Agulha em Palheiro - 6

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saiu. Lá na patria sabem-lhe o nome, ou ninguem lh'o sabe, é mais
acertado dizer!... Convinha-lhe a filha de Bartholo de Briteiros? Que
atrevimento de ambições o seu! Afinal, que espera colher d'esta
aventura?... A correcção dada por um lacaio de meu primo!
--Se o lacaio tiver mais coragem do que vossa excellencia, em cujos
hombros assentaria cabalmente a farda.
--Miseravel!...--rugiu o marquez!
--Tolo!--replicou Fernando.
O primeiro voltou as costas; o filho do artista permaneceu no seu posto
alguns minutos, encarando as duas meninas, que os viram approximar da
praça, e esperavam, atribuladas, a infelicidade do encontro.

XII
Decorridos dez dias, chegou a Napoles Francisco Lourenço. Aqui o
trouxera a certeza anciosa de encontrar seu filho em convalescença, se é
que Fernando o não enganára com o louvavel intento de o poupar a maiores
afflicções. Durante a viagem para França, o artista entendeu que saíra
precipitadamente de Lisboa, sem agenciar relações que o dirigissem a
Napoles. Quem o guiaria n'uma grande cidade como aquella? Estaria o
filho n'um hotel ou nos arrebaldes?
Para remediar semelhante imprevidencia, dirigiu-se, torcendo o seu
itenerario, a Paris, e apresentou-se ao ministro portuguez, expondo o
seu destino. O ministro deu-lhe carta para Napoles.
Poucas horas depois da chegada, Francisco Lourenço tinha a certeza de
que seu filho saira de Napoles dois annos antes, e nunca mais ahi
voltára, e a certeza tambem de que o moço estava em Florença, havia
quinze dias.
Saiu Francisco para Florença, cuidando que seu filho peorára, ou
melhorára a ponto de dispensar a convalescença n'outros ares. Com as
recommendações que levára de Napoles, soube em pouco tempo que Fernando
embarcára em Genova com destino a Londres.
--A Londres!...--exclamou o velho.--Então é certo que meu filho me vae
fugindo.
--É mais natural que o vá procurando--respondeu a pessoa a quem o
artista ia de Florença recommendado.--Póde ser que seu filho fosse
embarcar para Portugal em algum dos portos de Inglaterra. O certo é que,
minutos depois da sua chegada a Londres, o senhor ha de saber onde seu
filho está hospedado, se é que elle lá está. Entretanto as minhas
informações dão que Fernando Gomes--continuou o chefe da policia de
Florença--estava mais ou menos ligado com uma familia portugueza
emigrada, cuja cabeça é Bartholo de Briteiros, residente n'esta cidade
por espaço de dois annos e tantos mezes. Dizem mais que Fernando Gomes e
um tal marquez de Tavira concorreram a amar uma filha do senhor de
Briteiros, e por ciume se insultaram na praça do Dome.
--E meu filho--atalhou Francisco Lourenço com amargura--não esteve
doente?!
--As minhas informações não me dizem que elle estivesse doente, e penso
poder asseverar-lhe que seu filho gosou em Florença a melhor saude.
Encontrei-o miudas vezes em casa de Jeronymo Bonaparte, onde elle era
muito estimado do principe. Comquanto não estivessemos relacionados, só
de o ver devo crer que o senhor Fernando Gomes passasse bem, a julgar
pelo seu aspecto não doentio, posto que pallido.
Munido de indicações e uma carta, Francisco foi esperar em Genova a
sahida de um barco inglez para Falmouth.
Tão rapidamente quanto em Florença lhe prometteram esclarecimentos,
recebeu-os em Londres, na repartição da policia, onde lhe deram um
_policeman_ que o guiou á rua, hotel, e numero do quarto em que assistia
Fernando. O velho fez mentalmente o elogio da policia britannica.
Bateu Francisco Lourenço na porta indicada. Abriu-lh'a o filho.
--Entro com os braços abertos!--disse o velho convulsivo de jubilo.--Não
te venho ralhar, filho!...
Fernando abraçou-o com fervor, e limpou-lhe as lagrimas copiosas.
--Minha mãe como está?--disse Fernando...
--Doente a deixei... Deus sabe como ella está... Acho-te bom, meu
Fernando... Ainda bem!... Não cuides que eu antes queria achar-te
doente... Perdôo-te a mentira, porque... antes assim... E agora?...
Agora vens ver tua mãe?...
--Descance, meu pae--atalhou o enleiado moço.--Descance, e depois...
--Não póde ser depois, Fernando... Que faço eu aqui?! Não vim vêr
Londres; vim procurar-te, vim chamar-te. Se me não seguires, que faço eu
longe de tua mãe, que a esta hora mal sabe que voltas tenho dado... Era
melhor que me não dissesses que ias para Napoles: poupavas-me tanto
desgosto e fadiga!... Bem vês que estou muito velho... Não me deixaste
assim... Em tres annos ninguem envelhece tanto...
--Perdão, meu pae!--exclamou Fernando, apertando contra o seio as cans
do velho lagrimoso.
--Tanto chorar, na minha edade, é sorte de poucos... Vejo tantos paes,
com os meus annos, em socego, á espera da morte, rodeados de seus
filhos, fartos e ricos do fructo dos trabalhos d'elles...
--Tem razão...--atalhou Fernando--mas esses são os paes que teem filhos
menos desgraçados que eu! Eu queria contar-lhe a minha vida... uma só
palavra a explica... é uma paixão, meu pae, que me deshonrou aos seus
olhos; por amor d'uma mulher lhe menti, e me envileci em minha propria
consciencia...
--Não estás deshonrado aos meus olhos, Fernando... Desgraçado é que me
pareces, filho... Não me contes a tua vida, que a sei. Lá deixaste em
Florença as tuas memorias... Isso mesmo por que m'o não disseste? Antes
isso que o engano. Eu não me espantaria que deixasses pae e mãe por uma
mulher. Tuas irmãs tinham sido criadas no regaço de tua mãe, e fizeram o
mesmo... Deixaram-nos sósinhos. Mas poderás tu dizer-me que futuro é o
teu? que tencionas fazer? Bartholo de Briteiros, esse mau homem, que tem
uma historia escripta com sangue, foge-te com a filha para Londres. Que
vens tu aqui fazer? Queres tirar-lh'a?
--Não, meu pae; quero vel-a, unicamente vel-a; porque no dia em que
perder a esperança de a tornar a vêr, hei de matar-me para esquecel-a...
Fernando escondeu o rosto no seio do pae, e exclamou:
--Deixe-me chorar, que são as primeiras lagrimas. Não houve coração
algum que m'as recebesse...
E soluçava convulsivamente nos braços do velho, que o apertava ao peito
com tremuras de compaixão e amor.
--Diz-me tu, filho...--tornou com muita brandura Francisco
Lourenço--essa senhora despreza-te?
--Oh! não!... O desprezo seria a minha salvação--respondeu Fernando com
vehemencia.--A desgraça é ella amar-me, e ser uma santa em dedicação e
sacrificios. Por amor de mim foi tirada de Florença para Londres; e ha
quinze dias que a cada instante a espero aqui... fugindo á crueza do
pae, que quer casal-a...
--E tu has de acceitar uma filha fugida a seu pae?...--interrompeu o
velho.--Vê se podes, á custa mesmo da vida, ser honrado, filho! Seja o
pae um malvado, seja a filha uma santa, embora...; mas não te absolvas
em tua consciencia, se consentires que essa menina fuja para ti.
--Mas o pae faz-me a injustiça de suppôr que eu não irei logo recebel-a
como esposa? Não sabe que ella é...
--Sei que é rica... os Briteiros são muito ricos... Isso é que me queres
dizer, Fernando?...
--Não, senhor; queria dizer-lhe que Paulina Briteiros não é mulher que
algum homem possa victimar, por mais infame que ser possa; ora eu, meu
pae, amo-a com esta paixão que vê. O mundo não nos perdoaria a culpa de
nos unirmos contra a vontade de seu pae?
--O mundo não vos deixaria unir sem grande perseguição, filho. Antes de
alcançares o descanço de uma honrada lucta com a sociedade, serias
muitas vezes infamado, esmagado e talvez vencido.
--Espere, meu pae!... cale-se!--exclamou de subito Fernando.--Estes
passos são de mulher...
--Será ella, meu Deus!--disse Francisco Lourenço.
Fernando foi á porta, viu a criada confidente de Paulina. A moça assim
que o viu debulhou-se em lagrimas, e balbuciou:
--A menina não pôde escrever-lhe... Está-se preparando para sair com o
pae... Recebeu ordem de repente. Vai para um convento da Irlanda: foi o
que elle lhe disse, a não querer ella casar com o maldito marquez. A
senhora D. Paulina não verteu nem uma lagrima, e respondeu: «Irei para
onde o pae quizer; não caso com o marquez, que é um villão». Que coragem
a d'aquella menina! Depois fez-me um signal; e eu corri a participar-lhe
isto. A senhora D. Eugenia manda-lhe pedir que, para salvar a irmã de
morrer no convento, indo o senhor para fóra de Londres, talvez se
conseguisse que o pae a deixasse ficar em casa, e manda-lhe dizer que o
faça se tem amor á pobre menina.
--E porque não hade elle fazel-o?--atalhou Francisco Lourenço.--Diga
vocemecê a sua ama que ao lado de Fernando está seu pae, e que meu
filho, por amor da senhora que soffre tanto, nos ha de obedecer a ambos.
--É impossivel!--exclamou Fernando allucinado por sua enorme
angustia.--É impossivel desamparal-a no maior aperto da perseguição!
Para que me quer meu pae em Portugal, se eu vou lá morrer?!... Que vil
eu seria no conceito de Paulina, affastando-me na occasião em que ella
mais precisa do meu conforto?... Diga á sr.ª D. Eugenia--proseguiu elle
voltando-se para a criada--que eu não posso obedecer lhe, salvo se ella
entende que a minha morte remedeia os desgostos de sua irmã. É de crer
que sim; mas eu é que estou convencido que Paulina quer que eu viva.
Francisco Lourenço fitava o filho com os olhos embaciados de lagrimas, e
não o contradisse.
A creada saíu com um bilhete d'oito linhas escriptas por Fernando.
Após breves instantes de silencio d'ambos, o filho disse serenamente:
--Meu bom pae, eu agradeço á Providencia poder n'esta hora falar com um
homem a quem devo as primeiras luzes da minha intelligencia. Maior
desgraça seria a minha, se meu pae não podesse comprender-me,
indultar-me, e compadecer-se. Accuso-me de o ter enganado; era mais
honroso dizer-lhe que tinha coração, mas eu cuidei que mentindo, sem
medo de ser descoberto, salvava a irreverencia inseparavel de
confidencias taes a um pae. O meu engano duplica o merecimento de ser
perdoado. Conhece a minha situação, meu pae. Com a alma despedaçada lhe
digo que não sei como remedial-a. Quer que eu o siga? Seguirei: já vejo
de todo e para sempre negra a minha vida... Seguirei; mas uma hora virá
em que meu pae se lastime por ter imposto ao meu coração a sua
respeitavel vontade. Se quer que eu viva e procure alguma saída d'este
circulo de ferro, deixe-me seguir Paulina á Irlanda...
--Bem, filho--atalhou o velho contrafazendo placidez e seguridade de
animo--Concedo o que desejas e precisas; mas escuta: os meus haveres são
poucos; tuas irmãs casaram dotadas; tu pouco tens gastado
comparativamente ao que eu antevia; mas assim mesmo excede o que devia
ser teu dote. A officina dá pouco, porque a tenho desamparada. Desde que
em Lisboa se estabeleceram sapateiros francezes, muita freguezia me
deixou. Não me affligiu este desprezo do que é nosso, porque, bemdito
seja Deus, contava com o pouco para muita felicidade. Eu estou reduzido
a tres contos de réis, e os bens do Cartaxo, que outro tanto poderão
valer. Acabado isto, irei pedir agasalho a uma tua irmã, e tua mãe a
outra; e tu, que és formado, a todo o tempo conseguirás algum emprego
que te alimente. O fim da nossa vida póde assim talhar-se, e Deus
permittirá que não seja peor. Digo-te isto para que saibas com que pódes
contar, Fernando. Lança as tuas contas; e, quando vires que tens
consumido o que possuo, tem tu a generosa compaixão de não pedir mais.
Eu comigo não posso contar para o trabalho. Estou com pouquissima vista;
mais de uma vez n'estes ultimos annos me tem ameaçado a cegueira. Corre
tudo na loja por conta dos officiaes: uns roubam, outros desmazelam-se;
ninguem tenho em que possa fiar-me. Aqui tens singelamente dito tudo.
Agora sê o que poderes ser em favor d'essa senhora; mas não te deshonres
por causa do amor. Eu creio que é falso o amor que leva o homem á
indignidade.
Fernando, após breve pausa, respondeu:
--Eu sabia quaes eram os haveres de meu pae, quando saí de Lisboa.
Viajei dois annos, gastando o menos que podia. Como o meu viver era só,
e indifferente ás regalias das cidades em que passei, restringi as
minhas despezas á sustentação parca, e ao vestido mais urgente. Assim
mesmo gastei muito em proporção do que devia gastar. Pouco tem hoje meu
pae para a sua subsistencia: não devo pedir-lhe um quinhão d'essas
migalhas. Irei ensinar linguas na Irlanda: sei um pouco de todas as que
se falam na Europa. Muitos emigrados portuguezes aqui viveram assim. A
fome illude-se com pouco.
Francisco Lourenço abraçou o filho, e murmurou:
--Não quero, filho, não quero isso assim. Quando a necessidade te
obrigar ao trabalho e á independencia dos impossiveis recursos de teu
pae, eu t'o direi sem pejo, nem pesar de te ver humilhado. Então
trabalharás para ti, e verás quão doce é o pão negro que se lavra com o
proprio suor...

XIII
Paulina leu o bilhete de Fernando, que dizia assim:

«Ver-me-has em toda a parte; e, quando me não vires, sabe que eu
contemplo o céo que te cobre, ou te espero em outro mundo para uma outra
vida. Vivo ou morto, a minha alma será sempre comtigo, Paulina! Ámanhã
parto para Irlanda. Não sei se é para Dublin que te levam. Eu te
encontrarei... Até lá.»

E estava alli, á beira d'elle, o choroso velho, aquelle pae amantissimo,
quando Fernando escreveu: _Ámanhã parto_!... A crueldade dos filhos que
amam! Que fragil é tudo isto que ahi chamam leis da natureza, quando o
amor, aquella creança dos fabulistas, mesmo ás cegas, lhes atira um
encontrão!
Em quanto Paulina relia o bilhete e o mostrava á irmã com a douda
alegria de mulher amada, Bartholo de Briteiros, encerrado com o marquez
de Tavira, dialogavam d'este theor:
--Mas não me saberás tu explicar o contentamento com que Paulina se está
preparando?!--dizia Bartholo.
--Aquillo é febre que arrefece depressa, primo Briteiros. As mulheres
são assim.
--E era capaz de entrar no convento, e esquecer-se de pae, irmã, e tudo!
--Nos primeiros dias, sim; depois, quando lhe faltasse o animo, e não
visse o Fernando, nem tivesse noticias d'elle, modificava o seu parecer
a respeito de conventos e de amor. As mulheres são assim, primo
Briteiros. Umas ha que são capazes de morrer por orgulho, e outras por
soberba são capazes de se envilecerem. Mas a nossa Paulina não ha de
morrer nem aviltar-se, visto que o convento é uma fabula, e a fria
Irlanda se não ha de gosar de a ter nos seus mosteiros. A creada
desempenhou perfeitamente o papel, pelos modos. É o dinheiro mais bem
empregado que tu tens consumido para salvar tuas filhas das unhas dos
aventureiros...
Corte-se aqui o dialogo para dar um esboço muito pela rama d'esta ladina
creada, que tambem tinha a honra de ser portugueza.
O marquez descobrira que ella era a intermediaria de Paulina e Fernando.
Aconselhou, por isso, Bartholo que a seduzisse com dinheiro a ir
participar a Fernando que a menina se recolhia a um mosteiro da Irlanda;
e ao mesmo tempo, da parte de Eugenia, lhe pedisse que se retirasse de
Londres, a ver se assim abrandavam os rigores do pae. A creada accedeu á
proposta com o mais admiravel desapego de gratificação. Saiu logo a
cumprir o mandado, e recebeu o bilhete de Fernando. Na fiel entrega do
bilhete a Paulina é que assenta o elogio da creada. Bartholo ficou
contente d'ella, e Paulina extremamente grata á expontanea resolução da
creada. Mas é pena que tanto a ama, como a creada, como Fernando Gomes
fossem enganados por cavillações suggeridas pelo marquez de Tavira, que
era o mais refinado velhaco de que ainda tivemos noticia!
Agora ate-se o dialogo.
--Foi bem lembrada a tua ideia, primo!--tornou o ministro da Alçada,
como que orgulhando-se de ter na sua parentella um sujeito com
ideias.--O homem agora vae dar comsigo em Irlanda. Quem diabo lhe ha de
lá dizer que nós vamos para Madrid?
--É verdade!--exclamou o inventor da ideia com radiosa ufania.
--Quando elle o souber--tornou Bartholo--espero eu que tu sejas meu
genro, e minha filha feliz... Palavra de cavalheiro! eu não tinha alma
de a fechar n'um convento! Quero-lhe muito, e por isso t'a dou com a
condição de que nunca sairá da minha companhia, primo.
--Já te disse que a minha maior dôr seria separar-me de ti, primo
Briteiros! Se ha pessoa n'este mundo que eu preze tanto como a tua
filha, és tu! Ainda mesmo que Paulina me fique odiando para sempre, e
não venha a ser minha mulher, crê tu que tamanho golpe não cortará os
vinculos de amizade que nos prendem. Serei um teu dedicado irmão, um
vigilante mordomo do teu bem estar, capaz de todo me sacrificar ao zêlo
com que tu olhas pela ventura de tuas filhas.
--És honrado, primo Tavira!--exclamou Bartholo--Conta com o amor da
minha Paulina, quando esse maldito demonio a tiver deixado...
--D'elle estás tu livre, Briteiros! Se outro peor não vier depois... mas
eu terei astucia para te salvar de todos.
A creada, que captivara a confiança do amo, como sentisse remorder-lhe o
remorso de ter, apesar de tudo, atraiçoado a menina que a tratara sempre
como amiga, desde a infancia de ambas, cogitou no modo como foi
industriada, e de si para si decidiu que a ida de Paulina para um
convento de Irlanda era um logro a Fernando Gomes. Levada d'esta
apprehensão, e do desejo de remediar o mal, se era um mal ser ecco da
mentira, foi manso e manso colar a orelha á fechadura da porta que
separava Bartholo e o marquez das salas mais frequentadas da casa. A
parte do dialogo que ella escutou era a mais importante. O amo erguera a
voz, quando perguntou ao marquez:
--_Quem diabo lhe ha de dizer que nós vamos para Madrid?_
--A criada respondeu entre si: «Hei de ser eu» e foi de corrida contar a
Paulina o que ouvira; e, instantes depois, ia a caminho do hotel de
Fernando com a nova, e já em toda a seguridade de sua consciencia. O
filho do artista ouviu o contra annuncio com prazer. Estava a seu lado o
velho, como a gosar-se em lagrimas das poucas horas de convivencia com
seu filho. Esperava dar-lhe na manhã do dia seguinte o adeus de
indeterminada, e talvez eterna separação. A nova foi de prazer para
ambos. Francisco Lourenço iria com seu filho para Hespanha, e te-lo-hia
menos longe de si. O prazer de Fernando, de natureza diversa, consistia
em ser Paulina menos sacrificada por amor d'elle. O convento
avultava-lhe com mil angustias, que lá não existem. O receio de a ver
sossobrar entre ferros, em lucta com os apertos monasticos recommendados
por Bartholo, era a mais pungente de suas dôres. Entreluziam-lhe
esperanças em Madrid: mais facilidade na fuga, mais protecção nos
costumes; amigos que lhe dessem auxilio; e a breve jornada a Portugal.
N'este enlevo de alegrias, forçoso era que viesse logo o desconto.
Francisco Lourenço, quasi sem ponderar o valor da pergunta, disse a
Fernando:
--Essa senhora sabe de quem és filho?
--Nunca m'o perguntou...
--Nem tu lh'o dirias... mas tens tu reflectido n'este ponto? A senhora
D. Paulina de Briteiros amar-te-hia se lhe tu houvesses dito que teu pae
é o sapateiro da calçada do Sacramento? E amar-te-ha, quando alguem,
bastante curioso, ou encarregado de saber o teu nascimento, a informe de
que o viajante portuguez, posto que viva de seus proprios recursos, é
filho de um sapateiro?
Fernando odiou-se a si proprio n'este momento, e respondeu com um gesto
desabrido.
O artista achegou-se do filho para lhe vêr o rosto, cujas alterações
seus olhos não alcançavam. E disse:
--Fizeram-te mal estas reflexões, Fernando?
--Fizeram, meu pae--disse o moço agastado.--Por isso mesmo, para me
forrar d'estas agonias horriveis, melhor fôra que me tivesse dado a
felicidade do artista. Eu seria a esta hora um homem com a alegria pura
de todo o homem que trabalha, e tem suas ambições e coração
circumscriptos a muito pouco. Que fatal lembrança a de me arrancar da
minha esphera, para que eu hoje não tenha nenhuma! Os pequenos
regeitar-me-hão como os grandes me regeitam, quando souberem quem eu
sou!...
--Deus se compadeça de ti!--murmurou o velho, limpando as lagrimas--e me
perdôe a mim o mal que te fiz, pelo muito que tenho expiado a minha
vaidade de te fazer maior do que teu pae. Valha-te o Senhor! Que
direitos tens tu a uma felicidade que te custa humilhações? Para que a
procuras afincadamente, se vaes de rastros após ella! Por que has de tu
querer hombrear com os grandes, se eu apenas te fiz entrar n'uma
carreira por onde levarias teus filhos á grandeza! São as tuas cartas de
bacharel formado que te arremessam aos despropositos das ambições? Ou é
a tua intelligencia que te diz que não nasceste para a mediania? Se é a
tua habilitação, faz que ella te sirva, filho. Entra como quem és, e o
pouco que és, na estrada da honra: faz realçar o teu merecimento com tua
mesma humildade, e lá irás dar ao ponto onde chega o homem honrado, todo
o homem, ainda que a muitos pareça que não. A tua intelligencia é
impossivel que te aconselhe esse odio ao acaso que te fez nascer de paes
mechanicos. Eu, filho, li quanto pude, estudei quanto os meus poucos
principios me permittiram; e Deus sabe que nunca tive pejo de ser quem
era. A razão esclarecida é o que falta aos homens que se envergonham de
não terem nascido já nobres, já respeitados, e idolatrados do mundo.
Pensava eu que, allumiando a tua razão, te dava armas para combateres os
prejuizos e preconceitos miseraveis das raças. Fiz o contrario, filho;
justamente o contrario...
--Não, meu pae...--interrompeu Fernando--perdoe-me, e não se afflija,
por amor de minha mãe lh'o rogo! Eu tenho o presentimento de que ainda
hei de provar-lhe que me não vexo da baixeza do meu nascimento... esta
dôr foi uma irreflexão, meu pae. Tem o coração estes desgraçados
caprichos... Caprichos, e mais nada... Se Paulina me perguntar quem sou,
dir-lhe-hei quem sou; se quizer saber quem é meu pae, dir-lhe-hei
ufanamente quem é meu pae. Por que não?... Aquella candida alma
deslustrar-se-hia em me ter pertencido? Então que torpe deve ser o
coração humano! Com que prazer e ardor eu iria buscar á derradeira ordem
social a mulher pobre, a filha do varredor das ruas, a filha do
carrasco, que me desse o seu amor, sem perguntar-me a minha origem?...
Alongou-se o dialogo entre os dois, que terminaram abraçando-se, e
chorando.
Era tempo de se aprestarem para a viagem. Fernando, sabendo que a
familia Briteiros havia de atravessar o Canal no dia seguinte, de
passagem para França, tomou nota da saida de um navio de Plymouth para
portos de Hespanha. Resolveram seguir o caminho mais perto, consultando
a vontade de seu pae.
Pessoa extranha, que observasse o aspecto de Fernando, veria as nuvens
que lhe assombreavam a alma. Embaciára-se-lhe, não sabemos por que
maravilhoso influxo, a limpidez da esperança, com a qual até áquella
hora conseguira affrontar a adversidade. Era o desalento, um não sei que
de contricção intima, que paralysa as faculdades robustas da vontade
n'um quasi morrer de toda ella.
As terriveis hypotheses do pae, concernentes ao sapateiro em amores com
a illustrissima pretendida do marquez de Tavira, poderiam tanto!
O orgulho do coração do homem do povo será capaz de aniquilar tamanha
paixão?
Ha exemplos; mas tão obscuros que nenhum romancista quer fazer obra por
elles.
Em novella, criada para as folgas de grandes damas, e galans mancebos,
enfastiados d'outros gosos, qual romancista baixa das alturas da sua
imaginação a historiar quadros sociaes de sapateiros?
Se em Portugal os sapateiros lessem, tal livro seria comprado por uma
classe e pagaria as fadigas do popular escriptor.
É precisa muita abnegação para isto, n'esta terra e com esta gente, que
acha mesmo illiteraria a palavra «sapateiro».
_Artista_, recommendam-me que diga _artista_, para não offender o
apparelho articular das pessoas afidalgadas de nervos!
Já é! ha poucos mezes contei, romanceei, panegyriquei a vida de um
gallego n'um volume de duzentas e tantas paginas! É rastear muito esta
arte! Ha tanto principe na historia portugueza a pedir romance! e tanta
princeza tambem!
Por que não hei de eu escrever historias de principes e de princezas, e
deixar os sapateiros subir algum tanto na escala d'umas qualificações
modernas que elles se vão inventando para seu uso, que a isso os obriga
o menos-preço d'esta luminosissima e fraternal civilisação?
O nome de sapateiro está a sumir-se. Já muitos do menoscabado officio se
denominam _artistas d'artes correlativas_... dos pés. Dos individuos
cultos, que os mettem n'estas andanças e chibanças, deviam elles
chamar-se não _sapateiros_, mas _ferradores_.

XV
O secretario da embaixada portugueza em Madrid havia sido camarada de
Fernando Gomes no cerco do Porto; e seu contemporaneo na universidade.
Approximara-os mais em Coimbra o paralelo dos nascimentos: eram ambos
filhos de artistas. Separados depois da formatura, um para os cargos
publicos, outro para as viagens, continuaram sempre correspondencia de
bons amigos. O secretario da legação recebeu a nova da chegada de
Fernando a Madrid, e maravilhou-se de encontral-o sumido n'um quarto de
obscura estalagem.
Contou o bacharel diffusamente a historia dos seus vagabundos amores, e
explicou a obscuridade e recato em que tencionava viver para não causar
desgostos á filha de Bartholo de Briteiros. Queria elle existir
secretamente em Madrid, de modo que o pae de Paulina o imaginasse na
Irlanda, procurando a reclusa nos conventos; entretanto, era seu intento
diligenciar casarem-se judicialmente, ou, no extremo d'algum imprevisto
accidente, fugir com ella para Portugal. O amigo escusava prometter-lhe
todo o auxilio. Era este um dos academicos que frequentavam a
universidade em 1828, quando os dois lentes foram assassinados. Fôra
elle um dos sorteados para a impolitica vingança; como quer, porém, que
estivesse enfermo n'essa occasião, forrou-se assim ao incommodo de ser
estrangulado. Ora Bartholo de Briteiros, como sabem, tinha sido o mais
impassivel signatario do accordão: o amigo de Fernando vira caminharem á
forca os seus condiscipulos; e tal rancor ganhou aos juizes, que só o
nome de Briteiros lhe trouxe aos olhos faulas de raiva mal abafada pelo
correr de dez annos. Para elle era não só prova de amigo, mas desforra
de inimigo coadjuvar o camarada das linhas do Porto a zombar das
astucias do ministro da Alçada.
Com tal protecção, Fernando soube a hora em que chegou Bartholo, a rua e
hotel onde se aposentou; e Paulina, pouco depois da sua chegada, recebia
d'uma creada do seu quarto, na hospedaria, uma carta de Fernando.
Francisco Lourenço, cuidando que assim ficavam bem encaminhados os
honestos intentos de seu filho, seguiu para Lisboa. A mãe, anciada de
saudades de ambos, quando viu o marido sem o filho, arrancou um ai, e
perdeu o sentimento. Volvendo a si, ouviu com pasmo a miuda narrativa
dos casos acontecidos ao esposo, e deu graças a Deus sem arguir a dura
alma do filho. Á santa mulher, para sua consolação, bastou lhe saber que
Fernando vivia. O procurar elle sua felicidade, na idade propria do
amor, com tantas adversidades, foi á boa mãe maior motivo de
compadecimento que de censura. Como, por momentos, o considerou morto,
era natural que tudo lhe perdoasse, estando elle vivo. Assim ficaram os
dois velhos, esperando que inesperadamente lhes apparecessem casados o
filho e a gentil fidalga. Francisco Lourenço foi ao Cartaxo dar ordens a
confortos da casa, mobilação, e mais aprestos, sendo que Fernando
mostrara desejos d'ir alli descançar annos, ou talvez a vida toda,
qualquer que fosse o incerto desenlace de suas canceiras.
Bartholo e o marquez de Tavira davam-se os embora do feliz exito da sua
falcatrua. Viam Paulina alegre, dada a bailes e a theatros, com bom
rosto para o proprio marquez, e nem por sombras magoada d'alguma
fugitiva saudade! O fidalgo continuava sempre a dizer «que as mulheres
eram assim». E o pae de Paulina admirava a esperteza e acume seu futuro
genro.
Raro dia faltava á menina carta de Fernando, por intervenção do
secretario da legação, que acintemente acceitara o conhecimento do
marquez de Tavira, para mais de perto collaborar na derrota do Bartholo.
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