."
"O que elles mereciam--interrompeu uma regaleira--era serem
alagantados[7]--com boas tiras de couro cru."
"E ella, tia Dordia?--accrescentou um ferreiro.--Conheceis vós
a comborça? As varas a quizera eu: uma do alcaide no chumaço;
outra do coitado nas costas della![8]"
"É costume, ergo direita a pena:"--notou um procurador, que gravemente
contemplava aquelle espectaculo, e que até alli guardára silencio.
Estas injurias, que, como o fogo de um pelotão, se disparavam
ao longo das extensas e fundas fileiras dos populares, iam ferir
os ouvidos do conde de Barcellos, que, fingindo não lhes dar
attenção, empallidecia e córava successivamente, e mordia os beiços
de colera.
De quando em quando o vociferar affrontoso da gentalha era affogado
no ruído de risadas descompostas, mais insolentes cem vezes que
as injurias; porque no rir do vulgo ha o que quer que seja tão
cruel e insultuoso, que faz dar em terra o maior coração e o
anímo mais robusto.
Entre os parciaes de D. Leonor que vinham naquella comitiva,
viam-se, porém, muitos fidalgos e letrados, que ou eram pessoalmente
seus inimigos, ou pelo menos desapprovavam alta e francamente a
sua união com elrei. Diogo Lopes Pacheco era o principal entre
elles, e o povo ao vê-lo passar saudou-o com um murmurio, que
foi como a recompensa do velho pelas desventuras da sua vida,
desventuras que devêra a um caso analogo, a morte de D. Ignez
de Castro.
Quando os fidalgos, cavalleiros e letrados da casa e conselho
d'elrei se apearam juncto aos degraus do alpendre do mosteiro, o
alfaiate, que viera misturar-se com o povo logo que desembocaram
na praça, subiu após elles, e esperou que se assentassem no extenso
banco de castanho que corria ao longo da alpendrada. Depois voltou-se
para a multidão apinhada ao redor:
"Se elrei ainda não é presente--disse em voz intelligivel e
firme--ahi tendes para ouvir vossos aggravamentos os senhores do
seu conselho: porventura que elles poderão dar-vos resposta em
nome de sua senhoria, e elle virá depois confirmar o seu dicto."
"Senhor Fernão Vasques, sois o nosso propoedor: a vós toca o
falar!"--replicou um do povo.
"Assim o queremos! assim o queremos!"--bradou a turbamulta.
O alfaiate voltou-se então para os cortezãos, conselheiros e letrados
do desembargo d'elrei, e disse:
"Senhores, a mim deram carrego estas gentes que aqui estão junctas,
de dizer algumas cousas a elrei nosso senhor, que entendem por
sua honra e serviço; e porque é direito escripto, que sendo as
partes principaes presentes, o officio de procurador deve de
cessar no que ellas bem souberem dizer, vós outros que sois
principaes partes neste feito, e a que isto mais tange que a
nós, devieis dizer isto, e eu não; porém, não embargando que
assim seja, eu direi aquillo de que me deram carrego, pois vós
outros em ello não quereis pôr mão, mostrando que vos doeis pouco
da honra e serviço d'elrei....[9]"
"Cal-te, villão!--bradou, erguendo-se, o conde de Barcellos com
voz affogada de cólera, que já não podia conter--se não queres
que seja eu quem te faça resfolgar sangue, em vez de injurias,
por essa bôca sandia."
O velho Pacheco pôz-se tambem em pé, exclamando: "Conde de Barcellos,
lembrae-vos de que os burguezes têem por costume antigo o direito
de dizerem aos reis seus aggravamentos, de se queixarem, e de
os reprehenderem. Nós somos menos que os reis."
Fernão Vasques tinha-se entretanto voltado para o povo apinhado
ao redor do alpendre, com o rosto enfiado, mas era de indignação,
e havia feito um signal com a cabeça. No mesmo instante o povo
abríra uma larga clareira, e quando os fidalgos e conselheiros,
attentos para o conde e para Diogo Lopes, voltaram os olhos para o
rocío ao tropear da multidão, um semi-circulo de mais de quinhentos
bésteiros e peões armados fazia uma grossa parede em frente dos
populares.
Fernão Vasques encaminhou-se então para D. João Affonso Tello, e
com a mão trémula de raiva, segurando-o por um braço, disse-lhe:
"Senhor conde, vós sois que doestaes os honrados burguezes desta
leal cidade em minha pessoa; porque eu nada fiz senão repetir
em voz alta o que cada um e todos me ordenaram repetisse. O que
propuz, não é meu. Eis seus auctores! Pelo que a mim toca, senhor
conde, nào receio vossas ameaças. Quando o nobre despe o gibão
de ferro para vestir o de tela, não sei eu se este é mais forte
que o do peão, e se também a sua bôca não póde golfar sangue
como a de um pobre villão."
D. João forcejava por desasir-se do alfaiate, procurando levar
a mão á cincta onde tinha o punhal; mas Fernão Vasques era mais
forçoso, e o conde já tinha entrado na idade em que costuma minguar
a robustez do homem. Não pôde chegar com a mão ao cincto.
"Conde de Barcellos:--proseguiu o alfaiate com um sorriso--não
recorraes a esse argumento; porque eu também estou habituado
a lidar com ferros azerados, ainda que mais delgados e curtos
que o vosso bulhão."
Estas ultimas palavras, dictas em tom de escarneo, mal foram
ouvidas: a grita na praça era já espantosa; as injurias, as pragas,
as ameaças, cruzando-se nos ares, produziam aquelle rouco e grande
brado da fúria popular, que só tem semelhança com o ruído de
tufão abysmando-se por cavernas immensas.
Os fidalgos e letrados tinham rodeado os dous contendores; os
parciaes de D. Leonor o conde; os outros, cujo numero era muito
maior, o alfaiate. E tanto estes como aquelles trabalhavam em
apazigua-los, posto que todos os animos estivessem quasi tão
irritados como os dos dous contendores.
Finalmente o conde cedeu. O aspecto da multidão, que se agitava
furiosa, contribuiu, porventura, mais para isso que todas as
razoes e rogativas dos fidalgos e cavalleiros, attonitos com o
espectaculo da ousadia popular; desta ousadia que, menoscabando
as ameaças do primeiro entre os nobres, era mais incrivel que
a da vespera, a qual apenas se atrevêra ao throno.
Que fazia, porém, o nosso beguino no meio destes preludios de
uma eminente assuada? É o que o leitor verá no seguinte capitulo.
[1] Hoje o monte da Graça.
[2] Hoje o bairro dentro da rua larga de São Roque, Chiado,
Rua do Ouro, Rocio e Calçada do Duque.
[3] Hoje Rua dos Capellistas
[4] Muitos dos trajos civis do seculo decimo-quarto eram
communs a ambos os sexos, ou pelo menos tinham nomes communs,
como se póde vêr da lei de D. Affonso IV ácerca dos trajos.
[5] D. Beatriz era irman dos infantes D. João e D. Diniz
e meia irman d'elrei.
[6] O titulo de conde era o de maior preeminencia entre
nós, e João Affonso Tello era então o unico que em Portugal tinha
semelhante titulo.
[7] Açoutados.
[8] Segundo varios quadernos legaes do nosso direito
consuctudinario e municipal, em certos casos applicava-se ás
mulheres casadas a pena de que resa o discurso do ferreiro. O
alcalde vinha a casa da criminosa punha no chão um travesseiro,
pegava d'uma vara e começava a bater em cima delle, fazendo-lhe
o compasso o marido da culpada nas costas desta: tal era o modo
por que as mulheres estavam ás varas, pena que com menos apparato
se applicava tambem aos homens por muitos e diversos crimes.
[9] Textual.--Veja-se Fernão Lopes, Chr. de D. Fernando,
cap. 61.

MIL DOBRAS PÉ-TERRA E TREZENTAS BARBUDAS

Mal Fernão Vasques travára do braço do conde de Barcellos, e a
grita popular começára a atroar a praça, Fr. Roy, escoando-se
ao longo da parede do mosteiro, dobrára a quina que voltava para
a Corredoura[1], e seguindo seu caminho por viellas torcidas
e desertas, chegára á porta do ferro, d'onde, atravessando o
contiguo e malassombrado terreirinho, em que os raios do sol
apenas rapidamente passavam, embargados ao nascer pelos agigantados
campanarios da cathedral, e ao declinar pelos pannos e torres
da muralha mourisca, chegára esbaforido a S. Martinho. A porta
do paço estava fechada; mas a da igreja estava aberta. Entrou.
Ao lado direito uma escada de caracol descia da tribuna real
para a capella-mór, e a tribuna communicava com o palacio por
um passadiço que atravessava a rua. O beguino olhou ao redor
de si, e escutou um momento: ninguém estava na igreja. Subindo
rapidamente a escada, Fr. Roy atravessou o passadiço e encaminhou-se,
sem hesitar no meio dos corredores e escadas interiores, para
uma passagem escura. No fim della havia uma porta fechada. O
monge vagabundo parou, e escutou de novo. Dentro altercavam tres
pessoas: Fr. Roy bateu devagarinho tres vezes, e pôz-se outra
vez a escutar.
Ouviram-se uns passos lentos que se aproximavam da porta; e uma
voz esganiçada e colerica perguntou;--Quem está ahi?"
"Eu:--respondeu o beguino.
"Quem é eu?--replicou a voz.
"Honrado D. Judas, é Fr. Roy Zambrana, indigno servo de Deus,
que pretende falar a elrei ou á mui excellente senhora D. Leonor,
para negocio de vulto."
"Abre, D. Judas, abre!"--disse outra voz, que pelo metal parecia
feminina, e que soou do lado opposto do aposento.
A porta rodou nos gonzos, e o ichacorvos entrou.
Era o logar em que Fr. Roy se achava uma quadra pequena, allumiada
escaçamente por uma fresta esguia e engradada de grossos varões
de ferro, a qual dava para uma especie de saguão, ainda mais
acanhado que o aposento. A abobada deste era de pedra; de pedra
as paredes e o pavimento: ao redor viam-se por unico adereço
muitas arcas chapeadas de ferro. O monge entrára na casa das
arcas da corôa--do recabedo do regno. As duas personagens que
ahi estavam, afóra a que abríra a porta, eram D. Fernando e D.
Leonor. Elrei, de pé, curvado sobre uma das arcas, com a fronte
firmada sobre o braço esquerdo, folheava um desconforme volume
de folhas de pergaminho, cujas guardas eram duas alentadas taboas
de castanho, forradas exteriormente de couro cru de boi, ainda
com pello[2].
D. Leonor, tambem em pé por detraz d'elrei, olhava attentamente
para as paginas do livro. O que abrira a porta era o thesoureiro-mór
D. Judas, grande affeiçoado de D. Leonor e valido d'elrei. O
judeu apenas voltára a ponderosa chave, sem volver sequer os
olhos para o recem-chegado, tornára immediatamente para ao pé
da arca a que elrei estava encostado, e proseguíra a vehemente
conversação, cujos ultimos ecchos Fr. Roy ouvíra ao aproximar-se...
"Mil dobras pé-terra e trezentas barbudas são todo o dinheiro
que o vosso fiel thesoureiro vos póde apurar neste momento,
respigando como a pobre Ruth no campo do vosso thesouro, ceifado,
e bem ceifado (aqui o judeu suspirou) por aquelles que talvez
menos leaes vos sejam. Jurar-vos-hei sobre a toura, se o quereis,
que não fica em meu poder uma pogeia."
Elrei não o escutava. Apenas Fr. Roy entrára, D. Leonor se havia
encaminhado para o ichacorvos, e, lançando-lhe um olhar escrutador,
lhe perguntára com visível anciedade:
"Beguino, a que voltaste aqui?"
"A cumprir com minha obrigação, apesar de vós me terdes dado
hontem por quite e livre. Vim a dizer-vos que a estas horas talvez
tenha já corrido sangue no rocío de Lisboa, e que é espantoso o
tumulto dos populares contra os do conselho, e contra os senhores
e fidalgos da casa e valia d'elrei."
Fôra á palavra sangue que D. Fernando havia cessado de attender
á voz esganiçada do thesoureiro-mór, que continuava em tom de
lamentação:
"Bem sabeis, senhor, que tenho empobrecido em vosso serviço, e
que hoje sou um dos mais mesquinhos e miseráveis entre os filhos
d'Israel. Aonde irei eu buscar dous mil maravedis velhos d'Alemdouro,
que são em moeda vossa trezentos e noventa mil soldos?[3]"
"Sangue, dizes tu, beguino?--exclamou elrei--Oh, que é muito!
A quem se atreveram assim esses populares maldictos?"
"Eu proprio vi o nobre conde de Barcellos travar-se com Fernão
Vasques; mui grande numero de bésteiros, e peões armados de ascumas
rodeavam já o alpendre de S. Domingos, e os clamores de morram
os traidores atroavam a praça."
"Que me dêem o meu arnez brunido, a minha capelina de camal, e o
meu estoque francez:--gritou D. Fernando escumando de colera.--Eu
irei a S. Domingos, e salvarei os ricos-homens de Portugal, ou
acabarei ao pé delles. Pagens! onde está o meu donzel d'armas?"
"O teu donzel d'armas, rei D. Fernando,--interrompeu com voz
pausada e firme D. Leonor--segue com os outros pagens caminho
de Santarem, montado no teu cavallo de batalha. Aqui só tens
a mula de teu corpo[4] para seguires jornada."
"Mas o conde de Barcellos! O meu leal conselheiro, deixa-lo-hei
despedaçar pelos peões desta cidade abominavel? Lembra-te de que
é teu tio; que foi o teu protector, quando o braço de D. Fernando
ainda se não erguêra para te coroar rainha."
"Rei de Portugal, és tu que deves lembrar-te delle, quando o
dia da vingança chegar. Então cumprirá que os traidores e vis
te vejam montado no teu ginete de guerra. Hoje não podes senão
deixar entregue á sua sorte o nobre D. João Affonso e os senhores
que são com elle; mas não te esqueça que se o seu sangue correr,
todo o sangue que derramares para o vingar será pouco, como serão
poucas todas as lagrymas que eu verterei sem consolação sobre
os seus veneraveis restos. Combateres? Ajudado por quem, n'uma
cidade revolta? Os homens d'armas do teu castello quebraram seu
preito, e tumultuam na praça: muitos de teus ricos homens estão
conjurados contra ti: teu proprio irmão o está. Partir! partir!
Ha quantas horas sabes tu que a ultima esperança está no partir
breve? Porque, depois de tantas hesitações, ainda hesitar uma
vez? Asseguremos ao menos a vingança, se não podermos salvar
aquelles que, leaes a seu senhor, se foram expôr á furia de homens
refeces e crús, para esconder nossa fuga... fuga; que é o seu
nome!"
O furor e o despeito revelavam-se nas faces e labios esbranquiçados
da adultera, e a afflicção e o temor comprimidos n'uma lagryma
que lhe rolou insensivelmente dos olhos. Era uma das rarissimas
que derramára na sua vida.
Elrei tinha escutado immovel. Desacostumado a ter vontade propria,
desde que (como dizia o povo) esta mulher o enfeitiçára, ainda
mais uma vez cedeu da sua resolução, se não de homem cordato,
ao menos de valoroso, e respondeu em voz sumida:
"Partamos. E seja feita a vontade de Deus!"
"Amen--murmurou o ichacorvos.
"Beguino,--interrompeu D. Leonor, voltando-se para Fr. Roy--corre
já ao rocío, e dize em voz bem alta aos populares amotinados, que
me viste partir com elrei caminho de Santarem. Talvez assim o conde
seja salvo, porque a furia desses vis sandeus se voltará contra
mim. Dize-o, que dirás a verdade: quando lá houveres chegado, o
meu palafrem terá já transposto as portas da cruz. Guardae-vos,
mesquinhos, que elle a torne a passar com sua dona. Ichacorvos! esse
dia será aquelle em que a adultera pague todas as suas dividas!"
Fr. Roy sentiu pela medula dorsal o mesmo calafrio que sentíra
na noite antecedente; porque o olhar que Leonor Telles cravou
nelle era diabolico, e a palavra--adultera--proferida por ella,
soava como um dobrar de campa, e vinha como involta n'um halito
de sepulchro: o beguino arrependeu-se desta vez mui seriamente
de ter sido tão miudo e exacto na parte official que apresentára
na vespera. Calou-se, todavia, e saíu com o seu ademan do costume,
cabeça baixa e mãos cruzadas no peito.
Os tres ficaram outra vez sós.
"D. Judas, meu bom D. Judas:--disse elrei com um gesto de
afflicção--eu não entendo estas embrulhadas letras mouriscas da
tua arithmetica. Estou certo de que não deves ao thesouro real
uma unica mealha, e de que nas arcas do haver não existe senão
o que tu dizes: mas de certo não queres que um rei de Portugal
caminhe por seu reino como um romeiro mendigo. Ao menos os dois
mil maravedis de ouro..."
"Ai!--suspirou o thesoureiro-mór--juro a vossa real senhoria
que me é impossivel achar agora outra quantia maior que a de mil
dobras pé-terra e trezentas barbudas."
"Fernando--atalhou Leonor Telles--ordena aos moços do monte que
ahi ficaram que enfreiem as mulas: devemos partir já. É tão meu
affeiçoado D. Judas, que com duas palavras eu obterei o que tu
não podeste obter com tantas rogativas."
Ella sorriu alternativamente com um sorriso angelico para elrei
e para o thesoureiro-mór. D. Fernando obedeceu, e, alevantando
o reposteiro que encobria uma porta fronteira áquella por onde
entrára o beguino, desappareceu. O thesoureiro ía a falar; mas
ficou com a bôca semi-aberta, o rosto pallido, e como petrificado,
vendo-se a sós com D. Leonor. Era que já a conhecia havia largos
tempos.
"D. Judas,--disse esta em tom mavioso--tu has-de fazer serviço
a elrei para esta jornada. Darás os dous mil maravedis velhos."
"Não posso!--respondeu D. Judas com voz trémula e afogada.
"Judeu!--replicou D. Leonor, apontando para um cofre pequeno,
que estava no canto mais escuro do aposento, coberto de tres
altos de pó--o que está naquella arca?"
O thesoureiro-mór hesitou um momento, e depois balbuciou estas
palavras:
"Nada ... ou para falar verdade... quasi nada. Bem sabeis que
d'antes eu alli guardava algumas mealhas que me sobejavam da minha
quantia, mas ha muito que nem essas poucas mealhas me restam."
"Vejamos, todavia:--tornou D. Leonor, cujo aspecto se carregava.
"Misericordia!--bradou D. Judas com indizivel agonia. Mas
reportando-se, por um destes arrojos que inspiram os grandes
perigos, procurou disfarçar o seu susto, continuando com um riso
contrafeito:
"Misericordia, digo; porque fôra mais facil achar entre os amotinados
do rocío um homem leal a seu rei, do que eu lembrar-me agora do
logar onde terei a chave de uma arca ha tanto tempo inutil e
vazia."
"Perro infiel! eu te vou recordar quem póde dizer onde as havemos
de achar."
"Estaes hoje, mui excellente senhora, merencoria e irosa:--replicou
o thesoureiro-mór, trabalhando por dar ás suas palavras o tom da
galantaria, mas visivelmente cada vez mais enfiado e trémulo,--Assim
chamaes perro infiel ao vosso leal servidor, por causa d'uma
chave inutil que se perdeu? Todavia, dizei quem sabe della, e
eu a irei procurar."
"Generoso e leal thesoureiro!--interrompeu D. Leonor, imitando
o tom das palavras do judeu, como quem gracejava--não te dês a
esse trabalho, por tua vida. Quem póde faze-la apparecer é um
velho cão descrido, que mora na communa de Santarem. Eu sei de
um remedio que lhe restituirá á lingua a presteza d'uma lingua
de mancebo de vinte annos. O seu nome e Issachar. Conhéce-lo?"
"Alta e poderosa senhora, vós falaes de meu pobre pae!--respondeu
o thesoureiro-mór, redobrando-lbe a pallidez.--Mas tractemos
agora do que importa. Com mil e quinhentas dobras pé-terra e
trezentas barbudas, que eu disse a meu senhor el-rei estarem
prestes..."
D. Leonor lançou para o judeu um olhar d'escarneo, e proseguiu:
"Do que importa é que eu tracto. Sabes tu, meu querido D. Judas,
que sejam as tuas dobras mil, ou mil e quinhentas, ámanhan a
estas horas eu D. Leonor Telles, a rainha de Portugal, estarei
em Santarem? Ouviste já dizer que, em não sei qual das torres
do alcacer, ha um excellente potro capaz de desconjuntar n'um
instante os membros do mais robusto villão? Veiu-me agora a idéa
que o velho Issachar amarrado a elle deve ser gracioso, porque
tendo vivido muito, constrangido a falar, ha-de contar cousas
incriveis, quanto mais dizer onde está uma chave, cujo paradouro
elle não póde ignorar. Não achas tu tambem que é folgança e desporto
digno de qualquer rainha o vêr como estouram os ossos carunchosos
de um perro de noventa annos?"
Um suor frio manou da fronte de D. Judas, cujas pernas vacillantes
se recusavam a suste-lo. Quando D. Leonor acabou de fazer as
suas atrozes perguntas, o judeu tinha cahido de joelhos aos pés
della.
"Por mercê, senhora,--exclamou elle n'um trance horroroso de
angustia--mandae-me açoutar como o mais vil servo mouro: mandae-me
rasgar as carnes com os mais atrozes tormentos; mas perdoae a
meu velho pae, que não tem culpa da pobreza de seu filho. Se
eu tivera ou podéra alcançar mais que as duas mil dobras e as
quinhentas barbudas que offereci a meu senhor elrei..."
"Judeu!--atalhou D. Leonor--tu deves saber tres cousas: a primeira
é que os tractos do potro são intoleraveis; a segunda é que eu
costumo cumprir as minhas promessas; a terceira é que se neste
momento de aperto eu te podesse applicar o remedio, não o guardaria
para a ossada bolorenta de um lebréu desdentado."
"Vendido cem vezes,--proseguiu o thesoureiro-mór lavado em lagrymas,
e procurando abraça-la pelos joelhos--eu não poderia apresentar
neste momento mais que a somma já dicta de duas mil e quinhentas
dobras, e quinhentas barbudas, ainda que vossa mercê me mandasse
assar vivo."
"És um louco, D. Judas!--interrompeu Leonor, affastando de si o
judeu com um gesto de brandura.--Por uma miseria de pouco mais
de quinhentas pé-terra consentirás que Issachar, que teu pae,
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