Agulha em Palheiro - 2

Total number of words is 4620
Total number of unique words is 1833
35.1 of words are in the 2000 most common words
47.5 of words are in the 5000 most common words
54.4 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
Fernando, obedecendo aos novos impulsos do momento, não sabia bem o que
dizia, nem, a menos que a natureza se não houvesse singularisado n'elle,
devia insistir muito tempo em pontos de tão isempta grandeza de animo.
N'aquelle mesmo dia desceu á officina, e disse ao pae que lhe talhasse o
seu serviço. O pae encarou n'elle com muita amargura e disse-lhe:
--Vá para cima!
Os officiaes olharam-se com espanto, como adivinhando a significação
d'aquelle incidente. Fernando, desde a idade de nove annos, nunca
descêra á casa de trabalho, nem trocára palavra com algum dos officiaes.
Estes, por ironia, e lá muito em secreta maledicencia, denominavam-n'o o
_fidalguinho_, e riam á sucapa, quando, atravez das portas envidraçadas,
o viam passar no pateo sem lhes virar um canto de olho.
A situação de Francisco Lourenço era afflictiva. A corajosa apresentação
do filho desarmara-lhe a tal qual ira, que elle muito precisava azedar
com a rebeldia, para tirar a limpo o seu plano. Pensava elle que o
estudante recebera aterrado a nova: não se enganou; mas longe estava de
cuidar que a reacção do brio o determinasse a acceitar sem custo um
tirocinio de sapateiro. A verdade é que ambos estavam enganados: o pae
com a franqueza do filho, e o filho com a sua propria coragem.
Não sabia Francisco que dizer nem fazer. Evitava encontrar Fernando; mas
forçoso era verem-se á mesa da ceia. O artista não poude engulir bocado.
Maria ensopava o lenço em lagrimas. Fernando, grave, mas não triste, ia
comendo, segundo o seu costume, e fazia o prato de suas irmãs, extranhas
ás amarguras dos paes.
Quando as meninas, depois de darem graças a Deus, se retiraram ao seu
quarto, Fernando disse com muita brandura:
--Porque hão de estar tristes?! Eu já disse á mãe que acceito qualquer
posição que meu pae me der. Estou muito em tempo de aprender o officio:
se meu pae não quer que seja o seu, indique-me outro. Vou sem saudades
dos livros, nem pesar de esperanças perdidas em grandezas do mundo.
--Mas envergonhas-te de ser filho d'um homem do povo!--atalhou o pae.
--Não me envergonho: vocemecê não entendeu bem a minha magua. O que eu
não posso supportar são as zombarias dos meus condiscipulos, que por
força me hão de encher de fel o coração, e fazerem-me mau. Qualquer que
seja o officio mechanico que me derem, viverei com os meus eguaes, e
poderei distinguir-me d'elles com a minha instrucção, sem que ella me
faça alvo dos seus motejos. Isto é o que eu desejo e penso.
--Tens dezesete annos, Fernando!--disse o pae--É tarde para recomeçares
nova carreira.
--Eu me applicarei para ganhar tempo. Não lhe dê isso cuidado, meu pae.
--E queres ser sapateiro?
--Serei...
Como este SEREI foi dito! Que livro eu tenho debaixo d'aquella palavra!
Que volume de psycologia, de physiologia de coração, de philosophia
transcendental, de tudo quanto ha ahi attinente ao homem, eu era capaz
de extrahir d'aquelle SEREI! Da accentuação que Francisco Lorenço deu á
palavra _sapateiro_, tambem podia formar-se outro volume psycologico,
physiologico, um tractado completo do espirito homem em todas as suas
variantes desde a sinceridade do santo, até á ironia do demonio de
Goëthe, que era o mais argucioso e ironico argumentador, que o inferno
cá mandou, depois dos enviados que prégaram a distincção entre homem e
homem!

III
Aquelle dia e o seguinte passaram em indecisões do pae e do filho.
Fernando esperava as ordens, sem ousar abrir um livro. A pobre mãe
andava, de um para outro, a negociar a reconciliação: ao marido dizia
que Fernando não podia nem devia retroceder: ao filho prégava-lhe
sermões de paciencia para tolerar os ditos dos companheiros de aula, e
ter bastante vaidade de ser filho de um operario honrado. O certo é que
Maria com os seus sermões conseguiu revirar o animo do filho a tal
ponto, que o moço, olhou em si, e viu-se ridiculo por dar tamanho pêso
ás chufas dos condiscipulos.
_O que a mulher quer, Deus quer_: é o titulo de um livro francez, que
póde ser um proverbio em todas as linguas. Francisco Lourenço, com os
seus assomos de louvavel dignidade, ia transtornando a carreira do
filho, tão de longe pensada e afagada; ora Maria Luciana, em termos
brandos, com o imperio de lagrimas, com aquelle feminil despotismo que
tudo amolga e dobra, mais cedo do que devia esperar-se, reduziu o filho
á rasão e consciencia de verdadeiros brios.
Não contente ainda, levou Fernando a pedir perdão ao pae de o ter
magoado com as suas vaidosas queixas, promettendo honrar-se em confessar
por si mesmo, e com orgulho, o officio de seu pae.
Francisco Lourenço resurgiu do seu quebranto, chorou mais doces
lagrimas, e perguntou a Fernando se elle queria ir logo para Coimbra, e
concluir lá os estudos preparatorios.
Fernando mostrou desejos de ir, e logo os satisfez.
Não comprehendia a mãe como pudesse ir sósinho, por esse mundo além, um
menino de dezesete annos! Queria acompanhal-o, estar lá algum mez a
ordenar-lhe a casa, ou esquadrinhar familia que lh'o recebesse e
tratasse. Fernando, já sciente do que era vida de estudante, dissuadiu a
mãe do seu proposito, e prometteu regular-se de modo que nem o
desaconchego o molestasse, nem seus paes se arrependessem de o deixarem
ir entregue a si mesmo.
Fernando tomou casa em Coimbra, e viveu sósinho, e arredado de todo o
concurso de academicos. Esta soledade não era de genio nem gosto. Embora
tivesse elle dito que se honraria de confessar cujo filho era, manda a
minha fidelidade de historiador asseverar, que o moço se esquivava dos
condiscipulos folgasãos para forrar-se á contrafeita honra de se
apregoar filho d'um sapateiro.
Poucos dias depois de sua estada em Coimbra, organisou-se o batalhão
academico para ter parte na guerra da restauração. Fernando Gomes
alistou-se sem licença de seu pae. A bandeira hasteada era a da
liberdade. As doutrinas proclamadas eram as da egualdade. O filho do
artista sympathisava com a causa ventilada desde 1820. Ouvira desde
creança citar os egregios nomes de Ferreira Borges e Fernandes Thomaz,
arvores frondosas de civilisação, regadas com o sangue de Gomes Freire,
e de outros martyres iniciados da revolução. Execrava as forcas
hasteadas no Porto, tres annos antes, e em Lisboa, para o supplicio dos
academicos. Além de tudo, acorçoava-se do intimo rancor que votava a
fidalgos, por ter sido victima dos escarneos d'elles nas aulas de
Lisboa. Sobejava-lhe causa a justificar o enthusiasmo com que pediu uma
espingarda, e, primeiro que nenhum, se fardou, e impacientou com a
demora da primeira batalha.
Maria Luciana, quando tal soube, quiz ir em cata do filho: o marido
antecipou-a no intento, e foi a Coimbra. O batalhão academico ia já
marchando caminho do Porto. Francisco Lourenço retrocedeu para Lisboa,
cogitando em mandar soccorros a Fernando.
Devemos conjecturar, sem receio de erro, que o desembarque do libertador
no Mindello fôra saudado de todo o coração do amigo de Bocage. Francisco
Lourenço, com quanto arredado da phalange dos poetas mortos no começo
d'este seculo, embriagou-se no ambiente d'elles, e bebeu a sorvos a
liberdade nos hymnos propheticos dos timidos evangelisadores, que a não
viram, senão ao longe na inundação sanguinea da França, e nas victorias
de Bonaparte, que abrazavam allumiando ao mesmo tempo. Bocage devia de
muitas vezes romper em apostrophes contra os frades que o viam amansado
nos carceres da inquisição, e nos cubiculos conventuaes. Póde ser que o
humilde amigo do poeta, em expansivas horas, merecesse a confidencia das
amarguras que ennoitaram o melhor da vida do alquebrado espirito de
Elmano. Se isto não bastasse a acrisolar o coração do homem do povo,
quer-me parecer que o velho odio a José Agostinho de Macedo--energumeno
panegyrista das forcas--bastaria a fazer d'elle um acerrimo _malhado_.
Em quanto a mim, Francisco Lourenço abençoara secretamente a deliberação
de Fernando; e, se foi a Coimbra, o intento de tal ida por certo não era
estorvar-lhe o ir onde o melhor da mocidade academica levava suas forças
de alma, e o prestigio da intelligencia, com que muito se move e reanima
a força material das massas. Póde ser que o artista levasse recheadas as
algibeiras de peças para fornecer o moço, e preparal-o para as
contingencias de emigração. Esta hypothese dá em certeza, quando vemos
Francisco Lourenço empenhado com uma casa mercantil ingleza para fazer
chegar ás mãos do filho avultada quantia, que o moço recebeu com alegres
hymnos á liberdade ... e ao dinheiro tambem.
Fernando Gomes, em todos os recontros com o inimigo, deu provas de
grande e imprudente coragem. Foi duas vezes ferido, e muitas vezes
obrigado por disciplina a retirar do fogo. N'aquellas vertigens de
bravura, que tanto pódem ser desprezo da vida, como culposa ambição de
gloria, nenhuma consideração de obediencia o retinha em seu posto. Lá,
os camaradas, denominavam-n'o o _pequeno diabo_, termos que se
conformavam com a pequenez e magreza do seu corpo. O imperador já o
conhecia de vista e de nome: muito fôra preciso para realçar entre
tantos bravos, saídos dos bancos escolares, e quasi todos a competirem
em intrepidez com José Estevão de Magalhães, aquella vivida lampada que
ainda hontem se apagou no altar da patria, se é que das cinzas d'elle a
arvore da liberdade não tem sempre de haurir seiva para reflorescimentos
novos.
Terminada a guerra nas provincias do norte, Fernando Gomes, condecorado
com o habito da Torre e Espada, foi a Lisboa abraçar sua familia, e
seguir as manobras do exercito que rebatia o assedio de Lisboa.
Depois da convenção de Evora-Monte, e de todo apaziguada a guerra civil,
Fernando tornou para Coimbra a começar sua formatura em direito.
Proclamada a egualdade, extinctos os privilegios, rotos os diques que
estancavam as prerogativas das raças nobres, e derramado o thesouro das
coisas boas á vida por todos os homens indiscriminadamente, era de
esperar que Fernando Gomes se désse por contente de ter nascido filho de
um sapateiro, visto que o sapateiro ficava social e legalmente egualado
ao titular. Tambem assim o esperava o, ha pouco, valente soldado das
linhas do Porto, e, agora, desvelado e distinctissimo soldado nas lides
da intelligencia!
Sublime engano!
Os seus mesmos camaradas, quer invejosos da condecoração, quer da
intelligencia, uns com outros celebravam sarcasticamente os triumphos do
filho do mestre Francisco Lourenço. Os conterraneos diziam que as suas
melhores botas as deviam ao engenho do sapateiro-poeta da calçada do
Sacramento; os provincianos, pela maior parte oriundos de uns fidalgos
de meia-tigela, como lá dizem uns dos outros, não apertavam, sem
repugnancia, a mão de Fernando, nem se detinham a falar com elle, quando
podiam ser vistos e censurados pelos academicos de Lisboa.
Isto acontecia um anno depois da restauração dos direitos do homem!
Trinta annos já rodaram sobre esse facto de ridiculas convenções, e o
filho do sapateiro é ainda hoje, e o mesmo será d'aqui a cem annos, um
conviva chamado pela lei a sentar-se á mesa universal; mas a lei é uma
tola: lá está o fiscal d'estas universaes communhões, que tranca os
cancêllos do banquete, e diz ao filho do sapateiro o que já Horacio lhe
dizia: _ne sutor ultra crepidam_; ou _tractent fabrilia fabri_, que tudo
quer dizer: «não se admittem sapateiros cá.»
Fernando recalcava em flagellador silencio o seu pesar. Nem mesmo a sua
mãe se abria. Quando esta lhe perguntava que tratamento recebia de seus
condiscipulos, o academico respondia:
--Tratam-me bem.
--Os tempos mudaram--accrescentava o pae.
--Mudaram; os homens é que não--dizia Fernando; e de salto, aventava
assumpto que désse córte na conversação penosa.
Proseguiu o moço em sua formatura, e concluiu-a com ser premiado no
ultimo anno, como em todos tinha sido.
Suppunha Francisco Lourenço que seu filho, notavel pelos serviços
prestados á restauração, e por seus premios, fosse chamado ás funcções
da republica, sem que as elle solicitasse. Decorreram mezes, sem que o
correio de algum ministro batesse á porta de Francisco Lourenço a
procurar da parte de seu amo o valente e intelligente bacharel.
O artista, de véras offendido de tamanha incuria, queixou-se d'isso ao
filho. Fernando sorriu da boa fé e crença de seu pae, e disse-lhe que
estava sinceramente arrependido de não ter renunciado ao estudo, quando
chegou a descer á loja para sentar-se entre os officiaes.
Este arrependimento, sincero ou não, desgostou o pae, e toldou-lhe o
rosto de tristeza inconsolavel.
Fernando foi ao Cartaxo, onde Francisco Lourenço tinha o melhor da sua
livraria, comprada em nove annos com dispendiosa liberalidade de
bibliómano. Como o local era triste, e a bibliotheca mui convidativa, o
bacharel alli passou um anno, quasi só, raras vezes visitado por seus
paes. Leu muito, leu tudo, e ardeu em desejos de ir vêr os locaes
descriptos nos livros de viagens, e os monumentos perpetuados na
historia. Virgilio e Dante deram-lhe o amor ás ruinas da Italia, Byron
ás da Grecia, Lamartine, Chateaubriande e Volney ás do Oriente.
Pediu a seu pae moderados recursos para viajar dois ou tres annos.
Francisco Lourenço, antes do filho lh'os pedir, quizera offerecer-lh'os,
pesaroso de o ver assim solitario, e receioso d'algum funesto resultado
em tão contumaz estudo. Deixa-lo ir, porém, custava-lhe a vida; e a
estremosa mãe, quando era consultada a tal respeito, dava o seu parecer
com lagrimas.
Aos rogos de Fernando nenhumas razões empeceram: Maria Luciana transigiu
com o assentimento do marido.
Os recursos pedidos eram muito inferiores á liberalidade com que o pae
lhe estipulou o dispendio de dois annos, confiando-lhe, afóra isso,
ordens de quantias indeterminadas. Tal confiança era bem cabida no moço,
que durante a guerra e a formatura, cerceara, ainda de suas mesadas,
economias com que comprava livros de recreio.
Sahiu Fernando por França em direitura á Italia. Deteve-se em Roma
alguns mezes, que lhe pareceram rapidos e deleitosos. Ninguem o
conhecia; a ninguem procurava. Sósinho, de ruina em ruina, vivia com o
passado, e dava pouquissima de sua admiração ás grandezas do presente.
Conversava com Ovidio em Sulmona, com Virgilio em Mantua, e com Horacio
em Tibur. Deliciavam-no mais as ruinas do theatro de Marcellus, que as
pompas do Vaticano. Qualquer estatua mutilada, extrahida das escavações
dos esboroados templos dos idolos, lhe tomava mais espirito e
contemplação que as obras primas de Miguel Angelo.
Encontrava portuguezes emigrados n'aquellas paragens, onde D. Miguel de
Bragança procurava hospitalidade á sombra da theara pontifical. O
principe de Portugal, com quanto convisinhasse do Vigario de Christo,
que tem as chaves do céo, não sabemos se teve fome: as chronicas
contemporaneas dizem que sim. O successor de S. Pedro de certo lhe
emprestaria as chaves do céo, se sua alteza quizesse para lá ir, as
chaves porém, dos reaes celleiros e cofres, essas é que decerto lhe não
emprestou. Os papas dão muito mais facilmente as ambrosias celestiaes,
que umas sopas diarias aos principes proscriptos.
Não sei se Fernando Gomes pensava n'isto quando via o senhor D. Miguel
de Bragança, e um emigrado portuguez lhe dizia que o rei não tivera com
que comprar leite para o almoço d'aquelle dia. O emigrado que estas
miudezas referia era um major Pacheco, que seguira o seu soberano,
espontaneamente, desde o embarque até Roma. Casualmente o encontrara
Fernando por lá escondido nos pardieiros da Roma dos Cezares, ou
meditando nas virtudes de Tito, ou nas cruezas de Nero. Qualquer das
meditações frisariam como o infante desterrado, que uns chamavam-lhe
Tito, e Nero outros, posto que elle não fosse uma nem outra cousa: era
apenas uma creança, quando rei; e um instrumento cego em mãos de togados
infames, de prelados devassos, e de fidalgos estupidos. Desde que o
raio, forjado ao fogo da civilisação e na bigorna mysteriosa do tempo, o
fulminou a elle e aos seus, o filho de Bragança ficou sendo um
desgraçado digno de respeito, de commiseração, e de real parentella mais
compassiva e generosa.
Ora vejam em que ladeira eu ia escorregando agora: Ahi está o meu pobre
romance guindado a umas alturas de transcendental politica, d'onde se
lhe não acudo, o coitado vinha abaixo estoirar n'alguma estrondosa
parvoiçada! E tudo isto veio assim de seu natural. Por amor d'aquelle
major Pacheco de Lobrigos que Fernando Gomes topou lá n'umas ruinas do
Colyseu, ou cousa assim. E insisti n'este ponto, porque eu conheci em
Villa Real, ahi por 1847, este major que voltara de Roma poucos mezes
antes, e andava esmolando pelo Douro, com as suas barbas apostolicas, e
grandes oculos de metal branco. Depois tornei a vel-o, estendido na
estrada que conduz de Villa Real a Chaves, traspassado por duas espadas,
e com a cabeça fendida até aos dentes. Fôra assim espedaçado pelas
hostes do conde de Vinhaes, que mais acima mandou espingardear o general
miguelista Mac-Donell, a cujas ordens andava o major Pacheco.
E como quer que este ancião assim espostejado, e sepultado no adro d'um
presbyterio contiguo á estrada, deixasse uma filha linda e pura como um
anjo, e esta filha enlouquecesse de dôr, escrevi eu n'estes tempos uma
elegia em prosa muito dorida, a qual publiquei no _Nacional_ do Porto.
Em tão má hora dei a lume este testemunho de minha compaixão por os dois
infelizes, que ambos jaziam mortos, e não sei qual d'elles mais
cruelmente morto, em tão má hora digo, que se pude sair vivo das garras
dos sicarios, mui pouco catholico sou em me não ter pesado a cera, e
converter esta cera em cirios, e adornar com estes cirios o altar das
liberdades patrias!
Agora é de mais!

IV
Transferiu-se Fernando Gomes á Grecia. Estanceou com o seu Homero e
Byron de um a outro padrão das fabulosas façanhas, historiadas em
Thucidides e Plutarcho. Viu Grecia degenerada escrava, e de todo perdida
para a resurreição da sua dignidade. Não teve um suspiro que lhe désse
em hemistichio de ode, ou decima de hymno, como toda a gente faz quando
carpe um povo cancellado do mappa das nações livres. «Nações
livres!--dizia entre si Fernando Gomes.--Eu sei cá o que são livres! nem
homens livres! Liberdade de morrer de fome, em toda a parte a ha, graças
a Deus e ao progresso! Poemas ao trabalho e ao artista, em toda a parte
se escrevem, graças á metrificação e aos especuladores ociosos, que
deificam o suor e as mãos calosas, sentando-se em espaldares flacidos, e
vedando o accesso de seus gabinetes aos operarios suados, calejados e
sujos! Em toda a parte se mantem em nome da liberdade, e se chora em
nome da servidão! Oh! meus pobres gregos, deixai-vos viver e morrer em
vossa lethargia, que, se sacudires o torpôr de sobre o peito, virão
depois uns próceres e éphoros, como os antigos, que vos hão de uns pôr o
pé no peito desentorpecido, para subirem ao ponto donde vos atirem para
baixo com muita injuria e muito desprezo da vossa ignobil raça de servos
redimidos por elles!»
Assim devia falar comsigo e com os gregos o nosso viajante.
Mezes depois, temos Fernando em Paris, onde o senhorêa profundo fastio.
Muito especial devia ser a compleição de moço de vinte e seis annos, que
se anojava em Paris!
Passou á Allemanha, marinhou os pincaros da Suissa, e desceu outra vez á
Italia, fatigado d'alma e corpo, triste como um desterrado, saudoso do
seu Cartaxo, saudoso de paes e irmãs; porém sem forças com que aproar no
rumo da patria.
Estava em Florença: restavam-lhe dois mezes dos dois annos concedidos.
Releu Virgilio e Dante, Petrarcha e Tasso, os seus amigos de Italia, os
seus guias e commensaes, as pallidas sombras que o seguiam até ás
regiões convisinhas do sepulcro, ás tenebrosidades mysteriosas do sonho.
E hei de eu acreditar (diz a leitora que sabe o que vale) hei de eu
acreditar que Fernando não encontrasse nos mais formosos pontos do globo
as mais formosas creações do universo? Não viu elle uma ou cem
mulheres... (cem _senhoras_, emendarei eu, se vossa excellencia
permitte) ou cem senhoras que o tirassem pelos cabellos d'essa
escuridade de alma em que o exquisito moço se engolfava com as pataratas
dos Virgilios e Dantes, e outros que taes pesadelos de um espirito que
almeja diffundir-se e embeber-se nas delicias da poesia, tres vezes
santa, do bello ideal!?
Respondo: tem vossa excellencia razão de estar assim pasmada do homem:
eu tambem, com quanto já saiba a preceito o que é pão bolorento por
dentro e cordas de viola por fóra, começava a espantar-me, justamente no
ponto em que vossa excellencia fez favor de interromper-me.
Não ha duvida nenhuma: a cousa é muito para assombros. Bravia é a arvore
que aos vinte e seis annos não floresce nem fructifica! Anasada alma
deve ser essa que se dispende toda em extasis de livros velhos e paredes
velhas, e historias revelhas, que nem recontadas por Michelet ou
Castilho se podem aturar. Com um homem assim o romance era impossivel.
Quem houvesse de descreve-lo, iria na piugada d'elle por esse mundo
fóra, onde ha plinthos e peristylos derrocados, e confundi-lo-ia com
algum troço de columna corynthia ou jonica. Fernando seria empolgado
pela caterva empedernida dos antiquarios, que dariam com elle n'este
museu de Lisboa, onde não ha nada que o valha, a não ser o titulo do
edificio, que é museu de si mesmo.
Estava eu, pois, a despenhar-me com o meu estylo espalmado na voragem
dos escrevedores malditos da paciencia humana, quando, n'estes
apontamentos que me dirigem, encontro o capitulo intitulado: PRIMEIRA E
ULTIMA PAIXÃO DE FERNANDO GOMES.
Primeira e ultima! exclamei. Não gosto d'isto! Com uma só paixão hei de
eu encher duzentas paginas! Uma só paixão, n'estes nossos dias, em que
vinte e quatro horas bastam para o prologo e o epilogo da tragedia, se é
tragica a paixão!
Comecei a lêr desanimado; cobrei esperanças no segundo capitulo; ao
terceiro obrigar-me-ia, sendo preciso, por escriptura, a escrever dois
volumes; ao quarto fechei o manuscripto, e coordenei os apontamentos
pelo theor seguinte:
Demorava em Florença uma familia portugueza, expatriada por affecta á
realeza absoluta. Compunha-se esta familia de pae e duas filhas. O
emigrado era um ex-desembargador do paço, ministro da Alçada, que
assignara o accordão de pena ultima comminada aos academicos de Coimbra
que, em 18 de março de 1828, mataram, no Cartaxinho, os lentes Matheus
de Sousa Coutinho, Jeronymo Joaquim de Figueiredo, e feriram outros que,
no dizer do accordão, _iam beijar a mão ao serenissimo senhor infante
regente pela sua feliz chegada a estes reinos_.
Bartholo de Briteiros se chamava o realista. Uma das meninas era
Eugenia, e a outra Paulina. Em quanto á linhagem, estude quem quizer a
origem dos Briteiros, que ha de encontra-la desde logo que as aguas do
diluvio universal se recolheram ao centro do globo, e consentiram que os
casaes contidos na arca procreassem os Briteiros e outras familias do
mesmo tamanho genealogico. No que toca a riqueza, dizia-se que Bartholo
possuia, em cada provincia de Portugal, duas, e tres e mais quintas: o
que eu não averiguei por me parecer desnecessario.
O emigrado vivia regaladamente na Praça do Dome, o mais vistoso local de
Florença, servido de muitos creados, em palacio exornado de primosas
alfaias e baixella. O _vassallo_ de D. Miguel de Bragança pompeava
faustos de rei, em quanto seu _senhor_, o tão chorado principe dos seus
amigos, mendigava em Roma. Este contraste offerece um lado de muita
philosophia, que eu me dispenso de explanar por ter muito amor a quem me
lê, e me não lerá, se eu me entro a enredar em camisa de onze varas...
(Cá em Portugal já se não diz varas: é _metros_: camisa de quinze metros
e vinte e cinco centimetros, corresponde a isso; por causa da metromania
não se ha de perder o anexim que é expressivo).
Escreve Méry a respeito de Florença: «Não me espanta que proscriptos e
exilados, violentamente arrancados aos costumes de suas patrias, se
lancem nos braços d'aquella Florença, que é mãe commum dos que padecem,
e para todos se desentranha em palavras consoladoras...» E n'outro
relanço das suas _Noites de Italia_: «Entende-se facilmente que homens e
mulheres de alto porte, condemnados a exularem, pelo infortunio d'esta
epocha tão atormentada, confluam a Florença de todos os pontos da
Europa. O exilio aqui é menos penoso: não será paradoxo termos em conta
de exilados todos os que vivem longe d'aquella cidade.»
Bartholo de Briteiros, guiado pelo instincto, e não pelos viajantes--que
o magistrado não lia viajantes--deu comsigo na formosa Toscana.
Estanceavam por lá, em 1834, polacos proscriptos e muitos refugiados
nobres da França, cujos exforços se mallograram na Vendéa. O palacio
Orlandini, onde residia o principe de Monfort, irmão mais novo do
imperador Napoleão, era o receptaculo de todos os proscriptos illustres,
em nascimentos, artes e sciencias.
Bartholo de Briteiros, tinha a illustração triplicada da fortuna. Era
notorio que elle mobilara faustosamente um palacio campestre em _Poggi
Bonzi_, e d'alli saia de passeio, em graciosa berlinda, com suas filhas,
a _Val d'Arno_, á _Poggia Imperiale_, e a quantos pontos convergia a
nobreza toscana.
Isto lhe dera renome e accesso aos palacios Orlandini, Ricchardi,
Strozzino.
A formosura das filhas contribuia não pouco para a consideração que o
pae gosava. Eram duas gemmas inestimaveis que sobredouravam a
hypothetica riqueza do fidalgo portuguez. A mais nova era Paulina; quem
perguntava porém qual das duas fosse a mais velha? Cada uma estava
n'aquelle desabotoar de florescencia, e irradiação de graças, que seriam
delicias da vida humana, se cada mulher bella assim, ao tocar os
dezesete annos, alli ficasse, inamovivel, indestructivel, perpetua
imagem do anjo, dominadora do tempo, e assim de gala, para entrar com
todo o viço de sua formosura, e esplendor de encantos, em corpo e alma,
na gloria do seu Creador.
A mãe d'estas duas meninas morrera aos vinte annos, quando, em Lisboa,
reinava como primeira em belleza. Os dois seraphins, que deixara no
berço, conforme iam crescendo, recebiam do céo os dons soberanos que sua
mãe levara. Aos quatorze d'uma, e quinze annos d'outra, dizia-se que a
mãe não fôra mais linda que ellas.
O desembargador desvelara-se medianamente na educação litteraria das
filhas. Era elle homem de poucas lettras, e muito dado aos ocios de uma
certa ignorancia, que é o supremo bem d'este mundo pelas muitas e boas
horas de lerda pachorra em que a alma se embala no regaço d'ella.
Briteiros sabia de jurisprudencia o necessario para convencer-se do
pouquissimo que necessitava saber um magistrado palaciano, bemquisto
para as alçadas, e braço inflexivel para hastear patibulos. Chamado
sempre para mordomar n'estes festins de cannibaes, o amigo do throno e
do altar via em si um homem dos antigos tempos, e gloriava-se. A juizo
d'elle, os homens dos tempos antigos, eram os romanos, que condemnavam á
morte os filhos, se o bom regimen da patria o requeria. Não cuidem,
porém, que o austero Bartholo de Briteiros frouxamente acariciava as
filhas, ou as affastava de si como cousas incompativeis da gravidade do
seu funccionalismo e meditações. O contrario, de todo em todo. Brincava
com ellas; com uma em cada braço, em quanto meninas até aos nove annos,
andava de sala em sala, e assim recebia as mais circumspectas visitas. A
orçarem por senhoras, nem assim as desquitava da obrigação de brincarem
com elle: escondia-se nas dobras dos reposteiros, e queria que o
andassem procurando. Muitas vezes saía d'estes brinquedos para assignar
ao lavrar o accordão de uma sentença de forca, muito firme de pulso, e
convicto da sua fidelidade aos principios, á moralisação dos povos, á
ordem publica, e á justiça, filha primogenita de Jesus Christo.
N'aquelle dia em que o exercito libertador assomou em Almada, e o Telles
Jordão foi espingardeado, Bartholo de Briteiros, ainda duvidoso do
desesperado desenlace da causa que elle julgava vencida por parte de seu
rei, enfardelou á pressa o mais valioso de sua casa, ensacou muito
cabedal em moeda que tinha herdado de avós, prescreveu ordens aos seus
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - Agulha em Palheiro - 3
  • Parts
  • Agulha em Palheiro - 1
    Total number of words is 4574
    Total number of unique words is 1767
    34.4 of words are in the 2000 most common words
    47.6 of words are in the 5000 most common words
    55.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Agulha em Palheiro - 2
    Total number of words is 4620
    Total number of unique words is 1833
    35.1 of words are in the 2000 most common words
    47.5 of words are in the 5000 most common words
    54.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Agulha em Palheiro - 3
    Total number of words is 4516
    Total number of unique words is 1801
    34.5 of words are in the 2000 most common words
    47.0 of words are in the 5000 most common words
    53.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Agulha em Palheiro - 4
    Total number of words is 4585
    Total number of unique words is 1716
    36.8 of words are in the 2000 most common words
    49.4 of words are in the 5000 most common words
    56.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Agulha em Palheiro - 5
    Total number of words is 4597
    Total number of unique words is 1698
    35.8 of words are in the 2000 most common words
    49.5 of words are in the 5000 most common words
    57.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Agulha em Palheiro - 6
    Total number of words is 4677
    Total number of unique words is 1640
    38.6 of words are in the 2000 most common words
    52.1 of words are in the 5000 most common words
    58.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Agulha em Palheiro - 7
    Total number of words is 4552
    Total number of unique words is 1710
    36.3 of words are in the 2000 most common words
    49.3 of words are in the 5000 most common words
    56.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Agulha em Palheiro - 8
    Total number of words is 4561
    Total number of unique words is 1681
    35.1 of words are in the 2000 most common words
    50.1 of words are in the 5000 most common words
    56.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Agulha em Palheiro - 9
    Total number of words is 4489
    Total number of unique words is 1652
    37.7 of words are in the 2000 most common words
    51.7 of words are in the 5000 most common words
    59.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Agulha em Palheiro - 10
    Total number of words is 2782
    Total number of unique words is 1144
    43.0 of words are in the 2000 most common words
    56.6 of words are in the 5000 most common words
    61.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.