Lendas e Narrativas (Tomo I) - 09

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ferro embebido na parede, d'onde a tinha tirado, e encaminhou-se
para juncto da porta, onde ficou com os braços cruzados, olhos
no chão, e immovel como uma estatua. Desde este dia o formoso
donzel odiou do fundo da alma a sua mui nobre senhora, aquella
que lhe cingira a espada. O generoso Nunalvares conhecêra que
debaixo desse rosto suave se escondia um instincto de besta-fera.
Os dous fidalgos continuaram a passeiar de um para outro lado,
conversando em voz baixa e como alheios á scena que alli se passava.
Elrei tomára a primeira postura em que estava, com o cotovelo
firmado no braço da cadeira, e a cabeça encostada no punho; mas os
seus olhos, revolvendo-se-lhe nas orbitas, incertos e espantados,
exprimiam a dolorosa alienação daquella alma timida, atormentada
por mil affectos oppostos.
Ouvia-se apenas o cicío dos dous que conversavam. E por largo
espaço aquetle murmurio, e o respirar alto e convulso de D. Fernando
foram o unico ruído que interrompeu o silencio do vasto aposento.
Elrei, com a mão esquerda pendente sobre os joelhos, deixava-se
ir ao som das idéas tenebrosas que lhe offuscavam o espirito,
e que protrahidas o levariam bem proximo das raias de completa
loucura. A imagem de Leonor Telles apparecia-lhe como composto
monstruoso de vulto d'anjo e de olhar de demonio. Um amor infinito
arrastava-o para essa imagem; o horror affastava-o della. Via-a
como um simulachro das virgens, que, na infancia, imaginava ao
ouvir ler ao bom de seu aio Ayras Gomes as lendas das martyres;
mas logo cuidava ouvi-la dar risada, infernal passando por cima
das ruinas de cidade deserta. O patibulo e os delirios amorosos;
o cheiro do sangue e o halito dos banquetes misturavam-se-lhe no
senso intimo: e o pobre monarcha, nos seus desvarios, perdêra
a consciencia do logar, da hora e da situação em que se achava
naquelle terrivel momento.
Mas um beijo ardente, dado nessa mão que tinha estendida, e lagrymas
ainda mais ardentes que a regavam foram como faisca electrica
revocando-o á razão e á realidade da vida.
A commoçào indizivel e mysteriosa que sentira fez-lhe abaixar
os olhos: a rainha estava a seus pés: era ella quem lhe cobria
a mão de beijos e lh'a regava de lagrymas.
D. Fernando affastou-a suavemente de si: ella alevantou o rosto
celeste orvalhado de pranto; era de feito a imagem de uma das
martyres que elle via no seu imaginar da infância. D. Leonor
ergueu as mãos supplicantes com um gesto de profunda angustia:
então era mais formosa que ellas.
"Ah!"--murmurou elrei:--"porque é o teu coração implacavel, ou porque
te amei eu tanto?!"
"Desgraçada de mim!--acudiu D. Leonor entre soluços.--O teu amor
era como o iris do céu: era a minha paz, a minha alegria, a minha
esperança; mas desvaneceu-se e passou: a vida de Leonor Telles
desvanecer-se-ha e passará com elle!"
"É porque sabes que esse amor não póde perecer; que esse amor
como um fado escripto lá em cima--interrompeu D. Fernando--que
tu me fazes tingir as mãos de sangue, para satisfazer tuas crueis
vinganças: é porque sabes que eu esgóto sempre o calix das ignominias
quando as tuas mãos m'o apresentam, que tu me sacias de deshonra.
Terás acaso algum dia piedade daquelle que fizeste teu servo,
e que não póde esquivar-se a ser tua victima?"
"Oh quanto és injusto, Fernando, e quão mal me conheces!--exclamou
Leonor Telles limpando as lagrymas.--Foi a tua dignidade real, a
tua justiça, o teu nome que eu quiz salvar da tua propria brandura.
Aos mesquinhos que me offenderam perdoei de todo o coração; mas
tu, que eras rei e juiz, nào o podias fazer. Se o nome de teu
virtuoso pae ainda hoje lembra a todos com veneração e amor, é
porque teu pae foi implacavel contra os criminosos, e aquillo em
que pões a deshonra e a ignominia, é a coroa de gloria immortal
que cérca o seu nome. Se as minhas palavras te constrangeram a
escolher entre a confirmação dessa fatal sentença e a deslealdade
e blasphemia, que não cabem em coração e labios de cavalleiro,
foi por te salvar de ti mesmo. Se crês que nisto fui culpada,
dize-me só--Leonor, já não te amo!--e eu ficarei punida; porque
nessas palavras estará escripta a minha sentença de morte! Possas
tu depois perdoar-me, e proferir sobre a campa da pobre Leonor
uma expressão de piedade!"
As lagrymas e os soluços parecia não a deixarem proseguir. Reclinou
a cabeça sobre os joelhos d'elrei, apertando-lhe a mão entre as
suas com um movimento convulso.
Formosa, querida, humilhada a seus pés, como resistiria o pobre
monarcha? Unindo a face áquella fronte divina, só lhe disse:--oh
Leonor, Leonor!--e as suas lagrymas misturavam-se com as della.
Durante esta lucta da dor e da hypocrisia, em que, como sempre
acontece, a ultima triumphava, o conde de Barcellos e D. Gonçalo
Telles tinham-se encostado á janella fatal que dava para o rio,
e que tambem dominava grande porção do arrabalde occidental da
cidade. O espectaculo da noite era de melancholica magnificencia.
A lua caminhava nos céus limpos do nuvens, e pela face da terra
nem suspirava uma aragem. A claridade do luar refrangia-se nas
aguas, mas esmorecia batendo na povoação, na qual não achava,
além dos antigos muros, uma parede branqueada, uma pedra alva onde
espelhar-se, ou um sussurro do lesta acorde com as suas harmonias.
O incendio e o ferro tinham passado por lá, e Lisboa era um cahos
de ruinas, um cemiterio sem lapides. Apenas no extremo do seu,
d'antes, mais rico e povoado arrabalde amarelejava pulido pelo
tempo o gothico mosteiro de S. Francisco juncto de sua irman mais
velha a igreja dos Martyres. No valle que ficava em meio a luz
do cima embebia-se inutilmente na povoação que jazia extincta.
A bella lua de maio, tão fagueira para esta cidade querida,
assemelhava-se á leôa, que voltando ao antro acha o seu cachorrinho
morto. A pobre fera ameiga-o como se fosse vivo, e vendo-o quedo,
indifferente, e frio, não o crê, e vae, e volta muitas vezes
renovando seus inuteis affagos. Lisboa era um cadaver, e a lua
passava e sorria-lhe ainda!
Mas no meio daquelle; chão irregular, negro, callado, viam-se
aqui e acolá luzinhas que se meneavam de um para outro lado, ao
que parecia, sem rumo certo. Era que os frades de S. Francisco e
de S. Domingos faziam procurar por entre os entulhos as reliquias
dos mortos, para lhes darem sepultura christan. Neste piedoso
trabalho, que seguiam sem descontinuar havia muito tempo, eram
acompanhados por alguns do povo, que para se esforçarem cantavam
uma cantiga pia, cujas coplas, bem que interrompidas, vinham
com triste som bater de vez em quando nos ouvidos dos dous
cavalleiros. Resavam as coplas:
D'amigos e imigos,
Que ahi são deitados,
Levemos os ossos
Ao chão dos finados.
Ave Maria!
Sancta Maria!
Madre gloriosa,
Dess'alta ventura
Demovei os olhos
Á nossa tristura.
Ave Maria!
Sancta Maria!
Ao bento Jesus,
E ao padre eternal
Pedi que perdoe
A quem morreu mal.
Ave Maria!
Sancta Maria!
Esta longinqua toada perdeu-se no som de outra bem diversa, que
se alevantou mais perto dos dous cavalleiros. Uma voz esganiçada
dava o seguinte pregão:
"....Justiça que manda fazer elrei em Fernão Vasques, João Lobeira
e Fr. Roy: que morram na forca, sendo ao primeiro as mãos decepadas
em vida."
Os cavalleiros abaixaram os olhos para o logar d'onde subíra
a voz: era no terreiro proximo: os três padecentes e o algoz,
cercados de alguns bésteiros, aproximavam-se do cadafalso: varios
vultos negros fechavam o prestito: daquella pinha partira a voz
do pregoeiro.
Este pregão, dado a horas mortas e n'uma praça deserta, parecia
um escarneo. Mas o corregedor da côrte era affamado jurisconsulto
e nós temos ouvido a alguns que na execução das leis as fórmas
são tudo. Assim piamente o cremos.
Duas se tinham, porém, esquecido: os desgraçados morriam, como
aquelles que o salteador assassina na estrada, pela alta noite,
e sem um sacerdote que os consolasse na extrema agonia.
O algoz empurrou brutalmente um dos padecentes para uma especie
de marco escuro que estava ao pé do patibulo. D'ahi a nada os
cavalleiros viram reluzir duas vezes um ferro: ouviram successivamente
dois golpes dados como em vão, seguindo-se a cada um delles um
grito de terrivel angustia.
O conde de Barcellos quiz rir-se, mas a risada gelou-se-lhe na
garganta, e, como Gonçalo Telles, recuou involuntariamente.
O grilo que restrugira, chegára aos ouvidos d'elrei.
"Que bradar de homem que matam é este?--perguntou elle.
"A justiça de sua senhoria que se executa--respondeu o conde,
que neste momento retrocedia da janella.
"Oh desgraçados! tão breve!--disse elrei, passando a mão pela
fronte, d'onde manava o suor da afflicção e do terror. Olhando
então para Leonor Telles accrescentou:
"Até a derradeira mealha estão pagas vossas arrhas, rainha de
Portugal! Que mais pretendeis de mim?"
E deixou pender a cabeça sobre o peito.
D. Leonor não respondeu.
D. Gonçalo Telles aproximou-se então da cadeira de D. Fernando,
e curvou um joelho em terra.
Elrei alevantou os olhos e perguntou-lhe:--Que me quereis?"
"Senhor--respondeu o honrado e nobre cavalleiro--se vossa senhoria
consentisse neste momento em ouvir a supplica de um dos seus
mais leaes vassallos!..."
"Falae:--replicou D. Fernando.
"João de Lobeira acaba de receber o premio de sua traição:--proseguiu
D. Gonçalo.--O desleal escudeiro possuia avultados bens, que
ficam pertencendo á corôa real. Por vossa muita piedade podeis
fazer mercê delles a seu filho Vasco de Lobeira; mas o pobre
moço ensandeceu ha tempos! Tresleu com livros de cavallarias,
e tão varrido está que não fala em al, senão em um que anda
imaginando, e a que poz o nome Amadis. Para um mesquinho parvo
e sandeu pouco basta, e vossa real senhoria bem sabe que a minha
escassa quantia mal chega ..."
"Calae-vos, calae-vos; que isso é negro e vil;--bradou elrei,
redobrando-lbo o horror que tinha pintado no rosto.--Deixae ao
menos que a sua alma chegue perante o throno de Deus!"
"Apenas cincoenta maravedis!"--murmurou D. Gonçalo, erguendo-se,
e abaixando os olhos, afflicto com a lembrança de sua extremada
pobreza.
A seis de junho da era de Cesar de 1411 (1373) em um dos andares
da torre do castello, o veador da chancellaria, Alvaro Pires,
passeando de um para outro lado, dictava a um mancebo vestido
de garnacha preta, e que tinha diante de si tinteiro, pennas,
e folhas avulsas de pergaminho, a seguinte nota:
"Item. Pera se spreuer a fl'olhas cento e vinte-oyto do llivro
prymeyro da Chancelaria Delrrey noso senhor:--Doaçom dos bees de
rraiz e moviis de Joham Lobeira, confisquado e morto por treedor
contra ho serviço de ssua rreal senhoria, ao muy nobre D. Gonçaalo
Tellez, per ho muyito divedo que cõ elrrey ha, e polos muytos
sserviços que del teè rreçebido e ao deante espera de rreçeber.[7]"
E o povo?... Oh, este sim! Mostrava-se agradecido e bom, no meio
de tantas infamias e crimes.
Os populares, que, na manhan immediata áquella horrivel noite
dos fins de maio, passavam pello terreiro maldict, onde pendiam
da forca os tres cadaveres, meneavam a cabeça, e seguindo ávante
diziam:
"Boa e prestes foi a justiça d'elrei nos traidores. Alcacer por
sua senhoria!"

NOTA FINAL.
D. Fernando guardou até á primavera de 73 a vingança contra os
populares de Lisboa e d'outras terras, que no anno de 71 se tinham
amotinado por causa do seu casamento. Vê-se isto dos documentos
registados na sua chancellaria e citados por Fr. Manuel dos Sanctos.
Quem attentamente tiver estudado o caracter atroz e dissimulado de
Leonor Telles, tão bem pintado por Fernão Lopes, e os factos que
provam a sua influencia sem limites no animo daquelle principe,
não poderá esquivar-se a vehementes suspeitas sobre os motivps, que
n'um romance nós damos como reaes, porque ahi é licito faze-lo, da,
aliás inexplicavel, inacção com que D. Fernando não quiz oppor-se á
vinda d'elrei de Castella sobre Lisboa, vinda que reduziu os seus
moradores aos mais espantosos apuros, e que converteu a cidade,
por assim dizer, em um montão de ruinas. Daquelles documentos
resulta que, depois de tirada toda a força aos habitantes de
Lisboa pela guerra de Castella, em que se viram quasi sós e
abandonados, elrei viera, sobre as ruinas da maior e melhor parte
della, satisfazer os odios de D. Leonor; porque, levantado o
cerco em março de 73, achâmos elrei em Lisboa (aonde não voltára
desde a sua fuga em outono de 71) durante alguns dias de maio, e
em Santarem e outros logares nos mezes seguintes, fazendo mercês
dos bens de cidadãos mortos, decepados, ou fugidos, do que se
póde concluir que então foram executados ou banidos, não sendo
de crer que a cobiça cortezan tivesse esporado muitos dias sem
prear estes sanguinolentos despojos.
O casamento de Leonor Telles, e as consequencias delle são o
primeiro acto do drama terrivel, da Iliada scelerun da sua vida
politica. Foi este primeiro acto que nós procurámos dispor na tela
do romance historico. Todo o drama daria, nessa fórma da arte,
uma terrivel chronica. Desde esta conjunctura, até ser arrastada
em ferros para Castella por aquelles mesmos que chamára a assolar
o seu paiz, a Lucrecia Borgia portugueza é na historia daquella
epocha uma espécie de phantasma diabolico, que apparece onde quer
que haja um feito de traições, de sangue, ou d'atrocidade.
[1] Fernão Lopes, Chr. de D. Fern. cap. 75.
[2] A rainha... como era ousada e muito faladora: Fernão
Lopes, Chr. de D. Fern. cap. 126.
[3] Ibid. Cap. 72.
[4] O selo de puridade ou do camafeu era aquelle que
se estampava no proprio pergaminho, e que servia ordinariamente
para o rei expedir documentos de menos importancia, na falta do
chanceller-mór, que tinha o sêllo grande, curial, ou do cavallo.
Veja-se a Dissertação 3ª de J. P. Ribeiro.
[5] Os tumultos contra o casamento de D. Fernando não
se tinham limitado a Lisboa. Pelas doações dos bens dos treedores
mortos ou decepados se conhece que houve assoadas e depois vinganças
em Satarem, Leiria, Abrantes e outras partes.
[6] Neste século ainda barbaro o uso de hervarou envenenar
as armas de tiro ou arremesso era vulgarissímo nos combates.
[7] a nota é imaginaria, mas esta mercê acha-se com
effeito registada a f. 128 do L.º 1.º da chancellaria de D. Fernando;
cumpre todavia advertir que dessa chancellaria apenas existe
original o 3.º livro: o 1.º é dos reformados ou estragados por
Gomes Eannes de Azurara.


O CASTELLO DE FARIA (1373)


A breve distancia da villa do Barcellos, nas faldas do Franqueira,
alveja ao longo um convento de Franciscanos. Aprazivel é o sitio,
sombreado de velhas arvores. Sente-se alli o murmurar das aguas
e a bafagem suave do vento, harmonia da natureza, que quebra o
silencio daquella solidão, a qual, para nos servirmos de uma
expressão de Fr. Bernardo de Brito, com a saudade de seus horisontes
parece encaminha e chamar o espirito á contemplação das cousas
celestes.
O monte que se alevanta ao pé do humilde convento, é formoso, mas
aspero e severo como quasi todos os montes do Minho. Da sua corôa
descobre-se ao longe o mar, semelhante a mancha azul entornada na
face da terra. O espectador colloeado no cimo daquella eminencia
volta-se para um e outro lado, e as povoações e os rios, e os
prados e as fragas, e os soutos e os pinhaes apresentam-lhe o
panorama variadissimo que se descobre de qualquer ponto elevado
da província de Entre-Douro-e-Minho.
Este monte, ora ermo, silencioso e esquecido, já se viu regado
de sangue: já sobre elle se ouviram gritos de combatentes, ancias
de moribundos, estridor de habitações incendiadas, sibilar de
setas, e estrondo de machinas de guerra. Claros signaes de que
ahi viveram homens; porque é com estas balisas que elles costumam
deixar assignalados os sitios que escolheram para habitar na
terra.
O castello de Faria com suas torres e ameias, com sua barbacan
e fosso, com seus postigos e alçapões ferrados, campeou ahi como
dominador dos valles vizinhos. Castello real da meia idade, a
sua origem some-se nas trevas dos tempos que já lá vão ha muito:
mas a febre lenta que costuma devorar os gigantes de marmore e
de granito, o tempo, coou-lhe pelos membros, e o antigo alcacer
das eras dos reis de Leão desmoronou-se e cahiu. Ainda no seculo
dezesete parte da sua ossada estava dispersa por aquellas encostas:
no seculo seguinte já nenhuns vestigios delle restavam, segundo
o testemunho de um historiador nosso. Um eremiterio fundado pelo
celebre Egas Moniz era o unico eccho do passado que ahi restava.
Na ermida servia de altar uma pedra trazida de Ceuta pelo primeiro
duque de Bragança D. Affonso. Era esta lagea a mesa em que costumava
comer Salat-ibn-Salat, ultimo senhor de Ceuta. D. Affonso, que
seguíra seu pae D. João I na conquista daquella cidade, trouxe
esta pedra entre os despojos que lhe pertenceram, levando-a comsigo
para a villa de Barcellos, cujo conde era. De mesa de banquetes
mouriscos converteu-se essa pedra em ara do christianismo. Se
ainda existe, quem sabe qual será o seu futuro destino?
Serviram os fragmentos do castello de Faria para se construir
o convento edificado ao sopé do monte. Assim se converteram em
dormitorios as salas de armas, as ameias das torres em bordas de
sepulturas, os umbraes das balhesteiras e postigos em janellas
claustraes. O ruído dos combates calou no alto do monte, e nas
faldas delle alevantou-se a harmonia dos psalmos e o sussurro
das orações.
Este antigo castello tinha recordações de gloria. Os nossos maiores,
porém, curavam mais de practicar façanhas, do que de conservar
os monumentos dellas. Deixaram por isso, sem remorsos, sumir
nas paredes de um claustro pedras que foram testemunhas de um
dos mais heroicos feitos de corações portuguezes.
Reinava entre nós D. Fernando. Este principe, que tanto degenerára
de seus antepassados em valor e prudencia, fôra obrigado a fazer
paz com os castelhanos depois de uma guerra infeliz, intentada sem
justificados motivos, e em que esgotou inteiramente os thesouros
do estado. A condição principal, com que se poz termo a esta lucta
desastrosa, foi que D. Fernando casasse com a filha d'elrei de
Castella: mas brevemente a guerra se accendeu de novo; porque
D. Fernando, namorado de D. Leonor Telles, sem lhe importar o
contracto de que dependia o repouso dos seus vassallos, a recebeu
por mulher, com affronta da princesa castelhana. Resolveu-se o
pae a tomar vingança da injuria, ao que o aconselhavam ainda
outros motivos. Entrou em Portugal com um exercito, e recusando
D. Fernando acceitar-lhe batalha, veiu sobre Lisboa e cercou-a.
Não sendo o nosso proposito narrar os successos deste sitio,
volveremos o fio do discurso para o que succedeu no Minho.
O Adiantado de Galliza, Pedro Rodriguez Sarmento, entrou pela
provincia de Entre-Douro-e-Minho com um grosso corpo de gente de pé
e de cavallo, emquanto a maior parte do exercito portuguez trabalhava
ou por defender ou por descercar Lishoa. Prendendo, matando e
saqueando, veiu o Adiantado até as immediações de Barcellos sem
achar quem lhe atalhasse o passo; aqui, porém, saíu-lhe ao encontro
D. Henrique Manuel, conde de Cêa, e tio d'elrei D. Fernando, com
a gente que pôde ajunctar. Foi terrivel o conflicto; mas por
fim foram desbaratados os portuguezes, cahindo alguns nas mãos
dos castelhanos.
Entre os prisioneiros contava-se o alcaide-mór do castello de
Faria, Nuno Gonçalves. Saíra este com alguns soldados para soccorrer
o conde de Cêa, vindo assim a ser companheiro na commum desgraça.
Captivo, o valoroso alcaide pensava em como salvaria o castello
d'elrei seu senhor das mãos dos inimigos. Governava-o em sua
ausencia um seu filho; e era de crer que, vendo o pae em ferros,
de bom grado désse a fortaleza para o libertar, muito mais quando
os meios de defensão escaceavam. Estas considerações suggeriram
um ardil a Nuno Gonçalves. Pediu ao Adiantado que o mandasse
conduzir ao pé dos muros do castello; porque elle com suas
exhortações faria com que seu filho o entregasse sem derramamento
de sangue.
Um troço de bésteiros e de homens d'armas subia a encosta do
monte da Franqueira, levando no meio de si o bom alcaide Nuno
Gonçalves. O Adiantado de Galliza seguia atraz com o grosso da
hoste, e a costaneira ou ala direita, capitaneada por João Rodriguez
de Viedma, se estendia rodeando o castello pelo outro lado. O
exercito victorioso ía tomar posse do castello de Faria, que
lhe promettêra dar nas mãos o seu captivo alcaide.
De roda da barbacan alvejavam as casinhas da pequena povoação
de Faria: mas silenciosas e ermas. Os seus habitantes, apenas
enxergaram ao longe as bandeiras castelhanas, que esvoaçavam soltas
ao vento, e viram o refulgir scintillante das armas inimigas,
abandonando os seus lares, foram-se acolher no terreiro que se
estendia entre os muros negros do castello e a cerca exterior
ou barbacan.
Nas torres os atalaias vigiavam attentamente a campanha, e os
almocadens corriam com a rolda[1] pelas quadrellas do muro, e
subiam aos cubellos collocados nos angulos das muralhas. O terreiro
aonde se haviam acolhido os habitantes da povoação, estava cuberlo
de choupanas colmadas, nas quaes se abrigava a turba dos velhos,
das mulheres, e das creanças, que alli se julgavam seguros da
violencia de inimigos desapiedados.
Quando o troço dos homens d'armas, que levavam preso Nuno Gonçalves,
vinha já a pouca distancia da barbacan, os bésteiros que coroavam as
ameias encurvaram as béstas, os homens dos engenhos prepararam-se
para arrojar sobre os contrarios os seus quadrellos e virotões,
em quanto o clamor e o chôro se alevantava no terreiro, onde
o povo inerme estava apinhado.
Um arauto saíu do meio da gente da vanguarda inimiga e caminhou
para a barbacan: todas as béstas se inclinaram para o chão, e
o ranger das machinas converteu-se n'um silencio profundo.
"Moço alcaide, moco alcaide!--bradou o arauto--teu pae captivo
do mui nobre Pedro Rodriguez Sarmento, Adiantado de Galliza pelo
muito excellente e temido D. Henrique de Castella, deseja falar
comtigo de fóra de teu castello."
Gonçalo Nunes, o filho do velho alcaide, atravessou então o terreiro,
e chegando à barbacan, disse ao arauto:--"A Virgem proteja meu
pae: dizei-lhe que eu o espero."
O arauto voltou ao grosso de soldados que rodeavam Nuno Gonçalves,
e depois de breve demora o tropel aproximou-se da barbacan. Chegados
ao pé della, o velho guerreiro saíu d'entre os seus guardadores
e falou com o filho:
"Sabes tu, Gonçalo Nunes, de quem é esse castello, que, segundo o
regimento de guerra, entreguei á tua guarda quando vim em soccorro
e ajuda do esforçado conde de Cêa?"
"É--respondeu Gonçalo Nunes--de nosso rei e senhor D. Fernando
de Portugal, a quem por elle fizeste preito e menagem."
"Sabes tu, Gonçalo Nunes, que o dever de um leal alcaide é de
nunca entregar, por nenhum caso, o seu castello a inimigos, embora
fique enterrado debaixo das ruinas delle?"
"Sei, oh meu pae!--proseguiu Gonçalo Nunes em voz mais baixa, para
não ser ouvido dos castelhanos, que começavam a murmurar.--Mas
não vês que a tua morte é certa, se os inimigos percebem que me
aconselhaste a resistencia?"
Nuno Gonçalves, como se não tivera ouvido as reflexões do filho,
clamou então:--Pois se o sabes, cumpre o teu dever, alcaide do
castello de Faria! Maldicto por mim, sepultado sejas tu no inferno,
como Judas o traidor, na hora em que os que me cercam entrarem
nesse castello, sem tropeçarem no teu cadaver."
"Morra!--gritou o almocadem castelhano--morra o que nos
atraiçoou."--E Nuno Gonçalves cahiu no chão atravessado de muitas
espadas e lanças.
"Defende-te, alcaide!"--foram as ultimas palavras que elle murmurou.
Gonçalo Nunes corria como louco ao redor da barbacan, clamando
vingança. Uma nuvem de frechas partiu do alto dos muros: grande
porção dos assassinos de Nuno Gonçalves misturaram o próprio
sangue com o sangue do homem leal ao seu juramento.
Os castelhanos accommetteram o castello: no primeiro dia de combate
o terreiro da barbacan ficou alastrado de cadaveres tisnados, e de
colmos e ramos reduzidos a cinzas. Um soldado de Pedro Rodriguez
Sarmento tinha sacudido com a ponta da sua longa chuça um colmeiro
incendiado para dentro da cerca: o vento suão soprava nesse dia
com violencia; e dentro em pouco os habitantes da povoação, que
haviam buscado o amparo do castello, pereceram junctamente com
as suas frageis moradas.
Mas Gonçalo Nunes lembrava-se da maldicção de seu pae: lembrava-se
de que o vira moribundo no meio dos seus matadores, e ouvia a todos
os momentos o ultimo grito do bom Nuno Gonçalves:--"Defende-te,
alcaide!"
O orgulhoso Sarmento viu a sua soberba abatida diante dos torvos
muros do castello de Faria. O moço alcaide defendia-se como um
leão, e o exercito castelhano foi constrangido a levantar o cerco.
Gonçalo Nunes, acabada a guerra, era altamente louvado pelo seu
brioso procedimento, e pelas façanhas que obrára na defensão
da fortaleza, cuja guarda lhe fôra encommendada por seu pae no
ultimo trance da vida. Mas a lembrança do horrivel successo estava
sempre presente no espirito do moço alcaide; e, pedindo a elrei o
desonerasse do cargo, que tão bem desempenhára, foi depôr ao pé
dos altares a cervilheira e o saio de cavalleiro, para se cubrir
com as vestes pacificas do sacerdocio. Ministro do sanctuario,
era com lagrymas e preces que elle podia pagar a seu pae o ter
cuberto de perpetua gloria o nome dos alcaides de Faria.
Mas esta gloria, não ha hoje ahi uma unica pedra que a atteste.
As relações dos historiadores foram mais duradouras que o marmore.
[1] Roldas e sobreroldas eram os soldados e officiaes
encarragados de rondarem os postos e atalaias.


A ABOBADA (1401)


O CÉGO.

O dia 6 de Janeiro do anno da Redempção 1401 tinha amanhecido
puro e sem nuvens: os campos, cubertos aqui de relva, acolá de
searas, que cresciam a olhos vistos com o calor benefico do sol,
verdejavam ao longe, ricos de futuro para o pegureiro e para
o lavrador. Era um destes formosissimos dias de inverno, mais
gratos que os do estio, porque são de esperança, e a esperança
vale mais do que a realidade; destes dias, que Deus só concedeu
aos paizes do occidente, em que os raios do sol, que começa a
subir na eclíptica, estirando-se vividos e tremulos por cima da
terra, ennegrecida pela humidade, errando por entre os troncos
pardos dos arvoredos, despidos pelas geadas, se assemelham a um
bando de creanças no primeiro viço da vida a folgar e a rolar-se
por cima da campa, sobre a qual ha muito sussurrou o ultimo ai da
saudade, e que invadiram os musgos e abrolhos do esquecimento. Era
um destes dias antipathicos aos poetas ossianico-regelo-nevoentos,
que querem fazer-nos acceitar como cousa mui poetica
Esses gêlos do norte, esses brilhantes
Caramellos dos tópes das montanhas,
sem se lembrarem de que
Do sol do meio-dia aos raios vividos,
Parvos!--se lhes derretem: a brancura
Perdem co'a nitidez, e se convertem
De lucidos cristaes em agua chilre;
destes dias, emfim, em que a natureza sorri como a furto, rasgando
o denso véu da estação das tempestades.
No adro do mosteiro de Santa Maria da Victoria, vulgarmente chamado
da Batalha, fervia o povo entrando para a nova igreja, que de mui
pouco tempo servia para as solemnidades religiosas. Os frades
dominicanos, a quem elrei D. João I tinha doado esse magnifico
mosteiro, cantavam a missa do dia debaixo daquellas altas abobadas,
onde repercutiam os sons do orgam, e os ecchos das vozes do
celebrante, que entoava os kyries.
Mas não era por ouvir a missa conventual que o povo se escoava
pelo profundo portal do templo para dentro do recincto sonoro
daquella maravilhosa fabrica: era por assistir ao auto da adoração
dos reis, que com grande pompa se havia de celebrar nessa tarde
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