Agulha em Palheiro - 3

Total number of words is 4516
Total number of unique words is 1801
34.5 of words are in the 2000 most common words
47.0 of words are in the 5000 most common words
53.6 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
mordomos e caseiros das provincias, e embarcou em navio inglez, ancorado
no Tejo, com as duas meninas palidas de susto.
Horas depois, saía barra fóra, quando já em Lisboa repicavam os sinos á
fuga do duque do Cadaval, e ao approximar-se o duque da Terceira. A esse
tempo estalavam apedrejadas todas as vidraças do palacio de Bartholo de
Briteiros, ás Amoreiras, e a populaça, a brava e briosa gentalha,
apossava-se, por direito de conquista, da mobilia do desembargador, e
repartia, a soccos fraternaes, o espolio do miguelista.

V
Estava Fernando Gomes em Florença, conforme o seu costume em toda a
parte, sequestrado de toda a convivencia, visitando antiguidades, lendo
outras, e como que mumificando-se a si proprio entre tantas velharias.
Alguem disse a Fernando que o hospedeiro principe de Monfort mostrava
aos seus visitadores a espada que Napoleão floreara na batalha de
Marengo. Posto que o nosso portuguez presasse muito mais contemplar a
lança de Leonidas ou o punhal de Bruto, não quiz perder o lanço de ver o
sabre oriental do maior capitão do mundo, depois de Alexandre, e Cesar,
dizia elle.
O princepe recebeu-o no gabinete, onde estava escrevendo as suas
_Memorias_: mostrou-lhe a espada, facultou-lhe o exame dos tropheus
d'armas, recolhidos n'um armario envidraçado; e bem assim as chaves de
ouro da cidade de Breslaw, quaes o imperador lh'as dera, congratulando-o
pela conquista d'aquella cidade.
Fernando, incitado a fallar pelo tom familiar do erudito principe, deu
de seu saber muito boa conta sobre pontos de historia antiga, romana e
grega, monumentos, batalhas, sciencias, e tudo quanto mereceria ser
archivado em volumes grossos de soporiferas academias. O ex-rei de
Westphalia deleitou-se em ouvi-lo, não sabendo ainda se era expatriado
da Vandêa o cavalheiro que tão correctamente fallava lingua franceza.
Fallou de si Fernando em breves termos, dizendo-se portuguez, soldado da
liberdade, o infimo dos seus fautores em Portugal. Accrescentou logo que
deixara a liberdade do seu paiz, e saíra a procura-la n'outros pontos do
mundo, a fim de compara-la com a que deixara na sua terra, rachitica,
derrengada e aleijadinha.
Gostou o principe da grave sombra com que o douto moço mofava da
liberdade dos portuguezes, (gente malquista sempre dos Bonapartes) e
prolongou a palestra até horas de jantar. Fernando despediu-se já
fatigado da convivencia: o filho do artista dava pouco pela gloria de
conversar fito a fito com um ex-monarcha, irmão do heroe de Austerlitz,
das Pyramides e de Friedland.
Dias decorridos, Fernando foi convidado, em nome do principe de Monfort,
a passar a noite no palacio Orlandini. Cogitou o moço no mais urbano
modo de esquivar-se ás pesadas honras de tão luzida sociedade. A
educação acanhara-o; e os dissabores, suggeridos por causa de seu
nascimento, eram-lhe um constante espinho a impellirem-no para longe de
ajuntamentos. Assustava-o de mais o receio de encontrar portuguezes nos
salões do principe, e ter de responder-lhe ás naturaes perguntas entre
conterraneos que se encontram em paiz estrangeiro. Precisamente
quereriam saber o seu nome, o nome de seu pae, as suas relações na
patria, as mil coisas que se presumem sabidas de homens que viajam e se
relacionam com principes. Todos estes barrancos lhe empeciam o caminho
do palacio Orlandini, e nenhum expediente lhe suggeriram com que
delicadamente recusasse o convite. Sacrificou-se ao dever de quem tinha
sido tão affavelmente tratado por personagem assim venerada nos
prestigios da magestade, a magestade dos heroismos, mais imponente que a
do sceptro hereditario.
Antes da sua entrada no palacio, chegara Bartholo de Briteiros com as
bellas meninas. Em quanto as duas portuguezas levadas pelas damas se
gosavam da frescura da noite nos jardins, que muitas vezes serviam de
salões, Jeronymo Bonaparte conversou com Briteiros largamente ácerca do
moço portuguez que muito o encantara com a sua vasta erudição, e
perguntou ao hospede se conhecia _Fernando Gomes_. O fidalgo franziu a
testa, e disse:
--Não sei dizer a vossa alteza quem seja Fernando Gomes. Os _Gomes_ em
Portugal não sei quem sejam. Antigamente houveram os de bom toque; mas
de D. João I para cá não acho menção d'elles nas chronicas. É appellido
obscurecido, ou se perdeu.
--Póde ser que o seu patricio achasse o _Gomes_ perdido!...--disse o
principe com ar de riso.--O que eu sei é que o portuguez Fernando Gomes
sabe muito, e entretem com assumptos, aborrecidos quando a gente os lê
nos livros, ou nos monumentos. Gostei muito d'elle, e estimarei que a
minha estima agrade ao seu patricio.
Pouco depois foi annunciado Fernando Gomes, e logo conduzido á sala em
que já estavam as damas da primeira jerarchia toscana; e, entre tantas e
tão perigrinas, as nossas angelicaes portuguezas, honrando mais a terra
de Camões, que quantos diplomatas nos andam lá por fóra engrandecendo.
Bartholo de Briteiros fitou os olhos no portuguez, e lá entre si disse:
«Não conheço: isto é homem ordinario.»
--Tem aqui um patricio--disse o principe a Fernando.--É emigrado, e pae
das duas meninas, que o senhor além vê, que parecem madonas. Ditosas
revoluções as que obrigam a sair do seu ninho as formosuras que Deus faz
para que todo o mundo as veja! O senhor de Briteiros é um pae ditoso,
que se revê nos seus dois cherubins, dignos de Florença mais que de
Lisboa. Os modelos que Raphael e Ticiano adivinharam, justo é que vivam
em Italia, que é o céo das artes e das maravilhas. Não conhecia o senhor
de Briteiros?
--Não, senhor--respondeu Fernando.
--De onde é o cavalheiro?--perguntou Bartholo.
--Sou de Lisboa.
--Talvez que, se me disser o nome de seu pae, eu possa conhecer a sua
familia.
--Vossa excellencia não conhece de certo o nome de meu pae. Sou filho de
um homem do povo.
--De onde saem os reis do genio--ajuntou Jeronymo Bonaparte.
Bartholo fez um gesto insignificativo com a cabeça, e disse, passados
minutos:
--Veio de Portugal ha muito tempo?
--Ha vinte e tres mezes.
--Como estão as cousas por lá? Quem governa a canalha?
--Governa-se ella, presumo eu--disse Fernando.
O principe sorriu e murmurou:
--A resposta é um livro completo. A canalha governa-se a si em
Portugal...
--Em Roma no reinado dos Cezares e no Baixo Imperio, e em toda a parte
onde as nacionalidades se dissolvem--accrescentou Fernando.
--Diz muito bem!--acudiu Briteiros--Portugal está em dissolução. O
senhor é necessariamente realista!
--Não, senhor. Fui soldado nas linhas do Porto. Pugnei a favor da
liberdade, synonimo de humanidade. Servi-me a mim, servindo as classes
abatidas pelo privilegio. Se me enganei, a culpa não foi minha.
--Mas enganou-se...--atalhou Bartholo com má cara--A canalha é que
reina.
--Mas com gravata, luva branca, espada, chapeu de plumas, e
arminhos--ajuntou Fernando Gomes.
--E isso é bom?--redarguiu o fidalgo.
--É bom como lição, como experiencia...
--E depois? quando se quizerem emendar, era uma vez Portugal...
--Seremos hespanhoes, inglezes, ou turcos, mas com juizo--disse
Fernando.
--Ahi está o patriotismo dos _malhados_--exclamou Briteiros.
--Basta de politica--interveio o principe de Monfort, a quem destoara a
violencia da ultima phrase do ex-ministro da Alçada.
Fernando ficou pensativo a um canto do salão, meditando no appellido
_Briteiros_. Sabia de cór os nomes dos signatarios do accordão que
enforcou os academicos. Não lhe era extranho o feio aspecto d'aquelle
homem. Devia ser elle: ouvira em Lisboa dizer que o mais façanhudo dos
algozes vivia em Florença, com grande luxo, e segura posse de seus bens
na patria. Odiou-o; não poude mais fital-o em rosto. Pensava em sair da
sala, quando Jeronymo Bonaparte lhe disse:
--Venha ver as suas lindas patricias, que desejam conhecer o
portuguez... Mas tome tento em não argumentar com o pae. O senhor de
Briteiros é contumaz inimigo do povo e da liberdade. Cá entre os meus
hospedes francezes é conhecido por _Luiz XI_. O homem é um apologista
das gaiolas de ferro para uso das avesinhas que cantam a liberdade.
Detesta Lamartine, que escreveu contra a pena de morte, e defende que a
arvore da liberdade deve ser cortada, torada, serrada e afeiçoada á
maneira de forcas. Tem de bom que salga as suas theses com muita
inepcia: gente emigrada não póde desprezar estes perrexis do riso, por
isso o senhor de Briteiros é muito procurado. Agora vamos ver que duas
flores saíram d'aquelle bravio matagal.
Approximou-se o principe de Eugenia e Paulina.
--Aqui está o seu patricio, minhas senhoras--disse elle, indicando a
Fernando uma cadeira--conversem; espaireçam saudades da sua terra.
Retirou-se o apresentante, deixando o filho de Francisco Lourenço
penosamente enleiado.
--Está ha muito em Florença?--perguntou Eugenia.
--Ha dois mezes, minha senhora.
--Lisboa é mais linda, não é?
--Lisboa é a patria; mas Florença é a perola do mundo--disse
Fernando.--Não vi na Grecia vestigios de lá ter havido uma Florença; e,
com tudo, a Grecia era a colmeia dos mais doces favos do mundo antigo.
Aqui me parece que vejo resurgidas as delicias da Roma imperial, os
jardins de Lucullo, os marmores jorrando espadanas de crystal, as
thermas de Antonio, os...
Reteve-se Fernando. Reparou que o estavam escutando duas meninas, que,
no ar do semblante, pareciam escutar idioma desconhecido. Que sabiam
ellas de Lucullo e Antonio, as florinhas dos anjos, que da vida e mundo
apenas conheciam o espaço perfumado de seus virginaes aromas? A ellas
que se lhes dava de Florença, onde viviam tristes, com saudades do seu
jardim de Lisboa, onde tinham cada uma seu canteiro, e em cada canteiro
as plantas do seu amor? Seis annos havia que tinham deixado a patria, e
ainda se diziam uma á outra: «Ainda veremos as nossas casinhas de murta?
Já arrancariam as trepadeiras que se entrançavam em redor das janellas
do nosso quarto?» O que ellas queriam era ouvir falar de Portugal, de
Lisboa, do seu palacio, e talvez das suas flôres. Conheceria Fernando as
flôres que ellas tinham?
--Tem muitas saudades de Portugal?--disse Fernando.
--Sempre...--respondeu Paulina.
--E quem priva seu pae de voltar á patria?
--Elle não quer!--disse Eugenia--Tanto lhe temos pedido! Responde nos
sempre que só volta a Portugal com o sr. D. Miguel... Quando irá o sr.
D. Miguel, sabe?
--Não sei, minhas senhoras... Parece-me que o sr. D. Miguel não pensa em
lá voltar...
--Não?!--atalhou Paulina--E o papá a dizer que sim!... Então nunca lá
tornaremos!
--Tornam, tornam. A final o pae de vossas excellencias vae sem a
companhia do sr. D. Miguel, e supponho até que elle póde viver
tranquillo sem a protecção do principe. As pessoas, que serviram o
partido do sr. D. Miguel, teem toda a segurança em Portugal; d'isto deve
estar sobejamente informado o pae de vossa excellencia.
--Diga-lh'o, sim?--tornou Eugenia.
--Não me atrevo a aconselhal-o; porém, se o sr. Bartholo de Briteiros
quizesse ouvir o meu parecer, dir-lhe-ia que o partido liberal só
persegue os seus proprios amigos.
As meninas não entenderam a doble intenção d'estas ultimas palavras.
Fernando, em virtude do nenhum uso que tinha de trato com senhoras,
compunha sempre as suas phrases em estylo sentencioso, como se as
estivesse palestrando com philosophos ou politicos.
A mim, comtudo, o que mais me espanta é a facilidade com que Fernando
Gomes dizia aquellas coisas, mais ou menos convinhaveis ás pessoas com
quem falava! Não o insandeceram duas mulheres que eram lindas a capricho
de Deus! Poder estar assim um mortal, razoando em termos communs, diante
de espiritos para quem se fez a linguagem mellica do madrigal, a poesia,
como ella é no Oriente, e como os hebreus a saberiam lêr no cantico dos
canticos! Pois não tinha elle olhos, á mingua de coração! Acaso o
temperamento lymphatico póde tanto que as imagens objectivas se não
espelhem na retina, e o coração não tome conta dos filtros que os olhos
lhe côam como arames abrazeados de electricidade?!
Eu sei cá!...
Fernando, passado um quarto de hora, saiu do lado das filhas de Bartholo
de Briteiros, e desceu ao gabinete do principe, onde sua alteza estava
fumando e tratando assumptos litterarios com artistas, poetas, e
eruditos de differentes paizes.
O principe chamou-o á sua beira, e segredou-lhe:
--Pois fugiu-lhes?! Não o entretiveram as patricias? Já sei o que foi:
as pequenas não sabiam nada de Roma e Grecia... Mas lindas de véras,
não? Qual lhe parece mais moldada pelos velhos typos da sua predilecta
Grecia?--disse Jeronymo Bonaparte com jovialissimo rosto.
--São formosas como portuguezas--respondeu Fernando Gomes--mas em
Londres seriam mediocremente graciosas. Os typos gregos eram menos
correctos; todavia a fórma antiga, como a estatuaria a perpetuou,
exprime os estupendos lances das tragedias que não se adivinham nas
physionomias aperfeiçoadas pela lima das gerações. As cabeças de marmore
parece que ainda fremem cheias de vulcões. O busto das Aspazias,
Corinnas, Faustinas e Cleopatras dardejam fogo d'aquelles pedaços de
Carrara e Paros. A mulher viril da esplendida antiguidade, conforme a
civilisação a veiu entronando atravez dos seculos, mais e mais se foi
amollentando em feminilidades. Ganhava em prestigio o que perdia em
realeza de forças. A mulher esculpturada em Roma e Grecia, ainda amante
e amada, incutia pavor aos seus sacerdotes; a mulher dos nossos tempos é
uma creança que se quer acariciada e bajulada como se as graças da
infancia lhe aquilatasse o merecimento.
--Parece-me porém--interrompeu o principe de Monfort--que as vantagens
são a favor da mulher comtemporanea, da mulher mulher. Que entende o
cavalheiro?... As suas patricias, a meu vêr, são perfeitas mulheres para
se amarem sem inveja de gregas e romanas...
--Certamente.
--E saiba que teem sido pretendidas de grandes senhores da França, da
Polonia, e da Italia. E o avarento pae não as cede ás mais remontadas
stirpes nem aos mais abastados concorrentes. Fidalgo diz elle que o é
dos mais antigos das Hespanhas; e, como o senhor Fernando sabe, o
Creador ordenou, quando fez ou refez o globo, que a Hespanha ficasse
sendo um estanque de fidalgos retemperados por sangue ostrogôdo, alano e
suevo, sangue barbaro, que teve quatro mil annos a sua nobreza escondida
nas florestas do norte... Advirto-o, meu amigo, d'esta avareza do senhor
de Briteiros, que não vá succeder apaixonar-se o senhor por alguma das
suas patricias!... Eu ficaria com eterno remorso de o ter apresentado,
se o visse ámanhã a braços com um amor funesto!...
Fernando Gomes sorriu-se das graciosidades do principe, e saiu, pouco
depois, do baile.
No restante d'aquella noite não viu Grecia nem Roma. Por sobre os vastos
destroços, que compunham as necropolis da sua memoria, adejava um
cherubim em nuvens de perfumes, era tudo primavera com seus devaneios;
flôres e mocidade e verdura em tudo: de tudo tirava esperanças que lhe
chamavam a alma ao futuro. O passado, então, pareceu-lhe melancholico: a
poesia dos imperios pulverisados avultou-lhe como horrenda soledade; e o
sol do dia seguinte encontrou-o ainda buscando no esplendor das suas
visões o cherubim, que era, em todo o rigor da fidelidade, a imagem de
Paulina Briteiros.

VI
Tinha expirado o prazo da viagem, estipulado por Fernando, e aceite por
seu pae. No penultimo mez dos dois annos, recebeu o moço carta de
Francisco Lourenço, instando por sua ida antes de concluido os dois
annos, se possivel fosse. O artista dizia assim em sua carta:

«Está pactuado o casamento de tuas irmãs.
«Gracinda casa com um official de secretaria, rapaz de bom proceder, e
familia honrada. Genoveva, não menos feliz, vae unir-se a um capitão de
mar e guerra, homem já entrado na edade, mas muito estimavel, e muito do
agrado d'ella. O prazer de nós todos seria que assistisses a esta festa,
e enxugasses as lagrimas de teus velhos paes, quando as duas meninas, na
mesma hora, se apartarem de nós! A estas dôres chama o mundo _festas_. O
apartar-me de meus filhos quer o mundo que eu o festeje, como se
approximasse mais de minha alma! Que tristeza será a d'esta casa se tu
aqui não estiveres, filho! Que direi eu ás lagrimas de tua mãe, e ella
ás minhas!... É preciso que nos ampares a ambos: aos teus braços é que
ambos pediremos força para acceitar com resignação esta dôr obrigatoria,
pela qual alguns paes recebem parabens! Não me detenho a pedir-te que
venhas. Surda estaria a tua alma se não ouvisses os dois velhos que te
estremecem...»
..........................................................................
Eu podia escrever muitas paginas soberbas de hyperboles, umas minhas, e
outras copiadas, para dizer quanto Fernando amava Paulina; porém,
n'essas muitas paginas, seria tudo pouco para dizer tanto como n'esta
linha: _Fernando leu a carta de seu pae, e não sahiu de Florença_. Isto
vai sem ponto de admiração, porque eu, em materia d'amor, estou como
Horacio a respeito de tudo mais: _nihil mirari_. Maiores desatinos que o
de Fernando Gomes reclamam indulgencia das almas bem formadas, almas que
não sejam raio de luz sem calor n'uma pouca de lama, ou humano barro,
que dispara no mesmo.
Fernando mentiu a seu pae: disse que estava enfermo de febres, apanhadas
em Roma nas lagôas pontinas. E mentiu sem vergonha de si mesmo! A
celebrada honra de Epaminondas é a fabula mais paradoxal da antiguidade.
Amasse elle uma Paulina, e estivesse em Florença, em Florença que, no
dizer do author de _André Chénier_, «é como a Circe que maneata os
forasteiros de invisiveis liames, e lhes dá continuada festa de musica,
paisagens, perfumes, pompas e mulheres, a fim de incutir-lhes o
esquecimento do seu paiz!...»
Fernando fugiu ás musicas e aos perfumes da magica cidade. O seu amor
era taciturno e solitario, como um luto de saudade inconsolavel. Nascera
em rebentações de fogo como as lavaredas da Sicilia. Estava debaixo do
céo italiano; incubou-se d'aquelle fogo, bebeu a peçonha da immensa
mansenilha, que braceja serpentes de mortal amor por todos aquelles
remansos fataes de Genova, Piza, Veneza e Napoles. O céo esperara-o
n'aquelle ponto para lhe emborcar d'um jorro todo o amor, que lá em cima
é glorificação, e cá em baixo inferno. As flôres de sua alma
desabrolharam das mil côres da esperança, e no viço de primeiras; mas
logo amarelleceram. O formidavel «impossivel!» bateu-lhe na cabeça e
peito, para que a razão e o coração morressem a um tempo. A razão morreu
para não reagir. O coração vivia com centenares de cabeças como a hydra.
O coração é a salamandra de seus proprios incendios; lacera-se, como o
pelicano; de cada golpeada tira golfos de sangue, e n'este sangue medram
esperanças, cada dia mais infernadas. Este é o amor maldito dos que
amam, como amava Fernando a creatura divinisada por todos, isempta de
todos, vigiada pelos olhos coruscantes do velho, que tinha coração de
pae, com ferocidades de rei das selvas, velador dos seus leonculos.
Seria este imaginar impossiveis uma hallucinação do nosso homem? A gente
mais sisuda e mais desbaratada em lidar com o mundo não lhe acontece
tantas vezes fazer pé atraz, diante de travancos que uma borboleta
transmonta a brincar por entre arbustos floridos? N'este artigo de
mulheres, quantas vezes se nos figuram castellos roqueiros umas
sobrancerias que lá ao pé se alhanam como relvados macios, planos,
chãos, e todos desentranhados em boninas, que se estão como offerecendo
ás solicitas abelhas, e até a zangãos damninhos!
Ora vamos ver se Fernando cae das alturas por onde se anda após do
cherubim, e vem cá baixo á estrada coimbran, ao amor rameraneiro, de
theor e modo que o estylo possa assingelar-se o necessario para ser bem
entendido e estimado. Fuja todo o romancista de entender com personagens
que trazem a cabeça de telhas acima: a nossa linguagem lusitana é pouco
para exorbitancias taes. Os francezes dizem tudo o que querem, e até o
que não ha, nem tem ideia correspondente. Os allemães tambem. Cá entre
nós, boa gente do velho Portugal, gente que é toda vulgo nas paixões
quotidianas, quem quizer remedar extrangeiros nublando os ares com
fumaças de idealismo, despega em tolice tamanha, que não será assombroso
fecharem-se-lhe as portas da academia real das sciencias, ou
negar-se-lhe venera da ordem de S. Thiago da Espada! Não póde ir mais
longe o menos preço dos parvos.
Paulina via todos os dias Fernando na _piazza di Dome_, sobre a qual se
abriam as janellas dos seus aposentos. Chamava logo a irmã, clamando
pressurosa:
--Vem vêr o nosso patricio, Eugenia!
Assentavam os cotovellos no peitoril do balcão de marmore, e alli se
quedavam como duas rolas, a contemplar o portuguez, que as cortejara, e
parecia te-las logo esquecido. Não ousava elle fita-las segunda vez!
Remirava-as por entre os grupos: e o espaço aereo d'entre quatro cabeças
era a suprema ambição do moço, a entre-aberta do céo nas visões de um
santo anachoreta.
Algumas noites as filhas de Bartholo de Briteiros viram Fernando no
palacio Orlandini.
--Que terá elle que nos não procura?!--dizia Paulina a sua irmã--Mas
repara que não dá preferencia a ninguem!
--É tão triste aquelle homem! Serão assim todos em Portugal?--dizia
Eugenia.
--Faz-me pena aquella tristeza! acudiu Paulina.
N'outra noite a compassiva filha do fidalgo disse á irmã:
--Chamemo-lo, sim? não parecerá mal?
--Não; pois que mal é chamarmos o nosso patricio?
Eugenia fez signal a um francez, que não era principe, nem duque, nem se
quer especieiro rico: era um pintor, um amigo querido de Bonaparte.
--Senhor Leopoldo Roberto--disse ella--conhece aquelle portuguez que
está falando com a princeza Carlota?
--Fernando?... Conheço-o desde que elle chegou a Florença--respondeu o
palido mancebo.--Achei-o um desgraçado.
--Desgraçado?!--atalhou Paulina.--Que infortunios são os d'elle?
--Os extremos: os do amor sem esperança--respondeu o pintor.
Paulina encontrou os olhos de sua irmã, que pareciam dizer-lhe: «ouves?»
Leopoldo Roberto esperou novas perguntas das meninas. Passados minutos,
aventurou-se o artista a perguntar:
--Pois não conheciam o seu patricio?
--Foi-nos apresentado pelo principe de Monfort--disse Eugenia--mas dos
seus infortunios não sabiamos.
--É de Florença a senhora que elle ama?--perguntou Paulina.
--É de Portugal.
--E elle está em Italia?!--accrescentou Eugenia--porque não vae então
para Portugal?
--Andará a viajar para conhecer se ella o ama, e sente a ausencia--disse
Paulina.
--A dama está em Florença. A formosa Paulina conhece-a.
--Eu!...
--Sim, minha senhora. Digo-lhe o grande amor de Fernando, e peço-lhe que
o salve.
O pintor ia retirar: Paulina exclamou:
--Venha cá... explique-me esse mysterio... Eu conheço a senhora
portugueza que Fernando ama?!
--Os anjos de innocencia nem mesmo tem o coração que adivinha?--replicou
Leopoldo--Hei de eu por força dizer-lhe que Fernando queria morrer sem
que a imprevista Paulina soubesse que o matava?!
As meninas não proferiram um monosyllabo. Leopoldo, o ascetico amante de
Carlota Napoleão, approximou-se de Fernando, que falava com a princeza.
Levava nos olhos uma alegria desusada. Carlota mudou de local, e o
pintor disse a Fernando:
--Quebrei o encanto. Paulina sabe que a amas. É bom que estas mulheres
se glorifiquem com saberem os nomes das victimas. Morrer
obscuramente!... morrer ignorado da mulher por quem diluimos a vida em
lagrimas de sangue! Isso não! é preciso abrir larga fenda no peito,
arrancar fóra o coração, e mostrar-lh'o. Então sim! ao menos servimos á
gloria da mulher que se amou. Ella, se não póde dizer «amei-o,» diz
«matei-o!» e póde ser que o diga com piedade; venha, pois, essa piedade
posthuma, que deve ser regalo do cadaver! Que maior serviço posso eu
fazer-te, amigo?
Fernando apertou convulsamente a mão de Leopoldo, saiu aos jardins a
dilatar o peito, a desdobrar da alegria que vos commove como os assaltos
do medo. O pintor não o seguiu, dizendo:
--Vae só, que eu não tenho alegria nem lagrimas que esconder. Recorda-te
sempre de mim: propiciei-te o idolo em cujas aras era desconhecido
holocausto. Agora pódes acabar, que cumpristes a tua missão. A minha
ainda está imperfeita.
Para que o leitor me não tome como cousa de destemperada imaginativa
este Leopoldo Roberto, pintor francez, amante de Carlota Napoleão,
peço-lhe que abra um livro de Eugenio Pelletan, o qual livro se chama
_Horas de Trabalho_. Ahi, por algures, achará em resumo, n'aquella
linguagem diamantina do illustre professor de philosophia, a historia
dos amores; e, logo na pagina seguinte, a historia do suicidio do
pintor.
Hão de ver como elle atirou com o peito ás puas do despedaçador
IMPOSSIVEL, e arquejou voluptuariamente n'aquellas agonias, sem
esperança de sentir a mão da princeza enxugar-lhe o suor glacial.
Reparem no quadro que elle aperfeiçoou na vespera do seu dia final. São
scenas campezinas: obreiros que vão ás ceifas e voltam dos campos
coroados de espigas. Oh! que formosissimas visões antecedem os
paroxismos do talento! Que lucido agonisar o dos genios? Quem ha de crêr
na mortalidade da alma, quando ella assim se rejubila ao pé do golfão em
que o corpo se despenha como pedaço de materia postulosa e tábida?
E não te salvou o anjo da arte, ó poeta das primaveras, dos arreboes, e
dos crepusculos? Não tinhas uma Galathea em cada uma das tuas
camponezas? Não te palpitavam aquelles corações debaixo da palheta? Já
sabias que a tua immortalidade estava á porta do seu templo, para
abrir-t'o logo que a lousa te batesse em cheio sobre o craneo estalado
pela bala?
Que princeza te valia uma inspiração das tuas noites desveladas!
Quantas rainhas de virtudes deixaste lá em baixo escondidas nas
florestas que perpetuaste em teus quadros!
E não as amaste, como prodigo, e as déstes ao mundo, que t'as ama e as
adora nas galerias, nos museus, nos empórios das summas maravilhas do
bello!
Olha ahi por esses palacios de principes, na Florença, em que
premeditaste morrer, olha ahi como as turbas se enlevam no teu genero
immorredoiro!
E vê tu quantas princezas, como a tua Carlota Napoleão, desceram do
solio ao exilio, do exilio á tumba, da tumba ao esquecimento; e os teus
poemas ficam; e o teu espirito revive em céo e terra, e o homem pára
diante da tua sombra, e deplora que uma princeza não subisse a ti para
tu não desceres a procura-la no bojo negro do teu inferno, ou nas
explendorosas serpes da chamma em que te abrasaste, ó crysalida d'um
anjo!

VII
Queremos agora vêr como procede o portuguez.
A poesia do mysterio está aguada. Descerraram-se d'entre as nevoas as
duas estrellas que devem approximar-se ou repellir-se. A constellação é
mais de esperar, quando os prenuncios são d'esta ordem.
Tenha-se em seus brios, Fernando Gomes! Portuguezes são pouco dados a
beberem trago a trago uma prosaica morte em ideaes mysterios! Costumâmos
abrir o coração e despejar á flux quanto lá ha. Se nos desdenham, a
dignidade propria nos rehabilita. Se nos acolhem, damos pelo commum
excellentes maridos, carinhosos paes, e preciosos jarretas na velhice.
Romances d'amor, que desandam em morte de tuberculos moraes, não pegam
cá. Isto é terra de Hespanha e o céo de Italia, como diz o mais poeta
dos portuguezes, o dulcissimo Castilho. Ama-se como na Italia, e
entendia-se como em Hespanha. Quem quer saber o que é amar em Italia,
leia Byron em Veneza, e Henry Beile em todos os seus romances, e
peculiarmente na _Physiologia do amor_. Eu gosto de indicar as fontes
limpas, para que me não attribuam aguas sujas, nem acoimem o romance de
hoje em dia de pêco e ôco de conhecimentos uteis.
Ora vamos lá ao conto, que está a meada a desencadilhar-se.
Fernando Gomes venceu o seu pejo, e voltou dos jardins ao salão. Um
francez, desconhecido d'elle, perguntou-lhe se era o portuguez Fernando.
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - Agulha em Palheiro - 4
  • Parts
  • Agulha em Palheiro - 1
    Total number of words is 4574
    Total number of unique words is 1767
    34.4 of words are in the 2000 most common words
    47.6 of words are in the 5000 most common words
    55.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Agulha em Palheiro - 2
    Total number of words is 4620
    Total number of unique words is 1833
    35.1 of words are in the 2000 most common words
    47.5 of words are in the 5000 most common words
    54.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Agulha em Palheiro - 3
    Total number of words is 4516
    Total number of unique words is 1801
    34.5 of words are in the 2000 most common words
    47.0 of words are in the 5000 most common words
    53.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Agulha em Palheiro - 4
    Total number of words is 4585
    Total number of unique words is 1716
    36.8 of words are in the 2000 most common words
    49.4 of words are in the 5000 most common words
    56.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Agulha em Palheiro - 5
    Total number of words is 4597
    Total number of unique words is 1698
    35.8 of words are in the 2000 most common words
    49.5 of words are in the 5000 most common words
    57.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Agulha em Palheiro - 6
    Total number of words is 4677
    Total number of unique words is 1640
    38.6 of words are in the 2000 most common words
    52.1 of words are in the 5000 most common words
    58.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Agulha em Palheiro - 7
    Total number of words is 4552
    Total number of unique words is 1710
    36.3 of words are in the 2000 most common words
    49.3 of words are in the 5000 most common words
    56.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Agulha em Palheiro - 8
    Total number of words is 4561
    Total number of unique words is 1681
    35.1 of words are in the 2000 most common words
    50.1 of words are in the 5000 most common words
    56.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Agulha em Palheiro - 9
    Total number of words is 4489
    Total number of unique words is 1652
    37.7 of words are in the 2000 most common words
    51.7 of words are in the 5000 most common words
    59.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Agulha em Palheiro - 10
    Total number of words is 2782
    Total number of unique words is 1144
    43.0 of words are in the 2000 most common words
    56.6 of words are in the 5000 most common words
    61.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.