Agulha em Palheiro - 9

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origem. Foi o coração que me trahiu, dizendo-me que para vossa
excellencia era cousa de nenhuma significação o meu nascimento. Penso
que devo ser desculpado d'esta falta: seria grande extranheza andar eu
divulgando o meu nascimento. Eu tinha estado em França, e vira ministros
sahirem das officinas: e o mundo respeitava-os pela honra dos paes, e
por sua elevação com esforços proprios. Tudo me induziu, não a
esquecer-me de que meu pae era sapateiro, mas a presumir que me era
licito com minhas acções continuar a ser honrado como meu pae, sendo
certo, minha senhora, que eu nunca ousei suppôr que meu pae carecia de
minhas virtudes para se dar nobreza de si.
«Faz-me pena o desgosto de vossa excellencia quando esta carta estiver
lendo!
«O que a senhora D. Paulina de Briteiros tem soffrido por minha causa!
Que mal empregados sacrificios!
«Não foi a mão de Deus que a susteve á borda do abysmo, minha senhora?
Que immensa vergonha e agonia devia ser a sua, se vossa excellencia a
esta hora fosse minha mulher?! Que torturas irremediaveis! Como havia
dizer-lhe eu em Portugal o nome de meu pae?
«Nunca pensára n'isto!... Agora me parece incrivel que não pensasse!
«Escrevo-lhe com quanta quietação de espirito se póde, minha senhora. O
coração está esmagado. Matou-o a vergonha de ter pulsado em tão baixo
peito, vergonha que eu confesso sentir diante da sombra de vossa
excellencia, agora, e sempre.
«Veja que horrivel organisação social esta, senhora D. Paulina! Diga
vossa excellencia em sua intima e clara razão, se eu merecia ser
vilipendiado por meu nascimento, emquanto não praticasse alguma acção
infamante! que mal fiz eu á sociedade em ter nascido de operarios?...
Desculpe-me vossa excellencia estas perguntas vans, desordenadas e
indignas da sua attenção.
«N'este momento vou queimar as cartas de vossa excellencia, menos d'esta
ultima a pagina em que, por suas mãos, a Providencia me ministra uma
lição, que me póde ainda levantar diante de mim mesmo.
«De novo lhe rogo me perdôe, no silencio de sua consciencia, porque as
suas palavras já não poderei vê-las escriptas. Subscrevo-me, com quanto
respeito me inspiram suas virtudes, creado de vossa excellencia
«_Fernando Gomes._»

Almeida tinha saído com o ministro para o Aranjuez, para voltar quatro
dias depois. Fernando queimou as cartas de Paulina, lendo as primeiras
de Florença, quanto as lagrimas lh'o consentiam. Enfardou o seu fato.
Comprou passagem na primeira diligencia em direcção á fronteira de
Portugal, e mandou entregar a sua ultima carta a Paulina, ao embarcar-se
na locomotiva.
Almeida, recolhendo do Aranjuez, encontrou este conciso escripto:

«Vou vêr o pobre artista, e a pobre companheira do artista, que não tem
culpa dos meus infortunios.
«Com as mãos erguidas te rogo que não digas a alguem o meu destino.
«Terás as minhas cartas regularmente, em quanto viver.
«Graças, meu amigo, pelo coração de irmão que me déste. A recompensa é
este chorar que me tolhe poder escrever-te mais. São as ultimas lagrimas
do teu Fernando.»

XIX
DE FERNANDO GOMES A HYPOLITO DE ALMEIDA
Lisboa, 4 de agosto de 1842.
«Meu presado amigo.
«Aqui estou na casa onde nasci, no pequeno quarto em que os livros me
iniciaram para tormentos superiores aos que conheceste em minha vida.
«Entrei em casa inesperadamente, e encontrei minha mãe chorando, e nos
braços d'ella, uma de minhas irmãs viuva, e alli, ao lado, deitada n'um
berço, uma criancinha de dois mezes.
«Minha irmã casára com um capitão de mar e guerra, que morreu em viagem
para Moçambique. Fôra ella dotada com dez mil cruzados, cuja maior parte
o marido empregou em mercadorias, que levava comsigo, na esperança de
grandes lucros.
«O navio deu á costa, e presume-se que meu cunhado se suicidou. A minha
pobre irmã ainda ignora que está em pobreza extrema.
«Sabe-o meu pae, que é um santo, e acceita das mãos da Providencia tudo
que vier.
«Outra minha irmã, casada com um official de secretaria, vive muito
infeliz, e tem querido refugiar-se no abrigo dos paes; o marido, em
poucos mezes, leva quasi dissipado o dote, sem mesmo assim poder
resgatar-se de descreditos que mais tarde ou mais cedo o reduzirão a vir
pedir esmola á porta do seu sogro. Acaba meu pae de me contar estas
alegrias, que eu te refiro para que vejas os ditosos auspicios com que
entrei nos lares domesticos.
«Meu pae está quasi cego, e minha mãe n'um estado de decrepidez
extraordinaria. As minhas despezas dos ultimos oito mezes custaram ao
santo velho o sacrificio da venda dos bens do Cartaxo. O que elle não
vendeu foi a livraria, nem os manuscriptos de Bocage, seu amigo da
mocidade. Disse-me que me salvara os livros para me legar amigos. Perdôa
ao bom velho o seu descrer em amigos: elle não sabia que tu eras mais
verdadeiro e valedor que os livros.
«O meu futuro é facil de conjecturar. Tenho uma numerosa familia
dependente de mim. A outra minha irmã, e uma filha, não tardarão aqui.
Meu pae ainda vae á loja examinar, ou finge que examina, o trabalho dos
officiaes. Estes são já pouquissimos, em relação com o diminuto consumo
que tem a obra.
«Penso em arranjar emprego; mas sinceramente te digo que não sei o para
que sirvo, nem como estas cousas se alcançam. Lembra-me abrir loja de
conselhos e requerimentos; estou esquecido do pouco que aprendi; careço
de muita pratica, e de muita paciencia. Falta-me gosto, alma e vontade.
Nenhuns estimulos d'actividade me impellem. Este espectaculo inesperado
escureceu-me o espirito de modo que nenhum raio d'esperança já póde
reanimar-me. Espero em Deus que esta crise não se demore; e, depois,
veremos.
«N'outra carta me abrirei mais comtigo. A oppressão produz no animo
dolorosa preguiça. Em contentamento sereno ou nas afflicções agitadas,
n'estes dois extremos, é que o espirito se compraz ou desafoga em
diffusas cartas. Esta minha dôr é termo medio que prostra e embrutece.
Adeus. Teu amigo muito grato
_Fernando._»

DE HYPOLITO DE ALMEIDA A FERNANDO GOMES
Madrid, 14 de agosto de 1842.
«Meu Fernando. Quando recebi no Aranjuez, onde tive de demorar-me, a tua
carta de despedida, corri logo a Madrid, não esperançado em
encontrar-te, mas em ancias de saber o que se havia passado em minha
ausencia. Esporeava-me o odio que recresceu n'estes ultimos mezes contra
o algoz togado, o villão que me enganou quando eu tinha na mão o fio com
que esperava cortar-lhe a vida na garganta.
«Deram-me a tua carta, e contou-me o creado que te vira queimar as de
Paulina. Percebi logo que um completo rompimento vos separara para
sempre. Odiei-a! Dei-te logo razão, porque eu sabia que tu eras um anjo
merecedor de melhor alma.
«Na incerteza de me estarem trancadas as portas de Bartholo, procurei na
rua o conde de Rohan, e soube que Paulina estava doente. Perguntei, sem
rebuço, que razões se haviam dado para a tua saida repentina de Madrid,
e elle sem me dar explicações, instou por saber o teu destino. Não lh'o
podia dizer, não lh'o diria, ainda mesmo que antevisse n'esta infracção
a tua felicidade. _A tua felicidade_, digo eu!
«Ha homens que ninguem deve conduzir a uma supposta felicidade: a má
sina póde tudo com elles, e reverte-lhes em mal os mais logicos planos
do bem. Os proprios amigos se tornam fautores da sua desgraça.
«N'este mesmo dia recebi um bilhete de Paulina, a perguntar-me onde
estarias. Respondi que o não podia declarar. Redobraram instancias:
permaneci inabalavel. O ultimo bilhete d'ella é este que te envio[1].
Não calculo o que succedeu para resolução tão improvisa! Dar-se-ha caso,
Fernando, que a tua doentia imaginação te enganasse? Poderias tu ser
injusto, sem consciencia de o ser? Irias arrebatadamente, onde com
alguma hora de reflexão, deixarias de ir?
«Não ouso decidir por mim a hypothese: tamanha confiança me merece o teu
bom juizo e reflexiva dignidade. Antes me quiz persuadir que procedeste
como devias. Esperei.
«Agora, porém, recebo a tua carta de 4 de agosto. Nem uma palavra a tal
respeito! Dir-se-hia que eu sonhei que tinhas amado Paulina, ou tu d'uma
para outra semana perdeste a memoria do teu coração! Isto mais me
capacita de que a razão do teu proceder foi tão grande que presumes deva
eu já sabe-la, e por amor de ti proprio a omittes. Juro-te que apenas
sei o que devo inferir dos bilhetes d'ella.
«O conde ignora tudo. Bartholo está com ares de satisfação; nada, porém,
diz ao genro nem a Eugenia. Este mysterio mortifica-me. Esclarece-m'o,
que o deves ao teu Almeida.
«Falemos agora da tua situação. Compunge-me a sorte de tuas irmãs, e de
teus bons paes. Triste espectaculo, na verdade; mas providencial e
necessario para a glorificação da tua honra. Precisas de força, e de
paciencia para poder emprega-la.
«Queres um cargo publico? Os teus estudos, talento e serviços hão-de
obte-lo; mas não cuides que será já, meu amigo. Tu perdeste a occasião
de entrar nas secretarias com o arcabuz do cêrco do Porto debaixo do
braço. As gravatas dos heroes de gabinete na emigração já se não temem
das dragonas. Estamos em tempos pacificos. O que ha seis annos se
conseguia e recebia com a mão a cheirar a polvora, é preciso have-lo
agora das mãos enluvadas das mulheres, que fazem os despachos nas
othomanas, com os ministros reclinados sobre o seio. Advirto-te, para
que a decepção te não surprehenda.
«Entretanto, meu caro Fernando, o que tu precisas é de encaminhar desde
já a tua pretenção, dando ares de que não pretendes. Resgata os teus
bens do Cartaxo, se o comprador t'os ceder: ostenta uma independencia
que fira o orgulho villão dos grandes que não supportam animos generosos
e isemptos; entra na politica, e escreve, que necessariamente has de
escrever coisas excellentes, visto que é esse o ramo de conhecimentos
humanos que dá fructo a quem lh'o pede, e para o qual todo o homem está
habilitado. A honra ha de ser-te um empeço á boa saída; mas póde ser que
a mesma excepção te aproveite. Ora como para estas coisas, e
principalmente para a independencia, é necessario o dinheiro, vae ter á
rua Augusta, procura meu velho pae, que has de encontrar a bater alguma
caldeira, e diz-lhe quem és. Deves saber que eu sou já senhor da
legitima materna, e este capital, que excede a vinte contos de réis, lá
o tem meu pae á espera que eu lhe dê destino. A tal qual decencia, com
que vivo aqui, é meu pae que m'a dá, prohibindo-me que eu gaste da
herança de minha mãe. Vê tu que animo este de artista, que ainda não
despegou uma semana de trabalhar! Vae lá, meu amigo; elle está
prevenido, e sabe que és meu irmão. Pede o que quizeres, para m'o
pagares quando puderes.
«Fecho, que está a partir o correio. Escreve muito ao teu
_Almeida_.»

DE FERNANDO GOMES A HYPOLITO DE ALMEIDA
Lisboa, 31 de agosto de 1842.
«Meu irmão.
«Guardo em minha alma a tua carta.
«Falarei primeiro dos teus fraternaes offerecimentos.
«Fui vêr teu pae, porque desejava conhece-lo e abraça-lo. Que cabellos
brancos, e que mãos calejadas aquellas! Que bem e orgulhoso me senti nos
braços d'elle! Falla de ti com lagrimas; mas todo aquelle rosto se abre
em contentamentos d'um justo!
«Quiz que lhe contasse pormenores da tua vida em Madrid.
«Satisfiz aquella ancia do teu velho. Foi dia de férias na officina a
minha visita. Mandou os operarios passear, recommendando-lhes que não
fossem á taverna. Depois jantei com elle, e lá fiquei até á noite. Teu
pae deita se ao escurecer e ergue-se com a aurora. Disse-me elle quando
eu estava para sahir: «Veja lá o dinheiro que quer, doutor.»
Respondi-lhe que não queria nenhum. Montou os seus grandes oculos de
cobre, arregaçou os punhos da camisa, releu a tua carta, e exclamou:
«Então como se entende o que reza esta carta do meu Hypolito?!» Satisfiz
ás suas duvidas, dizendo-lhe que o teu offerecimento não fôra
solicitado, nem por em quanto me era preciso aceita-lo.
«Assim passaram quatro boas horas da minha vida. Face a face com o
principe de Monfort não me senti tão feliz e entranhado de respeito como
ao lado do artista, do teu digno pae, meu querido Almeida.
«Beijo-te as mãos pelo amigo que me déste. Em quanto ao dinheiro,
deixemo-lo estar, _como nosso_, na mão do honrado depositario. Quando
precisarmos, lá iremos.
«Agora direi pouco de Paulina para te satisfazer, e menos terei que
dizer-te, enviando-te uma copia da pagina da sua ultima carta. Ahi tens
decifrado o enygma. O filho do sapateiro teve pejo e arrependimento de
se haver abalançado ao coração da filha de um Briteiros: pejo de se
haver abatido, e arrependido de a ter humilhado. Cahi em mim. Podia ser
mais tarde, e mais funestamente para ambos. Deus poupou-me ao aperto de
entrar em Portugal, e por esta porta dentro, onde todos choram, com a
faustuosa e brilhante Paulina, que está fadada para alegrias e
esplendores. Que sentiria aquella alma vendo-se aqui n'este ambiente de
pobreza, pobreza que se adivinha em tudo! Alli dois velhos; além duas
irmãs uma viuva, outra divorciada; acolá duas criancinhas, cada uma em
seu berço, vagindo; lá em baixo o martellar do trabalho; em tudo o cunho
de uma maneira de ser incompativel com a indole e educação de
Paulina!...
«Que queres tu, á vista d'isto, que eu faça ao coração?
«Suffoco-o; obrigo-o a repartir-se por estas quatro creaturas, que não
teem mais ninguem.
«O bilhete de Paulina como não me auctorisas a queima-lo, devolvo-t'o;
póde ser que ella venha a envergonhar-se de te-lo escripto, e t'o
reclame.
«Persiste em não dizer nada de mim; e, se tenho algum outro favor a
pedir-te, é que me não fales d'ella; antes me ajuda a esquece-la.
«Meu generoso pae ainda a tal respeito me não disse palavra. Adivinhou
tudo. Tudo me tinha prophetisado em Londres, com estas palavras: _Que
direitos tens tu a uma felicidade que te custa humilhações? Para que a
procuras afincadamente, se vaes de rastros apoz ella? Porque has de tu
querer hombrear com os grandes, se eu apenas te fiz entrar n'uma
carreira por onde levarias teus filhos á grandeza?_
«Na ultima pergunta é que o propheta ouviu demasiadamente os seus
arremessados desejos. Esta minha carreira é a da inhabilidade e da
pobreza; mas cá estou a refazer-me de alentos para a trilhar. Adeus, meu
extremoso amigo. Não acceito o teu alvitre de me fazer politico. Já vi o
que isto é. Não estou ainda bastante pôdre para adubar o torrão em que
braceja a arvore da immoralidade. Estou envergonhado de ter dado o meu
sangue para isto! Ás vezes chego a scismar se Bartholo de Briteiros
teria razão!
«Perdôa esta impia ironia. Antes isto que os patibulos. Cada qual
enforca a sua honra á sua vontade, e não causa lastima nem espanto. Não
ha tempo para mais. Adeus. Teu
_Fernando_.»

XX

DE HYPOLITO DE ALMEIDA A FERNANDO GOMES
Madrid, 3 de setembro de 1842.
«Meu Fernando, não espero a tua resposta para te escrever. Tenho só
tempo de participar-te que Paulina entrou hoje n'um convento, contra a
vontade do pae. O conde de Rohan suppõe que és tu a causa d'este
successo. Bartholo suppõe que a filha se enclausurou para de lá requerer
casamento comtigo. Elles e eu andamos litteralmente ás aranhas. Ella e
tu sois os ferrolhos do mysterio. Sae a mala. Adeus.
_Almeida_.»

DO MESMO AO MESMO
Madrid, 12 de setembro de 1842.
«Viva Deus! que quebraste os sete cadeados do cofre! Vi o altissimo
quilate do oiro da tua honra. Já o conhecia.
«Estas linhas deviam magoar-te; mas não justificam a fuga, e menos ainda
o desprezo. Não é desprezo o que sentes por ella; mas, seja o que fôr os
effeitos são analogos.
«Paulina, como já deves saber, vive no convento das Therezinhas.
Consta-me, de informações exactas, que Paulina está n'um consternador
abatimento de espirito. Raro se deixa vêr e apenas sáe da cella para
receber, na grade, a visita do conde ou do pae. Eugenia entra no
convento, e passa muitas horas com ella; mas nem assim lhe arranca o
essencial motivo do rompimento e reclusão.
«Bartholo tem providenciado para o caso de haver deposito judicial.
Realisa-se o que eu te havia dito. Sei que de antemão, e por hypothese,
já estão alugados os juizes.
«Eugenia pediu-me hontem um encontro no Prado. Insistiu comigo para eu
lhe descobrir a tua residencia. Inutil. Jura que Paulina te ama até se
deixar morrer, para assim pelo remorso se vingar da tua ingratidão.
Estive, sem receio de quebrantar minha palavra, quasi a mostrar-lhe a
copia da pagina da ultima carta da irmã. Desisti, por me não parecer,
ainda assim, justificavel o teu procedimento, e tambem para respeitar o
sigillo de Paulina. Ella, que o reserva, lá tem suas razões, e nós as
nossas.
«Aconselhar-te eu? não me atrevo a tanto. Já disse: contra certos
destinos é impotente esta logica vulgar, _vade-mecum_ de todos os homens
vulgares. Escuta o teu coração, sem menos-preço da consciencia. Obriga a
razão a obtemperar a certas e importantissimas pequenezas, que são o
essencial da vida. Isto não é conselho: é supplica.
«Bartholo vive muito ha dias com um marquez gallego, que veio ao senado;
riquissimo gallego, e descendente dos monarchas de Aragão. Presume o
conde de Rohan, com o muito sal do seu espirito, que Paulina corre risco
de ser encabeçada na côrte descabeçada de Aragão. Eugenia accrescenta a
estas observações que Paulina só sairá do mosteiro, se a não deixarem lá
sepultar na clausura. Isto parece-me extremamente grave, Fernando.
«Queres tu que eu ultrapasse as tuas ordens, ou prescrever-m'as novas?
Custa-me a ser-te fiel entre as reiteradas insistencias do conde, de
Eugenia, e da piedade a que indirectamente me compunge Paulina.
«Anceio a tua resposta.
«Dá outro abraço ao meu bom pae. Diz-lhe que eu vou muito cedo aperta-lo
ao coração, e que, se o aborrecimento d'esta vida diplomatica fôr assim
augmentando, de certo lá ficarei a ouvir o estrondear das caldeiras.
Adeus. Muito do coração.
_Almeida._»

DE FERNANDO GOMES A HYPOLITO DE ALMEIDA
«Lisboa, 12 de setembro de 1842.
«Respondo, meu amigo, á tua cartinha. A esta hora já recebeste a carta
explicativa do meu procedimento. Julga-me, e absolve-me, se fui injusto.
O meu destino é vêr que as minhas acções, aconselhadas pelo dever,
redundam sempre em gravame alheio e desconceito meu. Estou enganado com
o mundo. Devo restringir-me, cada vez mais, n'um curto espaço em que
todas as operações de minha intelligencia, se reduzam ao trabalho
necessario á vida. Só assim poderei achar um cantinho da sociedade, onde
caiba com a minha insignificancia.
«Cuidei que, saindo de Madrid, deixava essa senhora em paz comsigo e com
o mundo. Puz o coração debaixo dos pés, e nem assim consigo a liberdade
do espirito!
«A entrada de Paulina no convento, a meu parecer, significa uma fadiga
de alma, que faz as mulheres eguaes aos homens. Paulina soffreu; creio
que sim. Está repousando para reassumir as poderosas faculdades de sua
juventude, formosura e aspirações. Póde ser que, ao receberes esta
carta, ella tenha já deixado o mosteiro pelas salas; e ámanhã deixará as
salas pelo mosteiro. Paulina lê romances. Os personagens femininos, da
novella moderna, são quasi todos a copia fiel da brilhante extravagancia
do espirito. Leem-se, e a sympathia, em vez do riso, nos impressiona.
Imitam-se, onde ha espaço, e é preciso te-lo, ainda assim, para as
scenas grandiosas, que, a final, desfecham em tragedias que o mundo,
futil e chocarreiro, denomina «comedias».
«Na proxima carta me dirás o proseguimento d'esse estranho passo.
Authoriso-te a dizer-lhe, tão directamente quanto puderes, que respeito
em silencio todos os seus designios, e peço a Deus, que ao encontro
d'elles, lhe saia o anjo da felicidade. Em quanto a ama-la, faz-lhe
sentir que eu sou bastante desgraçado para não poder esquece-la.
«Vou ámanhã ao Porto a fim de solicitar o embolso de algumas dividas de
calçado que lá devem a meu pae as lojas que se forneciam de nossa casa.
Tudo é necessario para ir custeando estas grandes despezas. Já vês que
estou feito caixeiro de cobrança de uma loja de sapatos. Para bem
desempenhar estas funcções, levo comigo as minhas cartas de bacharel
formado em leis!
«Vou ver as paragens onde vimos juntos a morte tantas vezes! Procurarei
o rochedo das Antas, onde me encostei ferido no dia em que fui
condecorado. Ama o teu camarada d'aquelles bons dias de sangue, de
esperanças, de alegrias.
_Fernando._»
DE HYPOLITO DE ALMEIDA A FERNANDO GOMES
Madrid, 25 de setembro de 1842.[2]
«Meu amigo.
«Bartholo de Briteiros está na eternidade. O marquez gallego foi o
indirecto homicida do lambaz Briteiros! Houve jantar opiparo no hotel. O
amphitrião recolheu-se pesado á cama, e, se adormeceu, acordou na
eternidade.
«Não fez testamento. Achou o conde umas declarações, ou norma de
testamento, que dão noticia da grande fortuna de Bartholo. Orçam-n'a em
seiscentos contos, em differentes especies.
«Paulina saiu do mosteiro para a companhia de Eugenia. Fiz a minha
visita de pezames ao conde, que me disse ir brevemente a Portugal
liquidar a herança do sogro, e vae depois para França. É de suppôr que
Paulina acompanhe a irmã.
«Em vista do que, já não receio que a joven menina pereça no mosteiro.
«Ninguem me tem fallado de ti. A tristeza de Paulina sei eu que é
inalteravel.
«Diz-me o que fazes: fala-me da tua familia. Teu sempre extremoso
_H. de Almeida_.»

Nenhuma outra carta nos veiu á mão.
Fernando Gomes, voltando do Porto com os creditos de seu pae liquidados,
melhorou o pessoal dos operarios, e alargou o seu commercio, creando
freguezias de lojas nas terras que percorreu. Em toda a parte encontrou
condiscipulos, que se maravilharam de o verem agenciando os interesses
d'uma loja de sapateiro. Deu isto em resultado que ninguem o visitou nas
estalagens onde se aposentava.
Francisco Lourenço mostrava-se penalisado de vêr seu filho occupar-se em
tal mister, tão incongruente com sua educação. Reconhecia a iniciativa
melhoradora do estabelecimento; mas, ainda assim, pedia-lhe
incessantemente que requeresse um emprego, allegando sua instrucção e
serviços.
Fernando, submisso a seu pae, aos prantos da mãe, e meiguices das pobres
irmãs, requereu, apresentou ao ministro seus papeis, foi tres vezes á
audiencia geral do secretario de Estado, e esperou.
De vez em quando ia examinar o seu nome no livro da secretaria, e lia
sempre: ESPERADO.
Este _esperado_ é regularmente o prologo do _indeferido_.
Indeferiram-lhe o requerimento. O logar pedido na thesouraria fôra dado
a um filho de regedor, que puzera ás ordens da situação oito votos e
quatro cacetes, que valiam vinte e quatro votos.
Fernando leu o despacho no _Diario do Governo_, leu os commentarios n'um
jornal da opposição, e riu-se.
Pegou na medalha de Torre e Espada, embrulhou-a n'um papel de
mata-borrão, e enviou-a ao ministro, com esta carta:

«Excellentissimo. As _honras_ a quem competem. Faça vossa excellencia
presente d'isso ao meu feliz competidor. Ganhei essa coisa por ter suado
sangue a favor d'esta causa em que o merito do cacete devia ser
instaurado. O cacete venceu. Agora competem aos sacerdotes do pagode,
que eu ajudei a erguer, as condecorações que nada prestam aos operarios
inactivos. Eu, e o meu competidor, que ceifou o carvalho civico com o
cacete paterno, o que fizemos foi derramar sangue de irmãos. Devemos
hombrear nas honras. Ora, os arrependidos devem rejeita-las em favor dos
contumazes. Deus guarde a vossa excellencia, como todos havemos mister,
e de veras lh'o deseja o criado inutil de vossa excellencia, _Fernando
Gomes_, com loja de sapateiro na calçada do Sacramento, n.º 11--Lisboa.»

O ministro recebeu a carta e o embrulho. Pensou em autoar o signatario;
mas o official maior pediu licença para observar a sua excellencia que a
carta não encerrava injuria pessoal nem collectiva, salvo aos
caceteiros, por cuja honra não ficava airoso ao ministro saír. Assim
acabou o episodio.
Fernando Gomes passou de agente exterior a fiscal da officina. Descia á
loja, e examinava de perto a labutação; ajudava a encaixotar o calçado,
e assignava, em nome de seu pae, a correspondencia com os freguezes. Os
officiaes antigos respeitavam-n'o, dando-lhe sempre o epitheto de
doutor. Ora o doutor um dia, alto e bom som, disse a todos os seus
officiaes que se chamava Fernando.
Esta metamorphose divulgou-se, contada pelos operarios. É admiravel que
ninguem lhe désse grande peso! Muitos doutores disseram: «se elle viu
que não tinha geito para mais nada, fez bem em se fazer sapateiro, assim
como dizem que o pae se queria transformar de sapateiro em poeta».
O mundo tem d'estes escarneos, que fazem vontade de perguntar ao Creador
se está contente com a obra que fez.
Á força de muito observar, Fernando já sabia talhar umas botas como se
fosse creado no officio. Diante, porém, do pae não ousava fazel-o, nem
os officiaes ousavam dizel-o ao velho. Parecia a Francisco Lourenço que
o trabalho de talha andava muito supprido, e elogiava a actividade do
contra-mestre encarregado d'aquelle serviço. Elle, por si, o pobre cego,
nada fazia já.
Fernando passava todas as noites em casa, ora contando á mãe e irmãs o
que vira em suas viagens; ora lendo a seu pae os poetas relidos na
infancia, e os livros de historia e viagens, que elle trouxera do
estrangeiro. Estas leituras coavam calor de contentamento, a través dos
setenta invernos de Francisco Lourenço, e embalavam o rebelde somno da
mãe, que acabava por adormecer entre o seu rozario e uma descripção dos
gelos polares por Cook.
Esta vida durou assim seis mezes. É de crer que n'este espaço se
trocassem interessantes cartas entre Fernando e o secretario da legação.
Como as não alcançámos, o que podemos conjecturar é que Paulina se
conservou em Madrid esperando que o seu saudoso amigo, alguma hora, alli
voltasse, conduzido pelo amor, ou pelo pezar de tão dura ingratidão. Não
sabemos se o conde veiu a Portugal liquidar o patrimonio de sua mulher,
como Almeida annunciára. Se veiu, é muito de suppôr que ninguem em
Lisboa lhe désse noticias do _chevalier Ferdinand Gomes_, como elle
euphonicamente o conhecia.

XXI
Estava um dia, 5 de janeiro de 1843, Fernando Gomes na loja da calçada
do Sacramento, aviando uma carregação de fazenda para o Porto.
Antes de descer á loja, sua mãe, quando ia para a mesa do almoço,
abraçou-se n'elle, e disse-lhe:
--Olha Fernando, tu não crês em sonhos, e eu creio!... Tive um sonho
alegre!...
--Então sonhou que vendiamos algumas grozas de botas, minha mãe? Os
nossos sonhos alegres não pódem ir mais além d'esta ambição de vender
muito sapato.
--Bemdito seja o Senhor, que nos ajuda, filho!--disse a velhinha.--Desde
que tu diriges a casa, parece que tudo levou volta! Olha que teu pae já
disse que, se assim continuarmos um anno mais, havemos de resgatar os
nossos bemzinhos do Cartaxo.
--Então sonhou, minha mãe, que estavamos outra vez proprietarios no
Cartaxo?
--Não foi isso, Fernando... Sonhei mais alguma coisa... Sonhei que te
via vestido de principe.
--De principe?! Ólé! de principe! Sabe o que deu causa a esse sonho?
--Que foi, meu filho?
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