Lendas e Narrativas (Tomo I) - 04

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reino desde que fugíra por escapar á vingança de D. Pedro I por
causa da morte de D. Ignez, senão no anno de 72, em que viera
por embaixador d'elrei D. Henrique. Isto parece inexacto; Fr.
Manuel dos Santos affirma o contrario fundado na restituição
de todos os seus bens e titulos feita por D. Fernando no começo
do seu reinado. Não é isto que prova a assistencia de Pacheco
em Portugal no anno de 1371, não só porque depois de vir podia
voltar para Castella, mas tambem essa restituição podia ser feita
estando e conservando-se elle ausente, visto que a fruição d'um
titulo, ou de terras da corôa, por simples mercê, não obrigando
a serviço pessoal, ao menos até o tempo de D. João I, não tornava
necessaria a presença do donatario no reino. O que prova a verdade
da opinião de Santos é a doação feita a Diogo Lopes em 1371
(Chancell. D. Fern. f.84) da terra de Trancoso para pagamento
de sua quantia, o que supõe serviço pessoal; porque era pelas
quantias que os fidalgos estavam obrigados a faze-lo.

O Beguino.

Quem hoje passa pela cadeia da cidade de Lisboa, edificio immundo,
miseravel, insalubre, que por si só bastára a servir de castigo
a grandes crimes[1], ainda vê na extermidade delle umas ruinas,
uns entulhos amontoados, que separa da rua uma parede de pouca
altura, onde se abre uma janella gothica. Esta parede e esta
janella são tudo o que resta dos antigos paços d'apar S. Martinho,
igreja que tambem já desappareceu, sem deixar sequer por memoria
um panno de muro, uma fresta, de outro tempo. O Limoeiro é um dos
monumentos de Lisboa sobre que revoam mais tradições de remotas
eras. Nenhuns paços dos nossos reis da primeira e segunda dynastia
foram mais vezes habitados por elles. Conhecidos successivamente
pelos nomes de paços d'elrei, paços dos infantes, paços da moeda,
paços do limoeiro, a sua historia vae sumir-se nas trevas dos
tempos. Sâo da era mourisca? Fundaram-nos os primeiros reis
portugueses? Ignoramo-lo. E que muito, se a origem de Sancta
Maria Maior, da veneranda cathedral de Lisboa, é um mysterio! Se,
transfigurada pelos terremotos, pelos incendios e pelos conegos,
nem no seu archivo queimado, nem nas suas rugas caiadas e douradas
póde achar a certidão do seu nascimento e dos annos da sua vida!
Como as da igreja, as ruinas da monarchia dormem em silencio á
roda de nós, e, involto nos seus eternos farrapos, o povo vive
eterno em cima ou ao lado dellas, e nem sequer indaga porque
jazem ahi!
Na memoravel noite em que se passaram os successos narrados no
capítulo antecedente, essa janella dos paços d'elrei era a unica
aberta em todo o vasto edificio, mas calada e escura como todas
as outras. Só, de quando em quando, quem para lá olhasse attento
do meio do terreiro enxergaria o que quer que era alvacento, que
ora se chegava á janella, ora se retrahia. Mas o silencio que
reinava naquelles sitios não era interrompido pelo menor ruído.
De repente um vulto chegou debaixo da janella e bateu de vagarinho
as palmas: a figura alvacenta chegou á janella, debruçou-se,
disse algumas palavras em voz baixa, retirou-se, tornou a voltar
e pendurou uma escada de corda que segurou por dentro. O vulto
que chegára subiu rapidamente, e ambos desappareceram através
dos corredores e aposentos do paço.
Em um destes ultimos, alumiado por tochas seguras por longos
braços de ferro chumbados nas paredes, passeava um homem de meia
idade e gentil. Os seus passos eram rapidos e incertos, e o seu
aspecto carregado. De quando em quando parava e escutava a uma
porta, cujo reposteiro se meneava levemente; depois continuava a
passear, parando ás vezes com os braços cruzados e como entregue
a cogitações dolorosas.
Por fim o reposteiro ondeou d'alto a baixo e franziu-se no meio:
mão alva de mulher o segurava. Esta entrou, após ella um homem
alto e robusto, vestido de burel e cingido de cincto de esparto,
d'onde pendiam umas grossas camandulas. A dama atravessou
vagarosamente a sala e foi sentar-se em um estrado de altura
de palmo, que corria ao longo d'uma das paredes do aposento.
O homem que passeava assentou-se também no unico escabello que
alli havia. Fr. Roy, que o leitor já terá conhecido, ficou ao
pé da porta por onde entrara, com a cabeça baixa e em postura
abeatada.
"Aproxima-te, beguino!"--disse com voz trémula elrei; porque era
elrei D. Fernando o homem que se assentára.
Fr. Roy deu uns poucos de passos para diante.
"Que ha de novo?"--perguntou elrei.
"O povo cada vez está mais alvorotado, e jura falar rijamente
ámanhan a vossa senhoria. Mas essa não é a peior nova que eu
trago!"
"Fala, fala, beguino!--acudiu elrei, estendendo a mão convulsa
para o ichacorvos.
"É que ámanhan, em quanto vossa senhoria estiver em S. Domingos,
o paço será accommettido. Pretendem matar..."
"Mentes, beguino!--gritou a dama, erguendo-se do estrado de um
salto, semelhante a tigre descoberto pelos caçadores nos matagaes
da Ásia.--Mentes! Podem não me querer minha: mas assassinar-me!
Isso é impossivel. Amo muito o povo de Lisboa; tenho-lhe feito as
mercês que posso, para que elle haja de me odiar assim de morte.
Os fidalgos podem persuadi-lo a oppôr-se ao nosso casamento; mas
nunca a pôr mãos violentas na pobre Leonor Telles."
"Prouvera a Deus que eu mentisse hoje! Seria a primeira vez na
minha vida:--replicou o ichacorvos com ar contrito.--Mas ouvi
com meus ouvidos a ordem para o feito e a promessa da execução,
haverá tres credos, na taberna de Folco Taca."
"Miseraveis!--bradou erguendo-se tambem elrei, a quem o risco
da sua amante restituira por um momento a energia.--Miseraveis!
Querem sobre a cerviz o jugo de ferro de meu pae? Te-lo-hão.
Quem ousa ordenar tal cousa?"
"Diogo Lopes Pacheco, do vosso conselho, o disse ao alfaiate
Fernão Vasques, o coudel dos revoltosos, e vosso irmão D. Diniz
estava tambem com elles:"--respondeu Fr. Roy.
O beguino era o espia mais sincero e imperturbavel de todo o mundo.
"Velho assassino!--exclamou D. Fernando--cubriste de luto eterno
o coração do pae! Queres cubrir o do filho. E tu, Diniz, que eu
amei tanto, tambem entre os meus inimigos! Leonor, que faremos
para te salvar?! Aconselha-me tu, que eu quasi que enlouqueci!"
O pobre e irresoluto monarcha cobriu o rosto com as mãos, arquejando
violentamente. D. Leonor, cujos olhos centelhantes, cujos labios
esbranquiçados revelavam mais odio que terror, lançou-lhe um
olhar de desprezo, e em tom de mofa respondeu:
"Sim, senhor rei, na falta de vossos leaes conselheiros posso eu,
triste mulher, dar-vos um bom conselho. Acordae vossos pagens,
que vão pregar um poste à porta destes paços, e mandae-me amarrar
a elle para que o vosso bom povo de Lisboa possa despedaçar-me
tranquillamente ámanhan sem profanar os vossos aposentos reaes.
Será mais uma grande mercê que lhe fareis em recompensa do seu
amor á vossa pessoa, da sua obediencia aos vossos mandados."
"Leonor, Leonor, não me fales assim, que me matas!--gritou D.
Fernando, deitando-se aos pés de D. Leonor e abraçando-a pelos
joelhos, com um chôro convulso.--Que te fiz eu para me tractares
tão cruelmente?"
"D. Fernando, lembra-te bem do que te vou dizer! O povo ou se
rege com a espada do cavalleiro, ou elle vem collocar a ascuma
do peão sobre o throno real. Quem não sabe brandir o ferro, cede;
deixa-o reinar."
"Tens razão, Leonor!--disse D. Fernando, enxugando as lagrymas
e alçando a fronte nobre e formosa, onde se pintava a indignação.
--Serei filho de D. Pedro o cruel; serei successor de meu pae.
Eu mesmo vou ao alcaçar examinar os engenhos mais valentes que
cubram o terreiro de S. Martinho de pedras, de virotões e de
cadaveres: os montantes e as béstas dos homens d'armas e bésteiros
do meu alcaide-mór de Lisboa farão o resto. João Lourenço Bubal
será fiel a seu rei. Se necessario fôr com minhas proprias mãos
ajudarei a pôr fogo á cidade, para que nem um revoltoso escape.
Adeus, Leonor: conta que serás vingada."
D. Fernando voltou-se rapido para a porta do aposento. Fr. Roy
estava immovel diante delle.
"João Lourenço Bubal--disse o espia sem se alterar--é dos revoltosos.
Ouvi-o da bôca do proprio Diogo Lopes, que o certificou a Fernão
Vasques. Os trons do alcacer estão desapparelhados; e a maior parte
dos homens d'armas e bésteiros do alcaide-mór eram na taberna de
Folco Taca os mais furiosos contra a que elles chamam...."
"Cal-te, beguino!"--gritou elrei, empurrando-o com força e procurando
tapar-lhe a bôca.
O ichacorvos parou onde o impulso recebido o deixou parar, e
ficou outra vez immovel diante de D. Fernando, a quem este ultimo
golpe lançava de novo na sua habitual perplexidade.
"... A adultera:--proseguiu Fr. Roy acabando a phrase, porque
ainda a devia, e era escrupuloso e pontual do desempenho do seu
ministerio.
"Beguino!--atalhou D. Leonor com voz trémula de raiva--melhor
fôra que nunca essa palavra te houvesse passado pela bôca; porque
talvez um dia ella seja fatal para os que a tiverem proferido."
"Mas que faremos!?--murmurou elrei com gesto d'indizivel agonia.
"Havia ainda ha pouco tres expedientes,--respondeu D. Leonor,
recobrando apparente serenidade--combater, ceder, fugir. O primeiro
é já impossível; o segundo!... Porque não o acceitas, Fernando?
Prestes estou para tudo. Não me verás mais, ainda que, longe de
ti, por certo estalarei de dor. Cede á força: os teus vassallos
o querem; que-lo o teu povo. Esquece-te para sempre de mim!"
"Esquecer-me de ti? Não te vêr mais? Nunca! Obedecer á força?
Quem ha ahi que ouse dizer ao rei de Portugal:--rei de Portugal,
obedece á força?--Os peões de Lisboa?! Porque sou manso na paz,
não crêem que a minha espada no campo de batalha córte arnezes
como a do melhor cavalleiro? Bons escudeiros e homens d'armas da
minha hoste, por onde andaes derramados? Dormis por vossas honras
e solares? O povo vos acordará como me acordou a mim; bramirá como
os lobos da serra ao redor de vossas moradas; saltear-vos-ha no
meio de vossos banquetes, por entre o ruído de vossos folgares.
No ardor de vossos amores dir-vos-ha:--desamae!--Elle ousa já
dize-lo a seu rei e senhor... Oh desgraçado de mim, desgraçado
de mim!"
"Não queres, pois, deixar-me entregue á minha estrella?--disse
D. Leonor, com voz entre de chôro e de ternura, abraçando pelo
pescoço o pobre monarcha, e chegando a sua fronte suave e pallida
ás faces afogueadas de D. Fernando, que n'uma especie de delirio
olhava espantado para ella.
"Não, não! Viver comtigo, ou morrer comtigo. Cahirei do throno,
ou tu subirás a elle."
Um sorriso quasi imperceptivel se espraiou pelo rosto de Leonor
Telles, que, recuando e tomando uma postura resoluta e ao mesmo
tempo de resignação, proseguiu com voz lenta mas firme:
"Então resta o fugir."
"Fugir!"--exclamou elrei. E esta palavra só era mais expressiva
que narração bem extensa dos atrozes martyrios que o malaventurado
curtia no coração irresoluto mas generoso, com a idéa de um feito
vil e covarde em qualquer escudeiro, vilissimo e torpissimo n'um
rei de Portugal, em um neto de Affonso IV.
Elrei olhou para ella um momento. Era sereno o seu rosto angelico,
semelhante ao de uma dessas virgens que se encontram nas illuminuras
de antigos codices, o segredo de cujos toques, perdido no fim do
seculo quinze, a arte moderna a muito custo pôde fazer resurgir. O
mais experto physionomista difficultosamente adivinharia a negrura
d'alma que se escondia debaixo das puras e candidas feições de
D. Leonor, se não fossem duas rugas que lhe desciam da fronte
e se uniam entre os sobr'olhos, contrahindo-se e deslisando-se
rapidamente, como as vesiculas peçonhentas das fauces d'uma vibora.
"Seja, pois, assim! Fujamos:"--murmurou D. Fernando com o tom e
gesto com que o suppliciado daria no alto do patibulo o perdão
ao algoz.
D. Leonor tirou do largo cincto, com que apertava a airosa cinctura,
uma bolça de ouropel, e atirou com ella aos pés do beguino, que,
de mãos cruzadas sobre o peito e os olhos semi-abertos cravados na
abobada do aposento, parecia extatico e engolfado nos pensamentos
sublimes do ceu.
"Vinte dobras de D. Pedro por teu soldo, beguino: vinte pelo teu
silencio. O resto da recompensa te-lo-has um dia, se a adultera
atravessar triumphadora o portal por onde vae saír fugitiva."
O rir affavel de que estas palavras foram acompanhadas fizeram
correr um calafrio pela medulla espinal do ichacorvos, cujas
pernas vacillaram. Mas o contacto das quarenta dobras, que uniu
immediatamente ao peito debaixo do escapulario, lhe restituiram
o vigor natural.
Elrei havia-se assentado, quasi desfallecido, no escabello unico
do aposento, e o seu aspecto demudado infundia ao mesmo tempo
terror e compaixão. Quando o beguino alevantou a bolça, D. Fernando
fitou nelle os olhos e estendeu a mão para o reposteiro sem dizer
palavra.
Fr. Roy curvou a cabeça, cruzou de nova as mãos sobre o peito,
e, recuando até a porta, desappareceu no corredor escuro por
onde entrára.
Apenas os passos lentos e pesados do ichacorvos deixaram de soar,
D. Leonor encaminhou-se para uma janella que dava para um vasto
terrado, e affastou a cortina que servia durante o dia de mitigar
a excessiva luz do sol. A noite ía em meio do seu curso, como o
indicava o mortiço das tochas, que mal allumiavam o aposento, e
a lua, já no minguante, começava a subir na abobada do firmamento,
mergulhando no seu clarão sereno o brilho esplendido das estrellas.
A janella estava aberta, e o escabello d'elrei ficava proximo
e fronteiro: o luar batia de chapa no rosto bello e triste de
D. Fernando, que, embebido no seu amargurado scismar, parecia alheio
ao que passava á roda delle, e esquecido de que lhe restavam poucas
horas para poder levar a cabo a resolução que tomára. Leonor Telles,
encostada ao mainel da janella, poz-se a olhar attentamente. A
cidade dormia; e apenas o ladro de algum cão cortava aquella
especie de zumbido, que é como o respirar nocturno de uma grande
povoação que repousa. Lá em baixo uma faixa trémula, semelhante
a uma ponte de luz, cortava obliquamente o Téjo, d'onde mais
largo se encurva pela margem esquerda. Os mastros de milhares de
navios, emparelhados com a cidade desde Sacavem até o promontorio
onde campeava fóra dos arrabaldes de S. Francisco, formavam uma
especie de floresta lançada entre a cidade e a sua immensa bahia.
Desde o terrado, para o qual dava a janella, até o rio, o bairro
dos judeus, pendurado pela encosta ingreme e fechado com travezes
e cadeias nos topos das ruas, desenhava uma especie de triangulo,
cuja hase assentava sobre o lanço oriental da muralha mourisca, e
cujo vertice, voltado para o occidente, se coroava com a synagoga,
abrigada á sombra do vulto disforme da cathedral. Pouco distante
do terrado, entre o palacio e a judearia, a claridade da lua
batia de chapa em um terreiro irregular, rodeado de mesquinhas e
meio-arruinadas casas, que pela maior parte pareciam deshabitadas.
No meio delle o que quer que era se erguia semelhante ao arco de
um portul romano. Parecia ser uma ruina, um fragmento de edíficío
da antiga Olisipo, que esquecêra alli aos terremotos, ás guerras e
aos incendios, e ao qual finalmente chegára a sua hora de desabar,
porque uma alta escada de mão estava encostada á verga que assentava
sobre os dous pilares lateraes e os unia, como se alli a tivessem
posto para, em amanhecendo, os obreiros poderem subir acima e
derribarem-no em terra.
Era para esse vulto que D. Leonor se pozera a olhar attentamente.
Depois voltou o rosto para elrei, que, com a cabeça baixa, os
braços estendidos, e as mãos encurvadas sobre os joelhos, parecia
vergar sob o peso da sua amargura: contemplou-o com um gesto de
compaixão por alguns momentos, e, estendendo para elle os braços,
exclamou:
"Fernando!"
Havia no tom com que foi proferida esta unica palavra um mundo de
amor e voluptuosidade; mas no meio da brandura da voz de Leonor
Telles havia tambem uma corda aspera; a lguma cousa do rugir do
tigre.
Elrei deu um estremeção, como se pelos membros lhe houvera coado
uma faisca electrica; ergueu-se e atirou-se a chorar aos braços
de Leonor Telles.
"Ámanhan--disse elle com voz affogada,--o rei mais deshonrado
da christandade serei eu: o cavalleiro mais vil das Hespanhas
será D. Fernando de Portugal. Que me resta? Só o teu amor; mais
nada. Porque não me pedem antes a corôa real, que para mim tem
sido corôa de espinhos? Dera-a de boa vontade. Oh Leonor, Leonor!
serias a mulher mais perversa se um dia me atraiçoasses."
Um beijo da adultera cortou as lastimas d'elrei. A formosura desta
mulher tinha um toque divino á claridade da lua. D. Fernando,
embriagado d'amor, esqueceu-se de que poucas horas lhe restavam
para fugir do seu povo enganado e ludibriado por elle.
"Fernando!"--proseguiu D. Leonor--"jura-me ainda uma vez que serás
sempre meu, como eu serei sempre tua."
Dizendo isto, affastou-o brandamente de si.
"Juro-t'o uma e mil vezes pela fé de leal cavalleiro que até
hoje fui. Juro-t'o pelo ceu que nos cobre. Juro-t'o pelos ossos
de meu nobre e valente avo, que àlli dorme juncto ao altar-mór
da sé, debaixo das bandeiras infiéis que conquistou no Salado.
Juro-t'o por mais que tudo isso: juro-t'o pelo meu amor!"
"Bem está, rei de Portugal!--atalhou D. Leonor.--Agora só uma
cousa me resta para te pedir. Não é favor; é justiça."
"Não me peças Lisboa, que essa sabe Deus se tornará a ser minha,
rica, povoada e feliz como eu a tornei, ou se repousarei ainda a
cabeça nestes paços de meus antepassados, passando por cima das
ruinas dela! Não me peças Lisboa, que talvez ámanhan deixe de
me chamar seu rei: do resto de Portugal pede-me o que quizeres."
"Quero que me dês as minhas arrhas: quero o preço do meu corpo,
segundo foro de Hespanha."
"Villa-viçosa é alegre como um horto de flores, e Villa-viçosa
dar-t'a-hei eu. O casteilo d'Obidos é forte e roqueiro: são numerosos
e prestes para a defesa os seus engenhos, e o castello d'Obidos
será teu. Cintra pendura-se pela montanha entre lençoes d'aguas
vivas, e respira o cheiro das hervas e flores que crescem á sombra
das penedias: pódes ter por tua a Cintra. Alemquer é rica no
meio de suas vinhas e pomares, e Alemquer te chamará senhora."
"Guarda as tuas villas, D. Fernando, que eu não t'as peço em
dote: quero apenas uma promessa de cousa de bem pouca valia."
"De muita ou de pouca, não me importa! Dar-te-hei o que me pedires."
D. Leonor estendeu a mão para a especie de portada romana, que
se erguia solitaria no meio do terreiro deserto:
"É alli que tu me darás o preço do meu corpo, se um dia a cerviz
da orgulhosa Lisboa se curvar debaixo de teu jugo real."
Elrei lançou um rapido volver d'olhos para onde Leonor Telles
tinha o braço estendido, mas recuou horrorisado. O vulto que
negrejava no meio do terreiro, era o patibulo popular e peão:
era a forca, tétrica, temerosa, maldicta!
"Leonor, Leonor!--disse elrei com um som de voz cavo e debil--porque
vens tu misturar pensamentos de sangue com pensamentos d'amor?
Porque interpões um instrumento de morte e de affronta entre mim
e ti? Porque preferes o fructo do cadafalso ás villas e castellos
de que te faço senhora? Porque trocas a estola do clerigo que
ha-de unir-nos pelo baraço aspero do algoz?"
"Rei de Portugal!--respondeu a mulher de João Lourenço da Cunha
com um brado de furor--ainda me perguntas porque o faço? Tu nunca
serás digno do sceptro de teu pae! Queres saber porque ajuncto
pensamentos de sangue a pensamentos d'amor? É porque esses de
quem eu o peço pediram tambem o meu sangue. Queres saber porque
interponho entre mim e ti um instrumento de morte e d'affronta? É
porque o teu bom povo de Lisboa quiz também interpôr entre nós a
morte, e saciar-me de affrontas. Queres que te diga porque prefiro
o fructo do cadafalso ás villas e castellos que me offereces?
É porque para os animos generosos não ha vender vinganças por
ouro. Vingança, rei de Portugal, te pede em dote a tua noiva!
Jura-me que um dia os teus vassallos que me perseguem serão tambem
perseguidos, e que essa vil plebe, que cobre de injurias e pragas
o meu nome, porque te amo, o amaldiçoem, porque levo os seus
caudilhos ao patibulo. Este é o preço do meu corpo. Sem esse
preço a neta de D. Ordonho de Leão[2] nunca será mulher de D.
Fernando de Portugal."
E com um braço estendido para o logar sem nome[3] do supplicio,
e com o outro curvado como quem affastava de si elrei, esta mulher
vingativa era sublime de atrocidade.
"Tens razão, Leonor:--disse por fim D. Fernando, depois de largo
silencio, em que os affectos inconstantes do seu caracter voluvel
mudaram gradualmente.--Tens razão. A futura rainha de Portugal
terá o seu desaggravo: as linguas que te offenderam calar-se-hão
para sempre: os corações que te desejaram a morte deixarão de
bater. No meu throno, até aqui de mansidão e bondade, assentar-se-ha
a crueza. Com Judas o traidor seja eu sepultado no inferno se
faltar ao juramento que te faço de lavar em sangue a tua e a
minha injuria."
A estas palavras o aspecto severo de Leonor Telles mudou-se em
um sorrir de inexplicavel doçura.
"Oh, como te hei-de amar sempre!"--murmurou ella. E estas palavras
cahiam de seus labios meigos e suaves como o arrulhar de pomba
amorosa.
Um beijo ardente, que sussurrou levado nas asas da brisa fresca
da noite, assellou este pacto de odio e d'exterminio.
[1] Isto era escrípto em 1844.
[2] A familia de Leonor Telles suppunha-se descender
de D. Ordonho II, rei de Leão.
[3] Logar sem nome. Nós pelo menos não nos atrevemos a
pôr-lh'o. Sabemos só que em tempos remotos a forca esteve perto
da igreja de S. João da Praça, freguezia cuja existencia data
pelo menos do tempo de D. Affonso III. (Mem. para as Inquir.
Doc. 2.º) Talvez o terreiro ou praça em que ella estava désse o
cognome á parochia. Desconfiâmos, todavia, de que este terreiro
se estendesse para o lado oriental da sé, e que nesse caso o
nome fosse Aljami. D. João I fez mercê em 1392 ao bispo de Lisboa
D. Martinho (Chancel. de D. João I, L. 2.°) de uns pardieiros
no chão d'Aljami, que partem com os paços do dito bispo, para
fazer umas casas e torre. Os paços dos bispos ficavam para o
lado oriental da sé. Além d'isso Aljami parece derivar-se do
arabico aljamea, que significa o laço com que se amarram o pescoço
e as mãos.

Um bulhão e uma agulha d'alfaiate

O sol, que havia mais de meia hora subíra do oriente cingido
da sua aureola de vermelhidão, no meio da atmosphera turva e
cinzenta de um dia dos fins de agosto, dava de chapa no rocío ou
praça onde avultava o mosteiro de S. Domingos, rodeado de hortas
e pomares, que verdejavam pelo valle da Mouraria ao oriente, e
pelo de Valverde ao norte. Já muitos bésteiros e peões armados
de ascumas se derramavam ao longo da parede dos paços de Lançarote
Peçanha fronteiros ao mosteiro, descendo uns por entre as vinhas
d'Almafalla[1], outros do arrabalde da Pedreira, ou bairro do
almirante[2], outros da banda da alcaçova, outros, emfim,
desembocando das ruas estreitas e irregulares que íam dar á opulenta
e celebre rua-nova[3]. Homens e mulheres apinhavam-se aos dez e aos
doze no meio da praça e ás bocas das ruas; falavam, meneavam-se,
riam, cbamavam-se uns aos outros. Ás vezes aquella mó de gente,
cujo vulto engrossava de minuto para minuto, agitava-se como
a superficie de um pego passando o tufão. Incerta, vacillante,
informe, subitamente se configurava, alinhava-se, e semelhante
a triangulo enorme, a quadrella gigante desfechada de trom
monstruoso, vibrava-se contra a vasta alpendrada do mosteiro,
cujas portas ainda estavam fechadas. Ahi hesitava, ondeava e
retrahia-se, como resultaria a folha cortadora de uma acha d'armas
quando não podesse romper as portas chapeadas de forte castello.
Então aquella multidão tomava a fórma de meia lua, cujas pontas
se encurvavam pelos lados de Valverde e da Mouraria, e vinham
topar uma com outra por baixo do bairro ladeirento da Pedreira,
d'onde, confundindo-se e irradiando-se de novo, se espalhavam
pela vastidão do terreiro. O povo, que dorme ás vezes por seculos,
fòra accommettido d'uma das suas raras insomnias, e vivia essa
possante vida da praça publica, em que de ordinario é ridiculo
e feroz; mas em que não raro é sublime e terrivel.
Era a manhan immediata á noite em que occorreram os successos
narrados antecedentemente: o povo preparava-se para uma lucta
moral com o seu rei, mas não se descuidára de vir prestes para uma
lucta physica, se D. Fernando quizesse appellar para esse ultimo
argumento. Era a primeira vez neste reinado que a arraya-miuda dava
mostras da sua força e reivindicava o direito de dizer armada--não
quero!--O elemento democratico erguia-se para influir activamente
na monarchia; enxertava-se nella como principio politico a par da
aristocracia, que com a manopla de ferro arrojava a plebe contra
o throno, sem pensar que brevemente este, conhecendo assim a força
popular, se valeria della para esmagar aquelles que ora sopravam
os animos á revolta, e davam ao vulgo uma nova existencia.
A hora aprazada para a vinda d'elrei ainda não havia batido; mas
o povo, orgulhoso da importancia que subitamente se lhe dera,
embevecido na idéa de que obrigaria elrei a quebrar os laços
adulterinos que o uniam a Leonor Telles, não media o tempo pelo
curso do sol, mas pelo fervor da sua impaciencia. Duas vezes se
espalhára a voz de que D. Fernando chegára, e duas vezes o povo
corrêra para o alpendre do mosteiro. As portas da igreja estavam,
porém, fechadas, bem como a portaria e as estreitas e agudas
frestas do mosteiro gothico, que, formado apenas de um pavimento
terreo e humilde, contrastava com a magnificencia do templo, em
cujas portadas profundas, sobre os columnellos ponteagudos que
sustinham os fechos e chaves da abobada, os animaes monstruosos
e hybridos, os centauros, os satyros e os demonios, avultados
na pedra dos capiteis por entre as folhagens de carvalho e de
lodão, pareciam, com as visagens truanescas que nas faces mortas
lhes imprimíra o esculptor, escarnecerem da colera popular, que,
lenta como os éstos do oceano, começava a crescer e a trasbordar.
Apenas lá dentro se ouviam de vez em quando as harmonias saudosas
do orgão e do cantochão monotono dos frades, que offereciam a
Deus as preces matutinas. Era então que o povo escutava: e
retrahia-se arrastado pelas blasphemias e pragas que saíam de
mil bôcas, e que eram repellidas do sanctuario pelo sussurro
dos canticos que reboavam dentro da igreja, e que transsudavam
por todos os poros do gigante de pedra um murmurio de paz, de
resignação e de confiança em Deus.
O povo, porém, era como os homens robustos do Genesis: era impio,
porque era robusto.
O dia crescia, e crescia com elle a desconfiança. As noticias
corriam encontradas: ora se dizia que elrei cedêra aos desejos
dos seus vassallos e dos peões, e que viria annuncíar ao povo a
sua separação de Leonor Telles; ora pelo contrario se asseverava
que elle era firme em sustentar a resolução contraria. Havia até
quem asseverasse que na alcaçova e no terreiro de S. Martínho
se começavam a ajunctar homens d'armas e bésteiros. A colera
popular crescia, porque a atiçava já o temor.
No meio de uma pilha de galeotes, carniceiros, pescadores, moleiros,
lagareiros e alfagemes, dous homens altercavam violentamente:
eram Ayras Gil e Fr. Roy: objecto da disputa Fernão Vasques;
arguente o petintal; defendente o beguino.
"Que não vira, vos digo eu:--gritava Ayras Gil.--Disse-m'o
Garciodonez, o mercador de pannos, que mora ao cabo da rua-nova,
aos açougues, defronte das taracenas d'elrei."
"Mentiu pela gorja como um perro judeu:--replicou Fr. Roy--Não
era Fernão Vasques homem que faltasse a este auto, tendo-o a
arraya-miuda elegido por seu propoedor."
"Medo ou dobras do paço podem tapar a boca aos mais ousados, e
faze-los dormir até deshoras--retrucou o petintal.
"Que fazem falar as dobras do paço, sei eu:--tornou o beguino
com riso sardonico, lembrando-se do que nessa noite passára:--medo
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