Lendas e Narrativas (Tomo I) - 06

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honrado velho! pragueje nas ancias do potro contra o Deus de
Abraham, de Jacob e de Moysés?"
O thesoureiro-mór conservou-se por alguns momentos calado, e na
postura em que estava. Depois, passando o braço de revés pelos
olhos, enxugou as lagrymas e ergueu-se. A resolução que tomára
era a de um desesperado que vae suicidar-se.
"Aqui estarão, senhora,--murmurou elle--os dous mil maravedis
quando os quizerdes. Procurarei obte-los; mas ficarei perdido.
Agora podeis dar ordem á vossa partida."
"Adeus, meu mui honrado D. Judas:--disse D. Leonor sorrindo.--Não
perderás nada em ter cedido aos meus rogos."
Dicto isto, saíu pela mesma porta por onde saíra elrei.
O judeu estendeu os braços com os punhos cerrados para o reposteiro
que ainda ondeava, levou-os depois á cabeça, d'onde trouxe uma
boa porção de melenas grisalhas. Feito isto, tirou da aljubeta
uma chave, abriu o cofre pequeno e pulverulento, sacou para fóra
um saquitel pesado, sellado e numerado, e os dous mil maravedis
rolaram sobre o grande livro, que ainda estava aberto sobre uma
das arcas. Contou-os quatro vezes, empilhou-os aos centos, e
como se as forças se lhe tivessem exhaurido no espantoso combate
que se passava na sua alma, atirou-se de bruços sobre a pequena
arca, e abraçado com ella desatou a chorar.
"Meu pobre thesouro, juncto com tanto trabalho!--exclamou por
fim entre soluços.--Guardei-te neste cofre com medo de te vêr
roubado, e os salteadores vim encontra-los aqui! Mas que se livrem
de eu tornar a receber os direitos reaes das mãos dos mordomos.
Meus ricos dous mil maravedis de bom ouro, não voltareis sósinhos
quando vos tornardes a ajunctar com os vossos abandonados
companheiros!"
Esta idéa pareceu consolar de algum modo D. Judas. Levantou-se,
tornou a contar os dois mil maravedis: desconfiou de que havia
engano, e que eram dois mil e um: tornou-os a contar, e quando
elrei entrou no aposento, já prestes para cavalgar, tinha o bom
do judeu obtido a certeza de que não dava uma pogeia de mais
da somma que lhe fôra requerida em nome do potro da torre de
Santarem[5].
"Oh,--exclamou elrei, lançando os olhos para cima do desalmado
folio, sobre cujas paginas amarelladas estava empilhado o dinheiro
--temos os dous mil maravedis?!"
"Saiba vossa real senhoria que felizmente tinha em meu poder
uma somma pertencente a Jeroboão Abarbanel, o mercador da porta
do mar, e de que não me lembrava: ao basculhar as arcas dei com
ella: a quantia está completa, e o honrado mercador não levará
por certo mais de cinco por cento ao mez, emquanto os ovençaes
de vossa senhoria não vierem entregar no thesouro o producto
dos direitos reaes vencidos. Então pagar-lhe-hei, até á ultima
mealha, a quantia e seus lucros, se vossa senhoria não ordena
o contrario."
"Faze o que entenderes, D. Judas:--respondeu elrei, que não o
ouvira, attento a metter n'uma ampla bolça de argempel, que trazia
pendente do cincto, os dous mil maravedis.--Tudo fio de ti,
honrado e Seal servidor."
E recolhidos os maravedis, saíu. O judeu ficou só.
"No inferno ardas tu com Dathan, Coré e Abiron, maldicto
nazareno!...--murmurou elle.--Porém não antes de eu haver colhido
os dous...quero dizer, os tres mil e duzentos maravedis, que me
tiraste com lanta consciencia quanta póde ter a alma tisnada
de um christão."
Feita esta jaculatoria ao Deus de Israel, D. Judas aferrolhou
interiormente a porta do reposteiro, atravessou o aposento, saíu
pela porta fronteira, que tambem aferrolhou, e a bulha de seus
passos, que se alongavam, soou através dos corredores por onde
passára Fr. Roy, até que por aquella parte do palacio tudo caíu
em completo silencio.

[1] A Corredoura era uma rua, que, passando ao sopé do
monte do Castello, e por detraz de S. Domingos, dava passagem do
centro da cidade para Valverde, (hoje passeio publico e Salitre).
[2] Para não enfadarmos os leitores com um sem numero de
notas declarâmos por uma vez que todos os costumes e objectos que
descrevemos são exactos e da epocha, porque para taes descripções
nos fundámos sempre em documentos ou monumentos.
[3] O maravedi velho de ouro ou de Alem Douro (chamado
assim para o distinguir do maravedi de 15 soldos, que era aquelle
pelo qual se regulavam as quantias dos que vingavam soldo ou
maravedis, a que se chamava da Estremadura) valia 27 soldos,
isto é, menos de libra e meia das antigas, cada uma das quaes
era igual a 20 soldos. A dobra de ouro conhecida pelo nome vulgar
de pé-terra, mandada lavrar por D. Fernando, tinha o valor legal
de 6 libras, e, portanto, era mui superior nominalmente ao antigo
maravedi, excedendo em preço mais de quatro vezes. Todavia, bem
pelo contrario, o valor real d'uma dobra pé-terra era inferior ao
maravedi velho na razão de 20 para 32 1/2. A alteração da moeda
feita por D. Fernando no principio do seu reinado confundiu e
transtornou completamente o antigo systema monetario: as barbudas,
das quaes havia 53 em cada marco da lei de 3 dinheiros, vinham
a ser iguaes ás libras novas deste rei, porque, produzindo até
ahi um marco da lei de 11 dinheiros 27 libras, ficou em a nova
moedagem produzindo 165, o que dada a differença do toque entre
o marco de lei e o marco das barbudas, tornava cada uma destas
a mesma cousa que a libra. Por outra parte, equivalendo cada
libra a 20 soldos, moeda sem valor intrinseco, vinha o marco
de lei a ser representado por 3.900 soldos, e assim o antigo
maravedi d'ouro correspondente á vigesima parte de um marco de
prata, correspondia realmente a 195 soldos, ao passo que cada
pé-terra, sendo o mesmo que 6 libras, não valia mais de 120 soldos,
isto é, ficava para aquella moeda na razão de 20 para 32 1/2.
[4] Os cavalleiros quando se punham a caminho costumavam
cavalgar em mulas, como animaes mais rijos e possantes que os
cavallos; nestes montava um pagem ou donzel. Veja-se principalmente
a lei de D. Afonso III sobre os que vão a cas de elrei.
[5] Aquelles que não conhecerem as opiniões, estado de
civilisação, e costumes da idade média, medirão o thesoureiro-mór
D. Judas por um ministro de fazenda moderno, como, se não nos
engana a memoria, lhe chama com uma ignorancia deliciosa o marquez
de Pombal em uma lei sobre os christãos-novos, e acharão inverosimil
a scena antecedente, posto que esteja bem longe d'isso. A falta de
christãos habilitados para tractarem materias de fazenda publica,
obrigou os reis portuguezes a despresarem a lei das côrtes de 1211,
que os inhibia de empregarem judeus no seu serviço. Mas esta
necessidade não podia destruir o profundo desprezo em que se tinha
esta raça, olhada como abominavel em consequencia das convicções
politicas e religiosas daquelles tempos, despreso que em grande parte
assentava em bons fundamentos. A idéa que se fazia de um judeu na
idade média acha-se expressa na lei 23.ª daquellas côrtes, e pinta
melhor o pensar dessas eras a similhante respeito do que tudo quanto
podessemos aqui escrever. "Os quaes judeus (diz o legislador) assy
como testemunho da morte de Jesu-Christo devem a seer defesus,
solamente porque som homeês." Juncte-se a isto o caracter cruel,
hypocrita e cubiçoso de D. Leonor Telles, tão excellentemente
pintado pelo grande poeta chronista Fernão Lopes, e poder-se-ha
então avaliar devidamente a verosimilhança desta scena de imaginação
no meio de outras scenas da vida real desses tempos.

MESTRE BARTHOLOMEU CHAMBÃO

Fr. Roy, saíndo da casa das arcas, atravessára os corredores
vizinhos; mas, em vez de seguir o que dava para o passadiço de
S. Martinho, tomára por uma escadinha escura aberta no topo da
estreita passagem anterior a elle. Esta escadinha descia para o
atrio do paço. O beguino, habituado pelo seu ministerio a entrar
na morada real ás horas mortas, e a saír nas menos frequentadas,
sabia por diuturna experiencia que a porta principal devia estar
aberta, mas ainda erma, ao mesmo tempo que a igreja, por onde
entrára, já começaria a povoar-se de fiéis, porque, como é facil
de suppôr, as igrejas eram naquella epocha mais frequenfadas que
hoje. Desceu, pois, com passo firme, resolvido a encaminhar-se
ao rocío, e a espalhar entre os amotinados a noticia da partida
d'elrei.
Mas uma difficuldade imprevista lhe embargou os passos. Ou fosse
que os acontecimentos da vespera obrigassem a maiores cautelas,
não havendo ainda então exercito permanente, nem guardas pagas
para defensão da pessoa real, cuja melhor protecção estava na
propria espada, ou fosse por qualquer outro motivo, a porta ainda
se não abríra! O beguino hesitou se devia retroceder para sair
pela igreja, se esperar. As considerações que o tinham movido
a seguir este caminho o obrigaram a ficar. Mettido no estreito
e escuro vão da escada, o ichacorvos assemelhava-se, involto
nas suas roupas de burel, e reluzindo-lhe os olhos á meia luz
que dava o pateo interior, a um moderno funccionario, que hoje,
nesses mesmos paços, e n'um desvão igual, talvez no mesmo sitio,
mostra aos que entram o rosto banhado na hediondez da sua alma,
esperando que a vindicta publica o convide a algum banquete de
carne humana, e no esperar atroz rodêa com as garras os ferros
do seu covil, como um tigre captivo. O espia era alli, por assim
dizer, uma preexistencia, uma harmonia pre-estabelecida do algoz.
Passára obra de meia hora, e o beguino começava a impacientar-se
mui seriamente quando sentiu pés de cavalgadura no pateo interior do
edificio. D'ahi a pouco um donzel, trazendo na mão uma desconforme
chave, e as rédeas de uma valente mula enfiadas no braço, chegou á
porta e começou a abri-la. Era um dos donzeis d'elrei. Costumado
a disfarçar a sua frequente entrada no paço sob a capa da
mendicidade, e habituado a estender a mão á espera de alguns
soldos que devotamente lhe atiravam senhores, cavalleiros e
escudeiros, ao que elle retribuia com a longa lenda das suas
orações em aleijado latim, Fr. Roy era acceito a quasi todos
os moradores da casa d'elrei, que respeitavam a sua apparente
sanctidade. Por isso, saindo do seu desvão, encaminhou-se para
a porta.
"A madre Sancta Maria vos guarde de máu olhado, de feitiços e
de ligamentos:--disse elle, chegando-se ao donzel, e fazendo
sobresair esta ultima palavra.
"Vós aqui, Fr. Roy. por estas horas?--replicou o donzel, voltando-se
admirado.
"Que quereis!--tornou o beguino.-Quando hontem os maldictos burguezes
accommetteram os paços reaes com sua grita e revolta, estava eu
aqui. Ai que medo tive! Escondi-me naquelle desvão, e quando
se fecharam as portas achei-me encurralado cá dentro como um
emparedado em seu nicho. A minha profissão de paz e de religião
não me consentia passar por meio de homens possuídos do espirito
de colera, e inspirados por Belzebuth, nem o susto me deixava
animo desaffogado para ir roçar o burel do meu santo habito pelos
trajos empestados dos filhos de Belial. Tambem a humildade e
mortificação christan se oppunham a que eu subisse a pedir gasalhado
a algum de vós outros os moradores da casa de nosso senhor elrei.
Assim, louvando a Deus por me conceder uma noite de padecimento,
alli me deixei ficar sohre as lageas humidas, sobre as duras e
agudas arestas dos degráus daquella escada. Agora, que a revolta
é finda, consolado com as dores que me traspassam os ossos, e
confiado na providencia de Jesu-Christo, vou-me ao meu gyro diario
para vêr se obtenho da caridade dos devotos a pitança usual com
que possa matar a fome de vinte e quatro horas, pela qual dou
mil louvores ao justo juiz, que reina eternalmente nos altos
céus."
O beguino revirou beatificamente os olhos, e fez uma visagem entre
afllicta e resignada, levando ao mesmo tempo a mão ao joelho,
como se alli sentisse uma dor agudissima.
"Veneravel Fr. Roy!--atalhou o donzel com as lagrymas nos olhos--se
tivesseis procurado o aposento dos donzeís, nós vos dariamos
ao menos um almadraque para repousar, e repartiriamos comvosco
da nossa cêa. Mas o mal esta feito, e o peior é que para hoje
não vos posso offerecer abrigo. Vós crêdes, sancto homem, que a
revolta é finda, e nunca ella esteve mais accesa. Sua senhoria
vae partir já da cidade ..."
"Sancta Maria val! Sancto nome de Jesus! Accorrei-nos, virgem
bemdicta!--interrompeu Fr. Roy.--Pois os populares teimam em
sua assuada, e elrei deixa-nos aos coitados de nós, humildes
religiosos e cidadãos pacificos, entregues ao furor dos peões?"
"E que remedio, bom Fr. Roy?!--replicou tristemente o donzel.--Sem
cavalleiros, escudeiros e bésteiros não se faz guerra, nem se
desfazem assuadas, e nada d'isto tem elrei. Agora vou eu ao rocío
avisar os senhores do conselho, os privados e fidalgos que lá
estão, que sigam caminho de Santarem, sob pena de incorrerem
em caso de traição se ficarem em Lisboa, por signal que elrei
me recommendou procurasse avisar primeiro que ninguém sua mercê
o infante D. Diniz."
"No rocío, dizeis vós?--tornou o beguino arregalando os
olhos.--Confesso que vos não entendo."
Durante este dialogo o donzel tinha acabado de destrancar a porta
do paço, cavalgado na mula que trazia de rédea, e saído ao terreiro
seguido de Fr. Roy, que coxeava, estorcia-se, e suspirava
dolorosamente de quando em quando. Passo a passo, e sofreando
a mula, caminho da sé, o pagem narrou ao beguino todas as
particularidades succedidas aquella manhan, as quaes Fr. Roy
sabia melhor do que elle. Chegados defronte dos paços do concelho,
o pagem tomou pelo sopé da alcaçova e Fr. Roy pela porta do ferro,
não sem terem primeiro saído da bolça do donzel para a manga
do beguino alguns pilartes[1], e da bôca deste para os ouvidos
daquelle alguns latinorios pios devidamente escorchados.
Apenas passára o largo da sé e transpozera a velha e soturna
porta do ferro, Fr. Roy se achára perfeitamente sarado do seu
tão agudo rheumatismo. Ligeiro como um galgo, desceu por entre
as antigas terecenas reaes, e em menos de tres credos estava no
pelourinho[2] Ahi viu cousa que o fez parar. Um homem vestido
de valencina, e coberta a cabeça com um grande feltro, arengava
a um troco de bésteiros e peões armados de lanças ou ascumas, de
almarcovas ou cutellos: tinha nas mos um desconforme montante, e
na cincta uma espada curta: a turba ora o escutava attentamente,
ora prorompia em gritos confusos e estrondosos. Fr. Roy chegou-se.
O homem do feltro amplo era o mestre tanoeiro Bartholomeu Chambão,
que enthusiasmado proseguia o seu vehemente discurso sem reparar
no beguino:
"Já vo-lo disse: d'aqui ninguém bóle pé antes d'elrei nosso senhor
saír para S. Domingos. Nada de bulha fóra de sazão, que lá estão
os esculcas. Daremos mostra ao paço quando ahi fôr só a adultera.
Se, como hontem, nos fecharem as portas, isso é outro caso. É
preciso que isto se desfaça. A cobra peçonhenta deve saír da
toca. Não digo que então não seja possivel esmagar-se-lhe a cabeça...
N'um brandir de ascuma... Mas cautela, não haja sangue!...
Pelo menos de innocentes... Leaes e esforçados cidadãos desta
mui leal cidá... Sáfa, bruto!"
Esta peroração inesperada com que mestre Bartholomeu interrompêra
o seu discurso, que se ía elevar ao ápice da eloquencia, procedêra
de lhe ter descido a grossa e espaçosa mão do ichacorvos sobre o
hombro, que lhe vergára como se houvessem descarregado em cima
delle uma aduella de cuba. A Fr. Roy occorrêra uma idéa abençoada,
a de communicar a mestre Bartholomeu a nova que D. Leonor lhe
recommendára espalhasse entre os amotinados; a nova da sua partida
de Lisboa com elrei. O mendicante sabía que o tanoeiro era homem de
bofes lavados, e que dentro de meia hora a noticia teria corrido
toda a cidade. Assim se esquivava não só a ser visto no rocío
pelo donzel, de quem naquelle instante se apartára, mas tambem
a achar-se involvido em qualquer desordem que semelhante noticia
poderia produzir, attenta a irritação dos animos. Além d'isto
a lembrança do arripio dorsal, que as ultimas palavras de D.
Leonor lhe tinham causado, lhe fazia quasi desejar que o tanoeiro,
encarregado (segundo percebêra do fim da sua arenga) da commissão,
que, na taberna de Folco Taca, Diogo Lopes incumbíra a Fernão
Vasques, podesse ainda desempenha-la, atalhando a fuga de D.
Leonor. Estas considerações que lhe haviam passado rapidamente
pelo espirito, e o vêr que mestre Bartholomeu não levava geito
de acabar, o moveram a falar ao tanoeiro, que só o sentíra quando
elle lhe descarregára sobre o hombro a ponderosa mas amigavel
palmada.
"Com mil e quinhentos satanazes!--exclamou mestre Bartholomeu,
voltando-se e vendo ao pé de si o beguino.--Sabia que a mão da
sancta madre igreja era pesada; mas não pensava que o fosse tanto!
Que me quereis, Fr. Roy?"
"Dizer-vos que podeis mandar saír vossos esculcas de sua atalaia;
porque poderiam chegar a curtir o inverno ahi antes de verem
elrei chegar e passar para S. Domingos."
"Fr. Roy,--replicou o tanoeiro, fazendo-se vermelho de colera--para
interromper-me com uma de vossas bufonerias não valia a pena de
me aleijardes este hombro!"
"Tomae como quizerdes as minhas palavras; chamae-me o que vos
aprouver, bufão ou mentiroso, mas a verdade é que não será hoje
que os populares falarão com elrei."
"Pois quê, morreu dos feitiços da adultera, ou lornou-o invisivel
algum encantador seu amigo?"
"Nem uma cousa nem outra: mas com estes olhos de grande peccador
(aqui o ichacorvos fez o gesto habitual de cruzar as mãos sobre
o peito) eu o vi sair para a banda da portada cruz..."
"Fr. Roy, olhae que estes honrados cidadãos vos escutam, e que
o auto é mui grave para gastar truanices."
"Já disse, mestre Bartholotmeu, que falo verdade. Pelo bento
cercilho do sancto-padre vos juro que hoje elrei não dormirá em
Lisboa, segundo o geito que lhe vejo. Elle cavalgava uma possante
mula de caminbo; n'outra ia uma dona coberta com um longo véu:
seguiam-no donzeis, falcoeiros e moços de monte. Ao passar ainda
lhe ouvi estas palavras:--olhae aquelles villãos traidores como
se junctavam: certamente prender-me quizeram, se lá fora[3]!--Não
pude perceber mais nada. Que mais, porém, é preciso? Deixastes
fugir a prêa: agora catae-lhe o rasto."
"Traidor é elle, que nos ha mentido como um pagão!--bradou o
tanoeiro sopesando o montante.--Mas que se guarde de outra vez
trazer a Lisboa a adultera! Rainha ou barregan, arrancar-lhe-hemos
os olhos. A arraya-miuda foi escarnida; mas não o será em vão.
Que dizeis vós outros, honrados burguezes?"
"Escarnidos, escarnidos!--respondeu com grande grila o tropel.--Mas
à fé que nunca a adultera será rainha de Portugal. Morra a comborça!"
E no meio da alarida, as pontas das lanças e os largos ferros
das almarcovas agitadas nos ares scintillavam aos raios do sol
oriental como um vasto brazido.
"Ao rocío! ao rocío!--gritou mestre Bartholomeu.--Vamos, rapazes:
já que não fazemos aqui nada, ao menos que o povo não seja por
mais tempo burlado!"
E pondo o montante ás costas, mestre Bartholoraeu tomou por uma
das ruas que davam para a banda de Valverde, seguido da turbamulta,
e sem fazer caso de Fr. Roy, que procurava rete-lo, ponderando que
ainda poderia alcançar elrei e fazê-lo retroceder. O tanoeiro, porém,
não tinha valor para affrontar-se face a face com D. Fernando, e
por isso fingiu não ouvir o beguino, que dentro de alguns minutos
se achou só no meio do terreiro calado e deserto.
Entretanto juncto a S. Domingos, se bem que a rixa começada entre
os nobres partidários de Leonor e Fernão Vasques se houvesse
desvanecido, a agitação dos populares, cujo numero crescia
continuamente, não tinha diminuido. Encostado a um dos pilares
do alpendre, o alfaiate ora lançava os olhos de revés para os
senhores da côrte e conselho, que, esperando por elrei, passeiavam
de um para outro lado, ora os espraiava por aquelle mar de vultos
humanos, que elle sabía poder agitar ou tornar immoveis com uma
palavra ou com um simples aceno. Semelhante á hora que precede
a procella, em que apenas se vêem correr na atmosphera abalada
os castellos encontrados de nuvens densas e negras, e se ouve o
estourar dos trovões roufenhos e prolongados, aquella hora que
então passava era espantosa e ameaçadora de estragos, sobretudo
quando, após um rugido terrivel do tigre popular, se fazia na
praça apinhada de gente um silencio ainda mais temeroso e tetrico.
Foi n'uma destas interrupções do motim que um pagem, saíndo ao
galope do lado da corredoura, veio apear-se juncto do alpendre,
e tirando da cincta um pergaminho aberto o entregou ao infante
D. Diniz.
Este fitou os olhos na escriptura, descórou subitamente, e entregou
o pergaminho a Diogo Lopes, dizendo-lhe ao mesmo tempo em voz
baixa:
"Estamos perdidos!"
Diogo Lopes leu o conteúdo naquelle escripto fatal, e no mesmo
tom respondeu ao infante:
"O caminho de salvação que nos resta é o de Santarem. Obediencia
e circumspecção!"
O pergaminho passou rapidamente de mão em mão: os fidalgos, letrados,
e cavalheiros fizeram um circulo no meio do alpendre: e, depois
de o haverem lido, fitaram uns nos outros olhos desassocegados.
Todos receiavam falar. O manhoso Pacheco foi o primeiro que se
atreveu a isso, aproveitando habilmente a hesitação dos outros
fidalgos e conselheiros.
"Vistes a ordem d'elrei. Como um dos mais velhos entre nós, direi
meu parecer. Embora o risco seja grande achando-nos cercados de
povo armado e furioso, o nosso dever é pôr a vida por obedecer
a nosso senhor elrei."
"Mas,"--atalhou o doutor Gil d'Ocem, que por mui letrado e prudente
era ouvido como oraculo pelos cortezãos--"o caso é grave: o povo
se nos vir retirar enviar-se-ha a nós: se lhes dizemos o motivo
da nossa partida é capaz de desconcertos maiores que os já
commettidos."
"Sua senhoria não devêra ter-nos emprasado para este auto, se a
sua intenção era não dar resposta aos populares."
Visivelmente o doutor em leis e degredos estava tomado de medo,
no que não levava vantagem á maior parte dos outros membros do
conselho real.
O conde de Barcellos guardava silencio. Não podia conceber como
D. Leonor o não avisára a tempo, e por isso preoccupava-o a
indignação, ignorando que a resolução da fuga fôra tomada mui
tarde. Na vespera elle aconselhara a elrei que cedesse a tudo
quanto o povo quizesse; porque dissolvido o tumulto, facil era
chamar á côrte os senhores e cavalleiros de mais confiança,
acompanhados de gente do guerra, com que seria sopitado qualquer
motim, se os populares ousassem oppôr-se de novo á vontade de
seu rei e senhor. D. Fernando aceitára o conselho, que, se não
era o mais leal, era ao menos o mais seguro; mas as revelações
do ichacorvos, que o conde ignorava, tinham mudado, como o leitor
viu, a situação do negocio.
A reflexão de Gil d'Ocem estava em todas as cabeças, e por isso
os cortezãos ficaram outra vez em silencio, como buscando um
expediente para sair daquelle difficultoso passo: a incerteza,
o despeito, o receio pintava-se nos rostos demudados de muitos.
E as vagas do oceano, que ameaçava traga-los, encapellavam-se
aos pés deites: o povo, vendo os fidalgos erguidos e mudos n'um
circulo, apinhava-se cada vez mais basto ao redor da alpendrada.
Isto fazia crescer o temor, e o temor perturbava demais os animos
para não poderem achar um expediente acertado.
Era por isso que esperava o astuto Pacheco.
"De um lado a colera do povo: do outro os mandados delrei--disse,
apertando com a mão a fronte, o velho conselheiro de Affonso
ÍV.--Resta-nos só um arbitrio."
"Dizei, dizei!--clamaram a um tempo todos, á excepcão do conde
de Barcellos, que fitou nelle os olhos desconfiados.
"É necessário que annunciemos a nova da partida d'elrei, e que
sejamos os primeiros a affeíar este procedimento: é necessário
que vamos adiante da indignação dos peòes. Depois dir-lhes-hemos
que, burlados como elles, nada fazemos aqui. Então apartar-nos-hemos
sem susto, e sairemos da cidade como podérmos, na certeza de que
não serei eu o ultimo, apesar de velho, que cruze as portas da
alcaçova de Santarem."
"Mas quem ha-de falar em nosso nome?--perguntou Gil d'Ocem.
"No vosso, mestre Gil das Leis!--interrompeu o conde de
Barcellos.--Nem o receio das affrontas do alguns milhares de
sandeus, nem o da propria morte me obrigaria a cuspir maldicções
sobre o nome daquelle a quem uma vez jurei preito e leal menagem."
"Viram impendere vero nemo tenetur"--replicou Gil d'Ocem--"ou,
como quem o dissesse por linguagem, ninguém é obrigado a deixar-se
matar por amor da verdade ou de seu preito. Vós fazei o que vos
aprouver."
Á auctoridade de um texto latino trazido assim a ponto por um tão
insigne doutor, não havia resistir. Os fidalgos e conselheiros
approvaram quasi unanimente o alvitre de Diogo Lopes.
"Mas quem ha-de falar ao povo?--insistiu o mestre em leis, que
não parecia excessivamente inclinado a incumbir-se dessa gloriosa
tarefa.
"Eu, se assim o quizerdes"--replicou immediatamente Diogo Lopes.
O manhoso cortesão vira claramente que a partida d'elrei transtornava
todos os seus desenhos: todavia calculára n'um momento como,
sem suscitar a indignação de Fernão Vasques, e por consequencia
alguma revelação perigosa, podia salvar-se e ao infante. Logo
que elrei se esquivára á influencia do povo, de cuja ousadia o
velho esperava tudo, o casamento de D. Leonor era inevitavel,
e ainda suppondo, o que não era de esperar, que o tumulto fosse
avante, que Lisboa se rebellasse claramente contra D. Fernando,
o resultado da guerra civil tinha muito maior probabilidade de
ser favoravel a elrei, senhor do resto de Portugal, que ao povo,
desprovido naquella conjunctura dos principaes meios com que
poderia sustentar uma lucta intestina. Assim, o alvitre que
offerecêra para a salvação dos cortezãos era só para se haver de
salvar a si, conservando ao mesmo tempo a affeição dos cabeças
da revolta, sem que o meio que para isso devia empregar o fizesse
decahir da graça de D. Fernando.
Para os calculos de Diogo Lopes faltáro, porém, um elemento:
era a delação do beguino; e era justamente, esta falta que os
destruia todos. Assim é a politica.
O sacrifício de Diogo Lopes foi geralmente recebido com approvação
e agradecimento. Então elle, saíndo do circulo, aproximou-se a
Fernão Vasques, que de quando em quando volvia os olhos inquietos
para a pinha dos fidalgos e cavalleiros.
"Falhou a traça:--disse o velho cortezão em voz sumida ao
alfaiate.--Elrei acaba de saír da cidade."
Fernão Vasques recuou, e poz-se a olhar espantado para Diogo Lopes,
como quem não acreditava o que ouvia.
"O que vos digo é a verdade,--continuou Pacheco.--Mas não affrouxar!
Elrei de Castella é por nós, e bom numero de fidalgos portuguezes
o são tambem. Mais; são por nós a maior parte dos que ora aqui
vêdes presentes. Conservae o bom animo do povo, e fiae o resto
de mim e ... de quem vós sabeis."
Ao pronunciar estas palavras, Diogo Lopes lançou de relance os
olhos para D. Diniz.
"Mas elrei tomará por mulher D. Leonor--acudiu o alfaiate
aterrado:--voltará a Lisboa com seus cavalleiros e homens d'armas,
e então coitados de nós!"
"Não temaes: o matrimonio adultero será condemnado pelo papa. Vós
já tereis ouvido contar o que succedeu a elrei D. Sancho: a D.
Fernando póde succeder o mesmo. Tambem os fidalgos de Portugal têem
homens d'armas. Podeis estar certo de que não vos abandonaremos.
Agora resta uma cousa. Coube-me a mim dar esta triste nova aos bons
e leaes burguezes, que tão ousadamente se oppozeram á deshonra
da sua terra e de seu rei, e eu devo ser ouvido por elles.
Mandae-lhes que façam silencio."
Fernão Vasques obedeceu: o ruído dos populares, que não descontinuára
durante esta scena, acalmou a um aceno do alfaiate.
Diogo Lopes fez então um largo discurso, com o qual não cansaremos
os leitores, que pouco mais ou menos terão previsto como seria.
Misturando amargas reprehensões contra D. Fernando com lisonjas aos
populares, procurou persuadi-los, posto que indirectamente, de que
toda a fidalguia estava cheia de indignação. Alludiu á resistencia
por armas que elrei podia encontrar entre os ricos-homens de
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