Lendas e Narrativas (Tomo I) - 02

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Vens prophetisar-me a morte do que partir. Não é isto? Fakih,
creio em ti, que és acceito ao Senhor; mas ainda creio mais na
estrella dos Beni-Umeyyas. Se eu amasse um mais do que outro
não hesitaria na escolha: fôra esse que eu mandára, não á morte,
mas ao triumpho. Se, porém, essas são as tuas previsões, e ellas
tem de realisar-se, Deus é grande! Que melhor leito de morte
posso eu desejar a meus filhos do que um campo de batalha em
al-djihed[3] contra os infiéis?"
Al-gafir escutou Abdu-r-rahman sem o menor signal d'impaciencia.
Quando elle acabou de falar repetiu tranquillamente a pergunta:
"Kalifa, qual amas tu mais dos teus dous filhos?"
"Quando a imagem pura e sancta do meu bom Al-hakem se me representa
no espirito, amo mais Al-hakem: quando com os olhos da alma vejo
o nobre e altivo gesto, a fronte vasta e intelligente do meu
Abdallah, amo-o mais a elle. Como te posso eu, pois, responder,
fakih?"
"E todavia é necessário que escolhas, hoje mesmo, neste momento,
entre um e outro. Um delles deve morrer na próxima noite,
obscuramente, nestes paços, aqui mesmo talvez, sem gloria, debaixo
do cutello do algoz, ou do punhal do assassino."
Abdu-r-rahman recuára ao ouvir estas palavras: o suor começou
a descer-lhe em bagas da fronte. Bem que tivesse mostrado uma
firmeza fingida, sentíra apertar-se-lhe o coração desde que o
fakih começára a falar. A reputação d'illuminado de que gosava
Al-muulin, o caracter supersticioso do kalifa, e mais que tudo o
haverem-se verificado todas as negras prophecias que n'um longo
decurso de annos elle lhe fizera, tudo contribuia para atterrar
o principe dos crentes. Com voz trémula replicou:
"Deus é grande e justo. Que lhe fiz eu para me condemnar no fim
da vida a perpetua afflicção, a ver correr o sangue de meus filhos
queridos ás mãos da deshonra ou da perfidia?"
"Deus é grande e justo,--interrompeu o fakih.--Acaso nunca fizeste
correr injustamente o sangue? Nunca por odio brutal despedaçaste
de dôr nenhum coração de pae, de irmão, de amigo?"
Al-muulin tinha carregado na palavra irmão com um accento singular.
Abdu-r-rahman, possuido de mal refreiado susto, não attentou por
isso.
"Posso eu acreditar uma tão estranha, direi antes tão incrivel
prophecía--exclamou elle por fim--sem que me expliques o modo
por que se deve realisar esse terrivel successo; e como ha-de o
ferro do assassino ou do algoz vir dentro dos muros de Azzahrat
verter o sangue de um dos filhos do kalifa de Korthoba, cujo nome,
seja-me licito dize-lo, é o terror dos christãos, e a gloria do
islamismo?"
Al-muulin tomou um ar imperioso e solemne, estendeu a mão para
o throno, e disse:
"Assenta-te, kalifa, no teu throno, e escuta-me, porque em nome
da futura sorte do Andalus, da paz e da prosperidade do imperio,
e das vidas e do repouso dos mussulmanos eu venho denunciar-te um
grande crime. Que punas, que perdoes, esse crime tem de custar-te
um filho. Successor do propheta, iman[4] da divina religião do
Koran, escuta-me, porque é obrigação tua ouvir-me."
O tom inspirado com que Al-muulin falava, a hora de alta noite, o
negro mysterio que encerravam as palavras do fakih tinham subjugado
a alma profundamente religiosa de Abdu-r-rahman. Machinalmenlte
subiu ao throno, encruzou-se em cima da pilha de coxins em que
elle rematava, e encostando ao punho o rosto demudado, disse
com voz presa:--"Pódes falar, Suleyman-ibn-Abd-al-gafir!"
Tomando então uma postura humilde, e cruzando os braços sobre
o peito, Al-gafir o triste começou da seguinte maneira a sua
narrativa.
[1] Principe dos crentes, titulo correspondente ao de
kalifa.
[2] Historico
[3] Guerra-sancta
[4] Pontifice. Os kalifas reuniam em si o summo imperio,
e o summo pontificado.

III

"Kalifa!--começou Al-muulin--tu és grande; tu és poderoso. Não
sabes o que é a affronta ou a injustiça cruel que esmaga o coração
nobre e energico, se este não póde repelli-la, e sem demora, com
o mal ou com a affronta, vinga-la á luz do sol! Tu não sabes o
que então se passa na alma desse homem, que por todo o desaggravo
deixa fugir alguma lagryma furtiva, e até, ás vezes, é obrigado
a beijar a mão que o feriu nos seus mais sanctos affectos. Não
sabes o que isto é; porque todos os teus inimigos tem cahido
diante do alfange do almogaure, ou deixado tombar a cabeça de
cima do cêpo do algoz. Ignoras por isso o que é o odio; o que
são essas solidões tenebrosas, por onde o resentimento, que não
póde vir ao gesto, se dilata e vive á espera do dia da vingança.
Dir-to-hei eu. Nessa noite immensa, em que se involve o coração
chagado, ha uma luz sanguinolenta que vem do inferno, e que allumia
o espirito vagabundo. Ha ahi terriveis sonhos, em que o mais
rude e ignorante descobre sempre um meio de desaggravo. Imagina
como será facil aos altos entendimentos o encontra-lo! É por
isso que a vingança, que parecia morta e esquecida, apparece ás
vezes inesperada, tremenda, irresistivel, e morde-nos surgindo
debaixo dos pés como a vibora, ou despedaça-nos como o leão pulando
d'entre os juncaes. Que lhe importa a ella a magestade do throno,
a sanctidade do templo, a paz domestica, o ouro do rico, o ferro
do guerreiro? Mediu as distancias, calculou as difficuldades,
meditou no silencio, e riu-se de tudo isso!"
E Al-gafir o triste desatou a rir ferozmente, Abdu-r-rahman olhava
para elle espantado.
"Mas--proseguiu o fakih--ás vezes Deus suscita um dos seus servos,
um dos seus servos de animo tenaz e forte, possuido tambem de
alguma idéa occulta e profunda, que se alevante, e rompa a trama
urdida nas trévas. Este homem no caso presente sou eu. Para bem?
Para mal?--Não sei; mas sou! Sou eu que, venho revelar-te como se
prepara a ruina do teu throno, e a destruição da tua dynastia."
"A ruina do meu throno?--gritou Abdur-r-rahman pondo-se em pé e
levando a mão ao punho da espada.--Quem, a não ser algum louco,
imagina que o throno dos Beni-Umeyyas póde, não digo desconjunctar-se,
mas apenas vacilar debaixo dos pés de Abdu-r-rahman? Quando, porém,
falarás enfim claro, Al-muulin?"
E a colera e o despeito faiscavam-lhe nos olhos. Com a sua habitual
impassibilidade o fakih proseguiu:
"Esqueces-te, kalifa, da tua reputação de prudencia e longanimidade.
Pelo propheta! Deixa divagar um velho tonto como eu ... Não!...
Tens razão ... Basta! O raio que fulmina o cedro desce rapido do
céu. Quero ser como elle ... Amanhan a estas horas o teu filho
Abdallah ter-te-ha já privado da corôa para a cingir na propria
fronte, e o teu successor Al-hakem terá perecido sob um punhal
d'assassino. Ainda te encolerisas? Foi acaso demasiado extensa
a minha narrativa?"
"Infame!--exclamou Abdu-r-rahman--Hypocrita, que me tens enganado!
Tu ousas calumniar o meu Abdallah? Sangue! Sangue ha-de correr,
mas é o teu. Crias que com essas visagens d'inspirado, com esses
trajos de penitencia, com essa linguagem dos sanctos poderias
quebrar a affeição mais pura, a de um pae? Enganas-te, Al-gafir!
A minha reputação de prudente, verás que era bem merecida."
Dizendo isto o kalifa ergueu as mãos como quem ia a bater as
palmas. Al-muulin interrompeu-o rapidamente, mas sem mostrar o
menor indicio de perturbação ou terror.
"Não chames ainda os eunuchos; porque assim é que dás provas
de que não a merecias. Conheces que me seria impossivel fugir.
Para matar ou morrer sempre é tempo. Escuta, pois, o infame, o
hypocrita até o fim. Acreditarias tu na palavra do teu nobre e
altivo Abdallah? Bem sabes que elle é incapaz de mentir a seu
amado pae, a quem deseja longa vida e todas as prosperidades
possiveis."
O fakih desatára de novo n'um rir trémulo e hediondo. Metteu
a mão no peitilho da aljarabia e tirou uma a uma muitas tiras
de pergaminho: pô-las sobre a cabeça e entregou-as ao kalifa,
que começou a lêr com avidez. A pouco e pouco Abdu-r-rahman foi
empallidecendo, as pernas vergaram-lhe, e por fim deixou-se cahir
sobre os coxins do throno, e cobrindo a cara com as mãos,
murmurou:--"Meu Deus! porque te mereci isto!"
Al-muulin fitára nelle um olhar de girifalte, e nos labios
vagueava-lhe um riso sardonico e quasi imperceptivel.
Os pergaminhos eram varias cartas dirigidas por Abdallah aos
rebeldes das fronteiras do oriente, os Beni-Hafsun, e a diversos
cheiks berebéres, dos que se haviam domiciliado na Hespanha,
conhecidos pelo seu pouco affecto aos Beni-Umeyyas. O mais
importante, porém, de tudo era uma extensa correspondencia com
Umeyya-ibn-Ishak, guerreiro celebre e antigo alcaide de Santarem,
que por graves offensas passára ao serviço dos christãos de Oviedo
e Asturias com muitos cavalleiros illustres da sua clientela.
Esta correspondencia era completa de parte a parte. Por ella se
via que Abdallah contava não só com os recursos dos mussulmanos
seus parciaes, mas tambem com importantes soccorros dos infiéis
por intervenção de Umeyya. A revolução devia rebentar em Cordova
pela morte de Al-hakem e pela deposição de Abdu-r-rahman. Uma parte
da guarda do alcaçar de Azzahrat estava comprada. Al-barr, que
figurava muito nestas cartas, seria o hadjeb ou primeiro ministro
do novo kalifa. Alli se liam, emfim, os nomes dos principaes
personagens implicados na revolta, e todas as circumstancias
desta eram explicadas ao antigo alcaide de Santarém com aquella
individuação que nas suas cartas elle constantemente exigia.
Al-muulin falára verdade: Abdu-r-rahman via despregar diante de
si a longa teia da conspiração, escripta com letras de sangue
pela mão de seu proprio filho.
Durante algum tempo o kalifa conservou-se como a estatua da dôr
na postura que tomára. O fakih olhava fito para elle com uma
especie de cruel complacencia. Al-muulin foi o primeiro que rompeu
o silencio: o principe Beni-Umeyya, esse parecia ter perdido o
sentimento da vida.
"É tarde:--disse o fakih.--Chegará em breve a manhan. Chama os
eunuchos. Ao romper do sol a minha cabeça pregada nas portas
de Azzahrat deve dar testemunho da promptidão da tua justiça.
Elevei ao throno de Deus a ultima oração, e estou apparelhado
para morrer, eu o hypocrita, eu o infame, que pretendia lançar
sementes de odio entre ti e teu virtuoso filho. Kalifa, quando
a justiça espera não são boas horas para meditar ou dormir."
Al-gafir retomava a sua habitual linguagem sempre ironica e
insolente, e ao redor dos labios vagueava-lhe de novo o riso mal
reprimido.
A voz do fakih despertou Abdu-r-rahman das suas tenebrosas
cogitações. Poz-se em pé. As lagrymas haviam corrido por aquellas
faces, mas estavam enxutas. A procella de paixões encontradas
tumultuava lá dentro; mas o gesto do principe dos crentes recobrára
apparente serenidade. Descendo do throno pegou na mão mirrada
de Al-muulin, e apertando-a entre as suas, disse:
"Homem que guias teus passos pelo caminho do céu; homem acceito
ao propheta, perdoa as injurias de um insensato! Cria ser superior
á fraqueza humana. Enganava-me! Foi um momento que passou. Possas
tu esquece-lo! Agora estou tranquillo ... bem tranquillo ...
Abdallah, o traidor que era meu filho, não concebeu tão atroz
designio. Alguém lh'o inspirou: alguem verteu naquelle animo
soberbo as vans e criminosas esperanças de subir ao throno por
cima do meu cadaver e do de Al-hakem. Não desejo sabe-lo para
o absolver; porque elle já não póde evitar o destino fatal que
o aguarda. Morrerá; que antes de ser pae fui kalifa, e Deus
confiou-me no Andalus a espada da suprema justiça. Morrerá; mas
hão-de acompanha-lo todos os que o precipitaram no abysmo."
"Ainda ha pouco te disse--replicou Al-gafir--o que pôde inventar o
ódio que é obrigado a esconder-se debaixo do manto da indifferença,
e até da submissão. Al-barr, o orgulhoso Al-barr, que tu offendeste
no seu amor proprio de poeta, e que expulsaste de Azzahrat como um
homem sem engenho nem saber, quiz provar-te que ao menos possuia o
talento de conspirador. Foi elle que preparou este terrivel successo.
Has-de confessar que se houve com destreza. Só n'uma cousa não:
em pretender associar-me aos seus designios. Associar-me? ...
não digo bem ... fazer-me seu instrumento ... A mim! ... Queria
que eu te apontasse ao povo como um impio pelas tuas allianças
com os amires infiéis do Frandjat. Fingi estar por tudo; e chegou
a confiar plenamente na minha lealdade. Tomei a meu cargo as
mensagens aos rebeldes do oriente e a Umeyya-ibn-Ishak, o alliado
dos christãos, o antigo kaid de Chantaryin. Foi assim que pude
colligir estas provas de conspiração. Loucos! as suas esperanças
eram a miragem do deserto... Dos seus alliados apenas os de Zarkosta
e das montanhas de Al-kibla não foram um sonho. As cartas de
Umeyya, as promessas do amir nazareno de Djalikia[1], tudo era
feito por mim. Como eu enganei Al-barr, que bem conhece a letra
de Umeyya, esse é um segredo que depois de tantas revelações, tu
deixarás, kalifa, que eu guarde para mim ... Oh, os insensatos!
os insensatos!"
E desatou a rir.
A noite tinha-se aproximado do seu fim. A revolução, que ameaçava
trazer á Hespanha mussulmana todos os horrores da guerra civil,
devia rebentar dentro de poucas horas, talvez. Era necessário
afoga-la em sangue. O longo habito de reinar, juncto ao caracter
energico de Abdu-r-rahman, fazia com que nestas crises elle
desenvolvesse de um modo admiravel todos os recursos que o genio
amestrado pela experiencia lhe suggeria. Recalcando no fundo do
coração a cruel lembrança de que era um filho que ia sacrificar
á paz e á segurança do império, o kalifa despediu Al-muulin, e
mandando immediatamente reunir o divan deu largas instrucções
ao chefe da guarda dos slavos. Ao romper da manhan todos os
conspiradores que residiam em Cordova estavam presos, e muitos
mensageiros tinham partido levando as ordens de Ahdu-r-rahman
aos walis das provincias e aos generaes das fronteiras. Apesar
das lagrymas e rogos do generoso Al-hakem, que luctou tenazmente
por salvar a vida de seu irmão, o kalifa mostrou-se inflexivel.
A cabeça de Abdallah cahiu aos pés do algoz na propria camara do
principe no palacio Merwan. Al-barr, suicidando-se na masmorra
em que o tinham lançado, evitou assim o supplicio.
O dia immediato á noite em que se passou a scena entre Abdu-r-rahman
e Al-gafir, que tentamos descrever, foi um dia de sangue para
Cordova, e de lucto para muitas das mais illustres famílias.
[1] Os árabes designavam os reis de Oviedo e Leão pelo
titulo de reis de Galliza.

IV

Era pelo fim da tarde. N'uma alcova do palacio de Azzahrat via-se
reclinado um velho sobre as almofadas persas de um vasto almatrah,
ou camilha. Os seus ricos trajos, orlados de pelles alvissimas,
faziam sobre-saír as feições enrugadas, a pallidez do rosto, o
encovado dos olhos, que lhe davam ao gesto todas as características
do de um cadaver. Pela immobilidade dir-se-hia que era uma destas
mumias que se encontram pelas catacumbas do Egypto, apertadas
entre as cem voltas das suas faixas mortuarias, e inteiriçadas
dentro dos sarcophagos de pedra. Um unico signal revelava a vida
néssa grande ruina de um homem grande; era o movimento da barba
longa e ponteaguda que se lhe estendia como um cone de neve tombado
sobre o peitilho da tunica de precioso tiraz. Abdu-r-rahman, o
illustre kalifa dos mussulmanos do occidente, jazia ahi e falava
com outro velho, que, em pé defronte delle, o escutava attentamente;
mas a sua voz saia tão fraca e lenta, que, apesar do silencio
que reinava no aposento, só na curta distancia a que estava o
outro velho se poderiam perceber as palavras do kalifa.
O seu interlocutor é uma personagem que o leitor conhecerá apenas
reparar no modo por que está trajado. A sua vestidura é uma aljarabia
de burel cingida de uma corda de esparto. Ha muitos annos que
nisto cifrou todos os commodos que acceita á civilisação. Está
descalço, e a grenha hirsuta e já grisalha cahe-lhe sobre os
hombros em madeixas revoltas e emmaranhadas. A sua tez não é
pallida, os seus olhos não perderam o brilho, como a tez e como
os olhos de Abdu-r-rahman. Naquella, coriacea e crestada, domina
a côr mixta de verdenegro e amarello do ventre de um crocodilo;
nestes, cada vez que os volve, fulgura a centelha de paixões
ardentes, que lhe sussurram dentro d'alma como a lava prestes a
jorrar do volcão que ainda parece dormir. É Al-muulin, o sancto
fakih, que vimos salvar, onze annos antes, o kalifa e o imperio
da intentada revolução de Abdallah.
Tinham de feito passado onze annos desde os terriveis successos
acontecidos naquella noite em que Al-muulin descobríra a conspiração
que se urdia, e desde então nunca mais se víra Abdu-r-rahman
sorrir. O sangue de tantos mussulmanos vertido pelo ferro do
algoz, e sobretudo o sangue de seu proprio filho descêra como
a maldicção do propheta sobre a cabeça do principe dos crentes.
Entregue a melancholia profunda, nem as novas de victorias, nem
a certeza do estado florescente imperio o podiam distrahir della
senão momentaneamente. Encerrado durante os ultimos tempos da
vida no palacio de Azzahrat, a maravilha d'Hespanha, abandonára
os cuidados do governo ao seu successor Al-hakem. Os gracejos da
escrava Nuirat-eddia, a conversação instructiva da bella Ayecha,
e as poesias de Mozna e de Sofyia eram o unico allivio que adoçava
a existencia aborrida do velho leão do islamismo. Mas apenas
Al-gafir o triste se apresentava perante o kalifa, elle fazia
retirar todos, e ficava encerrado horas e horas com este homem,
tão temido quanto venerado do povo pela austeridade das suas
doutrinas, prégadas com a palavra, mas ainda mais com o exemplo.
Abdu-r-rahman parecia inteiramente dominado pelo rude fakih, e,
ao vê-lo, qualquer poderia ler no gesto do velho principe os
sentimentos oppostos do terror e do affecto, como se metade da
sua alma o arrastasse irresistivelmente para aquelle homem, e a
outra metade o repellisse com repugnancia invencivel. O mysterio
que havia entre ambos ninguem o podia entender.
E todavia a explicação era bem simples: estava no caracter
extremamente religioso do kalifa, na sua velhice e no seu passado
de principe absoluto, situação em que são faceis grandes virtudes
e grandes crimes. Habituado á lisonja, a linguagem aspera e
altivamente sincera de Al-muulin tivera a principio o attractivo de
ser para elle inaudita; depois a reputação de virtude de Al-gafir,
a crença de que era um propheta, a maneira por que, para o salvar
e ao imperio, arrostára com a sua colera, e provára desprezar
completamente a vida, tudo isto fizera com que Abdu-r-rahman
visse nelle, como o mais credulo dos seus subditos, um bomem
predestinado, um verdadeiro sancto. Sentindo avizinhar a morte,
Abdu-r-rahman tinha sempre diante dos olhos que esse fakih era
como o anjo que devia conduzi-lo pelos caminhos da salvação até o
throno de Deus. Cifrava-se nelle a esperança de um futuro incerto,
que não podia tardar, e assim o espirito do monarcha, enfraquecido
pelos annos, estudava anciosamente a minima palavra, o menor gesto
de Al-muulin; prendia-se ao monge mussulmano como a hera antiga ao
carvalho, em cujo tronco se alimenta, se ampara, e vae trepando
para o ceu. Mas, ás vezes, Al-gafir repugnava-lhe. No meio das
expansões mais sinceras, dos mais ardentes vôos de uma piedade
profunda, de uma confiança inteira na misericordia divina, o Fakih
fitava de repente nelle os olhos scintilantes, e com sorriso
diabolico vibrava uma phrase ironica, insolente e desanimadora,
que ía gelar no coração do kalifa as consolações da piedade, e
despertar remorsos e terrores, ou completa desesperação. Era um
jogo terrivel em que se deleitava Al-muulin, como o tigre com o
palpitar dos membros da rez que se lhe agita moribunda entre as
garras sanguentas. Nessa lucta infernal em que lhe trazia a alma
estava o segredo da attracçâo e repugnancia, que ao mesmo tempo o
velho monarcha mostrava para com o fakih, cujo apparecimento em
Azzahrat cada vez se tornava mais frequente, e agora se renovava
todos os dias.
A noite descia triste: as nuvens corriam rapidamente do lado do
oeste, e deixavam de quando em quando passar um raio afogueado
do sol que se punha. O vento tepido, humido e violento fazia
ramalhar as arvores dos jardins que circumdavam os aposentos de
Abdu-r-rahman. As folhas, retinctas já de um verde amarellado
e mortal, desprendiam-se das tranças das romeiras, dos sarmentos
das videiras e dos ramos dos choupos em que estas se enredavam,
e, remoinhando nas correntes da ventania, íam, íam, até rastejar
pelo chão e empeçar na grama sêcca dos prados. O kalifa, exhausto,
sentia aquelle ciclo da vegetação moribunda chama-lo tambem para
a terra, e a melancholia da morte pesava-lhe sobre o espirito.
Al-muulin durante a conversação daquella tarde havia-se mostrado,
contra o seu costume, severamente grave, e nas suas palavras
havia o que quer que era accorde com a tristeza que o rodeava.
"Conheço que se aproxima a hora fatal:--dizia o kalifa.--Nestas
veias em breve se gelará o sangue; mas, sancto fakih, não me será
licito confiar na misericordia de Deus? Derramei o bem entre
os mussulmanos, o mal entre os infiéis: fiz emmudecer o livro
de Jesus perante o de Mohammed; e deixo a meu filho um throno
firmado no amor dos subditos e na veneração e temor dos inimigos
da dynastia dos Beni-Umeyyas. Fiz quanto a um homem era dado fazer
pela gloria do Islam. Que mais pretendes?--Porque não tens nos
labios para o pobre moribundo senão palavras de terror?--Porque ha
tantos annos me fazes beber gole a gole a taça da desesperação?"
Os olhos do fakih, ao ouvir estas perguntas, brilharam com desusado
fulgor, e um daquelles sorrisos diabolicos, com que costumava
fazer gelar todas as ardentes idéas mysticas do principe, lhe
assomou ao rosto enrugado e carrancudo. Contemplou por um momento
o do velho monarcha, onde de feito já vagueavam as sombras da
morte: depois dirigiu-se á porta da camara, assegurou-se bem
de que não era possivel abrirem-na exteriormente, e voltando
para ao pé do almatrah, tirou do peitilho um rôlo de pergaminho,
e começou a ler em tom de indizivel escarneo:
"Resposta de Al-gafir o triste ás ultimas perguntas do poderoso
Abdu-r-rahman, oitavo kalifa de Cordova, o sempre vencedor,
justiceiro e bemaventurado entre todos os principes da raça dos
Beni-Umeyyas. Capitulo avulso da sua historia."
Um rir prolongado seguiu a leitura do titulo do manuscripto.
Al-muulin continuou:
"No tempo deste celebre, virtuoso, illustrado e justiceiro monarcha
havia no seu diwan um wasir, homem sincero, zeloso da lei do
propheta, e que não sabia torcer por humanos respeitos a voz
da sua consciencia. Chamava-se Mohammed-Ibn-Ishak, e era irmão
de Umeyya-Ibn-Ishak, kaid de Chantaryn, um dos guerreiros mais
illustres do Islam, segundo diziam."
"Ora esse wasir cahiu no desagrado do Abdu-r-rahman, porque lhe
falava verdade, e rebatia as adulações dos seus lisongeiros.
Como o kalifa era generoso, o desagrado para com Mohammed
converteu-se em odio; e como era justo, o odio breve se traduziu
n'uma sentença de morte. A cabeça do ministro cahiu no cadafalso,
e a sua memoria passou á posteridade manchada pela calumnia.
Todavia o principe dos fiéis sabia bem que tinha assassinado um
innocente."
As feições transtornadas de Abdu-r-rahman tomaram uma expressão
horrivel de angustia: quiz falar, mas apenas pôde fazer um signal
como que pedindo ao fakih que se calasse. Este proseguiu:
"Parece-me que o ouvir a leitura dos annaes do teu illustre reinado
te allivia e revoca á vida. Continuarei. Podesse eu prolongar
assim os teus dias, clementissimo kalifa!"
"Umeyya, quando soube da morte ignominiosa de seu querido irmão,
ficou como insensato. Á saudade ajunctava-se o horror do ferrete
posto sobre o nome, sempre immaculado, da sua familia. Dirigiu
as supplicas mais vehementes ao príncipe dos fiéis para que ao
menos rehabilitasse a memoria da pobre victima; mas soube-se
que ao ler a sua carta o virtuoso principe desatara a rir...!
Era, conforme lhe relatou o mensageiro, deste modo que elle ria."
E Al-muulin aproximou-se de Abdu-r-rahman, e soltou uma gargalhada.
O moribundo arrancou um gemido.
"Estás um pouco melhor ... não é verdade, invencivel kalifa?
Prosigamos. Umeyya quando tal soube, calou-se. O mesmo mensageiro
que chegara de Korthoba partiu para Oviedo. O rei cristão de
Al-djuf não se riu da sua mensagem. Dahi o pouco Radmiro tinha
passado o Douro, e as fortalezas e cidades mussulmanas até o
Tejo haviam aberto as portas ao rei franco, por ordem do kaid
de Chantaryn. Com um numeroso esquadrão de amigos leaes este
ajudou a devastar o territorio mussulmano do Gharb até Merida.
Foi uma esplendida festa; um sacrifício digno da memoria de seu
irmão. Seguiram-se muitas batalhas, em que o sangue humano correu
em torrentes."
"Pouco a pouco Umeyya começou a rellectir. Era Abdu-r-rahman quem
o offendêra. Para que tanto sangue vertido? A sua vingança fôra
a de uma besta-féra; fôra estúpida e van. Ao kalifa, quasi sempre
victorioso, que importavam os que por elle pereciam? O kaid de
Chantaryn mudou então de systema. A guerra publica e inutil
converteu-a em perseguição occulta e efficaz: á forca oppoz a
destreza. Fingiu abandonar os seus alliados e sumiu-se nas trevas.
Esqueceram-se delle. Quando tornou a apparecer á luz do dia ninguém
o conheceu. Era outro. Vestia um burel grosseiro; cingia uma corda
de esparto; os cabellos cahiam-lhe desordenados sobre os hombros
e velavam-lhe metade do rosto: as faces tinha-lh'as tisnado o
sol dos desertos. Corrêra o Andaluz e o Moghreb; espalhara por
toda a parte os thesouros da sua família e os próprios thesouros
até o ultimo dirhem, e em toda a parte deixara agentes e amigos
fiéis. Depois veio viver nos cemiterios de Korthoba, juncto dos
porticos soberbos do seu inimigo mortal; espiar todos os momentos
em que podesse offerecer-lhe a amargura, as angustias em troca
do sangue de Mohammed-Ibn-Isbak. O guerreiro chamou-se desde
esse tempo Al-gafir, e o povo denominava-o Al-muulin, o sancto
fakih..."
Como sacudido por uma corrente electrica, Abdu-r-rahman dera
um pulo no almatrah ao ouvir estas ultimas palavras, e ficára
sentado, hirto e com as mãos estendidas. Queria bradar, mas o
sangue escumou-lhe nos labios, e só pôde murmurar já quasi
inintelligivelmente:
"Maldicto!"
"Boa cousa é a historia,--proseguiu o seu algoz sem mudar de
postura--quando nos recordâmos do nosso passado, e não achâmos lá
para colher um único espinho de remorso! É o teu caso, virtuoso
principe! Mas sigamos ávante. O sancto fakih Al-muulin foi quem
instigou Al-barr a conspirar contra Abdu-r-rahman; quem perdeu
Abdallah; quem delatou a conspiração; quem se apoderou do teu
animo credulo; quem te puniu com os terrores de tantos annos;
quem te acompanha no trance derradeiro, para te lembrar juncto ás
portas do inferno que se foste o assassino de seu irmão, tambem
o foste do proprio filho; para te dizer que se cobriste o seu
nome de ignominia, tambem ao teu se ajunctará o de tyranno. Ouve
pela ultima vez o rir que responde ao teu riso de ha dez annos.
Ouve, ouve, kalifa!"
Al-gafir, ou antes Umeyya, levantára gradualmente a voz, e estendia
os punhos cerrados para Abdu-r-rahman, cravando nelle os olhos
reluzentes e desvairados. O velho monarcha tinha os seus abertos,
e parecia tambem olhar para elle, mas perfeitamente tranquillo.
A quem houvesse presenciado aquella tremenda scena não seria
facil dizer qual dos dous tinha mais horrendo gesto.
Era um cadaver o que estava diante de Umeyya: o que estava diante
do cadaver era a expressão mais energica da atrocidade de coração
vingativo.
"Oh, se não ouviria as minhas derradeiras palavras!..."--murmurou
o fakih depois de ter conhecido que o kalifa estava morto. Poz-se
depois a scismar largo espaço: as lagrymas rolavam-lhe a quatro
e quatro pelas faces rugosas.--"Um anno mais de tormentos, e
ficava satisfeito!--exclamou por fim.--Podéra eu dilatar-lhe a
vida!"
Dirigiu-se então para a porta, abriu-a de par em par e bateu as
palmas. Os eunuchos, as mulheres, e o proprio Al-hakem, inquieto
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