Lendas e Narrativas (Tomo I) - 11

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á porta, mas Fr. Lourenço tinha entrado.
"Reverendo prior--disse elrei voltando-se para Fr. Lourenço--vim
tarde para gosar desta maravilhosa vista: vamos ao auto da adoração,
e ámanhan voltaremos aqui a horas de sol."
E seguiu para a banda da sacristia, cuja porta lhe foi abrir o
prior.
Mestre Ouguet entrou na casa do capitulo, quando já os ultimos
cavalleiros do sequito real íam saindo pelo lado opposto, caminho
da igreja. Com as mãos mettidas no cincto de couro preto que
trazia, e a passo mesurado, o architecto caminhou até o meio
daquella desconforme quadra. O som dos passos dos cavalleiros
tinha-se desvanecido; e mestre Ouguet dizia comsigo, olhando
para a porta por onde elles haviam passado:
"Pobres ignorantes! que seria o vosso Portugal sem estrangeiros,
senão um paiz sáfaro e inculto? Sois vós, homens brigosos, capazes
dos primores das artes, ou sequer de entende-los?.. Lá vão, lá
vão os frades celebrar um auto! Não serei eu que assista a elle;
eu que vi os mysterios de Coventria e de Widkirk! Miseraveis
selvagens, antes de tentardes representar mysterios fôra melhor
que mandasseis vir alguns irmãos da sociedade dos escrivães de
parochia de Londres[1], que vos ensinassem os verdadeiros momos,
ademanes e tregeitos usados em semelhantes autos."
Mestre Ouguet estava embebido neste mudo soliloquio, em louvor da
nação que lhe dava de comer, e o que deveria pesar-lhe ainda mais
na consciencia, da nação que lhe dava de beber, quando erguendo
casualmente os olhos para a macissa abobada, que sobre elle se
arqueava, fez um gesto de indizivel horror, e como doudo correu
a bom correr pela crasta solitaria, apertando a cabeça entre
as mãos, e gritando a espaços:
"Oh, malaventurado de mim!"
[1] Pelas Chronicas de Stow se vê que no principio do
seculo 15.° os mysterios eram representados em Londres pelos
escrivães de parochia, incorporados em sociedade por Henrique
3.°, em 1409.

O AUTO.

Juncto a uma das columnas da igreja de Sancta Maria da Victoria
estava levantado um estrado, sobre o qual se via uma grande e
macissa cadeira de espaldas, feita de castanho, e lavrada de
curiosos bestiães e lavores: era este o logar onde elrei devia
assistir ao auto da adoração dos reis. No mesmo estrado havia
varios assentos rasos para nelles se assentarem os fidalgos e
cavalleiros que o acompanhavam. Defronte do estrado e collocado ao
pé do arco da capella do fundador corria para um e outro lado da
parede um devoto presepio[1], mui erguido do chão, e representando
serranias agrestes, ao sopé das quaes estava armada uma especie
de choça, onde sobre a tradicional manjadoura se via reclinado
o menino Jesus, e de joelhos juncto delle a Virgem e S. José,
acompanhados de varios anjos, em acto de adoração. Diante da
cabana corria, no mesmo nivel, um largo e grosseiro cadafalso
de muitas táboas, para o qual, por um dos lados, davam serventia
duas grossas e compridas pranchas de pinho, por onde deviam subir
as personagens do auto.
Tanto que elrei saíu da porta do cruzeiro que dá para a sacristia,
encaminhou-se pela igreja abaixo, e veio assentar-se na cadeira de
espaldas, conduzido por Fr. Lourenço, que com todos os modos de
homem cortezão offereceu os assentos rasos aos demais cavalleiros
e fidalgos.
Pela mesma porta da sacristia saíram logo as primeiras figuras
do auto, que, descendo ao longo da nave, subiram ao cadafalso
pelas pranchas de que fizemos menção.
Estas primeiras figuras eram seis, formando uma especie de prologo
ao auto. Tres que vinham adiante representavam a Fé, a Esperança,
e a Caridade: após ellas vinham a Idolatria, o Diabo, e a Suberba;
todas com suas insignias mui expressivas e a ponto; mas o que
enlevava os olhos da grande multidão dos espectadores era o Diabo,
vestido de pelles de cabra, e com um rabo que lhe arrastava pelo
tablado, e seu forcado na mão, mui vistoso e bem posto. Feitas
as venias a elrei, a Idolatria começou seu arrazoado contra a
Fé, queixando-se de que ella a pretendia esbulhar da antiga posse
em que estava de receber cultos de todo o genero-humano, ao que
a Fé acudia com dizer que ab initio estava apontado o dia em
que o imperio dos idolos devia acabar, e que ella Fé não era
culpada de ter chegado tão asinha esse dia. Então o Diabo vinha
lamentando-se de que a Esperança começasse de entrar nos corações
dos homens; que elle Diabo tinha jus antiquissimo de desesperar
toda a gente; que se dava ao démo por vêr as perrarias que a
Esperança lhe fazia; e com isto careteava com taes momos e tregeitos,
que o povo ria a rebentar, o mais devotamente que era possivel.
Ainda que o Diabo fizesse de truão da festa, nem por isso a sua
contendora, a Esperança, dava descargo de si com menos compostura
do que a tão honrada virtude cumpria, dizendo que ella obedecia
ao senhor de toda las cousas, e que este vendo e considerando
os grandes desvairos que pelo mundo íam, e como os homens se
arremessavam desacordadamente no inferno, a mandára para lhes
apontar o direito caminho do céu; e por aqui seguia com razões
mui devotas e discretas, que moveriam a devotissimas lagrymas
os ouvintes, se a devoto riso os não movesse o Diabo com seus
tregeitos e visagens, como, com bastante agudeza, reflecte o
auctor da antiga chronica, de que fielmente vamos transcrevendo
esta veridica historica. A Suberba, que estava impando, ouvidas
as razões da Esperança, travou della mui rijo, e com voz torvada e
rosto acceso, começou de bradar, que esta dona era sandía, porque
entendera enganar os homens com vaidades de incertos futuros,
e sustenta-los com fumo; que pretendia contra toda a ordem de
boa razão, que a gente vil houvesse igual quinhão no céu com os
senhores e cavalleiros, o que era descommunal ousadia, e fóra da
geral opinião e direito, indo por aqui discursando com remoques
mui orgulhosos, como a Suberba que era. Não soffreu, porém, o
animo da Caridade tão descomposto razoar da sua figadal inimiga,
e lh'o atalhou com tomar a mão naquelle ponto, e notar que os
filhos de Adão eram todos uns aos olhos do Todo-Poderoso; que a
Suberba inventára as vans distincções entre os homens, e que á vida
eternal mais amorosamente eram os pequenos e humildosos chamados,
do que os potentes, o que provou claramente á sua contraria com
bastos textos das sanctas escripturas, de que a Suberba ficou mui
corrida, por não ter contra tão grande auctoridade resposta cabal.
E acabado o dizer da Caridade, um anjo subiu ao cadafalso, para
dar sua sentença, que foi mandar recolher ao abysmo a Idolatria,
o Diabo e a Suberba, e annunciar ás tres virtudes que as ía elevar
ao céu, onde reinariam em gloria perduravel. Então o Diabo, fazendo
horribilissimos biocos, pegou pelas mãos ás duas companheiras,
e fugiu pela igreja fóra com grandes apupos e doestos dos
espectadores. Guiando as tres virtudes, o anjo (por uma daquellas
liberdades scenicas que ainda hoje se admittem, quando, nas vistas
de marinha, o actor, que vem embarcado, desce dois ou tres degráus
das ondas de papelão para a terra de soalho) em vez de subir ao
céu, como annunciára, desceu pelas pranchas, que davam para o
pavimento da igreja, e caminhando ao longo da nave se recolheu á
sacristia, acompanhado da Fé, Esperança e Caridade, tão victoriadas
pelos espectadores, como apupado fôra o Diabo e as suas infernaes
companheiras.
Ainda bem não eram recolhidas estas figuras, quando, pela mesma
porta do cruzeiro, saíram os tres reis magos, ricamente vestidos
ao antigo, com roupas talares de fina téla, mantos reaes, e corôas
na cabeça. Adiante vinha Balthasar, homem já velho, mas bem disposto
de sua pessoa, com aspecto grave e auctorisado, e com umas barbas,
posto que brancas, bem povoadas: logo após elle vinha o rei Belchior,
e a este seguia-se Gaspar: traziam todos suas bocetas, em que
eram guardados os preciosos dons, que ao recem-nascido vinham
de longes terras offertar. Subindo ao cadafalso, disseram como
uma estrella os guiára até Jerusalem, e como desta cidade, depois
de mui trabalhado e duvidoso caminho, tinham acertado em vir a
Bethlem, e com grande folgança encontravam ahi o presepe, para
fazer seu offertorio, o que em verdade era cousa mui piedosa
d'ouvir. O rei Balthasar, como mais velho e sisudo, foi o primeiro
que ajoelhou juncto do presepe, e com voz mui entoada, e depondo
ante o menino seus presentes, disse:
Sancto filho de David,
Divinal
Salvador da triste raça
Humanal,
Que descestes lá do assento
Celestial;
Vós da gloria imperador
Eternal,
Acceitae este offertorio
Não real,
Pobre si. É quanto posso:
Não hei al.
O que fôra compridoiro
De auto tal
Bem o sei. Andei más vias,
Por meu mal;
Que dez dias prantei tendas
De arrayal
Nas soidões fundas d'Arabia,
Mui fatal.
Meus camellos ha tisnado
Sol mortal;
E um, de vento do deserto,
Vendaval.
O presente, que ahi vêdes,
Pouco vai;
É somente algum incenso
Oriental;
Que o thesouro que eu trazia,
Mui cabal,
Soterrou-mo a tempestade
No areal.
E com isto o veneravel rei Balthasar, depois de fazer sua oração
em voz baixa, ergueu-se; e o rei Belchior, ajoelhando e depondo
a urna que trazia nas mãos ante o presepe, disse:
Vindo sou Iá do Cataio
A adorar-vos alto infante,
Redemptor:
Não me poz na alma desmaio
Ser de lerra tào distante
Rei, senhor!
É bem torva a minha lace:
Minhas mãos tingidas são
De negrura;
Mas na terra onde o sol nace
Mais se cobre o coração
De tristura;
Porque o torpe Mafamede
Sua crença mui sandia
Mandou lá;
E não ha quem della arrede
Essa gente, que aperfia
Em ser má.
Real tronco de Jessé
Mui fermoso, se eu podéra
Vos levára;
E comvosco á vossa fé
Os incréus eu convertêra,
E os salvára.
Ora quero vêr se peito
São José, que é vosso padre ....
Um sussurro, que começára no momento em que o rei preto ajoelhou,
e que mal deixára ouvir a precedente loa (obra mui prima de certo
leigo, affamado jogral daquelle tempo) cresceu neste momento a tal
ponto, que o corista, que fazia o papel de Belchior, não pôde,
continuar, com grande dissabor do poeta, que via murchar a corôa de
louros, que neste auto esperava obter. O povo agitava-se, e do meio
delle saíam gritos descompostos, que augmentavam o tumulto. Elrei
tinha-se erguido, e junctamente os demais cavalleiros e fidalgos:
todos indagavam a origem do motim; mas não havia acertar com
ella. Emfim, um homem rompendo por entre a multidão, sem touca
na cabeça, cabellos desgrenhados, bôca torcida e cuberto de escuma,
olhos esgazeados, saltou para dentro da têa, que fazia um claro
em roda do tablado. Apenas se viu dentro daquelle recincto, ficou
immovel, com os braços estendidos para o tecto, as palmas das
mãos voltadas para cima, e a cabeça encolhida entre os bombros,
como quem cheio de horror via sobre si desabar aquellas altissimas
e macissas arcarias.
"Mestre Ouguet!--exclamou elrei espantado.
"Mestre Ouguet!--gritou Fr. Lourenço, com todos os signaes de
assombro.
"Mestre Ouguet!--repetiram os cavalleiros e fidalgos, para tambem
dizerem alguma cousa.
"Quem fala aqui no meu nome?--rosnou David Ouguet, com uma voz
comprimida e sepulchral.--Malvados! Querem assassinar-me?! Querem
arrojar sobre mim esse montão de pedras, como se eu fôra um cão
judeu, que merecesse ser apedrejado?! Oh meu Deus, salvae a minha
alma!"--E depois de um breve silencio, em que pareceu tomar fôlego:--
"Não vos chegueis ahi!--bradou elle.--Não vedes essas fendas
profundas como o caminho do inferno? São escuras: mas atravez
dellas lá enxergo eu o luar! Vós não, porque vossos olhos estão
cegos ... porque o vosso bom nome não se escoa por lá!... Cégos?
Não vós!... mas elle!... Elle é que se ri e folga em sua orgulhosa
suberba! Vêde como escancára aquella bôca hedionda; como revolve,
debaixo das palpebras cubertas de vermelhidão, aquelles olhos
embaciados!... Maldicto velho, foge diante de mim!... Maldicto,
maldicto!... Curvada ja no centro ... sentia-a escaliçar e ranger...
Estavas tu assentado em cima della? Feiticeiro!... Anda, que eu
bem ouço as tuas gargalhadas!... Não ha um raio que te confunda?..
Não!"
Dizendo isto, mestre Ouguet cubriu a cara com as mãos, e ficou
outra vez immovel.
Elrei, os cavalleiros, os padres mais dignos, que estavam de
roda do estrado real, os reis magos, os populares, todos olhavam
pasmados para o architecto que assim interrompêra a solemnidade
do auto. Um silencio profundo succedêra ao ruído, que a apparicào
daquelle homem desvairado excitara. Milhares de olhos estavam
fitos nesse vulto, que semelhava uma larva de condemnado saída
das profundezas para turbar a festa religiosa. Por mais de um
cérebro passou este pensamento: em mais de uma cabeça os cabellos
se eriçaram de horror; mas dos que conheciam mestre Ouguet nenhum
duvidou de que fosse elle em corpo e alma. Que proveito tiraria
o demonio de tomar a figura do architecto para fazer uma das
suas irreverentes diabruras? Só uma supposição havia, que não
era inteiramente desarrazoada; David Ouguet podia estar possesso,
em consequência de algum grave peccado; peccado que talvez tivesse
escondido na ultima confissão, que fizera na vespera de Natal. Isto
era possivel, e até natural; que não vivia elle a mais justificada
vida. Suppôr que endoudecêra parecia grande desproposito; porque
nenhum motivo havia para tal lhe acontecer, quando merecêra os
gabos d'elrei e de todos, por ter levado a cabo a grandiosa obra
que lhe estava encommendada. Estes e outros raciocinios, hoje
ridículos, mas segundo as idéas daquella epocha hem fundados
e correntes, fazia o reverendo padre procurador Fr. Joanne, que
tinha vindo assistir ao auto, e estava em pé atraz do estrado,
e perto de Fr. Lourenço Lamprêa. Revolvendo taes pensamentos,
no meio daquelle silencio ancioso em que todos estavam, não pôde
ter-se que, pé ante pé, se não chegasse ao prior, e lh'os
communicasse em voz baixa, e ao ouvido.
"Não vou fóra disso:"--respondeu o prior, que, emquanto o outro frade
lhe falára, estivera dando á cabeça em signal de approvação.--"O
olhar espantado, o escumar, o estorcer os membros, o falar não
sei de que feiticeiro; tudo me induz o crer que o demonio se
chantou naquelle miseravel corpo, como vós aventaes. Se assim
é, pouco juizo mostrou desta vez o diabo em vir com seus esgares
e tropelias atalhar o mui devoto auto da adoração. Examinemos
se assim é, eu vo-lo darei bem castigado."
Dizendo isto, Fr. Lourenço chegou-se a el-rei, e disse-lhe o
que quer que foi. Elle escutou-o attentamente, e tanto que o
prior acabou, sentou-se outra vez na sua cadeira de espaldas, e
fez signal com a mão aos fidalgos e cavalleiros para que tambem
se assentassem.
Fr. Lourenço, acompanhado de mais alguns frades, subiu pela igreja
acima, e entrou na sacristia: todos ficaram esperando, silenciosos
e immoveis como mestre Ouguet, o desfecho desta scena, que se
encaixava no meio das scenas do auto.
Tinham passado obra de tres credos, quando, saindo outra vez
da porta da sacristia, Fr. Lourenço voltou pela igreja abaixo,
revestido com as vestes sacerdotaes, cbegou á têa, abriu-a, e
encaminhou-se para mestre Ouguet. Depois, olhando de roda, e
fazendo um aceno de aucloridade, disse:
"Ajoelhae, christãos, e orae ao Padre Eterno por este nosso irmão,
tomado do espirito immundo."
A estas palavras, rei, cavalleiros, frades, povo, tudo se poz de
joelhos. E ouvia-se ao longo das naves o sussurro das orações.
Só mestre Ouguet ficou sem se bulir com o rosto mettido entre
as mãos.
O prior lançou a estola á roda do pescoço do possesso, e queria
atar os tres nós do ritual; mas o paciente deu um estremeção,
e tirando as mãos da cara, fez um gesto de horror, e gritou:
"Frade abominável, tambem tu és conluiado com o cégo?"
"Não ha duvida!--disse por entre os dentes o prior:--mestre Ouguet
está endemoninhado."
Tirando então da manga um pergaminho, em que estavam escriptas
varias cousas de doutrina, o poz sobre a cabeça do mestre, fazendo
sobre elle tres vezes o signal da cruz.
David Ouguet soltou então uma destas risadas nervosas, que
horrorisam, e que tão frequentes são quando o padecimento moral
sobrepuja as forcas da natureza.
"Cão tinhoso--bradou Fr. Lourenço--espirito das trevas, enganador,
maldicto, luxurioso, insipiente, ebrio, serpe, vibora, vil e
refece demónio, emfim, castelhano[2]. Em nome do creador e senhor
de todas las cousas, te mando que repitas o credo, ou sáias deste
miseravel corpo."
Mestre Ouguet ficou immovel e calado.
"Não cedes?!"--proseguiu o prior--"Recorrerei ao septimo, ao mais
terrivel exorcismo. Veremos se poderás a teu salvo escarnecer
das creaturas feitas á imagem e semelhança de Deus."
Depois de varias ceremonias e orações, Fr. Lourenço chegou-se
ao pobre irlandez, e começou a repetir o conjuro, fazendo-lhe
uma cruz sobre a testa a cada uma das seguintes palavras, que
proferia lentamente:
"Hel--Heloym--Heloa--Sabaoth--Helyon--Esereheye--Adonay--Iehova--
Ya--Thetagrammaton--Saday--Messias--Hagios--Ischiros--Otheos--
Athanatos--Sother--Emanuel--Agla--......
"Jesus!"--bradou a uma voz toda a gente que estava na igreja.
"Diabo!"--gritou mestre Ouguet; e caíu no chão como morto.
E houve um momento de angustia e terror, em que todos os corações
deixaram de bater, e em que todos os olhos, braços e pernas ficaram
fixos como se fossem de bronze.
Um ruído semelhante ao de cem bombardas, que se houvessem disparado
dentro do mosteiro, e que soára da banda da sacristia, tinha
arrancado aquelle grito de mil bôcas, e tinha convertido em estatuas
essa multidão de povo.
Ha situações tão violentas, que se durassem, a morte se lhes
seguiria em breve; mas a providente natureza parece restaurar
com dobrada energia o vigor physico e espiritual do homem depois
destes abalos espantosos; e então, melhor que nunca, elle sente
em si que, posto que despenhado, não perdeu a sublimidade da sua
origem divina. A reacção segue a acção; e quanto mais timido
o individuo se mostrou, mais viva é a consciência da propria
força, que depois disso renasce com o destemor e ousadia.
Foi o que succedeu a D. João I, aos cavalleiros do seu sequito,
e ao povo que estava na igreja de Sancta Maria, passado aquelle
instante de sobrenatural pavor. A terribilidade da ceremonia
que Fr. Lourenço practicava; o ruído inesperado que rompêra o
exorcismo; o grito blasphemo do architecto, no momento de cahir
por terra; o logar; a hora, eram cousas que, reunidas, fariam
pedir confissão a uma grande manada de philosophos encyclopedistas,
e que por isso, não é de admirar fizessem uma impressão vivissima
em homens de um seculo, não só crente, mas tambem supersticioso.
Todavia o animo indomavel do Mestre d'Aviz brevemente fez cobrar
alento a todos os que ahi estavam.
"É, em verdade, descommunal maravilha o que temos visto e
ouvido--disse elle com voz firme, voltando-se para os que o
rodeavam;--mas cumpre indagar d'onde procede o ruído que veiu
interromper o mui devoto padre prior no exercicio de seu ministerio
tremendo. Soou esse medonho estampido da banda do claustro: vamos
examinar o que seja: se diabolico, estamos na casa de Deus, e
a cruz é nosso amparo: se natural, que haverá no mundo capaz
de pôr espanto em cavalleiros portuguezes?"
Dizendo isto, elrei desceu do estrado, e encaminhou-se para a
sacristia. Os cavalleiros da comitiva, os frades, os tres reis
magos (que ainda estavam em pé sobre o tablado) e uma grande
parte do povo tomaram o mesmo caminho.
Elrei ía adiante, e o prior era o que mais de perto o seguia.
Cruzaram o arco gothico, que dava communicação para a sacristia:
ahi tudo estava em silencio: uma lampada que pendia do tecto
dava uma luz frouxa e mortiça, e a esta luz incerta e baça
encaminharam-se para a porta do capitulo. Ao chegar a ella todos
recuaram de espanto, e um segundo grito soou, e veiu morrer
sussurrando pelas naves da igreja quasi deserta:
"Jesus!"
As portas haviam estourado nos seus grossissimos gonzos, e muito
cimento solto e pedras quebradas tinham rolado pelo portal fóra,
entulhando-lhe quasi um terço da altura. Olhando para o interior
daquella immensa quadra não se viam senão enormes fragmentos
de cantos lavrados, de laçarias, de cornijas, de voltas e de
relevos: a lua, que passava tranquilla nos céus, reflectia o
seu clarão pallido sobre este montão de ruinas semelhantes aos
monumentos irregulares de um cemiterio christão; e por cima daquelle
temoroso silencio passava o frio leste da noite, e vinha bater
nas faces turbadas dos que apinhados na sacristia contemplavam
este lastimoso espectaculo. Dos olhos d'elrei e de Fr. Lourenço
cahiram algumas lagrymas, que elles debalde tentavam reprimir.
A abobada do capitulo, acabada havia vinte e quatro boras, tinha
desabado em terra!
[1] Presepio, ou presepe, significa propriamente um
estabulo, ou estrebaria; mas a accepção vulgar desta palavra é a
de uma especie de embrechado, ou paizagem de vulto, representando
a choça de Belém, em que nasceu o Salvador.
[2] O inquisidor Sprenger, no livro intitulado Mallens
Maleficarum, recommenda aos exorcistas que antes de tudo descomponham
e injuriem quanto poderem os possessos, advertindo que não são
propriamente estes que recebem as affrontas, mas sim o diabo,
que tem no corpo. A conveniencia de taes doestos é que para o
demonio, pae da suberba, não póde haver maior pirraça do que
ser descomposto na sua cara, sem que elle se possa desaggravar.
Veja-se o livro citado, edição de Lyão de 1604--Tom. 3. pág.
83.

UM REI CAVALLEIRO.

Em uma quadra das que serviam de aposentos reaes no mosteiro
da Batalha, á roda de um bufete de carvalho de lavor antigo,
cujos pés, torneados em linha espiral, eram travados por uma
especie de escabéllo, que pelos topos se embebia nelles, estavam
assentadas varias personagens daquellas com quem o leitor já tractou
nos antecedentes capitulos. Eram estas D. João I, Fr. Lourenço
Lamprêa, e o procurador Fr. Joanne. Elrei estava á cabeceira
da mesa, e no topo fronteiro o prior, tendo á sua esquerda Fr.
Joanne. Além destes, outros individuos ahi estavam, que as pessoas
lidas nas chronicas deste reino tambem conhecerão: taes eram os
doutores João das Regras e Martim d'Ocem do conselho d'elrei,
cavalleiros mui graves e auctorisados, e afóra elles mais alguns
fidalgos, que D. João I particularmente estimava. Atraz da cadeira
d'elrei um pagem esperava, em pé, as ordens de seu real senhor.
O quadrante do terrado contiguo apontava meio-dia.
Em cima do bufete estava estendido um grande rolo de pergaminho,
no qual todos os olhos dos circumstantes se fitavam: era a traça
ou desenho do mosteiro, que delineára mestre Affonso Domingues,
onde, além dos prospectos geraes do edificio, illuminados
primorosamente, se viam todos os córtes e alçados de cada uma
das partes dessa complicada e maravilhosa fabrica. Elrei tinha
a mão estendida, e os dedos sobre o risco da casa capitular,
ao passo que falava com o prior:
"Parece impossivel isso; porque natural desejo é de todos os
homens alcançarem repouso e pão na velhice, e não vejo razão para
mestre Affonso se doer da mercê que lhe fiz."
"Pois a conversação que vos relatei, tive-a com elle ainda hontem,
pouco antes de vossa mercê chegar."
"E como vae David Ouguet?--perguntou elrei.
"Com grande melhoria:--respondeu o prior.--Dormiu bom espaço,
e acordou em seu juizo. Contou-me que, entrando hontem após nós
na casa do capitulo, e affirmando a vista na abobada, conhecêra
que tinha gemido, e estava a ponto de desabar; que sentíra
apertar-se-lhe o coração, e que com a sua afflicção corrêra pela
crasta fóra como doudo; que no céu se lhe affigurava um relampaguear
incessante e medonho; que via ... nem elle sabe o que via, o pobre
homem. Depois disso, diz que perdêra o tino, e de nada mais se
recorda."
"Nem dos exorcismos?--perguntou em meia voz Martim d'Ocem, com
um sorriso malicioso.
"Nem dos exorcismos:--retrucou Fr. Lourenço no mesmo tom, mas
subindo-lhe ao rosto a vermelhidão da colera.--A proposito, doutor.
Dizem-me que Annequim é morto[1], e que elrei proveu o cargo em
um dos de seu conselho. Seria verdadeira esta mercê singular?"
E o frade media o letrado de alto a baixo com os olhos irritados.
Este preparava-se para vibrar ao prior uma nova injuria indirecta,
naquelle jogo de allusões que era as delicias do tempo, quando
elrei acenou ao pagem, dizendo-lhe:
"Alvaro Vaz d'Almada, ide depressa á morada d'Affonso Domingues,
dizei-lhe que eu quero falar-lhe, e guiae-o para aqui. Fazei isso
com tento; e lembrae-vos de que elle é um antigo cavalleiro,
que militou com vosso mui esforçado pae."
O pagem saíu a cumprir o mandado d'elrei.
"Dizeis vós--proseguiu este, dirigindo-se a João das Regras e
a Martim d'Ocem--que talvez Affonso Domingues se enganasse em
suppôr que era possivel fazer uma abobada tão pouco erguida,
como é a que elle traçou para o capitulo. Não creio eu que tão
entendido architecto assim se enganasse: mais inclinado estou
a persuadir-me de que o lastimoso successo de hontem á noite
procedesse da grave falta commettida por mestre Ouguet nesta
edificação."
"E que falta foi essa, se a vossa mercê apraz dizer-m'o?--replicou
João das Regras.
"A de não seguir de todo ponto o desenho de mestre Affonso:--tornou
elrei.
"E se a execução de sua traça fosse impossivel?--acudiu o doutor.
"Impossivel!?"--atalhou elrei.--"E não contava elle com leva-la
a effeito, se Deus o não tolhesse dos olhos?"
"E é disso que mais se doe mestre Affonso,"--interrompeu o prior.--"A
sua grande canseira é que ninguem saberá continuar a edificação
do mosteiro, ou, como elle diz, proseguir a escriptura do seu
livro de pedra, porque ninguem é capaz de entender o pensamento
que o dirigiu na concepção delle."
"Roncarías e feros são esses proprios de quem foi homem d'armas
de Nunalvares:--disse o chanceller João das Regras.--Todos os
de sua bandeira são como elle. Porque sabem jogar boas lançadas,
teem-se em conta de principes dos discretos; e o cégo não se
esqueceu ainda de que comeu da caldeira do condestavel."
João das Regras, emulo de Nunalvares, não perdeu este ensejo
de lhe pôr pêcha; mas D. João I que conhecia serem esses dous
homens as pedras angulares de seu throno, escutava-os sempre
com respeito, salvo quando falavam um do outro; posto que o
condestavel, homem mais de obras que de palavras, raras vezes
menoscabava os meritos do chanceller, contentando-se com lançar
na balança, em que João das Regras mostrava o grande peso da sua
penna, o montante com que elle Nunalvares tinha em cem combates
salvado a patria do dominio estranho, e a cabeça do chanceller
das mãos do carrasco, de que não o livrariam nem os gráus de
doutor de Bolonha, nem os textos das leis romanas.
"Deixae lá o condestavel, que não vem ao intento;--disse elrei:--o
que me importa é ouvir mestre Affonso sobre este caso. Quizera
antes perder um recontro com castelhanos, do que cuidar que o
capitulo de Sancta Maria da Victoria ficará em ruinas. Mestre
Ouguet com sua arte deixou-lhe vir ao chão a abobada: se Affonso
Domingues fôr capaz de a tornar a erguer, e deixa-la firme,
concluirei d'ahi que vale mais o cégo que o limpo de vista; e
digo-vos que o restituirei ao antigo cargo, ainda que esteja,
além de cégo, çopo[2] e mouco."
Neste momento entrava o velho architecto, agarrado ao braço de
Alvaro Vaz d'Almada, que o veiu guiando para o topo da desmesurada
banca de carvalho, á roda da qual se travára o dialogo, que acima
transcrevemos.
"Dom donzel, onde é que está elrei?"--dizia Affonso Domingues ao
pagem, caminhando com passos incertos ao longo do vasto aposento.
D. João I, que ouvira a pergunta, respondeu em vez do pagem:
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