Lendas e Narrativas (Tomo I) - 07

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Portugal contra o seu casamento, e no caso de vir este a cabo,
a probabilidade de ser annullado pelas censuras da igreja. Emfim,
sem nunca lhes dizer claramente que insistissem na revolta, e
tractassem, se fosse preciso, de defender a cidade contra o poder
real, suscitou todas as idéas que podiam levar os populares a
este excesso. Faltava o ponto difficultoso; o da partida dos
fidalgos. Pacheco soube com a mesma ambiguidade dar esperanças
aos peões de que elles se encaminhavam para suas alcaidarias
e honras com o louvavel intento de se aperceberem em soccorro
dos burguezes de Lisboa, e com tal arte o fez, que os senhores
e cavalleiros que se achavam em S. Domingos, sem exceptuar o
proprio conde de Barcellos, não viram nas suas palavras senão
uma feliz inspiração para os salvar da colera da arraya-miuda.
Durante aquella larga arenga esta guardára silencio, interrompido
a espaços por um desses borborinhos, que são como os annuncios
das erupções do volcão popular. Pacheco, emfim, concluiu: mas
o espectaculo que tinha diante de si o fez ficar immovel por
alguns momentos; e estes foram terriveis. Aquelles centenares de
olhos avermelhados, scintillantes de furor, eravados nelle e nos
outros fidalgos; aquellas bôcas semi-abertas prestes a proromper
em brados de morte, eram como um pesadello diabolico, como uma
vertigem de loucura. Os populares pareciam ainda escuta-lo, e
não poderem acreditar a deslealdade de D. Fernando de Portugal.
Os fidalgos aproveitaram este instante de torpor moral que precedia
a procella. Desceram da alpendrada, e montando nas suas possantes
mulas, encaminharam-se vagarosamente para a banda da corredoura.
No meio da cavalgada, e rodeado dos cavalleiros mais bemquistos
do povo ía o conde de Barcellos, e Diogo Lopes com os seus pagens
fechava o sequito. Se houvessem atravessado a praça, o conde teria
corrido grande risco; porque, ao dobrar o angulo do mesteiro, ja
os doestos grosseiros e violentos voavam contra elle do meio
do povo apinhado, e até dois virotes de bésta pareceu sibilarem
por cima da sua cabeça. Mas apertando os acicates, os cavalleiros
seguiram ao longo da corredoura, em quanto Diogo Lopes, victoriado
pelas turbas, a quem com sorrisos retribuia aquellas mostras de
affécto, obstava a que as ondas populares rodeassem o diminuto
numero de cortezãos, alguns dos quaes tinham fundados motivos
para receiar a irritação desses animos ferozes, exaltados pela
fuga d'elrei.
A cavalgada linha desapparecido, quando um troço de bésteiros
e peões desembocou do lado da rua nova. Eram mestre Bartholomeu
e a sua gente, que vinham confirmar a nova dada por Diogo Lopes
Pacheco.
Mas as palavras que Fr. Roy dissera ter ouvido proferir a elrei,
lançadas entre os amotinados como um facho sobre montão de lenha
por onde lavra ha muito fogo occulto, levaram o tumulto a um ponto
medonho. As affrontas, que até ahi quasi só se encaminhavam contra
Leonor Telles e seus parciaes, voltaram-se contra D. Fernando. As
maldieçòes, as pragas, os nomes de traidor e covarde se ajunctavam
ás mais violentas ameaças. Uns juravam que nunca mais elle entraria
em Lisboa; outros propunham que se lançasse fogo aos paços reaes.
Debalde Fernão Vasques trabalhava por aquieta-los; nem já escutavam
o seu idolo. Furiosos espalhavam-se pelas ruas, que atroavam com
gritos, brandindo as armas; e por certo que se neste momento D.
Fernando lhes tivesse apparecido, não teriam talvez respeitado
a vida do filho do seu tão querido D. Pedro I, o mais popular
de todos os nossos reis, chamados da primeira dynastia.
Este motim sem objecto, sem resistencia, e sem resultado, acalmou
nesse mesmo dia. Ao anoitecer, a cidade tinha cahido no seu habitual
silencio, e pouco a pouco os fidalgos e cavalleiros, atravessando
as portas da cruz, seguiam caminho de Santarem. O systema militar
dos antigos parthos dera a victoria a elrei: elle vencêra fugindo!
O povo adormeceu: os cabeças da revolta estavam irremediavelmente
perdidos.
[1] Moeda de prata de cinco soldos.
[2] As terecenas ou taracenas reaes, isto é o deposito
dos aprestos das galés, de guerra, eram juncto ao sitio em que
hoje vemos a igreja da Magdalena: o pelourinho velho ou Açougues
era um terreiro que ficava pouco mais ou menos no fim da rua
da Praia.
[3] Nom quis alla hir e partiose da çidade com D. Lionor,
ho mais escusamente que pode, e hi a dizendo pello caminho; "Oulhaae,
&c."--Fernão Lopes, chr. de D. Fernando c. 61.

UMA BARREGAN RAINHA.

O Douro é bem carregado e triste! A sua corrente rapida, como que
angustiada pelos agudos e escarpados rochedos que a comprimem,
volve aguas turvas e mal assombradas. Nas suas ribas fragosas
raras vezes podeis saudar um sol puro ao romper da alvorada,
porque o rio cobre-se durante a noite com o seu manto de nevoas,
e através desse manto a atmosphera embaciada faz cahir sobre a
vossa cabeça os raios do sol semi-mortos, quasi como um frio
reflexo de lua, ou como a luz sem calor de uma tocha distante. É
depois de alto dia que esse ambiente, semelhante ao que rodeava
os guerreiros de Ossian, vos desopprime os pulmões, onde muitas
vezes tem depositado já os germens da morte. Então, se, trepando a
um pinaculo das ribas, espraiaes os olhos para a banda do sertão,
lá vêdes como uma serpente immensa e alvacenta, que se enrosca
por entre as montanhas, e cujo colo esta por baixo de vossos
pés: é o nevoeiro que se acama e dissolve sobre as aguas que
o geraram. O horisonte até ahi turvo, limitado, indistincto,
expande-se ao longe, contornêa-se dos cimos franjados das montanhas
engastadas na cortina azul do horisonte, e a terra, a perder
de vista, parece-nos um mar de verdura violentamente agitado;
porque em desenhar as paizagens do Douro a natureza empregou
um pincel semelhante ao de Miguel Angelo: foi robusta, solemne
e profunda.
Como sobre um circo convertido em naumachia, o Porto ergue-se
em amphitheatro sobre o esteiro do Douro, e reclina-se no seu
leito de granito. Guardador de tres provincias, e tendo nas mãos
as chaves dos haveres dellas, o seu aspecto é severo e altivo,
como o de mordomo de casa abastada. Mas não o julgueis antes
de o tractar familiarmente. Não façaes cabedal de certo modo
aspero e rude que lhe haveis de notar; trazei-o á prova, e
achar-lhe-heis um coração bom, generoso e leal. Rudeza e virtude
são muitas vezes companheiras; e entre nós, degenerados netos do
velho Portugal, talvez seja elle quem guarde ainda maior porção
da desbaratada herança do antigo caracter portuguez no que tinha
bom, que era muito, e no que tinha mau, que não passava de algumas
demasias de orgulho.
Nos fins do seculo decimo-quarto o Porto ía ainda longe da sorte
que o aguardava. O fermento da sua futura grandeza estava no
caracter dos seus filhos, na sua situação e nas mudanças politicas
e industriaes que depois sobrevieram em Portugal. Posto que nobre,
e lembrado como origem do nome desta linhagem portugueza, os seus
destinos eram humildes comparados com os da theocratica Braga,
com os da cavalleirosa Coimbra, com os de Santarem a cortezan, com
os de Evora a romana e monumental, com os de Lisboa, a mercadora,
guerreira e turbulenta. Quem o visse coroado da sua cathedral,
semi-arabe, semi-gothica, em voz de alcacer ameiado; soltoposta,
em vez de o ser á torre de menagem, aos dous campanarios lisos,
quadrangulares e macissos, tão differentes dos campanarios dos
outros povos christãos, talvez porque entre nós os architectos
arabes quieram deixar as almadenas das mesquitas estampadas como
um ferrete da antiga servidão na face do templo dos nazarenos;
quem assim visse o burgo episcopal do Porto, pendurado á roda
da igreja, e defendido antes por anathemas sacerdotaes, que por
engenhos de guerra, mal pensaria que desse burgo submisso nasceria
um emporio de commercio, onde dentro de cinco seculos, mais que
em nenhuma outra povoação do reino, a classe então fraca e não
definida, a que chamavam burguezia, teria a consciencia da sua
força e dos seus direitos, e daria a Portugal exemplos de um
amor tenaz d'independencia e de liberdade.
A populosa e vasta cidade do Porto, que hoje se estende por mais
de uma legua desde o Seminario até além de Miragaia, ou antes
até a Foz, pela margem direita do rio, entranhando-se amplamente
para o sertão, mostrava ainda nos fins do seculo decimo-quarto
os elementos distinctos de que se compoz. Ao oriente o burgo
do bispo, edificado pelo pendor do monte da sé, vinha morrer
nas hortas, que cobriam todo o valle onde hoje estão lançadas
a praça de D. Pedro e as ruas das Flores e de S. João, e que
o separavam dos mosteiros de S. Domingos e de S. Francisco. Do
poente a povoação de Miragaia, assentada ao redor da ermida de
S. Pedro, trepava já para o lado do Olival, e vinha entestar
pelo norte com o couto de Cedofeita, e pelo oriente com a villa
ou burgo episcopal. A igreja, o municipio, e a monarchia entre
esses limites pelejaram por seculos suas batalhas de predominio,
até que triumphou a corôa. Então a linha que dividia as tres
povoações desappareceu rapidamente debaixo dos fundamentos dos
templos e dos palacios. O Porto constituiu-se a exemplo da unidade
monarchica.
Era neste burgo ecclesiastico, nesta cidade nascente, que por
um formoso dia de janeiro da era de Cesar de 1410 (1372) se viam
varridas e cobertas de espadanas e flores as estreitas e tortuosas
ruas que pela encosta do monte guiavam ao burgo primitivo fundado ou
restaurado pelos gascões, se não mentem memorias remotas[1]. Na rua
do Souto, já assim chamada, talvez pela vizinhança de algum bosque
de castanheiros[2], como principal entrada da povoação, andavam
as danças judengas e folias mouriscas com musicas e trebelhos
ou jogos, por entre o povo vestido de festa, o que era indicio
evidente de que se esperava elrei, cuja vinda a qualquer povoação
era o unico motivo legal para fazer dançar e foliar judeus e
mouros, que de certo não folgavam com estes forçados e dispendiosos
signaes de contentamento publico.
Com effeito uma numerosa e esplendida cavalgada viha da banda
do bailiado de Leça, Elrei D. Fernando ajunctára em Santarem os
seus ricos-homens e conselheiros: amestrado por Leonor Telles na
arte de dissimular, recebêra com todas as mostras de boa-vontade
o infante D. Diniz e Diogo Lopes Pacheco, ao qual, para maior
disfarce, não escaceára mercês[3]. Depois em folgares e caçadas
vagueára pelo reino com D. Leonor, até que em Eixo fizera um como
manifesto da resolução que tomára de a receber por mulher, o que
neste dia cumpríra na antiga igreja daquella celebre commenda dos
Hospitalarios. Era, pois, para celebrar este matrimonio adultero,
agourado pelas maldicções populares, que o bispo D. Affonso, menos
escrupuloso que o povo de Lisboa ácerca de adulterios, vestia
de festa o seu mui canonico burgo[4].
A cavalgada, que se víra descer ao longo do valle, já atravessava
o rio da villa pela ponte do Souto[5] e encaminhava-se para uma
antiga porta da povoação primitiva, porta conhecida ainda hoje,
como então, pelo nome de Vandoma. Ao lado direito d'elrei ia D.
Leonor, a rainha de Portugal: elle montado em um cavallo de guerra;
ella em um palafrem branco, levado de redea desde a entrada da
ponte pelo infante D. João, que familiarmente falava e ria com a
formosa cavalleira. Da banda esquerda o bispo D. Affonso, curvado e
enfraquecido pela velhice, oscillava e fazia cortezias involuntarias
a cada passada da mansissima e veneranda mula episcopal. Juncto ao
velho prelado o infante D. Diniz caminhava em silencio, e no aspecto
melancholico do mancebo se divisava que uma profunda tristeza lhe
consumia o coração, vendo-se como atado ao carro triumphal da
mulher que pouco a pouco se convertêra em sua irreconciliavel
inimiga. Após estas principaes personagens via-se uma grande
multidão de cavalleiros, clerigos, cortezãos, conselheiros, juizes
da côrte, companhia esplendida, por entre a qual brilhava o ouro,
a prata, e as variadas côres dos trajos de festa, que sobresaiam
no chão negro das vestiduras roçagantes dos magistrados e clerigos.
Adiante d'elrei as danças dos mouros e judeus volteavam rapidas
ao som da viola ou alaude arabe, das trombetas e das soalhas.
Segundo o antigo uso seguiam-se ás danças córos de donzellas
burguezas, que celebravam cora seus cantos o amor e a ventura
dos noivos[6].
Mas esse canto tinha o que quer que era triste na toada. Triste
era tambem o aspecto dos populares, que sem um só grito de regosijo
se apinhava para vêr passar aquelle prestito real. Mil olhos se
cravavam no infante D. Diniz, cujo rosto melanclholico revelava
que os seus pensamentos eram accordes com os do povo, que por
toda a parte não via neste consorcio senão um crime e uma fonte
de desventuras. Os cortezãos, porém, fingiam não perceber o que
passava á roda delles, e pareciam transbordar de alegria. Muitos
eram daquelles que mais contrarios haviam sido aos amores d'elrei,
mas que vendo emfim D. Leonor rainha, voltavam-se para o sol que
nascia, e calculavam já quantas terras, e que somma de direitos
reaes lhes poderia render da parte de um rei prodigo a sua mudança
de opinião.
Entre elles não se via o tenaz e astuto Pacheco. Habituado ao
tracto da côrte por largos annos, experimentado em todos os enredos
dos paços, habil em traduzir sorrisos e gestos, palavras avulsas
e discursos fingidos, não tardára em perceber que as mercês e
agrados d'elrei e de D. Leonor encobriam intentos de irrevogavel
vingança. Conhecendo que a sedição popular fôra inutil, e que,
ainda renovada com mais furia, não poderia resistir ás armas de
D. Fernando, havia-se affastado da côrte, e posto que só nos
fins desse anno elle passasse a servir o seu antigo protector e
amigo D. Henrique de Castella, buscára entretanto esquivar-se
ao odio da nova rainha, conservando ao mesmo tempo a boa opinião
entre o vulgo.
Abandonado assim do seu guia, o infante D. Diniz soffrêra resignado
um successo que não podia embargar; mas, digno filho de D. Pedro,
conservára intacta a sua má vontade a D. Leonor. Abandonado dos
seus parciaes, vendo, se não trahida, ao menos quasi morta, e
inactiva a alliança de Pacheco, e, para maior desalento, seu
irmão mais velho o infante D. João ligado com essa mulher, da
qual este principe mal pensava então lhe viria a ultima ruina;
no meio de tanto desamparo, o infante, a principio timido e
irresoluto, sentira crescer a ousadia com os perigos; sentíra
girar-lhe nas veías o sangue paterno. Obrigado a seguir a corte,
nunca D. Leonor achára um sorriso nos seus labios; nunca o víra
conter diante della um só signal de despreso. Assim a colera d'elrei
contra seu irmão havia chegado ao maior auge, e os calculos de
fria e paciente vingança estavam resolvidos no animo de Leonor
Telles.
A cavalgada tinha subido a encosta, atravessado a porta de Vandoma,
que em parte ainda subsiste, e passado em frente da sé, juncto
da qual se dilatavam os paços episcopaes. Ahi as danças e folias
pararam e fizeram por um momento silencio: então o infante D.
João, tomando nos braços a formosa rainha, apeou-a do palafrem:
após ella elrei saltou ligeiro do seu fogoso e agigantado ginete.
Dentro em pouco toda a comitiva tinha desapparecido no profundo
portal dos paços, e os donzeís conduziam os elegantes cavallos,
as mulas inquietas e os mansos palafrens para as vastas e bem
providas cavallariças do mui devoto e poderoso prelado da antiga
Festabole[7].
O aposento principal dos paços, quadra vasta e grandiosa, estava
de antemão ornado para receber os hospedes reaes do velho bispo
D. Affonso. Um throno com dous assentos de espaldas indicava
que a elle ia subir tambem uma rainha. D. Leonor entrou seguida
das cuvilheiras e donzellas da sua camara; elrei de todos os
principaes cavalleiros. Viam-se entre estes o alferes-mór Ayras
Gomes da Silva, ancião veneravel, que fôra seu aio, o orgulhoso
mordomo-mór D. João Affonso Tello, Gil Vasques de Resende, aio do
infante D. Diniz, o prior do hospital Alvaro Gonçalves Pereira,
e muitos outros fidalgos que ou seguiam a còrte, ou tinham vindo
assistir ás bodas reaes.
Guiada por D. Fernando, Leonor Telles subiu com passo firme os
degraus do throno. Como o navegante, que, affrontando temporaes
desfeitos por mares incognitos e aparcellados, e chegando ao
porto longinquo, quasi que não crê pisar a terra de seus desejos,
assim esta mulher ambiciosa e audaz parecia duvidar da realidade
da sua elevação. A alma sorria-lhe a míl esperanças; a vida
trasbordava nella. A seu lado um rei, a seus pés um reino! Era
mais que embriaguez; era delirio. Ella sentia um novo affecto,
um como desejo de perdão aos seus inimigos! Tremeu de si mesma,
e convocando todas as forças do coração, salvou a sua ferocidade
hypocrita, que parecia querer abandona-la. Era severo o seu aspecto
quando esses pensamentos estranhos lhe passaram pelo espirito; mas
o sorriso tornou a espraiar-se-lhe no rosto, quando o instincto de
tigre pôde faze-la triumphar desse momento em que a generosidade
costuma accommetter com violencia as almas vingativas e ferozes, o
momento em que se realisa a summa ventura por largo tempo sonhada.
Do alto do throno e em pé, D. Fernando estendeu a mão: o tropel
de cortezâos e cavalleiros, de donas e donzellas formaram aos lados
da espaçosa sala fileiras esplendidas, immoveis e silenciosas:
elrei volveu olhos lentos para um e outro lado, e disse:
"Ricos-homens, infançôes, e cavalleiros de Portugal, um dos mais
nobres sacramentos que Deus neste mundo ordenou foi o matrimonio:
como para os outros homens, para os reis se instituiu elle; porque
por elle as corôas se perpetuam na linhagem real. É por isso que
eu desposei hoje a mui illustre D. Leonor, filha de D. Affonso
Tello, descendente dos antigos reis, e ligada com os mais nobres
d'entre vós pelo divido do sangue. Assim a rainha de Portugal
será mais um laço que vos una a mim como parentes, que de hoje
ávante sois meus. Leaes como tendes sido a vosso rei pelo preito
que lhe fizestes, muito mais o sereis por este novo titulo. Em
que pez a traidores, D. Leonor Telles é minha mulher! Fidalgos
portuguezes, beijae a mão á vossa rainha.[8]"
O velho alferes-mór Ayras Gomes aproximou-se então do throno á
voz do seu moço pupillo; ajoelhou e beijou a mão a D. Leonor;
mas o olhar que lançou para elrei era como o de pedagogo que de
mau humor se accommoda ao capricho infantil de um principe. Ao
volver d'olhos do ancião, D. Fernando córou e voltou o rosto.
O infante D. João, porém, dobrando o joelho aos pés da formosa
rainha, parecia trasbordar de alegria: contemplando-o Leonor
Telles deixou assomar aos labios um daquelles ambiguos e quasi
imperceptiveis sorrisos que, vindos della, sempre tinham uma
significação profunda. Por ventura que no infante D. João ella
já não via mais que o precursor da humilhação de D. Diniz, do
seu capital inimigo.
Após o infante os fidalgos vieram successivamente curvar-se ante
D. Leonor. Boa parte delles eram como os capitães vencidos seguindo
ao capitolio um triumphador romano. Podia-se com effeito dizer
que, mau-grado desses que se rojavam a seus pés, ella conquistára
o throno.
Toda a comprida fileira de nobres e officiaes da corôa tinha
passado e ajoelhado no estrado real. Faltava um; e era este, que,
menosprezando tantas frontes illustres por valor ou sciencia, por
fidalguia ou riqueza, inclinadas perante ella, a mulher orgulhosa
e implacavel esperava, cogitando no momento em que o mancebo ainda
impubere, sem renome, sem poderio, celebre só por seu berço e pelo
desgraçado drama da morte de D. Ignez, viesse tributar homenagem
á que representava um papel analogo ao daquella desventurada,
salvo na sinceridade do amor e na innocencia da vida.
Mas esse para quem D. Leonor mais de uma vez volvêra rapidamente
os olhos, considerava com os braços cruzados aquelle espectáculo em
perfeita immobilidade, de que unicamente saíra quando Gil Vasques
de Resende, que estava a seu lado, se affastára, caminhando para
os degraus do estrado. O mancebo apertára a mão do idoso aio,
trémula da idade, com a mão ainda mais trémula de colera. Na
conta de pae o tinha; venerava-o como filho, e a idéa de o vêr
prostituir os seus cabellos brancos aos pés de uma adultera o
levára a esse movimento involuntario; involuntario, porque elle,
naquella postura e naquella hora, não fazia mais que colligir
todas as forças da alma para salvar a honra do nome de seus avós,
do nome dos reis portugueses, esquecida por um de seus irmãos,
e talvez mercadejada por outro em troco de valimento infame. O
velho entendeu o que significava este convulso apertar de mão:
duas lagrymas lhe cahiram pelas faces; mas obedeceu a elrei.
Só faltava D. Diniz, que continuára a ficar immovel. Houve um
momento de silencio sepulchral na vasta sala, e este silencio
era para todos indefinido, mas terrivel.
D. Fernando poz-se a olhar fito para seu irmão, enleiado, ao que
parecia, em scismar profundo.
Pouco a pouco todos os fidalgos que povoavam aquella immensa
quadra se poderiam crer petrificados como as columnas gothicas,
que sustinham as voltas ponteagudas do tecto, se não fosse o
respirar anciado e rapido que lhes fazia ranger sobre os peitos
e hombros os seus ricos briaes[9].
Os labios d'elrei tremeram, como a superficie do mar encrespada
pela leve e repentina aragem que precede immediatamente o tufão.
Depois entreabrindo-os, com os dentes cerrados, murmurou:
"Infante D. Diniz, beijae a mão á vossa rainha!"
Foi um só o volver de todos os olhos para o moço infante: o sussurro
das respirações cessára.
D. Diniz não respondeu; encaminhou-se para o meio do aposento:
parou defronte do throno, e olhando em redor de si, perguntou
com sorriso de amargo escarneo:
"Onde está aqui a rainha de Portugal?"
"Infante D. Diniz!--disse elrei, cujo rosto o furor mal reprimido
demudára.--Soffredor e bom irmão tenho sido por largo tempo:
não queiraes que seja hoje só juiz inflexível do filho querido
daquelle que tambem me gerou! Infante D. Diniz! beijae a mão
da mui nobre e virtuosa D. Leonor Telles, como fez vosso irmão
mais velho, de quem devereis haver vergonha.[10]"
"Nunca um neto do D. Affonso do Salado--replicou o infante com
apparenle tranquillidade--beijará a mão da que elrei seu irmào
e senhor quer chamar rainha. Nunca D. Diniz de Portugal beijará
a mão da mulher de João Lourenço da Cunha. Primeiro ella descera
desse throno e virá ajoelhar a meus pés; que de reis venho eu,
não ella."
"De joelhos, dom traidor!--gritou D. Fernando, pondo-se em pé
e descendo dous degraus do estrado.--De joelhos, vil parceiro
de reveis sandeus! Se a taberna de Folco Taca vos ouviu fazer
preito infame aos peões de Lisboa, quebra-lo-heis diante de vosso
rei: quebra-lo-heis, que vo-lo digo eu!"
D. Diniz viu então que todos seus passos estavam descobertos:
achava-se por isso â borda de um abysmo. Hesitou um momento; mas
lembrou-se de que era neto do heroe do Salado, e precipitou-se
na voragem.
"Vil é a mulher barregan e adultera, e essa é ambas as cousas.
Traidor seria um rei de Portugal que assentasse o adulterio no
throno, e vós o fizestes, rei deshonrado e maldicto de vosso
Deus e do vosso povo! Quem neste logar é o vil e o traidor?"
O infante, acabando de proferir estas palavras, abaixou a cabeça
e deixou descahir os braços. Elle bem sabia que se seguia o morrer.
Apenas elrei se alevantára, D. Leonor, cujas faces se haviam
tingido da amarellidào da morte, tinha-se erguido tambem. Naquelle
rosto, semelhante ao de uma estatua de sepulchro, apenas se conhecia
o viver no profundar, cada vez maior, das duas rugas frontaes
que se lhe vinham junctar entre os sobr' olhos.
Ouvindo as derradeiras e fulminantes palavras de D. Diniz, elrei
soltára um destes rugidos de desesperação e colera humana, que nem
o rugido da mais brava fera póde igualar; grito de ventriloquo, que
é como o estridor de todas os fibras do coração que se despedaçam a
um tempo; gemido como o do rodado ao primeiro gyro do instrumento
do supplicio; rugido, grito, gemido, conglobados n'um só hiato,
fundidos n'um som unico pela raiva, pelo odio, pela angustia:
brado que só terá eccho pleno no bramido que ha-de soltar o reprobo
quando no derradeiro juízo o julgador dos mundos lhe disser:--para
ti as penas eternas.
O brado de D. Fernando fizera tremer os mais esforçados cavalleiros
que se achavam presentes: o movimento que o seguiu fez gelar o
sangue em todas as veias.
Como um relampago elle tinha arrancado da cincta o agudo bulhâo,
e com os olhos desvairados encaminhava-se para o meio da sala,
onde seu irmâo o esperara immovel, com a mâo sobre o peito, como
se dissesse: aqui!
Mas D. Fernando nâo pôde offerecer nas aras do adulterio um
fratricidio: uma barreira se tinha alevantado a seus pés. Era um
velho de fronte calva, e de longas melenas brancas e desbastadas
pelos annos: era aquelle que lhe fôra mais que pae, e que elle
respeitava mais que a memória deste: era o seu alferes-mór, o
venerável Ayras Gomes, que ajoelhado lhe clamava com vozes truncadas
de soluços e lagrimas:
"Senhor! que é vosso irmão!"
"É um covarde traidor, que deve morrer! Irmão!? Mentes, velho!
Elle já não o é!"
Á palavra--mentes!--um relampago de vermelhidão passou pelas
faces cavadas do antigo cavalleiro: abaixou os olhos, e correu-os
pela espada. Fôra esta a primeira vez que ella ficára na bainha
depois de tão funda affronta. Mas aquelle era o momento dos grandes
sacrificios. Ayras Gomes replicou, alimpando as lagrymas:
"Nunca vos menti, senhor, nem quando ereis na puericia, nem depois
que sois meu rei. Sabei-lo. Criminoso ou innocente, D. Diniz é
filho de meu bom senhor D. Pedro. A vosso pae servi com lealdade;
por vós já me andou arriscada a vida. Hoje tendes por defensores
todos os cavalleiros de Portugal: elle é que não tem um só. Senhor
rei, ficae certo de que para assassinar vosso irmão vos é mister
passar por cima do cadaver de vosso segundo pae."
Atalhado assim o primeiro impeto, o caracter do moço monarcha
revelou-se inteiro neste momento. Commoveu-o a postura do venerando
ancião, que pela primeira vez via a seus pés; e com a irresolução
pintada nos olhos fitou-os em Leonor Telles.
Por uma reflexão instantânea a hyena previra que o sangue derramado
pelo fratricida não cahiria sómente sobre a cabeça deste, mas
também sobre a della. Naquelle rosto, então semelhante ao de
uma estatua, D. Fernando não pôde ler a sentença do infante, bem
que lá no fundo do coração ella estivesse escripta com sangue.
Entretanto os cortezãos, que no furor rompente d'elrei haviam
ficado estupefactos e quedos, vendo-o vacillar, rodearam o infante.
O velho Gil Vasques de Resende, que ia interpor-se também entre
D. Diniz e elrei, quando este arrancára o punhal, parára ao ver
a heróica resolução do alferes-mór; mas ao hesitar de D. Fernando
corrêra a abraçar-se com o seu pupillo, que, no meio de tantos
animos agitados por paixões diversas, era quem unicamente parecia
tranquillo e alheio ao terror que se pintava em todos os semblantes.
Finalmente elrei metteu vagarosamente o punhal no cincto, e com
voz pausada, mas trémula e presa, disse:
"Que esse malaventurado sáia d'ante mim."
O tom com que estas poucas palavras foram proferidas fez vergar
o animo de D. Diniz, cujo coração antes d'isso parecêra de bronze.
Os olhos arrasaram-se-lhe de agua. Sentira que até então era
uma cólera cega, repentina, insensata, que o ameaçava: agora,
porém, no modo e na expressão de D. Fernando vira claramente
que era um amor de irmão que expirára.
Com a cabeça pendida em cima do hombro de Gil Vasques de Resende
saiu do aposento.
Era talvez o velho o unico amigo que lhe restava no mundo.
D. Leonor levou ambas as mãos ao rosto, e via-se-lhe arquejar
o collo formoso por mal contido suspiro.
"Coração compadecido e generoso!--pensou lá comsigo o alferes-mór,
que havia pouco a tractára pela primeira vez.
"Hora maldicta e negra, em que perdi metade de minha tão esperada
vingança!--pensava Leonor Telles, e o chôro rebentou-lhe com
violencia.
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