Agulha em Palheiro - 7

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Paulina entretinha horas de conversação com o amigo de Fernando,
intervaladas por troca rapida de palavras concernentes ao intento que os
approximava. No animo do fidalgo já a suspeita se ia ingerindo: a
assiduidade das visitas do secretario incommodava-o, e tinha-o de
atalaia. O marquez inquietava-se não menos que o primo. Acordaram os
dois em dar de mão ao visitante diario d'algumas horas. Mas, nos bailes
ou nos theatros, o secretario era o flagello dos dois olheiros, que se
viam baldeados, como lá dizem, entre Scylla e Charybdes.
Assentou Bartholo em ser pae severo. Apresentou-se á filha. Ia de
catadura horrida. Dir-se-ia que empunhava a penna para assignar um
accordão de pena ultima.
--Paulina!--disse.
--Meu papá.
--Vamos a contas.
--A contas?!
--Que quer dizer a pertinacia d'este homem, que te não deixa?
--Qual homem, meu papá?--disse ella, pensando que Fernando fôra
descoberto no seu esconderijo.
--O homem da embaixada... este mal trapilho que tem o pae em Lisboa a
fazer candieiros na rua Augusta.
--Eu sei cá o que elle quer?... O primo marquez foi quem o apresentou, e
não me disse se o pae d'elle fazia candieiros.
--Fale-me com mais humildade!--bradou Bartholo.
--Pois eu que disse menos humilde?
--Não quero ironias.
--Ironias!... O papá é injusto comigo!... Eu posso lá saber a razão
porque o homem nos procura? Pensei que o faria por delicadeza, por
sermos patricios, e conhecermos pouco a sociedade de Madrid.
--Então...--tornou o pae--asseveras-me que elle não tem intenção nenhuma
menos respeitosa?
--Pois elle ha de faltar-me ao respeito?... Jesus!
Ó céos! o rosto de innocencia estupida com que Paulina fez aquella
pergunta! Ó amor, o que tu pódes e fazes! Que uma dama de bons annos,
quarenta pelo menos, puxados á fieira do amor, consiga lograr uma
criança incauta, isto está de seu na natureza das cousas; mas que uma
menina de dezesete annos, ainda agora a florescer a sua primeira
primavera de coração, zombe da vigilancia e perspicacia d'um pae
quinquagenario, e o esteja assim logrando com uns dizeres de parvoinha
candura!... Uma hora de amor é um curso de theatro completo. Quantas
ficções lá se aprendem, com grandes estafas, nas aulas do conservatorio
dramatico, vae ahi qualquer menina espigadinha exercita-las todas ante o
auditorio da sua familia, se me concedeis que ella tenha uma faisca de
lume no olho, e um Etna dentro do peito!
E diz o apophtegma antigo: _Amor logra muitas cousas, e o dinheiro
tudo_! Não é assim: as luzes desmentiram tambem os Senecas e
Theophrastos. O dinheiro não consegue desbestialisar o alarve que o tem
a rôdos; e o amor vae dentro do espirito mais rombo e bôto, e eil-o que
o desentranha em prodigios de subtilezas, argucias, e sublimes
velhacarias! E até talento! Ha ahi sujeito que vingou um nome
esperançoso n'uma época de sua vida: chegou mesmo a escrever locaes com
certo orientalismo; e de repente tapam-se-lhe as valvulas, e o talento
suppura por tolice. Que foi? Averigua-se e sabe-se que o homem deixou de
escrever as locaes aziaticas assim que a mulher amada casou com outro.
Bartholo não teve que recalcitrar a esta pergunta:
--Pois ha de elle faltar-me ao respeito!?--E depois a exclamação
«Jesus!» desarmou-lhe de todo as suspeitas. E, como se tanto fosse
pouco, Paulina continuou:
--Não quer o papá que eu fale mais com o Almeida? Não falarei. Verá como
lhe volto as costas assim que o vir.
--Não é preciso tanto, nem nada, filha--redarguiu de muito bom rosto o
pae--se me tu dizes que o Almeida nada te diz que te preoccupe o
coração...
--O coração!--interrompeu a menina com o mais pasmado e lindo
semblante.--Ora essa!... O papá está a rir-se de mim, não está?
--Falo-te serio, Paulina... Tenho muito medo da inexperiencia dos teus
annos. Tu tens-me feito o sangue de fel e vinagre por causa d'aquelle
homem, que me ia roubando a tua estima, e a ti mesma te ia fazendo
esquecer de quem és... Ora agora, filhinha, que essa tempestade passou,
tu não me dirás que foi o que te moveu a gostar do tal Gomes?... Não te
envergonhes, menina, que ninguem nos ouve... Elle não se inculcava
sequer pessoa de bem; era um bacharelzito, um inimigo das nossas crenças
politicas e religiosas; em quanto á figura, tudo n'elle é plebeu,
trivial; mesmo em talento e instrucção, que o principe gabava muito, eu
nunca lhe ouvi dizer cousa que admirasse a gente; emfim, queria eu que
me tu dissesses por que amaste tal homem...
--Era um passa-tempo, papá!
--Não duvido, Paulina; mas as meninas da tua qualidade, quando
galanteiam para se divertirem, escolhem outra casta de homens, para que
se lhes não atire á cara com precedentes desairosos, quando ellas amam
seriamente, e com proposito de se casarem. Ora diz-me tu cá: se teu
primo marquez se lembra de casar comtigo, cuidas que elle ha de gostar
que tu hajas acceitado a côrte d'um sarrafaçal sem nome, que andava por
esse mundo a gastar uns safados cobres lá do pae, que ninguem conhece?
--Pois sim...--disse Paulina com mal refreada vehemencia--mas como o
primo marquez se não lembra de ser meu marido, nem eu o queria, ainda
mesmo que elle pensasse em tal...
--Não o querias? então que mais querias tu, filha.
--Eu não queria mais, nem tanto... Quero estar assim solteira, que estou
bem... O papá não me dizia, ha poucos mezes ainda, que eu e a mana o
matavamos se casassemos!...
--Disse isso, na supposição de que saíeis da minha companhia; mas o
marquez, se casar comtigo, não sae da minha casa. É já um contracto
estipulado, filha... A minha palavra está dada; contei com o teu são
juizo, quando a dei... Que respondes tu, Paulinasinha?
--Deixe-me pensar, meu pae. O primo marquez não tem pressa da resposta,
e o papá tambem não. Deixe-me gosar mais algum tempo a minha liberdade,
e depois eu direi o que tiver pensado.
--Pois sim, filha: dou-te quinze dias. Sou um bom pae, não sou? Outro
qualquer diria: isto ha de fazer-se, porque quero que se faça. Eu, não.
Transijo com a minha criança, na certeza de que ella ha de saber-me
agradecer a brandura e os carinhos. Não has de querer que eu morra sem
te ver _marqueza de Tavira_! O primo tem os vinculos desfalcados; mas a
fidalguia d'aquelle sangue vale milhões para quem se preza de ser maior
pelo nascimento que pelos bens da fortuna. Morro consolado se encontrar
para tua irmã um marido egual... Em quanto ao secretario da legação, não
deixes de lhe falar: trata-o bem, porque, a falar a verdade, lhe devemos
a elle a alguma consideração que temos em Madrid. Não me parece mau
rapaz; mas zangava-me ve-lo sempre que podia em segredos comtigo!... Que
te dizia elle?
--Nada que se não podesse ouvir... Só alguma vez, nos bailes ou no
theatro, me fez rir com as suas satyras ás fidalgas hespanholas... é o
que elle me diz baixinho, para os outros não ouvirem.
--Ah! é isso?--atalhou com boçal confiança o jubiloso Bartholo.--Então,
filha, continúa a rir-te com elle; mas tem compaixão do primo marquez,
que arde em zêlos quando falas com alguem.
--Pois que não arda, que eu tanto se me dá como não que elle fale com
quem quizer. O pae cuida que posso amar o primo marquez, com vinte e
tres annos mais do que eu?...
--Mas parece um rapaz, e ha de ser um excellente esposo, Paulina. Os
maridos querem-se d'aquella edade.
--Não sei para que!...--acudiu com perdoavel desenvoltura a menina.
Bartholo ia explicar a vantagem que sobrelevam os maridos de quarenta
aos de vinte annos, quando algum incidente privou a minha joven leitora
de ver aqui tratada a preceito uma materia, que poderia cooperar
grandemente para a sua futura felicidade. Decorreram os quinze dias
aprazados para a decisão de Paulina.
N'este espaço estreitou-se mais a correspondencia d'ella e Fernando, já
inclinado á suspirada catastrophe do casamento judicial. A actividade do
secretario, como agente d'este inesperado desfecho, foi inexcedivel.
Opinara elle pela fuga, e depois casarem-se em Portugal. O filho do
artista, com o animo abalado pelas honradas admoestações de seu pae,
optou pelo casamento judicial, sem prescripção da menor formalidade
honesta. Paulina pendia mais ao parecer do secretario, e achava
escusadas as demasias de probidade com que o noivo queria tratado o seu
casamento. Assim mesmo Fernando reagia á vontade de Paulina, e dizia
acceitar o plano da fuga em ultimo recurso. A recusa estribava n'estas
razões, dadas por elle ao seu amigo:
--Se eu fujo com Paulina, porei um cunho infamante no meu procedimento.
Se eu fosse um grande de Portugal, por brazões ou riquezas, a sociedade
diria que eu tomára o violento alvitre da fuga para remover d'um lanço
todas as difficuldades antepostas pelo capricho do pae. Assim plebeu, e
quasi pobre, se fujo com ella, dir-se-ha que desprezei os meios
judiciarios por medo de não achar justiça que ousasse contrariar a
vontade do fidalgo poderoso.
--Mas--atalhou o sincero amigo, que sabia muito do coração das damas,
estudado em Hespanha--quem te diz a ti que, durante o processo
necessario ao supprimento do consentimento paterno, a senhora D. Paulina
varia de ideias, e requer a remoção do deposito para casa de seu pae?
Quem te diz que...
--Se o fizer--atalhou Fernando--mais tenho de me louvar pelo meu
procedimento; claro é que Paulina devia arrepender-se, e dar-me o
inferno, as mais tormentuosas agonias que tu podes imaginar. Antes isso,
meu amigo: antes essa prova! Poderás tu fazer-me a justiça de suppôr que
eu sigo os caprichos d'uma mulher rica?
--Não.
--Pois bem: venha depressa o momento em que eu possa conhecer-lhe a
alma, cuja nobreza tu me deixas entrever a luz duvidosa.
--Não é assim: eu previno, e mais nada.
--Prevines a possibilidade do arrependimento, emquanto dura o processo.
--É bem de ver.
--E d'esperar?
--Isso não sei; mas deves temer muito da força do adversario. Os juizes
em Madrid são corruptissimos, e pesam na balança o oiro do fidalgo
realista, e se o oiro do fidalgo realista pesar o quilate legal,
acceitam esta legalidade, em vez d'outra que as leis estatuiram. Esta é
uma das faces: a outra é a dos meios empregados no convento onde vae ser
depositada Paulina, para a demoverem. Raro acontece que elles não
vinguem, ao cabo de seis mezes d'espera. Insisto. Eu, em teu logar,
fugia. A meia legua de Madrid estás em segurança. Na semana que vem,
entras em Portugal. Chegas a Lisboa, e encontras na primeira egreja um
prior que vos absolve. Uma batalha assim vencida é plena e gloriosa: a
outra, que vaes dar, costuma ser tão golpeada de contrariedades, que,
afinal, o triumpho é semsabor. Mas faz o que quizeres. Decide-te por um
dos conselhos, que nunca poderás identificar os dois. Honra e coração
costumam andar bem-avindos, mas é só nos romances.
--E fóra dos romances, amigo Almeida--disse Fernando.--Agora mesmo te
estou dando a prova. Diante das razoaveis difficuldades que me levantas,
ouso ainda insistir pelo deposito, e envergonho-me de ter vacillado
entre o processo judicial e a fuga.

XV
Paulina convidara Fernando a um colloquio nocturno, na vespera do dia em
que havia de ser requerido o deposito. Este convite fôra-lhe suggerido
pelo secretario da legação, que antevia mau desfecho do negocio tratado
com pannos quentes. Induzira elle a menina a propôr de viva voz e com
instancia ao noivo a fuga immediata: esperava Almeida que a presença, a
resolução e intimativa de Paulina quebrantassem a firmeza do seu amigo.
Era aquella a primeira vez que Fernando Gomes ouviu a voz de Paulina,
depois da saída de Florença. Foi com alegria de coração; todavia algum
vago presagio lhe ennublava o espirito.
A familia Briteiros occupava o primeiro andar do melhor hotel de Madrid.
Fernando devia entrar ás nove horas da noite e pedir um quarto no
_entre-sol_ do edificio. O corredor commum d'estes quartos baixos tinha
escada que subia ao primeiro andar. Ás onze horas Fernando subiria esta
escada, e encontraria Paulina no tôpo. A excellencia do plano
correspondeu á execução. Ninguem occupava os quartos inferiores, excepto
um francez chegado á mesma hora. O hospede entrara, e fechara-se em sua
camara. Ás onze horas era completo o silencio no andar superior.
Bartholo dormia o pacifico somno de quem tomou o chá com algumas
inoffensivas gottas de extracto de morfina, ministrado á filha pelo
previdente secretario da legação, que assim pensava ir lentamente
vingando os condiscipulos enforcados. O marquez recolhia da tertulia ás
tres horas da manhã. Eugenia velava com sua irmã, como quem velava em
cousa muito de seu interesse, e vae já dizer-se para que não esqueça.
Fernando subiu as escadinhas em espiral.
Quiz-lhe parecer que via um vulto á porta, aberta no cimo da escada, e
parou no intento de retroceder. Fez-se um pallido clarão no interior da
sala. Assomou á entrada Paulina, e murmurou:
--Sóbe sem receio, Fernando.
--Parece-me que estava aqui gente, quando eu subia...--disse o moço.
--Não te enganaste.
--Quem era?
--Depois saberás tudo: escuso dizer-te que não tem nada comtigo o vulto.
É um homem que ama minha irmã: é o conde de Rohan. Não podemos perder
tempo--continua Paulina com adoravel alvoroço.--Preferes os mil estorvos
com que vamos luctar á certeza da ventura sem o menor desgosto?
--E o que é a ventura sem o menor desgosto, minha querida
Paulina?--perguntou Fernando, já meio aturdido pelo magnetismo d'aquella
voz, d'aquelles olhos, d'aquellas roupas brancas, d'aquella luz,
d'aquelles braços, que, a tremerem, se lhe ousavam enlaçar no pescoço
com o mais pudico despejo das almas puras, que tudo fazem com a mais
santa das intenções.
--Pois não achas mil vezes melhor que fujamos para Portugal?--tornou
Paulina--Tu não me amas, não!... Vê tu que differença do teu coração
para o meu!
--Por Deus!--atalhou Fernando.--Eu não te amo, Paulina!?...
--Que quer dizer a tua repugnancia em acabar com isto d'uma vez!?... Ha
tanto tempo a soffrer a perseguição de meu pae!... Desde que acabaram os
quinze dias, estou n'um martyrio incessante com perguntas, maus modos, e
desprezos! E a padecer tanto por amor de ti! Sei que, se fôr depositada,
meu pae ha de dar-me dias horriveis de amargura; e, por fim, tu verás
que a justiça me entrega a elle para nunca mais saberes de mim, nem eu
de ti, meu Fernando! Olha, querido amigo, tira-me d'aqui; fujamos para a
tua familia; vamos ser felizes; lembra-te que eu deixo o amor de meu
pae, e tudo, para seguir a tua sorte! Leva-me, Fernando, leva-me, porque
depois de ámanhã n'esta casa nem tenho mesmo minha irmã que me console
as tristezas e saudades. Minha irmã foge ámanhã por noite com o conde.
Vão casar-se a Paris. Assim que ella lhe escreveu a chama-lo, veiu logo,
e preparou tudo para a fuga. E eu pensava que o teu amor era mais forte
que o d'elle!... Porque me não levas, Fernando? Falas-me tanto em honra,
meu amado! Eu não entendo os pontos de honra em que me estás sempre
falando! O nosso amigo Almeida tambem os não entende. Quando se ama
verdadeiramente, as considerações, que tu me fazes, parece-me que
ninguem as faz... Que prazer tens tu em que eu vá estar seis mezes ou
mais n'um convento á espera que a demanda se decida, sem mesmo
antevermos a certeza da decisão favoravel!? Isso é crueldade! Olha que
me não vês, Fernando, nem talvez possas escrever-me! Se eu morrer de
magua, de quem é a culpa? Quantas vezes te arrependerás de me não ter
ouvido n'esta hora?
Não era necessario tanto. Fernando Gomes estava vencido e convencido. As
ultimas palavras de Paulina tinham sido cortadas de soluços. Nunca homem
algum resistiu a isto! Scipião, o respeitador historico das mulheres, se
visse este lance viria outra vez ao mundo dar testemunho de uma virtude,
que a sua celebrada continencia usurpava.
Fernando tomou nos braços a soluçante menina, e disse-lhe:
--Fugiremos, Paulina. Fugiremos, quando quizeres. Ámanhã, se te apraz.
Deus vê as minhas e tuas intenções. Espero que nunca te arrependas do
passo, que o mundo, a seu pezar, não poderá infamar-te.
Paulina expandiu-se em requebros de ternura e raptos de alegria. A
combinação de horas, signaes, e menores accidentes da fuga ficou
pactuado. Disse a menina que se conservasse elle á escuta algum tempo,
emquanto ella ia preparar o pacotinho da mais necessaria bagagem; e,
depois, a recadasse no seu quarto, e de madrugada a levasse comsigo,
sendo este o melhor modo de não inspirar desconfianças. Como embriagado
de alegria, Fernando accedeu a tudo sem contestar; esperou, e recebeu o
pacote, que era uma mala ingleza quadrada, cujo peso elle notou com
admiração.
Ao romper da manhã, o passageiro, com ar de quem vae entrar nos
vehiculos da madrugada, saíu do hotel; sobraçando a mala com grande
espanto do creado, que o vira entrar sem ella, e recolheu-se á sua
pousada, d'onde logo escreveu ao secretario da legação.
Almeida acudiu logo a felicitar o reconsiderado amigo, congratulando-se
de ter elle sido o indirecto motor da saudavel reforma nos estoicos
principios do seu camarada. Traçaram o plano facilimo da fuga. Fóra de
portas estariam cavalgaduras. O funccionario diplomatico iria com os
fugitivos para remover obstaculos imprevistos da policia. Fernando era
já o homem avesso do dia anterior. Falava o coração, alliviado do
pesadello da impertinente honra.
Sentia-se enlouquecer de esperanças alegres, anciosas, insoffridas da
morosidade do tempo.
--Aqui tens a riqueza da minha Paulina!--disse elle sorrindo e mostrando
a mala.--Ninguem dirá que eu a raptei por causa d'essa malinha, que deve
encerrar algum vestido, e as minhas cartas...
Almeida tomou ao alto a mala, e disse:
--Não: aqui ha alguma cousa mais que sedas e papeis! Isto pesa como
ouro.
--Ouro?! estás brincando!--disse Fernando.
--Está aberta a mala. Se não temes a profanação, vejamos o que vae aqui.
--Sim, vejamos--condescendeu Fernando, desfivellando as correias.
Ao de cima iam as cartas em massos, cintadas com fitas de diversas
côres. Seguia-se alguma, pouca e finissima roupa branca, cuja
hollandilha, e cambraia tomava pouco espaço. Depois, um vestido de seda
azul, o que ella vestia no baile de Jeronymo Bonaparte, onde viu
Fernando Gomes pela primeira vez. Depois, sobre o fundo da mala,
descobriram uma caixa de tartaruga, pouco mais larga e comprida que um
palmo. Esta caixa é que realmente pesava como ouro, e estava fechada.
Fernando esteve algum tempo tomando o peso da caixa, em meditativo
silencio, e disse:
--Não levo isto: é preciso que faças chegar, antes de á noite, este
objecto a Paulina. Aqui vão grandes valores... não levarei comigo, aqui
fechada, a minha condemnação. O mundo chama ladrões aos homens que
praticam assim. Depressa, Almeida. Inventa o milagre de fazer entregar
isto a Paulina, quando não, está tudo transtornado.
--És um homem impossivel!--replicou o secretario da legação, menos
escrupuloso que philosopho, se é que se chama acertadamente philosophos,
uns sujeitos que sabem receber, em pleno espirito, a luz toda do
seculo.--Pois tu recusas acceitar Paulina com as joias do seu uso?
--Recuso. Paulina não tem nada.
--Nem a legitima de sua mãe?
--Paulina é menor: seu pae é que lh'a administra.
--Eu não discuto direito comtigo; limito-me a descobrir que és um asno
exemplar, e dá-me vontade de te mandar cavar pés de... Com effeito!
Venham aqui aprender moralisação os futuros amadores de meninas que
levam caixõesinhos pesados, quando fogem com os amantes!...
--Tens graça; mas eu tenho razão, que é melhor--retorquiu Fernando
Gomes.
Emquanto elles altercam já em phrases desabridas, saibamos que rumor é
este que vae em casa de Bartholo de Briteiros.
O creado do hotel, como visse saír o hospede de algumas horas com a mala
que não trouxera, obedeceu ao instincto da curiosidade, e seguiu-o com
todas as precauções. Viu a pousada em que entrára, tomou o numero da
porta, e voltou a casa a dar conta ao patrão.
O dono do hotel, timbroso em manter a fama honrada do seu
estabelecimento, consultou o alcaide sem aventar suspeitas além das que
realmente davam em resultado a verdade inteira do facto.
Sabia elle que o locatario do primeiro andar era um portuguez
riquissimo, e que mais de uma vez pernoitara, nos baixos da casa, um
francez mysterioso, que tinha intelligencias com uma das filhas do
portuguez, segundo elle deprehendera d'uma troca de escriptos, por alta
noite, entre as janellas do primeiro andar e sobre-lojas. Estes
esclarecimentos deram rastros ao alcaide para suas averiguações.
Com quanto o sujeito da mala não fosse o francez alludido, observou mais
o austero hospedeiro que, no mesmo dia, entre as oito e nove horas da
manhã, o francez rebuçado cautelosamente sahira com um volume debaixo do
braço. Estas coincidencias de dois homens na mesma pousada, na mesma
noite, e com volumes iguaes, ou cousa assim, feriram faiscas de
penetração na cabeça, aliás cerrada, do hespanhol, que, de collaboração
com o alcaide, deu como effeito um consideravel roubo ao portuguez
Bartholo de Briteiros.
Esclarecido assim o facto, o alcaide apresentou-se ao fidalgo ás dez
horas da manhã, e perguntou-lhe se suspeitava que em sua casa faltassem
objectos de valor.
--Não!--disse Briteiros--Quem ha de subtrahir objectos de valor de minha
casa?!
--Examine, senhor--disse o subalterno da policia--que a minha obrigação
é averiguar, e sem detença.
Bartholo entrou nos quartos de suas filhas improvisamente, e
encontrou-as empacotando e dobrando roupa de seu uso.
--Que fazem as meninas?!--perguntou o pae com assombro.
Paulina e Eugenia ficaram tolhidas, interdictas, e incapazes de
responder um monossyllabo.
--Que estão a fazer, não ouvem?!--replicou Bartholo examinando a roupa
dobrada.
Acudiu-lhe uma atroz suspeita. Fez-se côr de terra. Dilataram-se-lhe em
arqueijos as azas do nariz. Raiaram-se-lhe os olhos de linhas
sanguineas. Correu ás gavetas dos toucadores e das commodas; remexeu
tudo, revistou tudo impetuosamente, e exclamou:
--As caixas das joias!? As tuas joias, Paulina, e as tuas, Eugenia? Onde
estão cem mil cruzados de brilhantes de vossa mãe?
Paulina cravou os olhos no chão, perdida a côr, e quasi os sentidos.
Eugenia, mais fraca de compleição, e muito timorata, cahiu em joelhos, e
exclamou:
--Perdão, meu pae!...
--Roubado! roubado!--bradou o velho--roubado por minhas filhas!
E saiu em vertiginosa corrida e a brados por a casa fora, até entrar na
sala onde estava o alcaide.
Paulina, logo que o pae sahiu, disse á irmã:
--Tu és uma miseravel se descobrires alguma cousa. Não pronuncies o nome
dos desgraçados, Eugenia! Ainda que nos matem, salvemo-los a elles!
D'ahi a instantes, foram as meninas chamadas á sala, e interrogadas.
Nenhuma resposta deram ás perguntas do alcaide. Ás do pae respondiam,
principalmente Paulina:
--Os brilhantes e as joias não estão em poder de ladrões.
Mas, no tocante a nomes, nenhuma proferiu palavra.
N'este momento angustioso, entrou o secretario da legação. N'um relance
comprehendeu tudo. Briteiros abraçara-se n'elle, exclamando:
--Roubado em muitos contos de réis por consentimento de minhas filhas...
E ellas, estas infames, estavam-se preparando para seguir os ladrões!
Não haverá justiça em Hespanha, senhor alcaide?
--Ha--respondeu Almeida--e o ministro portuguez, em Madrid, é o
funccionario a quem primariamente compete solicitar a justiça em favor
do senhor Bartholo de Briteiros. Os passos do senhor alcaide hão de ser
dados de accordo comigo. Queiram esperar-me, que eu volto.
Sahiu Almeida, e entrou em sua sege, que o transportou á pousada de
Fernando Gomes.
Sem lhe dar completa explicação das causas, obrigou-o a sair, e
transportou-o a sua casa. Ahi, simplesmente lhe disse:
--Se o meu plano vingar, d'aqui a pouco ha de estar Paulina comtigo.
E saíu, a desapoderado galope dos cavallos, para o hotel de Briteiros.
Ao apear, disse ao boleeiro:
--Se uma senhora saltar na sege, vai n'um raio apea-la em casa, mas
torce o caminho.
Subiu. As meninas tinham saído da sala.
Bartholo e o alcaide estavam ouvindo o depoimento do dono e creado do
hotel, que denominavam francezes os conductores dos volumes.
Almeida pediu licença para ter particular conferencia com as meninas.
Bartholo cedeu de prompto, entregou-se cegamente ás deliberações do
funccionario, que se dava o ar mysterioso de quem tem o fio da meada.
A conferencia foi sem testemunhas.
--Fernando está em minha casa--disse Almeida.--Aqui ha um desesperado
recurso, um unico. A senhora D. Paulina entra na minha sege, e é
conduzida a Fernando.
--Oh! meu Deus! já!--exclamou ella, erguendo-se para saír.
--E eu fico, Paulina?--bradou Eugenia.
--Pois vossa excellencia tambem quer fugir com Fernando?--disse Almeida.
--Eu havia de fugir esta noite com o conde de Rohan--respondeu Eugenia.
--Fujam ambas!--tornou o secretario, mas onde está esse conde?
--Era hospede cá no hotel... Amo-o ha cinco annos... Vamos, vamos,
Paulina...
--Eu indagarei onde está o conde--disse Almeida--Não se demorem.
Alguns segundos depois, o estrepito da carruagem fazia tremer as
vidraças do hotel. A visinhança viu o rapido saltar de duas meninas,
veleiras como anjos alados, cobertas e encapuzadas de capas de merino
branco com bordados e borlas verdes nos capuzes. Ninguem soube dizer
mais nada.
O secretario saíu com o alcaide, e Bartholo de Briteiros tornou aos
aposentos das filhas, no intento de as mandar vestir para entrarem n'um
convento.
Quando assomou á porta do quarto, viu duas creadas debulhadas em
lagrimas.

XVI
Paulina e Eugenia, menos apavoradas do que suppõe o leitor, apearam no
pateo do secretario da legação, e foram guiadas a uma sala, em que
Fernando Gomes, prostrado mais que o commum em lances taes, parecia
meditar no suicidio. Paulina galvanisou-o moderadamente, apertando-lhe
as mãos com mais tremor de ternura que d'afflicção.
--Que abatimento, Fernando!--disse ella, em quanto Eugenia, desalentada
pelo quebrantamento do moço, soluçava a chorar, na incerteza do seu
destino.
--Isto não é abatimento, Paulina...--disse elle--é porque em verdade eu
recebo com dôr a alcunha de ladrão!... Falei-te eu em joias? Que
infernal lembrança a de me dares os brilhantes de teu pae!... Quando te
disse eu que precisava de ser infame para ser feliz?
--Foi uma indiscrição, meu amigo; mas perdoa-m'a...--disse Paulina--Como
os brilhantes tinham sido da mamã, e o papá muitas vezes nos disse que
eram nossos, cuidámos que podiamos reparti-los entre ambas, sem medo de
que chamassem roubo a isto. Agora não tem remedio a nossa loucura... Não
te estejas tu assim a matar, meu Fernando. O crime é meu e não teu...
--Cala-te, pobre criança!--redarguiu Fernando--tu não sabes que mal me
fizeste...
Algumas phrases mais, talvez inopportunas, do filho do artista,
obrigaram Paulina a chorar e arrepender-se.
Chegou, n'este escuro trance, o secretario, e todos o viram como
prenuncio de bonança. Eugenia saíu logo a perguntar-lhe se sabia onde
estava o conde.
--Ainda não, minha senhora. Será talvez, difficil encontra-lo, se elle
já souber que o perseguem.
--Sou tambem perseguido?--atalhou Fernando.
--Ninguem sabe o teu nome, mas precisamente te procuram na estalagem
onde estavas. Porém, como falaste sempre francez, e, por bom alvitre
meu, te despediste como quem vae para França, muito diabolica será a
alcaidaria madrilense se te farejar aqui. Observo que os meus amigos
estão todos tres sem juizo para decidirem o que lhes convém.
--Eu decidi--disse Fernando.
--O teu plano deve ser o unico racional na tua situação: é a fuga. A
sr.ª D. Eugenia dir-me-ha o que tenciona fazer se o seu conde não
apparece.
--Não apparece!--exclamou ella atribulada.
--Póde não apparecer, minha senhora, e não ha motivo para que vossa
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