Agulha em Palheiro - 1

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Obras
de
Camillo Castello Branco
Edição Popular
XXII
AGULHA EM PALHEIRO


VOLUMES PUBLICADOS
I--Coisas espantosas.
II--As tres irmans.
III--A engeitada.
IV--Doze casamentos felizes.
V--O esqueleto.
VI--O bem e o mal.
VII--O senhor do Paço de Ninães.
VIII--Anathema.
IX--A mulher fatal.
X--Cavar em ruinas.
XI e XII--Correspondencia epistolar.
XIII--Divindade de Jesus.
XIV--A doida do Candal.
XV--Duas horas de leitura.
XVI--Fanny.
XVII, XVIII e XIX--Novellas do Minho.
XX e XXI--Horas de paz.
XXII--Agulha em palheiro.


_CAMILLO CASTELLO BRANCO_

AGULHA EM PALHEIRO


_Quinta Edição_

LISBOA
Parceria ANTONIO MARIA PEREIRA
LIVRARIA EDITORA
_Rua Augusta, 50, 52 e 54_
1904


LISBOA
Officinas Typographica e de Encadernação
Movidas a vapor
_Rua dos Correeiros, 70 e 72, 1.º_
1904


DEDICATORIA

Ao poeta das creanças, das flores, do Amor, da Melancolia e dos desgraçados
AO ILL.mo E EX.mo SR.

ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO

Honra da Patria, honra dos que o prezam, e amam a Patria

OFFERECE

O AMIGO, O RESPEITADOR, O DISCIPULO MAIS DEVEDOR
_Camillo Castello Branco._


DUAS PALAVRAS
A primeira edição d'este romance saiu de uma typographia do Rio de
Janeiro. Parece que houve proposito em desdourar os prelos brasileiros!
Poderá parecer tambem que se intentou desdourar o auctor; mas semelhante
suspeita não vingaria, attendendo a que não é coisa verosimil alguem
escrever assim. O que mais depressa poderia crer-se seria que o
escriptor mais fleumatico morresse de fulminante desgosto, vendo a sua
obra tão damnificada, e suja de todas as nodoas, para lavagem das quaes
se crearam as quatro partes constitutivas da grammatica.
Imprime-se o livro, como o auctor escreveu o manuscripto, e chama-se
_segunda edição_, porque o titulo e substancia da obra está no livro
publicado no Brasil.

Porto, janeiro de 1865.


AGULHA EM PALHEIRO

I
Em 1803, o sapateiro de Manuel Maria Barbosa du Bocage era Francisco
Lourenço Gomes, estabelecido na calçada do Sacramento, em Lisboa.
Francisco Lourenço era, n'aquelle tempo, rapaz de dezoito annos; mas,
por sua muita esperteza e actividade, merecera que o pae lhe confiasse a
gerencia da loja, grandemente afreguezada.
Os poetas notaveis do tempo calçavam todos de casa de Francisco
Lourenço; um só, porém, o maioral de todos, o repentista Bocage, calçava
gratuitamente.
Os coevos do poeta recordam-se de o terem visto quasi sempre mal
entrajado de casacas, pantalonas e chapéos: mas, no tocante a botas,
dizem todos que o vate Elmano primava em aceio, e raro dia saía á rua
com ellas sem muito lustro de fina graxa.
Este accidente da vida de Bocage, omittido nas biographias do immortal
improvisador, escriptas por Castilho e Rebello da Silva, tive eu a
fortuna de apanha-lo casualmente. Assim, pois, se explica a distincção
das botas de Manuel Maria entre as dos seus collegas e rivaes do
botequim Nicola: Francisco Lourenço, o sapateiro dos casquilhos
d'aquelle tempo, era amante de versos. Principiára saboreando as trovas
chôchas de José Daniel; e ditosa correra a vida pedestre ao infausto
poetrasto, em quanto a admiração do sapateiro lhe foi prodiga de botas;
quando, porém, o moço ouviu Bocage improvisar na festividade de
Corpus-Christi, fatal hora badalou para o auctor do _Almocreve das
Pêtas_, que nunca mais encontrou graça no seu Mecenas de bezerro e sola.
O enthusiasta de poesia presenteou Bocage com umas botas, e a quitação
de dois remontes que lhe devia. O poeta, não vezado a taes galhardias do
vulgo profano, posto que a pouco mais subisse a capacidade do _claro
auditorio seu_, retribuiu a generosidade do moço com prosa chan, mas
muito mais sincera e cordeal que os versos.
Francisco tomou a cuidado seu mandar todas as manhãs buscar o calçado do
poeta predilecto, e devolver-lh'o brunido e lustroso como um espelho; e,
apenas as solas se gretavam ou os saltos iam entortando, logo novas
botas, em fazenda e feitios primorosas, iam saudar o vate acordado para
um novo dia dos seus desvairados prazeres de praças e tavernas.
A repetição d'estes brindes abriu, no animo generoso e popular do poeta,
as portas á confiança timida do artista. Francisco Lourenço teve a honra
de almoçar com Bocage no _botequim das Parras_, e d'aqui sairam juntos a
jantar n'uma horta do Campo-Grande, onde Elmano, fiel aos seus usos e
costumes, bebeu á tripa fôrra, e poetou, consoante o auditorio lhe
beliscou a musa escandecida.
O sapateiro, instigado por sua doce embriaguez, que era suave e honrada
embriaguez do amor casto a uma prima, revelou ao poeta a sua paixão, e
pediu-lhe umas quadras natalicias para festejar os annos da sua amada.
Esta confidencia rebentou do coração do moço alli pelas alturas de S.
Sebastião da Pedreira. Bocage, sem mais averiguações, entrou n'uma
tenda, pediu papel, disse a Francisco Lourenço que escrevesse, e
improvisou torrentes de quadras que extravasaram da folha de papel
almaço. O sapateiro amante chorava de alegria; e o especieiro ficou
pasmado e maravilhado de ter tido em sua loja o famoso poeta, que era o
esfarrapado idolo do povo, como todos os idolos do povo, que assim os
quer esfarrapados, ou tarde ou cedo os esfarrapa, se elles lhe cáem nas
mãos bem ageitados.
Francisco Lourenço, ao despedir-se do poeta, que ia passar a noite em
casa do marquez de Anjeja, delicadamente lhe introduziu na algibeira do
collete uma peça. Que bizarria de animo! Uma peça seria hoje o primeiro
dinheiro que um editor portuguez offereceria a Bocage pela propriedade
de um volume!
Bem empregados seis mil e quatrocentos réis! A prima de Francisco, ao
ver-se cantada assim, e, de Maria que era, transformada em _Marilia_,
ganhou ao primo tamanho amor, que logo d'ali esqueceu sagradas
promessas, que fizera a outro; e tanto foi, que, estando ella a bordar
um coração varado por duas settas em cruz, com o intento de mandal-o ao
rival de Francisco, o symbolico lencinho, dias depois, estava em poder
do primo, que o beijava em transporte de jubilo.
Bocage via a seus pés o mais ditoso dos amantes confessando que aos seus
versos devia a immensa felicidade, que lhe não cabia no peito. Esta
situação, grata ao genio, reaccendeu-lhe o estro em novas flammas. Um
soneto divino caiu no coração do reconhecido moço, que foi logo d'ahi
leva-lo ao coração de Marilia.
Esta menina era filha de um colchoeiro da rua Augusta, filha unica, e
esperançada em bom patrimonio--que seu pae, tio materno de Francisco
Lourenço, passava por abastado. Além d'isso Maria Luciana era
galantinha, arranjadeira de casa, prendada, e amiga de ler livros de
devoção, e o _Almocreve das Pêtas_, e o _Anatomico jocoso_, obras do
engenho humano, que o bom do colchoeiro pasmava de ouvir, e, com as mãos
nas ilhargas, era todo elle então uma risada, que não ha conta-lo.
Depois, porém, que Maria Luciana lera os dois poemas de Bocage, que lhe
diziam respeito, o seu poeta valido era o grande cantor, e os livros ao
divino pareciam-lhe coisa de moer a paciencia. A reformada creatura,
quando a mãe lhe tirava das mãos as rimas de Bocage, e a obrigava a lêr
o _Retiro espiritual_ e a _Novena de Santa Ursula_, zangava-se tanto lá
no seu interior, que chegava a duvidar que Santa Ursula e sua mãe
tivessem senso-commum!
Não desagradava ao colchoeiro o sobrinho. Seu cunhado, além da
acreditada loja na calçada do Sacramento, possuia no Cartaxo uma
quintinha de recreio e algumas terras lavradias, e vinhedos herdados e
adquiridos pelo officio. O rapaz desempenhava, em annos verdes, o bom
governo da loja, e mostrava tendencias a ganhar freguezia de gente
limpa, com quem elle se relacionava. Porém, estas boas predisposições
eram rijamente contrariadas pela funesta noticia, que lhe chegara aos
ouvidos, e vinha a ser: o escandalo de ter ido o moço algumas vezes
almoçar ao botequim das Parras, em companhia de poetas! Esta reluctancia
durou dois annos, ou mais; mas, a final, como quer que Maria perdesse a
saude e amarellasse, o colchoeiro, que não tinha outra filha, deixou-a
casar, dotando-a com seis mil cruzados.
No fausto dia do casamanto, Francisco Lourenço foi convidar Bocage para
jantar em sua casa. O poeta estava enfermo; prometteu ir n'outro dia, se
não morresse d'aquella aneurisma que o tinha nos umbraes da eternidade.
As portas da eternidade, porém, estavam a abrir-se, n'aquella hora, ao
mais inspirado e desditoso genio que ainda viram portuguezes, sendo
tantos os inspirados e desditosos á competencia de desgraça com elle!
Poucos dias depois, n'esse anno de 1806, morreu Bocage.
Francisco Lourenço chorou-o, como se ás lavaredas d'aquelle incendio
d'alma tambem elle tivesse aquecido os embriões do seu talento. O
artista não era poeta, nem tinha o parvulez de crer-se tal porque
adorava Bocage. O que elle tinha era a paixão do bello, com a entranhada
magua de não ter sido educado e guiado por aquelle rumo de magestosa
desgraça. Bem sabia elle que Luiz de Camões morrera sem lençol em que
amortalhar-se, e Antonio José da Silva n'uma fogueira, e Maximiano
Torres nos presidios da Trafaria, e Garção na cadeia, e Quita na
indigencia, e Bocage no desamparo. Sabia-o, e invejava a brilhante
desdita de taes destinos, ao passo que os grandes de entendimento
rojavam aos pés dos grandes da fortuna seu ignobil servilismo para não
emparelharem na invejavel miseria com os Camões e os Bocages.
Quando acontecia Francisco Lourenço dar largas a sua candida alma,
lamentando o mau fim dos grandes espiritos em Portugal, os freguezes,
que o ouviam, disfructavam-n'o, como hoje se diz, e iam chancear á custa
do sincero artista. A voga, que lavrou da sua mania lamuriante,
grangeou-lhe freguezia. Os peraltas e piza-verdes iam, acintemente, ás
chusmas tomar medidas de botas, buscando azo de o moverem á costumada
dissertação. Muitos o ouviam discorrer tão de sizo em tal materia, que
saiam mais commovidos que dispostos a motejarem a louvavel sensibilidade
do moço. Aos mais intimos ou mais velhacos recitava elle as quadras
natalicias, que Barbosa du Bocage improvisara em S. Sebastião da
Pedreira, e o soneto posterior, ao qual o coração de sua mulher de todo
em todo se rendera. Estes eram os que divulgavam, como ridicula, a
confidencia do sapateiro; e nunca lhe perdoaram ter elle na sua sala,
impressa em pergaminho, e encaixilhada em retabulo dourado, a estrophe
do epicedio a Elmano, por Francisco Manuel do Nascimento, que dizia
assim em linguagem de anjos:
«ELMANO! oh! VATE! A abelha em teu moimento,
Sempre o seu mel componha!
Manná dos céos, e balsamos da Arabia
Alli distillem; louros enverdeçam,
Heras, nevados lirios!
Basto rosal, com mil botões o abrace!
Mangerona, tomilho e a flôr vermelha
Que annuncia em queixumes
De Ajax a dôr, n'um ai tinto em seu seio!
Do Sado as Nymphas, nymphas do aureo Tejo
E as indicas Nereas
Com lagrimas a campa lhe humedeçam!»
............................................
Francisco Lourenço recitava com lagrimoso enthusiasmo estes versos, e
como thema os tomava para maldizer a nação e o governo que deixavam
morrer de fome de pão e da patria o auctor de tão doridos queixumes, o
exilado Filinto Elysio. E d'isso riam os casquilhos, os miseraveis cujo
nome ninguem sabe, e cujos netos a gente não conhece, quando os topa ahi
por esse Chiado e Rocio, cascalhando, com seus avós, umas risadas
alvares, unico symptoma de vida intellectual que dispensam n'esta sua
pasagem sobre o globo, que é d'elles e das moscas.
O pae de Francisco Lourenço afez-se a ouvir o filho fallar de poetas, e
achava-lhe razão. Ouvia-o queixar-se da nenhuma educação litteraria que
tivera, e sentia sinceramente não ter aproveitado as tendencias de
Francisco. Dizia elle:
--Olha, rapaz, eu tinha um parente, que ia muito bem com a sua vida, em
quanto olhou pela loja de mercearia que seus paes lhe deixaram. Depois
assentou o pobre Francisco Dias Gomes em se fazer poeta, e deixou ir o
negocio pela agua abaixo, a ponto de deixar para ahi a familia pobre. As
obras d'elle andam impressas por esse mundo á custa da academia; mas
isso não remedeia, em quanto a mim, a pobreza da familia. Ora eu, como
tinha este exemplo na familia, resisti á tua e á minha inclinação. Achei
que o melhor era dar-te o officio que me deu a mim muito trabalho com
bom estipendio, e vida socegada. Já agora, Francisco, o remedio é
conformares-te com a tua sorte. Se gostas de ler, lê, que eu não te levo
isso a mal; mas bom será que olhes sempre para o essencial, que é a
loja. Deixa-te de acamaradar com gente de outra laia, que a final ha de
dar-te mau pago. Trago cá as minhas desconfianças de que muitas pessoas
veem aqui fallar comtigo em poesias, e vão lá para fóra zombar de ti.
Eu, que t'o digo, é por que alguem m'o disse. Lê os teus livros no teu
quarto; mas na loja, se alguem te fallar em versos, fala-lhe tu em
botas. Cada qual no seu officio. Ora agora, como estás casado e pódes
ter filhos, farás o que melhor entenderes: educa-os como quizeres, que
eu, graças a Deus, hei de deixar-vos o necessario para fechardes a loja,
e cuidar n'outro modo de vida.
Desde este dia Francisco Lourenço comediu-se nas palestras litterarias.
Os disfructadores deram tento da reforma, e foram rareando a pouco e
pouco. Se o provocavam a discorrer sobre Camões, Bocage ou Filinto, o
ajuizado Francisco lançava mão da craveira, e dizia:
--Já não conheço de versos; agora o que sei é medir pontos de pés.
--Spondeus ou dactilos? atalhou um faceto de mais presumido chiste.
--Pés de toda a casta, replicou Francisco, pés mesmo dos que são a
quatro em cada sujeito, como posso provar a vossa senhoria.
O farçola entendeu que o sapateiro lhe chamava quadrupede: suspeita bem
cabida, mas não cabalmente averiguada.
O certo é que este freguez deixou de o ser de Francisco Lourenço; e
outros de sua roda se afastaram tambem, visto que o mestre se esquivava
a ser pasto de seus ocios.
Que selvagens tempos aquelles!
Francisco Lourenço, se vem cincoenta annos depois, sem embargo de ser um
habil sapateiro, poderia entrar dignamente na republica das lettras:
começaria versejando, em solteiro, estas faceis quadrinhas, cheias de
fogo e alma, com que todos os marechaes das lettras velaram as armas, ao
vestirem-se cavalleiros para a crusada da civilisação. Depois escreveria
o seu folhetim, variado em côres, como um mosaico de differentes
linguas, e com atrevimento de idéas, que forçariam a critica a
qualifical-as de originalidades. Francisco Lourenço teria uma luneta, um
charuto, e um bigode encerado, e uma esquina alli no largo de Camões
onde encostar os hombros, vergados sob o peso da cabeça prenhe de idéas.
Depois, naufragado o coração, Francisco Lourenço iria salvar a
humanidade, com o seu septicismo, nas regiões da politica. Faria,
portanto, a um tempo botas para os pés, e sciencia para a cabeça da
humanidade. Se absurdos fados o bafejassem, Francisco Lourenço subiria a
ministro, e ninguem lhe perguntaria d'onde veio, nem a tripeça ainda
quente lhe seria desdouro. Esta é a unica vantagem que a civilisação tem
trazido para a fusão dos homens n'um só principio derivativo do pae
commum. Cá, tanto faz vêr do acume das grandezas cair um homem no raso
da lama, como erguer-se da lama um homem ao mais culminante da escala
social. Ninguem se espanta, nem sequer pára a discutir estes vulgares
accidentes da reformação social.
Isto assim é que é bom.

II
Posto que a leitura lhe deliciasse muitas horas do dia e noite,
Francisco Lourenço cuidava attentivamente no bom regimen de sua casa.
Era elle quem talhava a obra superior, e a distribuia aos officiaes,
quem recebia as damas freguezas, e com muito bom modo satisfazia seus
caprichos. Os dias sanctificados passava-os com sua mulher e pae no
Cartaxo, onde ia formando deposito de livros, _amigos da velhice_, como
elle dizia. Tencionava Francisco ir lá passar o ultimo quartel da vida,
empregando-a, sem outras distracções, no enlevo dos bons auctores que ia
conhecendo.
A carinhosa esposa ajustava perfeitamente com os prazeres intellectuaes
de seu marido. Nunca elle descobriu pagina de livro encantador que a não
lesse a sua mulher. Como não tinham filhos, sobejavam os ocios do
arrumamento das coisas domesticas. Maria sentava-se a costurar, nas
noites de inverno ao lado da banca de seu marido. Elle recitava com
emphase, e ella chorava ou admirava-se com delicado sentir do coração ou
espirito. A _Cantata de Dido_, a pagina mais maviosa entre as mais
inspiradas da poesia portugueza, já ella a sabia de cór, á custa de
ouvi-la e honra-la com as suas lagrimas. Ouvira ella ler todos os poetas
nacionaes antigos e do seu tempo, excepto José Agostinho de Macedo, que
Francisco aborrecia por ter sido o detractor de Camões, e o émulo
atrevido e torpe de Bocage. O artista, quando acertava de encontrar o
frade graciano, sentia calafrios na espinha; e, segundo elle dizia,
vontade de escorchar com um pontapé aquelle ôdre de vinho e peçonha.
Em 1816, dez annos depois de casado, Francisco Lourenço agradecia a Deus
a felicidade do primeiro filho, quando o já não pedia nem esperava.
--Ainda estou em edade de poder educal-o, e vel-o homem--disse o festivo
pae a sua mulher.--Tenho vinte e nove annos: quando meu filho tiver a
minha edade, posso ainda viver, como vive meu pae, sadio e robusto. Já
sei para quem estou enriquecendo esta livraria. A minha velhice ha de
ser um descançar em leito de rosas. Irei d'este mundo, deixando na alma
de meu filho uma boa porção da minha essencia.
Não deve o leitor duvidar d'esta linguagem levantada em bocca do
artista. As mais vulgares e rasteiras coisas da vida, naturalmente, se
haviam vestido, em seu espirito, com as galas da poesia, cujo perfume
lhe rescendia em tudo. O seu permanente privar com poetas, ou com a
natureza, mãe de todos, e mais mãe dos que a amam sem lhe devassarem os
segredos, necessariamente influenciariam a singela alma do homem, que
para sentir vibrar as cordas todas da poesia, estava nos primeiros
arrobamentos de pae.
Por esse tempo falleceu o velho Lourenço e o pae de Maria. A herança de
ambos daria sobeja independencia a Francisco; porém, a existencia da
creança, dilatando o alcance das ambições paternas, desviou-o do antigo
proposito de passar a loja, e ir viver folgado em sua quinta. Um filho é
realmente um aguilhão que aperta os temperamentos mais desleixados em
grangeio de bens de fortuna. Já lhe queria parecer a Francisco Lourenço
que quarenta mil cruzados em propriedades era pouco patrimonio para o
seu Fernando; e quando bastasse a um filho, quem saberia os filhos
porvindouros? Se fossem mais de quatro, reflectia o pae, pouco menos de
pobres ficariam todos. Entendeu, pois, em proseguir no trabalho,
afanar-se cada vez mais, encurtar as horas de leitura, e augmentar o
numero de officiaes, a fim de exportar calçado para o Ultramar.
No anno seguinte nasceu uma menina, e outra no anno immediato. Sem
querer desagradecer a Deus, Francisco desgostou-se da duplicada mercê
das meninas. Andava elle scismatico e melancholico a escogitar no futuro
que havia de preparar a suas filhas. O bom homem cuidava que sem
educação scientifica ninguem podia ter futuro; e lamentava não poder
crear suas filhas, pondo o fito nas Bernardas Ferreiras de Lacerdas e
Violantes do Céo, litteratas famosas que o leitor conhece. Acudia a
senhora Maria Luciana ás tristezas de seu marido, dizendo-lhe que as
meninas podiam ser freiras, e instruirem-se no seu convento. Isto
consolava as tristes apprehensões do pae; mas era ainda pouco para
allivial-o do desgosto de não ter filhos, que podessem ser tres grandes
poetas, ou, ao menos, tres sabios que é um grau de sciencia muito mais
facil de attingir, no voto d'elle, e no meu tambem.
Fernando, aos quatro annos, frequentava as primeiras lettras; aos nove
annos estudava latim com admiravel intelligencia; assim, até aos
dezeseis, cursou humanidades, no intento de ir graduar-se a Coimbra.
N'esta edade Fernando conhecia os poetas latinos e portuguezes: lia uns
com seu pae, e traduzia-lhe os outros, explicando os pontos obscuros de
Horacio e Ovidio.
Grande era o dissabor do moço, quando vinha das aulas, e via, atravez da
vidraça que abria para o pateo, seu pae talhando o bezerro de umas botas
ou o duraque de uns sapatos. Ia elle ter com sua mãe, e pedia-lhe que
aconselhasse o pae a passar a loja, e remediar-se com o bastante, que já
tinham para viverem em decente mediania. A boa mãe não se esquivava de
pedir tal coisa; mas admoestava Fernando a evitar quanto podesse
mostrar-se envergonhado do officio de seu pae.
O imprudente moço não deu o devido peso ás reflexões da mãe, e insistiu
no seu desgosto e rogos. Bem póde ser que os condiscipulos lhe atirassem
á cara, como despique de inveja dos progressos d'elle, o seu nascimento
humilde. Aquelles tempos eram infamados com muitos exemplos d'este
barbaro quilate. Á peonagem nem a muita riqueza a salvava dos remoques
da fidalguia. Nos collegios, os mestres eram os primeiros a darem o
exemplo das preferencias. A applicação no moço da baixa tracção era
menos louvada que a preguiça no escolar de familia illustre. Este
escarneo do Evangelho chegava até Coimbra, onde se degladiavam primazias
de nobreza, e só com muita paciencia para ultrages e desprezos,
conseguia formar-se o filho do artifice, que não se abalançava a entrar
em communhão de sciencia com os privilegiados da boa fortuna.
É, pois, de crêr que Fernando Gomes, matraqueado pelos condiscipulos,
desejasse que seu pae levantasse mão do officio de sapateiro, que mais
que outro qualquer--sem podermos dar razão do porque--se presta á
zombaria nas facecias dos chocarreiros.
Aventurou-se, um dia, Fernando a pedir ao pae que fechasse a loja.
--Porque?!--perguntou Francisco Lourenço.
--Porque...--tartamudeou o filho--se meu pae quer formar-me... não me
parece...
--Diz, homem!--acudiu o pae á indecisão de Fernando, com semblante
transtornado--não te parece o que?
--Que seja bom ter loja de...
--De sapateiro?... parece que te custa a dizer a palavra _sapateiro_!
Sapateiro, sim!... Queres tu dizer que te envergonhas do officio de teu
pae?
Fernando baixou os olhos e não respondeu; mas o silencio era, no caso, a
mais eloquente das confirmações.
--Está bom--disse Francisco--descança que se ha de remediar tudo o
melhor que puder ser. Hoje não vaes á aula. Amanhã falaremos.
Francisco Lourenço fechou-se no quarto com sua esposa, e, antes de
referir o que passara com o filho, rompeu n'um choro soluçante, que a
consternada mulher não sabia como explicar nem consolar.
Falaram largo tempo. O marido saíu de melhor sombra. Maria chamou
Fernando e disse-lhe:
--Deus te perdôe o mal que fazes a teu pae! Eu não quiz dizer-lhe que
fechasse a loja, e tu commetteste a imprudencia de lh'o dizer!...
Fernando, d'esta vez vali-te; mas não caias n'outra. Olha que teu pae é
tão bom como severo. Segue a carreira que elle te dá, e deixa-o lá com a
sua vida. Cuidas que teu pae acha prazer em estar na loja a trabalhar?
Enganas-te. Bem sabes quanto apaixonado elle é de livros. Se trabalha,
para ti é, e para tuas irmãs. O que temos seria bastante para um, se
tivesse juizo; mas seria quasi nada para tres filhos. Tu não has de
querer ser doutor, e ver tuas irmãs sem nada. Vae á aula; e, se alguem
te disser que és filho de sapateiro, responde-lhe tu que tens muita
honra em ser filho de quem és... Póde ser que os fidalgos, que t'o
disserem, te devam a ti o par de botas que trazem ...
Estas judiciosas razões não consolaram a Fernando.
A resposta foi um calado despeito, e uma visagem de desdem, que Maria
viu com os olhos humidos.
Decorridos poucos dias, Fernando foi ter com sua mãe, e disse-lhe que
não tornava á aula, porque os seus condiscipulos o vexavam. Descendo a
explicar o vexame por miudos, disse que o filho do conde de tal, zangado
com elle por ter-lhe corrigido um theorema de geometria, lhe replicara
qual era a figura geometrica de uma tomba; e se as entrecospias em
logica pertenciam ao dilemma. A mãe não conheceu o travôr do epigramma.
Chamou o marido, e quiz que o filho repetisse o conflicto diante de seu
pae. Francisco ouviu-o, doeu-se, dissimulou o pesar, e disse-lhe:
--Irás frequentar outra aula.
--Acontece-me o mesmo em toda a parte, contrariou Fernando com certo
desabrimento deshumilde.--Emquanto o pae estiver n'este modo de vida,
hei de ser enxovalhado por todos os condiscipulos, tanto monta em
Lisboa, como em Coimbra.
--Está bom, disse serenamente o pae. Eu vou pensar e resolverei.
A resolução foi prompta. Francisco Lourenço entrou no quarto onde
Fernando estudava, e disse-lhe:
--Arruma esses livros, que já te não servem de nada. És sapateiro como
teu pae e teu avô.
Fernando perdeu a côr, e quasi o sentimento. Francisco Lourenço saíu, e
foi verter torrentes de lagrimas no seio da mulher, exclamando a
intervallos:
--Lá vão todas as minhas esperanças!... Assim havia de ser, porque ouvi
a voz da minha vaidade, e nunca me lembrei que um filho podia ter
vergonha do officio do pae... Vê tu, mulher, que soberba maldita eu
andei gerando e engrossando no animo d'aquelle rapaz! Se eu lhe désse
largas, onde iria dar comsigo tamanho orgulho! Ahi tens tu a sciencia a
desnaturar-me um filho!... Santo Deus! Bem m'o pregava meu bom pae!...
Quantas vezes lhe ouvi dizer que eu, se fosse um sabio, me correria de o
vêr a elle na baixa condição de sapateiro!... Não posso nem devo
consentir que meu filho se deshonre por amor da sabedoria... Se a
sociedade o vexa, paciencia; que fuja da sociedade. Eu antes o quero
sapateiro honrado, que filho infamado pela ingratidão. Façamos um homem
de bem, e os nobres que façam os sabios ... Mas é dôr, é uma grande
afflicção, ter de renunciar ao proposito de tantos annos! É por isso que
eu choro ... e bem vejo que é fraqueza chorar! Tenho pena d'elle;
tenho-a de véras... mas só assim é que eu posso resgata-lo das mãos do
mundo, que m'o ha de perder!
Maria Luciana tentou demover a intenção do marido com razões, e mais que
tudo com lagrimas. Lembrou ella que o mandassem logo para Coimbra, onde
os condiscipulos o não conheciam. Este remedio azedou mais a ferida do
artista.
--Pois eu, exclamou elle, hei de estar evitando que o meu nome seja
conhecido?! Hei de esconder-me para que meu filho se não envergonhe? Hei
de recommendar a Fernando que não diga em Coimbra quem é seu pae, ou
consentir que elle me negue para ser mais bem recebido? Que respondes,
Maria? ...
Não respondeu nada a pesarosa mulher. A dizer a verdade, com que
argumentos responderia ella, sem molestar-lhe o espirito? O ponto mais
sensivel da questão era a dignidade do homem mecanico, trabalhando para
engrandecer o filho. Se este desejo e afan lhe era deslustrado por
desprezo do seu mister, qual gloria lhe restava? Quem lhe asseverava a
elle que o filho, mais tarde, fugiria d'elle como d'um estorvo ao seu
maior engrandecimento?
Não obstante, Maria chamou o filho, e mandou-o pedir perdão a seu pae,
se não queria ir para a loja trabalhar com os officiaes.
--E porque não hei de eu ir?!--respondeu placidamente Fernando, com
grande assombro da mãe.--Eu não tenho vergonha de ser sapateiro. Quero
sê-lo quando m'o chamarem.
--E não te importa o tempo que perdeste a estudar, Fernando?--tornou a
mãe, commovida pela briosa resolução e desapego do filho.
--Não perdi de todo o tempo: serei um sapateiro illustrado como meu pae
o é. Antes isso. Terei horas de estudo e horas de trabalho. Não receio
que me humilhem na loja.
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