Lendas e Narrativas (Tomo I) - 03

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pelo estado de seu pae, precipitaram-se no aposento. Al-muulin
parou no limiar da porta, voltou-se para traz, e com voz lenta
e grave disse:
"Orae ao propheta pelo repouso do kalifa."
Houve quem o visse saír, quem á luz baça do crepusculo o visse
tomar para o lado de Cordova com passos vagarosos, apesar das
lufadas violentas do oeste, que annunciavam uma noite procellosa.
Mas nem em Cordova, nem em Azzahrat, ninguém mais o viu desde
aquelle dia.


ARRHAS POR FORO D'HESPANHA (1371-2)


A Arraya-Miuda

O sino das ave-marias, ou da oração, tinha dado na torre da sé
a ultima badalada, e pelas frestas e portas dessa multidão de
casas, que apinhadas á roda do castello, e como enfeixadas e
comprimidas pela apertada cincta das muralhas primitivas de Lisboa,
pareciam mal caberem nellas, viam-se fulgurar aqui e acolá as
luzes interiores, emquanto as ruas, tortuosas e immundas, jaziam
como baralhadas e confusas sob o manto das trevas. Era chegada a
hora dos terrores; porque durante a noite, naquelles bons tempos,
a estreita senda de bosque deserto não era mais triste, temerosa
e arriscada que a propria rua-nova, a mais opulenta e formosa da
capital. O que, porém, havia ahi desacostumado e estranho era o
completo silencio e a escuridão profunda em que jazia sepultado o
paço d'apar S. Martinho, onde então residia elrei D. Fernando, ao
mesmo tempo que pelos becos e encruzilhadas soava um tropear de
passadas, um sussurro de vozes vagas, que indicavam terem sido
agitadas as ondas populares pelo vento de Deus, e que ainda esse
mar revolto não tinha inteiramente cahido na calma e somnolencia
que vem após a procella.
E assim era, com effeito, como o leitor poderá averiguar por
seus proprios olhos e ouvidos, se, manso, manso e disfarçado,
quizer entrar comnosco na mui affamada e antiga taberna do velho
Folco Taca, que nos fica bem perto, logo ao sair da sé, na rua
que sobe para os paços da alcaçova, sete ou oito portas acima
dos paços do concelho.
A taberna de micer Folco Taca, genovez, que viera a Portugal
ainda impubere, como pagem d'armas do famoso almirante Lançarote
Peçanha, e que havia annos abandonára o serviço maritimo para se
dar á mercancia, era a mais celebre entre todas as de Lisboa,
não só pelo luxo do seu adereço, e bondade dos liquidos encerrados
nas cubas monumentaes que a pejavam, mas tambem porque em um
aposento mais retirado e interior uma vasta banca de pinho e
muitos assentos rasos, ou escabellos, offereciam todo o commodo
aos tavolageiros de profissão, para perderem ou ganharem ahi,
em noites de jogo infrene, os bellos alfonsins e maravedis de
ouro, ou as estimadas dobras de D. Pedro I, que, ao contrario
dos seus antecessores e successores, julgára ser mais rico e
poderoso fazendo cunhar moeda de bom toque e peso, do que
roubando-lhe o valor intrinseco, e augmentando-lhe o nominal,
segundo o costume de todos os reis no começo de seu reinar.
Micer Folco soubera estender grossas nevoas sobre os olhos do
corregedor da côrte e de todos os saiões, algozes e mais familia
da nobre raça dos alguazis sobre a illegalidade de semelhante
estabelecimento industrial. O elixir que elle empregára para
produzir essa maravilhosa cegueira não sabemos nós qual fosse;
mas é certo que não se perdeu com a alchimia, porque se vê que
elle existe em mãos abençoadas, produzindo ainda hoje repetidos
milagres em tudo analogos a este.
Era, pois, na taberna-tavolagem da porta do ferro, conhecida
vulgarmente por tal nome em consequencia da vizinhança desta porta
da antiga cêrca, onde os ruídos vagos e incertos, que sussurravam
pelas ruas da cidade, soavam mais alta e distinctamente, como
em sorvedouro marinho as ondas, remoinhando e precipitando-se,
estrepitam no centro da voragem com mais soturno e retumbante
fragor. A vasta quadra da taberna estava apinhada de gente, que
trasbordava até o breve terreirinho da sé, falando todos a um
tempo, accesos, ao que parecia, em violentas disputas, que ás
vezem eram interrompidas pelo mais alto brado das pragas e
blasphemias, indicio evidente de que o successo que motivava
aquella assuada ou tumulto era negocio que excitava vivamente
a colera popular.
Já no fim do seculo decimo-quarto era o povo, assim como boje,
colerico. Então coleras da puericia; hoje aborrimentos de velhice.
Se na rua o borborinho era tempestuoso e confuso, dentro da casa
de micer Folco a bulha podia chamar-se infernal. Para um dos
lados, no meio de uma espessa mó de populares, ouviam-se palavras
ameaçadoras, sem que fosse possivel perceber contra qual ou quaes
individuos se accumulava tanta sanha. Para outra parte, d'entre o
vozear de uma cerrada pinha de mulheres, cuja vida de perdição se
revelava nos seus coromens de panno d'Arrás, nos cinctos escuros,
nas camisas e véus desadornados e lisos, rompiam risadas discordes
e esganiçadas, em que se sentia profundamente impresso o descaro
e insolencia daquellas desgraçadas. Em cima dos bofetes viam-se
picheis e taças vazias, e debaixo de alguns delles corpos estirados,
que simulariam cadaveres, se os assovios e roncos que ás vezes
sobresaíam através do ruído daquelle respeitavel congresso, não
provassem que esses honrados cidadãos, suavemente embalados pelos
vapores do vinho e do enthusiasmo, tinham adormecido na paz d'uma
boa consciencia. Emfim, a composta e illustre taberna do antigo
companheiro de gloria de micer Lançarote estava visivelmente
prostituida e livelada com as mais immundas e vis baiúcas de
Lisboa. O gigante popular tinha ahi assentado a sua curia feroz, e
pela primeira vez o vicio e a corrupção tinham transposto aquelles
umbraes sem a sua mascara de modestia e gravidade. Sobre os farrapos
do povo não têem cabida os adornos de ouropel. É a unica differença
moral que ha entre elle e as classes superiores, que se crêem
melhores, porque no gymnasio da civilisação aprendem desde a
infancia as destrezas e os momos de compostura hypocrita.
O astro que parecia alumiar com sua luz, aquecer com seu calor
aquelle turbilhão de planetas; o centro moral, á roda do qual
giravam todos aquelles espiritos, era um homem que dava mostras
de ter bem quarenta annos, alto, magro, trigueiro, olhos encovados
e scintilantes, cabello negro e revolto, barba grisalha e espessa.
Encostado a um dos muitos bofetes que adornavam o amplo aposento,
e rodeado de uma vasta pinha de populares de ambos os sexos, que
o escutavam em respeitoso silencio, a sua voz grossa e sonora
sobresaía no ruído, e só se confundia com alguma jura blasphema
que se disparava do meio das outras pinhas de povo, ou com as
modulações das risadas, que vibravam naquelle ambiente denso e
abafado, de certo modo semelhantes a clarão affogueado que sulcasse
rapidamente as trevas humidas e profundas da crypta subterranea
de alguma igreja do sexto seculo.
De repente dous cavalleiros, cuja graduação se conhecia pelos
barretes de veludo preto adornados de pluma ao lado, pelas calças
de seda golpeadas, e pelos cinctos de pelle de gamo lavrados
de prata, entraram na taberna, e, rompendo por entre o povo,
que lhes alargava a passagem, chegaram ao pé do homem alto e
trigueiro. Traziam os capeirotes puxados para a cara, de modo
que nenhum dos circumstantes pôde conhecer quem eram. Bastantes
desejos passaram por muitos daquelles cerebros vinolentos de o
indagar; mas uma identica reflexão atou todas as mãos. Ao longo
da côxa esquerda dos embuçados via-se reluzir a espada, e no lado
direito, apertado no cincto, que a ponta erguida do capeirote
deixava apparecer, descortinava-se o punhal. O passaporte para
virem assim aforrados era digno de todo o respeito, e ainda que
entre a turba se achassem alguns homens d'armas, principalmente
bésteiros, quasi todos estavam desarmados. Tinha seus riscos,
portanto, o pôr-lhes o visto popular.
Os dous desconhecidos falaram em segredo por alguns minutos ao
homem alto e magro, que de quando em quando meneava a cabeça
fazendo um gesto de assentimento: depois romperam por entre a
turba, que os examinava com uma especie de receio misturado de
respeito, e foram assentar-se em dous dos escabellos enfileirados
ao correr da parede. Encostando os cotovelos em um bofete, com
as cabeças apertadas entre os punbos, ficaram imoveis e como
alheios ao sussurro que começava a alevantar-se de novo á roda
delles.
Este durou breves instantes; um psiuh do homem alto e magro fez
voltar todos os olhos para aquella banda. Subindo a um escabello,
elle deu signal com a mão de que pretendia falar.
"Ouvide! Ouvide!"--bradaram alguns que pareciam os maioraes daquella
multidão desordenada.
Todos os pescoços se alongaram a um tempo, e viram-se muitas
mãos callosas erguerem-se encurvadas, e formarem em volta das
orelhas de seus donos uma especie de annel acustico. O orador
principiou:
"Arraya-miuda[1]! tendes vós já elegido, entre vós outros, cidadãos
bem falantes e avisados para propôr vossos embargos e razoados
contra este maldicto e descommunal casamento d'el-rei com a mulher
de João Lourenço da Cunha?"
"Todos á uma entendemos que deveis ser vós, mestre Fernão Vasques:
--respondeu um velho, cuja calva polida reverberava os raios
d'uma das lampadas pendentes do tecto, e que parecia ser homem de
conta entre os populares.--Quem ha ahi entre a arraya-miuda mais
discreto e aposto para taes autos que vós? Quem com mais urgentes
razões proporia nosso aggravo e a deshonra e vilta d'elrei, do
que vós o fizestes hoje na mostra que démos ao paço esta tarde?"
"Alcacer, alcacer! por nosso capitão Fernão Vasques:--bradou unisona
a chusma.
"Fico-vos obrigado, mestre Bartholomeu Chambão!--replicou Fernão
Vasques, socegado o tumulto.--Pelo razoado de hoje terei em paga
a forca, se a adultera chega a ser rainha: pelo do ámanhan terei
as mãos decepadas em vida, se elrei com suas palavras mansas e
enganosas souber apaziguar o povo. E tendes vós por averiguado,
mestre Bartholomeu, que o carrasco sabe apertar melhor o nó da
corda na garganta, que eu o ponto em peitilho de saio, ou em
costura de redondel ou pelote, e que o cutelo do algoz entra mais
rijo no gasnate de um christão que a vossa enchó n'uma aduela
de pipa?"
"Nanja emquanto na minha aljava houver almazem, e a garrucha
da bésta, me não estourar:--exclamou um bésteiro de conto,
cambaleando e erguendo-se debaixo d'um bofete, para onde o haviam
derribado certas perturbações d'enthusiasmo politico.
"Amendico Vobis!--gritou um beguino, cujas faces vermelhas e
voz de Stentor brigavam com o habito de grosseiro burel e com
as desconformes camandulas que lhe pendiam da cincta.
"Olé, Fr. Roy Zambrana, fala linguagem christenga, se queres
vir nesse bordo por nossa esteira:--bradou um petintal d'Alfama,
que, segundo parecia, capitaneava um grande troço de pescadores,
barqueiros e galeotes daquelle bairro, então quasi exclusivamente
povoado de semelhante gente.
"Digo por linguagem"--acudiu o beguino--"que ninguém como mestre
Fernão Vasques é homem de cordura e sages para ámanhan falar a
elrei aguisadamente sobre o feito do casamento de Leonor Telles,
do mesmo modo que ninguem leva vantagem ao petintal Ayras Gil
em ousadia para fugir ás galés de Castella e doestar os bons
servos da igreja."
Era allusão pessoal. Uma risada ruidosa e longa correspondeu
á mordente desforra de Fr. Roy, que abaixou os olhos com certo
modo hypocritamente contrito, semelhante ao gato, que, depois de
dar a unhada, vem roçar-se mansamente pela mão que ensanguentou.
Fr. Roy era tambem, como Ayras Gil, um idolo popular, e a má
vontade que parecia haver entre o beguino e o petintal nascêra da
emulação; de uma duvida cruel sobre a altura relativa do throno
de encruzilhada, do throno de lama e farrapos, em que cada um
delles se assentava.
Se, pois, aquella multidão não estivesse persuadida da superioridade
intellectual do alfaiate Fernão Vasques, a opinião desses dous
oraculos lhe não teria deixado a menor duvida sobre isso. Todavia,
nas palavras de ambos havia um pensamento escondido; pensamento
de odio que nascêra n'um dia, e n'um dia lançára profundas raizes
nos corações de ambos. O marinheiro e o eremita tinham pensado ao
mesmo tempo que, lisongeando esse homem mimoso do vulgo, tirariam
juntamente dous resultados, o de ganharem mais credito entre
este, e de aplanarem a estrada da forca ao novo rei das turbas,
erguido, havia poucas horas, sobre os broqueis populares.
Mas que auto era este de que o povo falava? Sabe-lo-hemos remontando
um pouco mais alto.
O amor cego d'el-rei D. Fernando pela mulher de João Lourenço
da Cunha, D. Leonor Telles, havia muito que era o pasto saboroso
da maledicencia do povo, dos calculos dos politicos e dos enredos
dos fidalgos. Ligada por parentesco com muitos dos principaes
cavalleiros de Portugal, D. Leonor, ambiciosa, dissimulada e
corrompida, tinha empregado todas as artes do seu engenho prompto
e agudo em formar entre a nobreza uma parcialidade que lhe fosse
favoravel. Quanto a elrei, a paixão violenta em que este ardia
lhe assegurava a ella o completo dominio no seu coração. Mas
as miras daquella mulher, cuja alma era um abysmo de cubiça,
de desenfreamento, de altivez e de ousadia, batiam mais alto do
que na triste vangloria de vêr a seus pés um rei bom, generoso
e gentil. Através do amor de D. Fernando ella só enxergava o
refulgir da corôa, e o homem sumia-se nesse esplendor. O nome de
rainha misturava-se em seus sonhos; era o significado de todas
as suas palavras de ternura, o resumo de todas as suas caricias,
a idéa primitiva de todas as suas idéas. Leonor Telles não amava
elrei, como o provou o tempo; mas D. Fernando cria no amor della;
e este principe, que seria um dos melhores monarchas portuguezes,
e que a muitos respeitos o foi, deixou na historia, quasi sempre
superficial, um nome deshonrado, por ter escripto esse nome na
horrivel chronica da nossa Lucrecia Borgia. Uma difficuldade,
quasi insuperavel para outra que não fosse D. Leonor, se interpunha
entre ella e seus ambiciosos designios. Era casada! Um processo
de divorcio por parentesco, julgado por juizes affectos a D.
Leonor, ou que sabiam até onde chegava a sua vingança, a livrou
desse tropeço. Seu marido, João Lourenço da Cunha, atterrado,
fugiu para Castella, e D. Fernando, casado, segundo se dizia,
a occultas com ella, muito antes da epocha em que começa esta
narrativa, viu emfim satisfeito o seu amor insensato.
Aquelles d'entre os nobres, que ainda conservavam puras as tradições
severas dos antigos tempos, indignavam-se pelo opprobrio da corôa e
pelas consequencias que devia ter o repudio da infante de Castella,
cujo casamento com elrei, ajustado e jurado, este desfizera com
a leveza que se nota como defeito principal no caracter de D.
Fernando. Entre os que altamente desapprovavam taes amores, o
infante D. Diniz, o mais moço dos filhos de D. Ignez de Castro,
e o velho Diogo Lopes Pacheco[2] eram, segundo parece, os cabeças
da parcialidade contraria a D. Leonor; aquelle pela altivez de
seu animo; este por gratidão a D. Henrique de Castella, em quem
achára amparo e abrigo no tempo dos seus infortunios, e que o
salvára da triste sorte de Alvaro Gonçalves Coutinho e de Pedro
Coelho, seus companheiros no patriotico crime da morte de D.
Ignez.
O casamento d'elrei, ou verdadeiro ou falso, era ainda um rumor
vago, uma suspeita. Os nobres, porém, que o desapprovavam souberam
transmittir ao povo os proprios temores; e a agitacão dos animos
crescia á medida que os amores d'elrei se tornavam mais publicos.
D. Fernando tinha já revelado aos seus conselheiros a resolução
que tomára, e estes, posto que a principio lhe falassem com a
liberdade que então se usava nos paços dos reis, vendo suas
diligencias baldadas, contentaram-se de condemnar com o silencio
essa malaventurada resolução. O povo, porém, não se contentou
com isso.
Conforme as idéas desse tempo, além das considerações politicas,
semelhante consorcio era monstruso aos olhos do vulgo, por um motivo
de religião, o qual ainda de maior peso seria hoje, e sê-lo-ha em
todos os tempos em que a moral social fòr mais respeitada do que
o era naquella epocha. Tal consorcio constituia um verdadeiro
adulterio, e os filhos que delle procedessem mal poderiam ser
considerados como infantes de Portugal, e por consequencia como
fiadores da successão da corôa.
A irritação dos animos, assoprada pela nobreza, tínha chegado
ao seu auge, e a colera popular rebentára violenta na tarde que
precedeu a noite em que começa esta historia.
Tres mil homens se tinham dirigido tumultuariamente ás portas do
paço, dando apenas tempo a que as cerrassem. A vozeria e estrepito
que fazia aquella multidão desordenada assustou elrei, que por
um seu privado mandou perguntar o que lhes prazia e para que
estavam assim reunidos. Então o alfaiate Fernão Vasques, capitão
e procurador por elles, como lhe chama Fernão Lopes, affeiou
em termos violentos as intenções d'elrei, liberalisando a D.
Leonor os titulos de má mulher e feiticeira, e asseverando que o
povo nunca havia de consentir em seu casamento adultero. A arenga
rude e vehemente do alfaiate orador, acompanhada e victoriada de
gritas insolentes e ameaçadoras do tropel que o seguia, moveu
elrei a responder com agradecimentos ás injurias, e a affirmar
que nem D. Leonor era sua mulher, nem o seria nunca, promettendo
ir na manhan seguinte aclarar com elles este negocio no mosteiro
de S. Domingos, para onde os emprasava. Com taes promessas pouco
a pouco se aquietou o motim, e ao cahir da noite o terreiro d'apar
S. Martinho estava em completo silencio. Como se, na solidão,
elrei quizesse consultar comsigo o que havia de dizer ao seu bom
e fiel povo de Lisboa, as vidraças córadas das esguias janellas
dos paços reaes, que vertiam quasi todas as noites o ruido e o
esplendor dos saráus, cerradas nesta hora e caladas como sepulchro,
contrastavam com o reluzir dos fachos, com o estrepito das ruas,
com o rir das mulheres perdidas e dos homens embriagados, com
o perpassar contínuo dos magotes e pinhas de gente que se
encontravam, uniam, separavam, retrocediam, vacillavam, ficavam
immoveis, agglomeravam-se para se desfazer, desfaziam-se para
se agglomerar de novo, sem vontade e sem constrangimento, sem
motivo e sem objecto, vulto inerte, movido ao acaso, como as
vagas do mar, tempestuoso e irreflectido como ellas. Feroz na
sua colera razoada, ferocissimo no seu rir insensato, o vulgo
passava, rei de um dia. Esse ruído, essa vertigem que o agitava
era o seu baile, a sua festa de triumpho: e as estrellas de serena
noite de agosto, semelhantes a lampadas pendentes de abobada
profunda, alumiavam o saráu popular, as salas do seu folguedo,
a praça e a encruzilhada. Era a um tempo truanesco e terrivel.
Na taberna de micer Folco (onde deixámos as personagens principaes
desta historia, para inserir, talvez fóra de logar, o prologo ou
introducção a ella) as acclamaçôes freneticas dos populares tinham
tornado indubitavel que o propoedor para o ajunctamento do dia
seguinte devia ser o mui avisado e sages mestre Fernão Vasques. Fr.
Roy era de todos os circumstantes o que mais parecia ter a peito
esta escolha, e o petintal Ayras Gil ajudava-o poderosamente com
o ruido dos amplos pulmões dos galeotes d'Alfama, contrabidos
como em voga arrancada, victoriando o seu capitão. O alfaiate
não pôde resistir, nem porventura tinha vontade d'isso, a tanta
popularidade, e em pé sobre o escabello, com a cabeça levemente
inclinada para o peito, n'uma postura entre de resignação e de
bemaventurança, tremulava-lhe nos labios semi-abertos um sorriso
que revelava uma parte dos mysterios do seu coração. Emfim, quando
a grita começou a asserenar, Fernão Vasques ergueu a cabeça, e
com aspecto grave deu signal de que pretendia falar ainda.
Fez-se de novo silencio.
"Seja, pois, como quereis:--disse o alfaiate--mas vede o grão risco
a que me ponho por vós outros. Falarei eu a elrei com liberdade
portuguesa: proporei vosso aggravo e a deshonra e feio peccado
de sua real senhoria, mas é necessario que vós todos quantos
ahi sois estejaes de alcateia e ao romper d'alva no alpendre
de S. Domingos. Dizem que a adultera é mulher de grande coração
e ousados pensamentos; em Lisboa estão muitos cavalleiros seus
parentes e parciaes. Bésteiros deste concelho, que não vos esqueçam
em casa vossas béstas e aljavas! Pioada de Lisboa, levae vossas
ascumas! Os trons e engenhos do castello--accrescentou o alfaiate
em voz mais baixa e hesitando--não vos apoquentarão, ainda que
elrei o quizesse, porque o alcaidemór João Lourenço Bubal não
é dos affeiçoados a D. Leonor Telles. Sancta Maria e Sanctiago
sejam comvosco! Alcacer, alcacer pela arraya-miuda! A repousar,
amigos!"
--"Alcacer, alcacer!--respondeu a turbamulta.
"Morra a comborça!"--gritou Ayras Gil com voz de trovão.--"Morra
a comborça!"--repetiram os galeotes e as virtuosas matronas dos
coromens d'arrás e cinctos pretos, que assistiam áquelle conclave.
"Olha, Ayras, que S. Martinho fica perto, e contam que D. Leonor
tem ouvido subtil:"--disse Fr. Roy ao petintal com um sorriso
diabólico.
"Dor de levadigas te consumam, ichacorvos!"--replicou o
petintal.--"Quando eu quero que me ouçam é que falo alto. Alcacer
por sua senhoria o bom rei D. Fernando! Deus o livre de Castella
e de feitiços!"
O petintal emendava a mão como podia. E entre morras e alcaceres;
entre risadas e pragas; entre ameaças vans e insultos inuteis,
aquella vaga de povo contida na taberna de micer Folco, espraiou-se
pelas ruas, derivou pelas quelhas, vielas e becos, e embebeu-se
pelas casinhas e choupanas, que nessa epocha jaziam muitas vezes
deitadas juncto ás raízes dos palacios na velha e opulenta Lisboa.
Com os braços cruzados o alfaiate contemplava aquella multidão, que
diminuia rapidamente, e cujo sussurro alongando-se era comparavel
ao gemido do tufão, que passa de noite pelas sarças da campina.
Ainda elle tinha os olhos fitos no portal por onde saíra o vulto
indelineavel chamado povo, e já ninguem ahi estava, salvo os
dous cavalleiros, que se tinham conservado immoveis na mesma
postura que haviam tomado, e Fr. Roy, que se estirára sobre um
dos bofetes, e já roncava e assobiava como em somno profundo.
Os dous cavalleiros ergueram-se e descobriram os rostos: a um
ainda a barba de homem não pungia nas faces: o outro, na alvura
das melenas brancas, que trazia cahidas sobre os hombros á moda
de Castella, e no rosto sulcado de rugas, certificava ser já
bem larga a historia da sua peregrinação na terra.
O mancebo olhou para Fernão Vasques, que parecia absorto, e depois
para o velho com um gesto de impaciencia. Este olhou tambem para
elle, e sorriu-se. Depois o ancião chamou o alfaiate em voz baixa,
mas perceptivel.
Este, como se cahisse em terra da altura dos seus pensamentos,
estremeceu, e, saltando do escabello, onde ainda se conservava
em pé, encaminhou-se rapidamente para os dous cavalleiros:
"Senhor infante, que vossa mercê me perdôe e o senhor Diogo Lopes
Pacheco! Á fé que, no meio d'este arruído, quasi me esquecêra
de que ereis aqui. Estaes desenganados por vossos olhos de que
posso responder pelo povo, e de que ámanhan não faltarão em S.
Domingos?"
"Na verdade--respondeu o mancebo--que tu governas mais nelle
que meu irmão com ser rei! Veremos se ámanhan te obedecem como
te obedeceram hoje."
"És um notavel capitão:--accrescentou Diogo Lopes, rindo e batendo
no hombro do alfaiate.--Se fosses capaz de reger assim em hoste
uma bandeira de homens d'armas merecerias a alcaidaria de um
castello."
"Que só entregaria, no alto e no baixo, irado e pagado, de noite
ou de dia, áquelle que de mim tivesse preito e menagem."
"Bem dicto!--interrompeu o velho Pacheco, no mesmo tom em que
começára.--Se t'a negarem não será por errares as palavras do
preito. Tem a certeza, de que has-de ir longe, Fernão Vasques;
muito longe! Assim eu a tivera, de que não me será preciso cozer
á ponta de punhal a bôca de quem ousar dizer que o infante D.
Diniz e Diogo Lopes Pacheco cruzaram esta noite a porta da taberna
do gonovez Folco Taca."
Quando estas ultimas palavras, proferidas lentamente, saíram
dos labios do que as proferia, os roncos e assobios do beguino
que dormia foram mais rapidos e tremulos.
"Quem é aquelle ichacorvos?--proseguiu Diogo Lopes, apontando
para Fr. Roy com um gesto de desconfiança.
"É um dos nossos:--respondeu o alfaiate--um dos que mais têem
encarniçado a arraya-miuda contra a feiticeira adultera. Na assuada
desta tarde foi dos que mais gritaram defronte dos paços d'el-rei.
Por este respondo eu. Não tereis, senhor Diogo Lopes, de lhe
cozer a bôca á ponta de vosso punhal."
"Responde por ti, honrado capitão da arraya-miuda--replicou o
velho cortezão.--Quem me responde por elle é o seu dormir profundo:
quem me responderia por elle, se acordando nos visse aqui, seria
este ferro que trago na cincta. Agora o que importa. Em quanto
ámanhan elrei se demorar em S. Domingos, um troço d'arraya-miuda
e bésteiros ha-de commetter o paço, e ou do terreiro, ou rompendo
pelos aposentos interiores, é necessario que uma pedra perdida,
um tiro de bésta disparado por engano, uma ascuma brandida em
algum corredor escuro, nos assegure que elrei não póde deixar
de attender ás supplicas dos seus leaes vassallos e dos cidadãos
de Lisboa."
"Morta!--exclamou o infante com um gesto de horror.--Não, não,
Diogo Lopes; não ensanguenteis os paços de meu irmão, como ..."
"Como ensanguentei os paços de Sancta Clara:--atalhou
Pacheco--dizei-o francamente; porque nem remorsos me ficaram cá
dentro. Senhor infante, vós esquecestes-vos d'isso, porque eu
posso e valho com elrei de Castella! Senhor infante, a ambição
tem que saltar muitas vezes por cima dos vestigios de sangue!
Vós passastes ávante, e não vistes os do sangue de vossa mãe!
Porque hesitareis ao galgar os do sangue de Leonor Telles? Senhor
infante, quem sobe por sendas ingremes e por despenhadeiros tem
a certeza de precipitar-se no fojo, se covardemente recúa."
D. Diniz tinha-se tornado pallido como cera. Não respondeu nada;
mas dos olhos rebentaram-lhe duas lagrymas.
Fernão Vasques escutou a prelecção politica do velho matador
de D. Ignez de Castro com religiosa attenção. E resolveu tambem
lá comsigo não se deixar cahir no fojo.
"Far-se-ha como apontaes:--disse elle falando com Diogo Lopes--mas
se os homens d'armas e bésteiros de João Lourenço Buval descerem
do castello..."
"Não te disse, ainda ha pouco, que João Lourenço ficaria quedo no
meio da revolta?--Podes estar socegado, que não te certifiquei
d'isso só para animares o povo. É a realidade. Agora tracta de
dispôr as cousas para que não seja um dia inutil o dia d'ámanhan."
Pegando então na mão do infante, o feroz Pacheco saíu da taberna,
e tomou com elle o caminho da Alcaçova. Fernão Vasques ficou
um pouco scismando: depois saíu, dirigindo-se para a porta do
ferro, e repetindo em voz baixa:--"Não me precipitarei no fojo!"
Passados alguns instantes de silencio Fr. Roy alevantou devagarinho
a cabeça, assentou-se no bofete e poz-se a escutar: depois saltou
para o chão, apagou a lampada que ardia no meio da casa, abandonada
por Folco Taca logo que o povo tumultuariamente a innundára,
chegou á porta, escutou de novo alguns momentos, manso e manso
encaminhou-se para a torre da sé da banda do norte, e como um
fantasma, desappareceu cozido com a negra e alta muralha da
cathedral.
[1] Fernão Lopes dá a entender (Chr. de D. João I. P.
1.ª c.44) que a denominação de arraya-miuda se começára a dar aos
populares no principio da revolta a favor do Mestre d'Aviz, para
os distinguir dos nobres, pela maior parte fautores de D. Leonor
e dos castelhanos; mas este titulo chocarreiro o havia tomado
para si o povo miudo já d'antes e com muita seriedade. Em um
documento de 1305 (Chancell. de D. Diniz L. 3º das Doações fol.
42 v.) se diz que outorgavam certas cousas os cavalleiros, juizes
e concelho de Bragança e toda a arraya-miuda.
[2] Fernão Lopes affirma que Pacheco não tornára ao
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