Lendas e Narrativas (Tomo I) - 12

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"Agora nenhum rei está aqui, mas sim o Mestre d'Aviz, o vosso
antigo capitão, nobre cavalleiro de Aljubarrota."
"Beijo-vos as mãos, senhor rei, por vos lembrardes ainda de um
velho homem de armas, que para nada presta hoje. Vêde o que de mim
mandaes; porque de vossa ordem aqui me trouxe este bom donzel."
"Queria vêr-vos e falar-vos; que de coração vos estimo, honrado
e sabedor architecto do mosteiro de Sancta Maria."
"Architecto do mosteiro de Sancta Maria, já o não sou; vossa
mercê me tirou esse encargo: sabedor, nunca o fui, pelo menos
muitos assim o creem, e alguns o dizem: dos titulos que me daes
só me cabe hoje o de honrado; que esse, mercê de Deus, é meu, e
fôra infamia rouba-lo a quem já não póde pegar em um montante
para defende-lo."
"Sei, meu bom cavalleiro, que estaes mui torvado comigo por dar
a outrem o cargo de mestre das obras do mosteiro: n'isso cria
eu fazer-vos assignalada mercê. Mas venhamos ao ponto: sabeis
que a abobada do capitulo desabou hontem á noite?"
"Sabia-o, senhor, antes do caso succeder."
"Como é isso possivel?!"
"Porque todos os dias perguntava a alguns desses poucos obreiros
portugueses que ahi restam, como ia a feitura da casa capitular:
no desenho della pozera eu todo o cabedal de meu fraco ingenho,
e este aposento era a obra prima de minha imaginação: por elles
soube que a traça primitiva fôra alterada, e que a junctura das
pedras era feita por modo diverso do que eu tinha apontado:
prophetisei-lhes então o que havia de acontecer. E--accrescentou
o velho com um sorriso amargo--muito fez já o meu successor em
por tal arte lhe pôr o remate, que não desabasse antes das vinte
e quatro horas."
"E tinheis vós por certo que se vossa traça se houvera seguido,
essa desmesurada abobada não viria a terra?"
"Se estes olhos não tivessem feito com que eu fosse posto de
banda como uma carta de testamento antiga, que se atira, por
inutil, para o fundo de uma arca, a pedra do fecho dessa abobada
não teria de vir esmigalhar-se no pavimento antes de sobre ella
pesarem muitos séculos; mas os de vosso conselho julgaram que
um cégo para nada podia prestar."
"Pois se ousaes levar a cabo vosso desenho, eu ordeno que o façaes,
e desde já vos nomeio de novo mestre das obras do mosteiro, e
David Ouguet vos obedecerá."
"Senhor rei--disse o cégo, erguendo a fronte, que até alli tivera
curvada:--vós tendes um sceptro e uma espada; tendes cavalleiros
e bésteiros; tendes ouro e poder: Portugal é vosso, e tudo quanto
elle contém, salvo a liberdade de vossos vassallos: nesta nada
mandaes. Não!... vos digo eu: não serei quem torne a erguer essa
derrocada abobada! Os vossos conselheiros julgaram-me incapaz
d'isso: agora elles que a alevantem."
As faces de D. João I tingiram-se do rubor do despeito.
"Lembrae-vos, cavalleiro,--disse elle--de que falaes com D. João
I."
"Cuja corôa--acudiu o cégo--lhe foi posta na cabeça por lanças,
entre as quaes reluzia o ferro da que eu brandia. D. João I é
assaz nobre e generoso, para não se esquecer de que nessas lanças
estava escripto:--os vassallos portuguezes são livres."
"Mas--tornou elrei--os vassallos que desobedecem aos mandados
daquelle em cuja casa tem acostamento[3], podem ser privados
de sua moradia..."
"Se dizeis isso pela que me déstes, tirae-m'a; que não vo-la pedi
eu. Não morrerei de fome; que um velho soldado de Aljubarrota
achará sempre quem lhe esmole uma mealha; e quando haja de morrer
á mingua de todo humano soccorro, bem pouco importa isso a quem vê
arrancarem-lhe, nas bordas da sepultura, aquillo por que trabalhou
toda a vida, um nome honrado e glorioso."
Dizendo isto, o velho levou a manga do gibão aos olhos baços,
e embebeu nella uma lagryma mal sustida. Elrei sentiu a piedade
coar-lhe no coração comprimido de despeito, e dilatar-lh'o
suavemente. Uma das dores d'alma, que em vez de a lacerar a consolam,
é sem duvida a compaixão.
"Vamos, bom cavalleiro,--disse elrei pondo-se em pé--não haja
entre nós doestos. O architecto do mosteiro do Sancta Maria vale
bem o seu fundador! Houve um dia em que nós ambos fomos pelejadores:
eu tornei celebre o meu nome, a consciencia m'o diz, entre os
principes do mundo, porque segui avante por campos de batalha;
ella vos dira também que a vossa fama será perpetua, havendo
trocado a espada pela penna, com que traçastes o desenho do grande
monumento da independencia e da gloria desta terra. Rei dos homens
do acceso imaginar, não desprezeis o rei dos melhores cavalleiros,
os cavalleiros portuguezes! Tambem vós fostes um delles; e
negar-vos-heis a proseguir na edificação desta memoria, desta
tradição de marmore, que ha-de recordar aos vindouros a historia
de nossos feitos? Mestre Affonso Domingues, escutae os ossos de
tantos valentes, que vos accusam de trahirdes a boa e antiga
amizade: vem de todos os valles e montanhas de Portugal o soído
desse queixume de mortos; porque, nas contendas da liberdade,
por toda a parte se verteu sangue e foram semeados cadaveres de
cavalleiros! Eia, pois: se não perdoaes a D. João I uma supposta
affronta, perdoae-a ao Mestre d'Aviz, ao vosso antigo capiião,
que em nome da gente portugueza vos cita para o tribunal da
posteridade, se refusaes consagrar outra vez á pátria vosso
maravilhoso ingenho, e que vos abraça como antigo irmão nos combates,
porque certo crê que não quereis perder na vossa velhice o nome
de bom e honrado portuguez."
Elrei parecia grandemente commovido, e talvez involuntariamente,
lançou um braço ao redor do pescoço do cégo, que soluçava e tremia
sem soltar uma só palavra.
Houve uma longa pausa: todos se tinham posto em pé quando elrei
se erguêra, e esperavam anciosos o que diria o velho. Finalmente
este rompeu o silencio:
"Vencestes, senhor rei, vencestes!... A abobada da casa capitular
não ficará por terra. Oh meu mosteiro da Batalha, sonho querido
de quinze annos de vida entregues a cogitações, a mais formosa
das tuas imagens será realisada, será duradoura como a pedra em
que vou estampa-la! Senhor rei, as nossas almas entendem-se:
as unicas palavras harmoniosas e inteiramente suaves, que tenho
ouvido ha muitos annos, são as que vos saíram da bôca: só D. João
I comprehende Affonso Domingues; porque só elle comprehende a valia
destas duas palavras formosissimas, palavras de anjos--patria e
gloria. A passada injuria a vossos conselheiros a attribui sempre,
que não a vós, posto que de vós, que ereis rei, me queixasse:
varre-la-hei da memoria, como o entalhador varre as lascas e a
pedra moída pelo cinzel de cima do vulto, que entalhou em fuste
de columna arrendada. Que me restituam os meus officiaes e obreiros
portuguezes; que portuguez sou eu, portugueza a minha obra! De hoje
a quatro mezes podeis voltar aqui, senhor rei, e ou eu morrerei,
ou a casa capitular da Batalha estará firme, como é firme a minha
crença na immortalidade e na gloria."
Elrei apertou então entre os braços o bom do cégo, que procurava
ajoelhar a seus pés. Era a attracção de duas almas sublimes,
que voavam uma para a outra. Por fim D. João I fez um signal ao
pagem, que se aproximou:
"Alvaro Vaz, acompanhae este nobre cavalleiro a sua pousada.
E vós, mestre mui sabedor, ide repousar: dentro de quinze dias
vossos antigos officiaes terão voltado de Guimarães para cumprirem
o que mandardes. Mui devoto padre prior,--continuou elrei,
voltando-se para Fr. Lourenço--entendei que d'ora avante Affonso
Domingues, cavalleiro de minha casa, torna a ser mestre das obras
do mosteiro de Sancta Maria da Victoria, em quanto assim lhe
aprouvér."
O prior fez uma profunda reverencia.
A alegria tinha tolhido a voz do architecto: diante de toda a
côrte elrei o havia desaffrontado, e já, sem desdouro, podia
acceitar o encargo de que o tinham despojado. Com passos incertos,
e seguro ao braço do pagem, saíu do aposento, feita venia a elrei.
Este deu immediatamente ordem para a partida; e quando todos
íam saindo, o prior chegou-se ao velho chanceller, e disse-lhe
em tom submisso:
"Doutor Johannes a Regulis, espero que narreis fielmente á rainha
o que succedeu, e a certifiqueis de quanto me custa ver tirada
a régua magistral a mestre Ouguet..."
"Foi--tornou o politico discipulo de Bartholo--mais uma façanha
de D. João I: começou por brigar com um louco, e acabou abraçando-o,
por lhe vêr derramar uma lagryma. Bem trabalho por fazer do Mestre
de Aviz um rei; mas sae-me sempre cavalleiro andante. Não lhe
succedêra isto se, em vez de passar a mocidade em pelejas, a
houvera passado a estudar em Bolonha. Tendo-lhe dicto mil vezes
que é preciso lisongear os inglezes, porque carecemos delles:
a tudo me responde com dizer que com Deus e o proprio montante
tem em nada Castella: todavia a gente ingleza ufanava-se de ser
David Ouguet o mestre desta edificação; e que importava que ella
fosse mais ou menos primorosa a troco de contentarmos os que
comnosco estão liados? Quanto a vós, reverendo prior, ficae
descançado: tudo fia a rainha de vossa prudencia, que é muita,
posto que não vistes Bolonha. Vamos, reverendissimo."
A côrte já tinha saído; e os dous velhos seguiram-na ao longo
daquellas arcadas, conversando um com o outro em voz baixa.
[1] Annequim era o bobo do paço em tempo de D. Fernando,
a quem sobreviveu.
[2] Coixo.--Fui vista ao cégo, e pée ao çôpo. Trad. do
livro de Job. Fragmento do seculo 14.º
[3] Acostamento, é o mesmo que moradia.

O VOTO FATAL.

Rica de galas, a primavera tinha vestido os campos da Estremadura
do viço de suas flores: a madresilva, a rosa agreste, o rosmaninho,
e toda a casta de boninas teciam um tapete odorifero e immenso por
charnecas, comoros, e sapaes, e pelo chão das matas e florestas,
que agitavam as frontes somnolentas com a brisa de manhan purissima,
mostrando aos olhos um balouçar de verdura compassado com o das
seáras rasteiras, que mais longe, pelas veigas e outeiros, ondeavam
suavemente. Eram sete de Maio da era de Cesar de 1439, ou, como
os letrados diziam, do anno da redempção, 1401. Quatro mezes
certos se contavam nesse dia, depois daquelle em que, n'uma das
quadras do aposento real no mosteiro da Batalha, se passára a
scena, que no antecedente capitulo narrámos, e que extrahimos
do famoso manuscripto mencionado no capitulo II, com aquella
pontualidade e verdade, com que o grande chronista F. Bernardo
de Brito citava só documentos innegaveis e auctores certissimos,
e com aquella imparcialidade e exacção, com que o philosopho de
Ferney referia e avaliava os factos em que podia interessar a
religião christan.
Assistiu o leitor á promessa que mestre Affonso Domingues fez a
D. João I de que dentro de quatro mezes lhe daria posto o remate
na abobada da casa capitular de Sancta Maria da Victoria, e lembrado
estará de como elrei lhe promettêra, tambem, mandar vir de Guimarães
todos os officiaes portuguezes, que, despedidos da Batalha por
mestre Ouguet como menos habilidosos que os estrangeiros, haviam
sido mandados para a obra, posto que grandiosa, menos importante de
Sancta Maria da Oliveira, hoje desaportuguesada e caiada e dourada
e mutilada pelo mais barbaro abuso da riqueza e da ignorancia
clerical. A palavra do Mestre d'Aviz não voltára atraz, não por
ser palavra de rei, mas por ser palavra de cavalleiro portuguez
daquelles tempos, em que tão nobres affectos e instinctos havia
nos corações de nossos avós, que de bom grado lhes devemos perdoar
a rudeza. Tendo partido de Alcobaça para Guimarães, onde nesse
anno se ajunctavam cortes, apenas ahi chegára tinha mandado partir
para Sancta Maria da Victoria os officiaes e obreiros mais
entendidos, que vieram apresentar-se a mestre Affonso.
Este, resolvido tambem a cumprir o promettido, mettêra mãos á
obra. O capitulo foi desentulhado: aproveitaram-se as pedras da
primeira edificação que era possivel aproveitar, lavraram-se outras
de novo, armaram-se os simples, e muito antes do dia aprazado o
fecho ou remate da abobada repousava no seu logar.
Durante estes quatro mezes os successos politicos tinham trazido
D. João I a Santarem, onde se fizera prestes com bom numero de
lanças, bésteiros, e peões para ir ajunctar-se com o Condestavel,
e entrarem ambos por Castella, cuja guerra tinha recomeçado, por
se haverem acabado as treguas. Para esta entrada se apparelhára
elrei com uma lustrosa companhia de seus cavalleiros, e caminhando
pela margem direita do Tejo, acampára juncto a Tancos, onde se
havia de construir uma ponte de barcas para passar o exercito,
e seguir ávante até o Crato, que era o logar aprazado com o
Condestavel, para junctos irem dar sobre Alcantara.
Em Val-de-Tancos estava assentado o arraial da hoste d'elrei: os
petintaes, que tinham vindo de Lisboa, trabalhavam na ponte de
barcas, que se deviam lançar sobre o Tejo; os bésteiros limpavam
suas béstas, e folgavam em luctas e jogos; os cavalleiros corriam
pontas, atiravam ao tavolado, monteavam, ou matavam o tempo em
banquetes e beberronias. Tinham chegado áquelle sitio a cinco
de Maio, e no seguinte dia elrei partíra afforradamente para
a Batalha, porque não se esquecêra de que os quatro mezes, que
pedira Affonso Domingues para alevantar a abobada, eram passados,
e fôra avisado por Fr. Lourenço de que a obra estava acabada, mas
que o architecto não quizera tirar os simples senão na presença
d'elrei.
Antes de partir de Lisboa, D. João mandára sair dos carceres, em
que jaziam, bom numero de criminosos e de captivos castelhanos,
que, com grande pasmo dos povos, e rodeados por uma grossa manga de
bésteiros, tomaram o caminho da Batalha, sem que ninguem aventasse
o motivo d'isto. Todavia elle era obvio: elrei pensou que, assim
como a abobada do capitulo desabára da primeira vez, passadas
vinte quatro horas depois de desamparada, podia agora derrocar-se
em cima dos obreiros no momento de lhe tirarem os prumos e travezes
sobre que fôra edificada. Sollicito pela vida de seus vassallos;
parente do povo por sua mãe, e crendo por isso que a morte de
um popular tambem tinha seu trance de agonia, e que lagrymas
de orphãos pobres eram tão amargas, ou porventura mais que as
de infantes e senhores, não quiz que se arriscassem senão vidas
condemnadas, ou pela guerra, ou pelos tribunaes, e que naquella
se tinham remido pela covardia, e nestes pela piedade ou antes
esquecimento dos juizes. E se da primeira vez lhe não occorrêra
esta idéa, fôra porque tambem na memoria de obreiros portuguezes
não havia lembrança de ter desabado uma abobada apenas construida.
Seguido só por dous pagens, D. João I atravessou a villa de Ourem
pelas horas mortas do quarto de modorra, e antes do meio-dia
apeou-se á portaria do mosteiro.
Os officiaes, que trabalhavam em varios lavores, pelos telheiros
e casas ao redor do edificio, viram passar aquelle cavalleiro e
os dous pagens, mas não o conheceram: D. João I vinha cuberto
de todas as peças, e ao galgar o ginete pelo outeiro abaixo,
tinha descido a viseira.
"Benedicite!--dizia elrei, batendo devagarinho á porta da cella
de Fr. Lourenço.
"Pax vobis, domine!--respondeu o prior que logo conheceu elrei,
e veio abrir a porta.
"Não vos incommodeis, reverendissimo--disse D. João, entrando
na cella, e sentando-se em um tamborete.--Deixae-me resfolegar
um pouco, e dae-me uma vez de vinho."
"Não vos esperava tão de salto;--tornou Fr. Lourenço: e abrindo
um armario, tirou delle uma borrácha e um cangirão de madeira,
que encheu de vinho, e pegando com a esquerda em uma escudela de
barro de Estremoz[1] cheia de uma especie de bolo feito de mel,
ovos, e flor de farinha, apresentou a elrei aquella collação.
"Excellente almoço:--dizia elrei, descalçando o guante ferrado,
e cravando a espaços os dedos dentro da escudela, d'onde tirava
bocados do bolo, que ajudava com alentados beijos dados no cangirão.
Depois que cessou de comer, limpando a mão ao forro do tonelete,
poz-se em pé, em quanto Fr. Lourenço guardava os despojos daquella
batalha:
"Bofé--disse D. João, rindo--que não ando a meu talante, senão
com o arnez ás costas! Cada vez que o visto, parece-me que torno á
mocidade, e que sou o Mestre d'Aviz, ou antes o simples cavalleiro,
que, confiado só em Deus, corria solto pelo mundo, monteando
edomas[2] inteiras, e tendo sobre a consciencia só os peccados
de homem, e não os escrupulos de rei."
"E então--atalhou o prior--o vosso confessor Fr. Lourenço era
um pobre frade, cujos unicos cuidados se encerravam em saber
as horas do côro, e em ler as sagradas escripturas, porém que
hoje tem de velar muitas noites, pensando no modo de não deixar
affrouxar a disciplina e boa governança de tão alteroso mosteiro.
Mas, segundo vosso recado, que hontem recebi, vindes para assistir
ao tirar dos simples da mui famosa abobada, o que mestre Domingues
aporfia em só fazer perante vós?"
"A isso vim, porém de espaço; que não será nestes cinco dias,
que esteja prompta a ponte de barcas, que mandei lançar no Téjo
para passar minha hoste. Durante elles, com vossos mui religiosos
frades me apparelharei para a guerra, enthesourando orações e
recebendo absolvição de meus erros."
"Os principes pios--acudiu o prior com ar de compuncção--são sempre
ajudados de Deus, principalmente contra herejes e scismaticos,
como os perros dos castelhanos, que a Virgem Maria da Victoria
confunda nos infernos."
"Amen!--respondeu devotamente elrei.
"Avisarei, pois, mestre Affonso de vossa vinda, para que mande
pôr tudo em ordenança de se tirarem os simples: elle me pediu
que o mandasse chamar apenas fosseis chegado."
Fr. Lourenço saíu, e d'ahi a pouco voltou acompanhado do architecto,
que um rapaz guiava pela mão.
"Guarde-vos Deus, mestre Affonso Domingues!--disse elrei, vendo
entrar o cégo--Aqui me tendes para vêr acabada a feitura da
mirifica abobada do capitulo de Sancta Maria, cujos simples não
quizestes tirar senão em minha presença."
"Beijo-vo-las, senhor rei, pela mercê: dous votos fiz se levasse
a cabo esta feitura; era esse um delles..."
"E o outro?--atalhou elrei.
"O outro, dir-vo-lo-hei em breve; mas por ora permitti que para
mim o guarde."
"São negocios de consciencia:--acudiu o prior.--Elrei não quer,
por certo, fazer-vos quebrar vosso segredo."
D. João I fez um signal de assentimento ao parecer do seu antigo
padre espiritual.
Elrei, o prior, e o architecto ainda se demoraram um pedaço falando
ácerca da obra, e do que cumpria fazer no proseguimento della;
mas o cégo dissera o que quer que fôra em voz baixa ao rapaz
que o acompanhava, o qual saíra immediatamente, e que só voltou
quando os tres acabavam a conversação.
"Fernão d'Evora--disse o cégo, sentindo-o outra vez ao pé de
si--fizeste o que te ordenei, e deste a teu tio Martim Vasques
o meu recado?"
"Senhor, si! Envia-vos elle a dizer que tudo está prestes."
"Então vamos a vêr se desta feita temos mais perduravel abobada."
Isto dizia elrei saindo da cella de Fr. Lourenço, e seguindo ao
longo do claustro. Já a este tempo se tinha espalhado no mosteiro
a nova da sua chegada, e os frades começavam de ajunctar-se para
o cortejarem. Do mosteiro rompêra a noticia, e se espalhára na
povoação, aonde concorrêra muita gente dos arredores, principalmente
de Aljubarrota, por ser dia de mercado: de modo que quando elrei
desceu á crasta já alli se achavam apinhados homens e mulheres,
que queriam vê-lo, e ainda mais saber se desta vez a abobada
vinha ao chão, para terem que contar aos vizinhos e vizinhas da
sua terra.
As portas da casa do capitulo estavam abertas: via-se dentro
della tal machina de prumos, travezes, andaimes, cabrestantes,
escadas, que bem se podéra comparar a composição daquelles simples
á fabrica do mais delicado relogio. Á porta, que dava para a
crasta, estava um homem em pé, que se desbarretou apenas viu
elrei, a cuja direita vinha o architecto, seguido por Fr. Lourenço
e por outros frades.
O pequeno Fernão d'Evora disse algumas palavras a Affonso Domingues,
o qual lhe respondeu em voz baixa. Então o rapaz acenou ao homem
desbarretado, que se chegou timidamente ao cégo. Era um mancebo,
que mostrava ter de idade, ao mais, vinte cinco annos; de rosto
comprido, tez queimada, nariz aquilino, olhos pequenos e vivos.
Chegando-se ao cégo, este o tomou pela mão, e voltando-se para
elrei, disse:
"Aqui tendes, senhor, a Martim Vasques, o melhor official de
pedraria que eu conheço; o homem que, com mais alguns annos de
esperiencia, será capaz de continuar dignamente a serie dos
architectos portuguezes."
"E debaixo de meu especial amparo estará Martim Vasques--respondeu
elrei--que por honrado me tenho com haver em meus senhorios homens
que vos imitem.[3]"
Ainda bem não eram acabadas estas palavras, sentiu-se um sussurro
entre o povo, que girava livremente pela crasta, e que se enfileirou
aos lados: chegava a gente que devia tirar os simples.
Entre duas alas de bésteiros vinha um bom numero de homens, magros,
pallidos, rotos e descalços: o porte de alguns era altivo, e
em seus farrapos se divisava a razão d'isso: eram bésteiros
castelhanos, que em diversos recontros e pelejas tinham cahido
nas mãos dos portuguezes. As guerras entre Portugal e Castella
assemelhavam-se ás guerras civis de hoje: para vencidos não havia
nem caridade, nem justiça, nem humanidade: ser mettido em ferros
era então uma ventura para o pobre prisioneiro; porque os mais
delles morriam assassinados pelo povo desenfreado, em vingança
dos máus tractos que em Castella padeciam os captivos portuguezes.
Com os castelhanos vinham d'envolta varios criminosos condemnados
á morte por suas malfeitorias.
"Misericordia!--bradou toda aquella multidão, ao passar por elrei:
e cahiram de bruços sobre as lageas do pavimento.
"Comvosco a tenho, mesquinha gente:--disse elrei commovido--Se
tirardes os simples, que vêdes acolá, a abobada não desabar sobre
vós, soltos e livres sereis. Erguei-vos, e confiae na sciencia do
grande architecto que fez essa mirifica obra. Mandar-vos comprar
vossa soltura a custo de tão leve risco, quasi que é o mesmo que
perdoar-vos."
Os presos ergueram-se; mas a tristeza lhes ficou embebida no
coração, e espalhada nas faces: o terror fazia-lhes crer que já
sentiam ranger e estalar as vigas dos simples, e que, ás primeiras
pancadas, as pedras desconformes da abobada, desatando-se da
immensa volta, os esmagariam, como o pé do quinteiro esmaga a
lagarta enroscada na planta viçosa do horto.
Neste momento quatro forçosos obreiros chegaram á porta do capitulo,
trazendo sobre uma pavióla uma grande pedra quadrada. Martim
Vasques, que já lá estava, gritou ao cégo architecto:
"Mui sabedor mestre Affonso, que quereis se faça do canto, que
para aqui mandastes trazer?"
"Assentae-o bem debaixo do fecho da abobada, no meio desse claro,
que deixam os prumos centraes dos simples."
Os obreiros fizeram o que o architecto mandara: este então voltou-se
para elrei, e disse:
"Senhor rei, é chegado o momento de vos declarar meu segundo
voto. Pelo corpo e sangue do Redemptor jurei que, assentado sobre
a dura pedra, debaixo do fecho da abobada, estaria sem comer nem
beber durante tres dias, desde o instante em que se tirassem
os simples. De cumprir meu voto ninguem poderá mover-me. Se essa
abobada desabar, sepultar-me-ha em suas ruinas: nem eu quizera
encetar, depois de velho, uma vida deshonrada e vergonhosa. Esta
é a minha firme resolução."
Dizendo isto, o cégo travou com força do braço de Fernão d'Evora,
e encaminhou-se para a porta do capitulo.
"Esperae, esperae!--bradou elrei.--Estaes louco, dom cavalleiro?
Quem, se vós morrerdes, continuará esta fabrica, tão formosa
filha de vosso engenho?"
"Mestre Ouguet:--tornou o cégo, parando.--Não sou tão vil que
negue seu saber e habilidade: se a abobada desabar segunda vez,
ninguem no mundo é capaz de a fechar com uma só volta, e para
a firmar sobre uma columna erguida no centro, mestre Ouguet o
fará. Quanto ao resto do edificio, fazei senhor rei que se prosiga
meu desenho: é o que ora vos peço tão sómente."
E o velho e o seu guia sumiram-se por entre as bastas vigas,
que sustinham as traves dos simples: elrei, Fr. Lourenço, e os
mais frades ficaram atonitos e calados.
"Que tão honrado mestre corra parelhas no risco com esses perros
castelhanos cousa é que se não póde soffrer: mas o voto é voto,
senão..."
Estas palavras partiam da bôca d'uma gorda velha, cuja tez
avermelhada dava indicios de compleição sanguinea e irritavel,
e que de mãos mettidas nas algibeiras, na frente de uma das alas
do povo presenceava o caso.
"Tendes razão, tia Brites d'Almeida; e por ser voto me calo
eu:--acudiu elrei, voltando-se para a velha.--Mas juro a Christo,
que estou espantado de só agora vos vêr! Porque me não viestes
falar?"
"Perdoe-me vossa mercê:--replicou a velha.--Eu vim trazer pão á
feira, e ahi souhe da chegada de vossa real senhoria. Corri ...
se eu correria para vos falar! Mas estes bôcas abertas não me
deixaram passar. Abrenuncio! Depois estive a olhar... Parecieis-me
carregado de semblante. Que é isso? Temos novas voltas com os
excommungados castelhanos? Se assim é, trosquiae-mos outra vez
por Aljubarrota, que a pá não se quebrou nos sete que mandei
de presente ao diabo, e ainda lá está para o que der e vier."
Soltando estas palavras, a velha tirou as mãos das algibeiras,
e cerrando os punhos, ergueu os braços ao ar, com os meneios
de quem já brandia a tremebunda e patriotica pá de forno, que
hoje é gloria e brasão da gothica villa de Aljubarrota.
"Podeis dormir descançada, tia Brites:--respondeu elrei,
sorrindo-se.--Bem sabeis que sou portuguez e cavalleiro, e a
gente de nossa terra é cortez: elrei de Castella veio visitar-nos
varias vezes: e agora eu ando na demanda de lhe pagar com usura
suas visitações."
Em quanto este dialogo se passava entre o heroe de Aljubarrota e
a sua poderosa alliada, Martim Vasques tinha posto tudo a ponto;
e dando as suas ordens da porta, as primeiras pancadas de martello,
batendo nos simples, resoaram pelo ambito da casa capitular.
Fez-se um grande silencio e todos os olhos se cravaram em Martim
Vasques.
Passada uma hora, aquelle montão de vigas, barrotes, taboas,
cambotas, cabrestantes, reguas e travessas tinha passado pela
crasta fóra em collos de homens: os presos tinham sido postos
em liberdade, com grande raiva da tia Brites ao vêr ir soltos
os bésteiros castelhanos; e só no centro da ampla quadra se via
uma pedra, sobre a qual, mudo e com a cabeça pendida para o peito,
estava assentado um velho.
A este velho rogava elrei, rogavam frades, rogava o povo, sem
todavia se atreverem a entrar, que saisse d'alli; mas elle não
lhes respondia nada. Desenganados, emfim, foram-se pouco a pouco
retirando da crasta, onde ao pôr do sol começou a bater o luar
de uma formosa noite de Maio.
Três dias se passaram assim. Mestre Affonso, assentado sobre a
pedra fria, nem se quer cedêra ás rogativas de Anna Margarida,
que, obrigada pela boa amizade que tinha a seu amo, se atrevêra
a cruzar os perigosos umbraes do capitulo, para vêr se o movia
a tomar alguma refeição: tudo recusou o cégo: a sua resoluçào
era inabalavel. Também a abobada estava firme, como se fôra de
bronze. No terceiro dia á tarde elrei, que tinha passado o tempo
em aparelhar-se para a guerra com actos de piedade, desceu á
crasta acompanhado de Fr. Lourenço e de outros frades, e chegando
á porta do capitulo viu Martim Vasques e Anna Margarida juncto á
pedra fria de Affonso Domingues, e este pallido e com as palpebras
cerradas encostado nos braços delles.
O mancebo e a velha choravam e soluçavam, sem dizerem palavra.
"Que temos de novo?--perguntou elrei, chegando á porta, e vendo
aquelles dous estafermos.--Completam-se ora os tres dias do
voto: ainda mestre Affonso teimará em estar aqui mais tempo?"
"Não senhor:--respondeu Martim Vasques, com palavras mal
articuladas:--não estará aqui mais tempo; porque seu corpo é herança
da terra; sua alma repousa com Deus."
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