Agulha em Palheiro - 8

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excellencia o considere descuidado, covarde, ou traidor.
--Então que eu hei de fazer?!--tornou Eugenia, pondo as mãos com
dilacerante angustia.
--Quer vossa excellencia seguir sua irmã, e esperar em Portugal que eu a
avise do destino do conde?
--Não lembres á sr.ª D. Eugenia um destino impossivel--disse Fernando
Gomes.--Eu não vou para Portugal.
--Como?! não vaes para Portugal?
--Não fujo--replicou Fernando--e, quando fugisse, não iria levar a meu
pae a noticia do nome que deixo em Madrid.
--Pois se ninguem te sabe aqui o nome?
--Sabe-o a minha consciencia.
--Pois foge para França--recalcitrou Almeida--ou para a Italia, ou para
onde quizeres.
--Não fujo; e perdoa-me, Paulina... Nós não podemos fugir. Teu pae vae
receber de minha mão os brilhantes de sua mulher e de sua filha; tu
entras espontaneamente n'um convento; de lá requeres dispensa do
consentimento de teu pae: sairás de Madrid com honestidade, e eu com
honra. É impossivel ser feliz, e dar-te felicidade, se faltarem estas
condições á nossa união. Isto é irrevogavel, meu amigo. Por delicadeza e
compaixão não discutas comigo. Temo que este anjo suspeite da minha
dedicação, se tu me condemnares pela fraqueza das minhas apprehensões.
Paulina teve momentos de suspeita, e outros peores de arrependimento.
Quizera ella esconder-se com a vergonha de seu acto a um coração
bastante forte, ou bastante desempoeirado, que lhe fizesse sentir com
vaidade a grandeza do seu heroismo. Nem elle mesmo a absolvia! elle, por
quem a imprudente se perdera no conceito do mundo, e na estima do pae!
São pungentissimos os espinhos das corôas que santificam os martyres da
honra! Este é um dos casos em que a mulher amada, amigo, sociedade tudo
conjura a azedar com mais fel o calix do homem probo! Acontece que o
leitor de um romance, que taes casos narra, sympathisa com semelhantes
excepções d'este mundo sublunar, mas assim mesmo, o panegyrico do
romance é galardão tardio, que não vale a menor das dôres que
excruciavam a alma do pobre filho de Francisco Lourenço.
Estavam como atrophiadas as duas meninas. Almeida, sem dizer o seu
destino, tinha saído. Fernando encarou na lagrimosa Paulina, correu a
ella, e ajoelhou-se-lhe aos pés, murmurando:
--Duvidarás tu que te adoro, ó anjo da minha alma!... Poderás crer que o
receio de ser apregoado ladrão me faz baixar ao egoismo de maldizer a
hora em que te vi!... Não, não, minha querida filha; não me julgues
capaz de afastar uma infamia com outra...
--Degradei-me por amor de ti--soluçou ella--e agora hei de ir morrer
n'um convento, sem a amizade de ninguem, perdida no conceito de toda a
gente, e tratada com vilipendio por todos... Cuidei que não me tornava
indigna aos teus olhos...
--Indigna aos meus olhos!--exclamou Fernando coberto de lagrimas--quando
te disse eu palavra que te dê razão de tamanha calumnia! Ó Paulina, eu
quero-te pobre, quero fugir comtigo já, mas salva tu da deshonra o meu
nome, que ha de ser tambem o teu. Não leves o valor de um ceitil da casa
de teu pae. Espera que o boato do grande roubo de cem mil cruzados, de
que teu pae te argue, se desvaneça, para que a tua dignidade não fique
tão feiamente manchada. Não vês tu que se trata de salvar o teu nome?
--Salva-lo, como?...--redarguiu Paulina.
--Restituindo os brilhantes--disse Fernando.
--De que serve restitui-los? Crês tu que o pae me dará licença de ser
tua esposa por isso? Meu pae tem cem vezes o valor dos brilhantes... Ha
de perseguir-me atrozmente para eu não casar comtigo, Fernando...
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No entanto, o secretario da legação entrou no hotel de Bartholo de
Briteiros.
Encontrou o velho prostrado no leito, espertando d'uma demorada syncope.
Ninguem ao lado do pobre pae! N'aquelle instante solemne calou-se o
velho rancor de Almeida, e falou a compaixão.
--Mataram-me, as ingratas!--exclamou Bartholo--fugiram, fugiram as
perdidas! Deixaram-me assim, sósinho, a amaldiçoa-las, agora, e sempre,
e na hora da morte...
Almeida deixou-se abraçar pelo anciado velho, e disse-lhe:
--Cobre a possivel serenidade para me ouvir, senhor Bartholo.
--Diga o que quizer, meu amigo. Pouca vida terei para ouvi-lo.
--Suas filhas deviam fugir ao vexame dos interrogatorios judiciaes, e
fugiram. Conduziu-as a minha carruagem; estão em minha casa.
--Estão?!...--exclamou Bartholo.
--Estão, como se estivessem na austeridade d'um mosteiro. Vossa
excellencia deu-lhes o impulso desgraçado que dão os paes que o não
sabem ser. Quiz vossa excellencia pautar o coração de suas filhas:
tentou um absurdo, que deu origem á culpa. A natureza reage contra as
violencias; e a reacção é quasi sempre indiscreta ou criminosa. Sua
filha Eugenia amava o conde de Rohan, sua filha Paulina amava Fernando
Gomes. O francez sei quem é de tradição; Fernando, que eu conheço desde
as escolas, é um homem de tantas e tão insolitas virtudes, que o mundo
actual ha de vêr-lh'as com extranheza. Vossa excellencia impugnou o
enlace de suas filhas com estes dois mancebos escolhidos por ellas. Uma,
ia ser immolada ao marquez de Tavira, que sae embriagado dos alcouces ás
tres horas da manhã; a outra estava esperando a sua hora de sacrificio.
O funesto resultado d'estas coacções foi uma e outra conspirarem
surdamente contra a insensata tyrannia de vossa excellencia. Fernando
Gomes chegava a Madrid um dia antes de vossa excellencia, em vez de
estar na Irlanda procurando a senhora D. Paulina nos mosteiros; o conde
de Rohan, chamado de França por a senhora D. Eugenia, veiu hospedar-se
n'este mesmo hotel.
--E eu sempre vendido e enganado por ellas!...--exclamou Bartholo.
--Era a justa paga do despotismo com que vossa excellencia dispunha de
suas filhas, que tinham em si o despotismo mais imperioso do coração!
Pergunto eu ao sr. Bartholo de Briteiros: se suas filhas, para se
libertarem d'um jugo violento, deram o extranho passo de prepararem a
fuga, que crimes e vergonhas as reterão no mau caminho que tomaram, se
vossa excellencia não tiver a prudencia de as chamar a si, e
rehabilita-las no conceito do mundo?!... Por em quanto não ha nada que
as avilte. O levarem ellas suas joias e as de sua mãe, isso, a meu vêr e
de toda a gente, é cousa de si tão desculpavel, que não tem mesmo penas
na lei que a puna. O valor moral do acto tambem nada significa. Imagine
vossa excellencia que as suas filhas gostavam dos seus enfeites, e,
quando fugiam, levaram comsigo esses adornos da vaidade, aos quaes ellas
não ligaram valor algum real. Já disse a vossa excellencia que não
conheço pessoalmente o conde, amado pela senhora D. Eugenia. Informei-me
agora mesmo na embaixada franceza, e soube que o conde era um dos mais
nobres legitimistas da França, e tem castellos, senão reconstruidos á
moderna, cravejados de muitos brazões, que, se me não engano, podem
competir antiguidade com os de vossa excellencia. Este cavalheiro era
incapaz de ser o receptador de um furto. Em quanto a Fernando, o
portuguez, posto que não tenha castellos nem mais appellido que o
_Gomes_, que vossa excellencia provavelmente não encontra nos seus
nobiliarios, os brilhantes que se presumem ter ido n'uma caixa, em tão
pouco os reputa elle, que me encarrega a mim de os depositar nas mãos de
vossa excellencia. Queira o senhor Bartholo estalar a fechadura da caixa
para verificar a identidade dos objectos. Fernando Gomes não sabe o que
está ahi.
Almeida entregou a caixa a Bartholo, que apenas o interrompia com
variados gestos de raiva, surpreza e condescendencia.
Depois proseguiu:
--Fernando Gomes está fazendo companhia ás filhas de vossa excellencia
em minha casa. O conde de Rohan está hospedado na embaixada franceza. O
que o conde quer não sei; o que Fernando deseja é que a senhora D.
Paulina entre pacificamente n'um convento, e de lá instaure um processo
para vossa excellencia ser ouvido na questão de consentimento para
matrimonio. Resolvi eu, sem permissão d'uns e d'outros, vir propôr a
vossa excellencia o seguinte: suas filhas voltarão para casa, e vossa
excellencia consentirá que ellas se desposem com homens de sua escolha,
recahindo ella em sujeitos tão benemeritos como o conde e Fernando
Gomes. Ouvirei a sua resposta.
Bartholo desceu do leito, amparando-se ao hombro de Almeida. Passou á
ante-camara, sentou-se a chorar e enxugar lagrimas, reflectiu alguns
segundos, e disse:
--Pois que venham as minhas filhas para casa, e eu cederei o que fôr de
razão ceder. Mas, senhor Almeida!... Esta ignominia já deve ser notoria
em todo o Madrid!
--Apenas a justiça, auctorisada por vossa excellencia, anda em
averiguações inuteis. Mande o senhor Bartholo suspender a vulgarisação
que os esbirros estão dando aos desgostos particularissimos de sua vida.
--Vou mandar...--disse Bartholo.
--Veem, por tanto, suas filhas. Eu não levo a certeza dos bons intentos
de vossa excellencia. Por isso mesmo ouso lembrar-lhe que, se forem o
inverso dos meus bons desejos, as consequencias redundarão todas em
desgostos maiores para vossa excellencia, e póde ser que mui grande
vilipendio para suas filhas. O senhor Briteiros, se as chama para as
castigar com violencias, abre n'esta casa trinta portas por onde ellas
podem fugir. Ha uma hora em que um pae reconhece que toda a sua força se
quebra diante do aceno d'uma debil criança. A lucta é desigual com o
coração, senhor Bartholo...
--Diz bem...--atalhou o velho.--Fui eu que as perdi com a educação, com
o mundo, com a vida de Paris e Florença...
--Assim seria; mas o mal é insanavel com cauterios: requer muita
prudencia o corrigi-lo. Vossa excellencia póde faltar a suas filhas
ámanhã; e o mundo ha de chama-las a si com a educação que lhes deu, e
engolfa-las no seu abysmo. Salve-as com tempo, senhor Briteiros. A
sociedade dá ás mulheres este nefasto prestigio, que as enthrona, com a
condição de se despenharem depois na voragem onde foram buscar a
realeza.
--Diz bem...--repetiu Bartholo de Briteiros, que, segundo minha opinião,
percebeu levemente o interlocutor.

XVII
Almeida foi apresentado ao conde de Rohan, que se envolvera na bandeira
franceza, logo que houve noticia do descobrimento da projectada fuga.
Para honra da França, diremos que o descendente do famoso cardeal,
quando recebeu o pacote de Eugenia, se bem que o achou pesado, não
cuidou que levava metade das joias e brilhantes. A mim, porém, me quer
parecer que o illustre conde não faria caramunhas de mau gosto, quando a
menina lhe mostrasse os aderesses de ricas pedras. A França, n'isto e em
tudo, vae na dianteira dos espiritos. A virtude, lá, é cousa tão
contingente, que chega a não ser regra. Menina que foge, não perde aos
olhos do seu raptor, nem o tribunal do mundo se entoga com gravidade de
juiz para cousa tão futil. O conde de Rohan pensava muito em descobrir
Eugenia, e pouquissimo nos brilhantes, quando o cavalheiro d'Almeida lhe
foi apresentado pelo benevolo embaixador francez, amigo de ambos.
Contou o secretario os successos decorridos, e a convenção, pouco
segura, mas preparatoria para bom resultado, que fizera com Bartholo de
Briteiros. O francez, approvando tudo com palavras de muito
reconhecimento, pediu a Almeida a grande mercê de ser o apresentante dos
brilhantes e dos seus respeitos ao fidalgo de Portugal. Estes
_respeitos_, associados aos brilhantes, fizeram que o secretario notasse
a superioridade do espirito da França sobre o de Portugal. Em quanto
Fernando se estava n'aquellas lamurias e quebrantos, o conde de Rohan,
fumando um perfumado charuto de Havana, com a chavena de chocolate ao
lado, sorria mui placidamente, ao passo que o informador contava os
acontecimentos occorridos; e, com quanta graça mesureira tinha de seus
placidos modos, enviou _ao fidalgo portuguez_ (hidalgo, disse elle) os
seus brilhantes e os respeitos d'elle.
--Em quanto á minha boa Eugenia--accrescentou o conde--terá o cavalheiro
a benevolencia de lhe asseverar que eu sou sempre o mesmo homem,
submisso escravo das suas vontades.
Com tão boas novas, correu Almeida a sua casa.
As noticias foram gratas a todos, posto que Paulina por palavras não
denotasse a satisfação intima, que sentira. Póde deduzir-se, sem
desairar a menina, que as amarguras de Fernando, aquellas exuberancias
de dignidade, o muito falar na honra de seu nome, agradaram
mediocremente á filha de Bartholo. Perguntei a differentes senhoras,
differentes em temperamento, se o despeito de Paulina seria justo. Com
muita magua de meu coração ouvi resposta, unanime de todas--que Paulina
tinha razão; que Fernando encerrava nas arterias agua chilra; que um
homem, assim apontado em subtilezas de honra, poderá ser um bom
guarda-livros, um bom mordomo d'uma casa, mas que ha de sempre ser um
amante glacial.
Fiquei suspenso, e prometti refutar semelhantes despropositos, quando
escrevesse este romance. Desisto da tenção formada.
Antes quero que o leitor discuta e abysme as senhoras que injuriaram o
pobre moço, e acharam extrema graça e galhardia de animo no conde de
Rohan.
Entretanto, Paulina, ao despedir-se de Fernando, abraçou-o com
exterioridades de muito affecto, e pediu-lhe que não chorasse,
accrescentando:
--Tu podes contar sempre comigo, Fernando. Esperanças de que meu pae
consinta no casamento, não levo nenhuma; mas se tu entenderes que, por
meios da justiça, podemos conseguir os nossos desejos, tão
desgraçadamente contrariados quando eu me julgava e te julgava feliz,
estou prompta a requerer.
Notem a frialdade d'esta linguagem! Fernando, Eugenia e Almeida todos a
notaram. Elle, porém, beijou-lhe a mão, e disse:
--Vae, minha amiga, e esquece-me, se quizeres e poderes. O que nunca
poderás esquecer é que o homem, que te não servia para o coração, tinha
alguma boa qualidade que ha de eternamente viver em tua memoria. Antes
esquecido por ti, que deshonrado por amor de ti, Paulina.
Sobreveiu o secretario com reflexões tendentes a conciliar os animos
despeitados dos dois tão amantes, tão doidos de alegria, algumas horas
antes; e agora, a separarem-se, com a desconfiança n'alma, a
desconfiança que é quasi sempre a doença morta do coração!
Paulina desceu, chorando, encostada ao braço de Almeida.
O filho do artista lembrou-se, n'este acerbo momento, de sua mãe, porque
teve precisão de orar, e quem lhe ensinara a oração fôra sua mãe.
Deixemo-lo orar e chorar. Preces e lagrimas assim, os anjos as levam ao
Senhor. Áquellas almas disse Jesus: «pedi, e sereis attendidas.»
Os que dão cegamente sua alma a quem a não merece, e rogam a Deus o
resgate d'ella, sentem-se livres.
Os que vão de rastros e quasi moribundos sob o pé da injustiça humana,
oram, e recobram uma força, que é insulto á covardia dos fortes.
Deixa-los chorar e orar.
Deus lhes mostrará os balsamos das urnas que ahi estão a desbordar desde
que o Homem-divino perdoou aos que o matavam por ignorancia. Porque não
hão de perdoar estes homens de barro á cafila de farizeus que os não
entendem?
Da cafila de farizeus exceptuo Paulina de Briteiros. Se eu não podesse
estrema-la, rasgava aqui estas paginas, e queimava os apontamentos, para
que nenhum collega meu d'este maldito officio saísse alguma vez a lume
com a historia d'uma linda mulher com alma tão feia!
Paulina e Eugenia entraram nos seus aposentos, sem verem o pae.
O secretario foi ao quarto de Bartholo entregar a outra porção de
brilhantes, e continuar sua missão de conciliador e conselheiro.
O fidalgo denotava boas intenções, em quanto ao conde de Rohan. De
Fernando Gomes disse, á terceira pergunta, que havia de pensar no melhor
modo de se realisarem os desejos de sua filha.
As meninas passaram aquelle dia sem leve incommodo de sua saude, nem
accessos de lagrimas que mereçam chronica. Doe-me ter de dizer que, ahi
por fins da tarde, riram com as creadas da figura que ellas deviam
fazer, quando saltaram á carroagem, desgrenhadas, com os capuzes das
capas encarapuçados á laia de feiticeiras. Esta frivolidade de espirito
feminil é cousa tão vulgar, que eu peço á leitora que não levante a
pedra, e deixe ir as cousas em paz, como Christo mandou ir uma
peccadora.
No dia seguinte Fernando Gomes, instado por seu amigo, saíu com elle em
carroagem. Passearam até á ponte de Segovia, e apearam na praça do Sol,
onde o secretario havia de cumprir ordens do ministro.
O acaso encaminhara para alli o marquez de Tavira, que trazia o espirito
encavalgado por um dragão.
Viram-se e reconheceram-se.
O marquez, cego de sua raiva, parou em frente de Fernando, e disse a
brados que muita gente ouviu:
--Ainda tem a pouca vergonha de se mostrar nas praças um biltre que
seduz filhas-familias a roubarem seus paes!
Se o periodo fosse mais comprido, morria incompleto na garganta do
marquez. O filho de Francisco Lourenço engriphou os dedos com sanha
felina. O rancor, brutalisando o homem, parece que lhe dá parecenças com
a fera, cuja sanha imita! As dez unhas de Fernando faziam espirrar o
sangue gothico do marquez, que escabujava como o Lacoonte de Virgilio
nas roscas das serpentes. Cairam ambos de modo que o de Tavira foi
fender o occipital no eixo d'uma carroagem, cujo dono fizera alto para
disfructar a lucta.
Almeida estava, poucos passos distante, observando o desenlace, que o
enchia de jubilo. O marquez, ensanguentado, coberto de lama, e quasi
desaccordado, nem de leve se boliu, quando Fernando desencravou as
unhas. Approximou-se Almeida, e offereceu ao fidalgo a sua carroagem
para conduzi-lo onde quizesse. O soberbo de sua miseria respondeu com
uma insolencia, e retirou-se com respeitosa, mas curiosa cauda de
gaiatos, testemunhas pertinazes e minudenciosas de todos os conflictos
magnificos.
Constou ao secretario que o marquez saíra, no seguinte dia, de Madrid,
com direcção a Portugal, onde a presença do convencionado não
incommodava ninguem. Parece que Bartholo de Briteiros lhe emprestara
dinheiro com que elle podesse na patria sustentar a antiga ociosidade e
dissipação de seus avós. E, como não sei se virá de molde lembrar o nome
d'este sujeito no decurso da novella, fique o leitor sabendo que o
marquez de Tavira, depois de residir em Lisboa alguns mezes, fez-se um
liberal rasgado, ou roto, como quizerem, e conseguiu ser nomeado
ministro n'uma das côrtes da Europa, e mais tarde governador dos estados
da India, d'onde veiu, já muito na flôr dos sessenta annos, casar em
Portugal, onde está rico e honrado.
Paulina, sabedora da derrota que soffrera o primo marquez, sentiu uma
satisfação que eu sinceramente lhe não louvo, e ao mesmo tempo um
accrescimo de estima por Fernando, estima que eu não posso attribuir ao
coração. Estas anomalias que a moral reprova e a animalogia desentende,
são uns geitos de mulher que avisadamente não discuto. São assim. Deus
as faça melhores ou peores, de modo, porém, que fiquem mais decifraveis
e intelligiveis.
Bartholo, como é bem de ver, ficou raivoso contra Fernando Gomes, e
esteve uma noite toda a scismar no modo menos estrondoso de se desfazer
d'aquelle inimigo. Ponderou o malvado intento de lhe comprar a vida; mas
occorria-lhe que em Madrid era difficil e arriscado andar em cata de um
sicario destro e fiel. Desanimou: mas jurou que sua filha Paulina havia
de morrer n'um convento, se teimasse em querer casar com o facinoroso.
Este successo apressou o casamento de Eugenia com o conde de Rohan. O
fidalgo colheu informações, que condisseram exactamente com as do
secretario, mas muito por miudo. O conde era oriundo dos primeiros
soberanos da Bretanha, condes de Porrhoit, viscondes de Rennes, por
Alain I, quarto filho de Eudon, que vivia no seculo X. D'esta
nobilissima stirpe procediam os duques de Rohan, com esta legenda no
escudo: ROI NE PUIS, PRINCE NE DAIGNE, ROHAN JE SUIS.
Á vista d'isto, e do mais que deixo á averiguação dos genealogicos,
Bartholo de Briteiros deu Eugenia ao conde, liberalmente dotada, e
resolveu ir viver em Paris no inverno, e n'um dos castellos da Bretanha,
no verão, em companhia de seu genro.
O velho principiava assim a vingar-se de Fernando Gomes.
No jantar nupcial, ao qual assistiram titulares hespanhoes, e a
diplomacia dos differentes estados, Bartholo de Briteiros, n'um brinde
que propôz a seu genro, disse em remate do discurso:
--Eu morrerei feliz, se vir minha filha Paulina casada com um parente
dos Rohan; e, se não puder ser tanto, que seja, e muito ainda será, um
nobre da França ou das Hespanhas, a quem meu genro aperte a mão, sem
receio de a retirar suja.
--De sangue...--disse Almeida com um sorriso que tinha fogo do inferno.
Esta palavra «sangue» turvou um pouco o vinho que Bartholo bebia. Ao
ex-ministro da Alçada quiz parecer que havia n'aquelle dizer succinto
uma allusão. Nem que o secretario da legação fallasse em corda!

XVIII
Fernando Gomes, informado, não por Paulina, mas por Almeida, dos
successos que se iam encaminhando a um natural e triste desfecho de
tantos trabalhos, póde dizer-se que morreu antes que o matassem.
Senhoreou-o amargura serena, sem contorsões; mas profunda, luctuosa, e
inalteravel por nenhuma diversão.
Alguma carta que escrevia a Paulina ia breve, desalentada, sem a palavra
esperança, sem a palavra saudade, sem a palavra amor.
Divagava por uns nevoentos dizeres, como devem ser os do enfermo de
mortal doença, que antevê o fim, e se está, meio vida, meio eternidade,
conversando com amigos, que deixa sem saudade e sem esperança de tornar
a ve-los n'outro mundo.
Paulina entendia mal esta nova phase do espirito de Fernando, e
respondia-lhe queixando-se da seccura de suas cartas; porém, a tibieza
dos queixumes podia apostar lethargia d'alma com o apparente regelo das
cartas de Fernando.
--Como cahiste n'esse estado? perguntava Almeida ao seu amigo.
--Era o meu estado natural. Assim me conheceste no cerco e na
universidade. Paulina emprestou-me uma segunda natureza que eu lhe
devolvi em lagrimas, e fiquei como era, peor do que era, porque havia
uma virtude em que eu tinha fé--o coração da mulher--e esta crença
tambem se foi diluida em lagrimas.
--Injustiça!--interrompeu Almeida.--Não te diz ella que está prompta a
requerer o seu deposito?
--Disse, não diz.
--Propõe-lh'o.
--Não. Quero forrar o meu pundonor ao ultraje da negativa.
--Farei eu a proposta, mediante o conde de Rohan.
--Recuso o favor. Quem te diz a ti que o conde de Rohan deseja o
casamento de sua cunhada comigo?
--Elle.
--Não creias. O conde de Rohan tem irmãos. Paulina é rica e formosa como
Eugenia.
--Imponho-me o dever de não julgar ninguem pelos teus olhos. Tu és uma
raridade, um excentrico, uma cousa com geitos de pessoa. Erras quantos
juizos fazes. Eu hei de sondar o conde. Póde ser que tudo se consiga sem
processo judicial.
O secretario procurou o conde. Fallou amplamente de Fernando Gomes, e
das suas injustiças ao caracter de Paulina. O conde mostrou sympathisar
com o caracter do portuguez, e disse:
--Eu fallarei a meu sogro.
E falou de modo que as suas ultimas palavras summariam o elogio que se
lhe deve:
--O homem, cuja mão eu aperto com sincera satisfação de quem sabe prezar
a virtude, é Fernando Gomes. Peço encarecidamente a mão de minha cunhada
para este tão modesto como honrado mancebo. Condescenda, meu sogro, para
eu poder dar-lhe o nome de provado amigo.
Bartholo de Briteiros respondeu umas palavras oscillantes, que nenhuma
resolução significavam. O conde saiu maguado d'esta conferencia, e disse
á cunhada:
--Se Paulina quizer casar com Fernando, tem de adoptar meios
extraordinarios. Requeira o deposito, que a familia do ministro francez
presta-lhe sua casa.
Paulina respondeu:
--Era preciso que Fernando ao menos me enganasse, para eu acceitar o seu
conselho. Fernando, quando me escreve, nem ao menos diz que me ama.
--Ama com a mais segura das paixões: a paixão que mata com infernal
lentidão.
--Se elle m'o fizesse assim acreditar!...--replicou ella.
O conde inferiu que Paulina estava cançada das virtuosas,
incomprehensiveis e fastidíosas singularidades de Fernando. E assim,
muito á puridade, o communicou ao secretario.
Bartholo chamou Paulina, e mostrou-lhe cartas de Lisboa. A importancia
d'estas cartas ha de ressumbrar na seguinte, que ella escreveu a
Fernando:

«Meu querido amigo.
«Nem a cegueira do amor me engana. As tuas cartas dizem-me tudo que está
em tua alma. Eu não sei por que desmereci aos teus olhos. Não sei,
Fernando! Aquella impensada fuga que eu havia de fazer, com teu
consentimento, creio que me tirou todo o prestigio. Esta pobre
formosura, que tanto encarecias, já te não inspira mesmo as palavras
animadoras que releio nas antigas cartas, com o coração traspassado de
dôr! O ser rica sabia eu que era cousa nenhuma em teu conceito; mas o
ser-te leal ha dois annos, á custa de tormentos tamanhos, cuidava eu que
seria um titulo á tua eterna dedicação. Louca mulher, que tão vaidosa
julguei merecer o que o mundo não póde dar! Com que me recompensas tu o
fel que eu tenho tragado desde que voltei dos teus frios braços para
debaixo dos olhos severos e queixosos de meu pae? O teu esfriamento é
incrivel! Se me dissessem que amas outra mulher, comprehenderia o homem
e a ingratidão. Mas sei que vives só, que vives triste, que tudo te é
indifferente, e eu mesma quasi esquecida! Cada carta que me envias é
como obrigada pela delicadeza. Palavras inintelligiveis, apprehensões
vagas, e nenhuma em que me digas positivamente o que pensas, e esperas
de mim! E eu amante como sempre! Capaz de tudo, mas incapaz de me
abalançar a novos sacrificios, sem que me tu digas corajosamente:
«Luctemos de novo!» Porque m'o não dizes, ó Fernando!?
«Ainda agora saí do quarto de meu pae, onde fui chamada, e entrei a
tremer. Mostrou-me cartas de Portugal, cartas forjadas talvez aqui, e
mandadas lançar lá no correio. Todas falam de ti miserias que eu me pejo
de dizer. Mas adivinho que desejas ouvi-las. Creio que, em dizer-t'as,
te allivio de conjunturas dolorosas. Noticiam que teu pae é um sapateiro
de Lisboa, que tua mãe era colchoeira, e que andas por aqui a estragar
as economias de teu pae, em quanto elle lá está quebrado de trabalho,
cerceando ao pão de cada dia para te sustentar uma vida aventureira. São
assim miserias d'este jaez. Irritou-me a alegria de meu pae, quando elle
com ar de victoria me estava lendo estas calumnias. Não tive mão em mim,
e disse-lhe: «Isso é tudo falso. Se o pae de Fernando fosse um
sapateiro, não iria visita-lo a Londres, nem lhe daria a decencia com
que tem vivido ha dois annos em Florença, aqui, e em toda a parte. Meu
pae encontrou-o em casa d'um principe, e o principe de Monfort não
aperta a mão a filhos de sapateiros, nem ministros de Portugal em
Hespanha o tratariam com tanta consideração, se elle fosse o que essas
cartas dizem. Meu pae enfureceu-se dizendo que o Almeida era filho d'um
latoeiro, e por isso occultava o teu nascimento...»
Fernando, n'este ponto, machucou a carta na mão direita, e atirou-a aos
pés.

RESPOSTA
«Minha senhora.
«Não mentiram ao pae de vossa excellencia. Sou filho d'um sapateiro, e
d'uma colchoeira. Meu pae está ganhando o pão que me sustenta, e
vendendo as suas economias para suprir ás despezas que o seu trabalho
não alcança. O sapateiro foi a Londres, é certo; mas não foi visitar-me,
como vossa excellencia presume: foi pedir-me que voltasse á pobre casa,
onde minha boa mãe me chamava para me abraçar antes de morrer. Ensurdeci
ao chamamento de minha mãe, e não vi as lagrimas de meu pae. Vossa
excellencia tinha-me levado ouvidos e olhos, deixando-me no coração
apenas a fibra do remorso de ser mau filho.
«Humilho-me diante de vossa excellencia, não como filho do sapateiro,
mas avergado pelo arrependimento de lhe ter occultado a minha humilde
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