Romanceiro III: Romances Cavalherescos Antigos - 5

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Tranzendo cinco comsigo,
Sem eu trazer mais commigo
Que um pagem por companhia.
A mim chamam Valdevinos,
Sou filho de elrei de Dacia,
E primo de elrei de Grecia,
E do forte Montesinos,
Que é herdeiro de Dalmacia.
Dona Hermelinda formosa
Minha madre natural,
Sibylla minha espôsa
De graças especial,
Mas com primores famosa.
Ésta nova contareis
Á triste de minha madre
Que em Mantua achareis,
E ao honrado marquez
Meu tio, irmão de meu padre.
FALLA O MARQUEZ
—Oh desestrado viver,
Oh amargosa ventura,
Oh ventura sem prazer,
Prazer cheio de tristura,
Tristura que não tem ser!
Oh desventurada sorte,
Oh sorte sem soffrimento,
Desemparado tormento,
Muito peior do que a morte,
Morte de desabrimento!
Oh meu sobrinho, meu bem,
Minha esperança perdida,
Oh gloria que me sustêm,
Porque vos partis de quem
Sem vós não terá mais vida?
Oh desventurado velho,
Captivo sem liberdade!
Quem me póde dar conselho,
Pois perdido é o espelho
De minha gran’ claridade!
Oh minha luz verdadeira,
Trevas do meu coração,
Penas de minha paixão,
Cuidado, que me marteira,
Tristeza de tal traição!
Porque não quereis fallar
A este marquez coitado,
Que tio sohieis chamar?
Fallae-me, sobrinho amado,
Não me façais rebentar.
DIZ VALDEVINOS
—Meu tormento tam molesto
Me faz não vos conhecer
Nem na falla, nem no gesto;
Nem intendo vosso dizer
Se não for mais manifesto.
Estou tão posto no fim,
Que não sei se sou alguem,
Nem menos conheço a mim;
Pois quem não conhece a sim,
Mal conhecerá ninguem.
DIZ O MARQUEZ
—Como não me conheceis,
Meu sobrinho Valdevinos?
Eu sou o triste marquez
Irmão de elrei Dom Salinos,
Que era o pae que vos fez.
Eu sou o marquez sem sorte,
Que devêra rebentar
Chorando a vossa morte,
Por com vida não ficar
N’este mundo sem de porte.
Oh triste mundo coitado,
Ninguem deve em ti fiar,
Pois es tam desventurado,
Que o que tens mais exaltado,
Mor quéda lhe fazes dar!
FALLA VALDEVINOS
—Perdoa-me, senhor tio,
A minha descortezia,
Que a minha grande agonia
Me pôs em tanto desvio,
Que ja vos não conhecia.
Não me queirais mais chorar;
Deveis de considerar
Que para isso é o mundo,
Que dobrais meu mal profundo.
Para bem é mal passar:
E bem sabeis que nascemos
Para ir a ésta jornada,
E que, quanto mais vivemos,
Maior offensa fazemos
A quem nos creou de nada.
Assim que, necessidade
Não tendes de me chorar,
Poisque Deus me quiz levar
No melhor de minha edade
Para mais me aproveitar.
Mas o que haveis de fazer,
É por minha alma rogar,
Porque o muito chorar
Á alma não dá prazer,
Mas antes mui gran’ pezar.
Quero-vos incommendar
Minha espôsa e minha madre,
Poisque não tem outro padre
Que as haja de amparar,
Senão vós, como é verdade.
Mas o que me dá paixão
Em ésta triste partida,
É morrer sem confissão;
Mas se parto d’esta vida,
Deus receberá a tenção.
Vem o ermitão e o pagem.
DIZ O ERMITÃO
—A paz de Deus sempiterno
Seja comvosco, irmão!
Lembrae-vos de sua paixão
Que, por nos livrar do inferno,
Padeceu quanto a varão.
DIZ VALDEVINOS
—Com coisa mais não folgára
Do que vê-lo aqui chegado,
Padre de Deus enviado,
Que se um pouco mais tardára,
Não me achára n’este estado.
FALLA O PAGEM
—Oh que desestrada sorte,
Meu senhor Danes Ogeiro!
Olhae vosso escudo forte,
Olhae, senhor, vosso herdeiro,
Em que extremo o pôs a morte!
Oh desditoso caminho,
Caça de tanto pezar,
Que cuidando de caçar,
A morte a vosso sobrinho
Vieste, senhor, buscar.
DIZ O ERMITÃO
—A gran’ pressa que trazia
Não me deu, senhor, logar
De conhecer nem fallar
A vossa gran’ senhoria.
N’este êrro se ha culpa,
Peço-lhe d’ella perdão,
Ainda que a discrição
Sua me dará desculpa.
FALLA O MARQUEZ
—Rogae a Deus, padre honrado,
Que me queira dar paciencia;
Que o perdão é escusado,
Porque vossa diligencia
Vos não deixa ser culpado.
DIZ O ERMITÃO
—O filho de Deus enviado
Vos mande consolação!
E pois que aqui sou chegado,
Quero ouvir de confissão
Este ferido e angustiado.
Coisa é mui natural
A morte a toda a pessoa,
A todo o mundo em geral,
Poisque a nenhum perdoa.
Não a tenhamos por mais.
Porque o peccado de Adão
Foi tam fero e de tal sorte,
Que não só foi perdição:
Mas Deus, que é salvação,
Quiz tambem receber morte.
E por tanto, filho meu,
Não se deve de espantar
Da morte que Deus lhe deu;
Pois em provimento seu
Lh’a deu para o salvar
Lembre-lhe sua paixão:
Veja este mundo coitado,
E não o ingode o malvado,
Que não dá por galardão
Senão tristeza e cuidado.
Em quanto, filho, tem vida,
Chame a Madre de Deus,
Aquella que foi nascida
Sem peccado concebida,
E coroada nos ceos.
Ésta foi santificada
E visitada dos anjos,
E em corpo e alma levada
Á gloria, onde exaltada
Lá está sobre os archanjos.
Assim, que ao Redemptor
E a ésta Virgem sem par
Se hade, filho, incommendar
Depois que aos sanctos for
Sua vontade chamar.
As mãos levante aos ceus,
Faça confissão geral,
Confessando-se a Deus
E á Virgem celestial
E a todos os sanctos seus.
DIZ O MARQUEZ
—Oh bonancia abhorrecida,
Oh desestrada fortuna,
De prazeres gran’ tribuna!
Porque não desemparais
A quem sois tam importuna?
Tristeza, desconfiança,
Porque não desesperais
A quem não tem confiança?
Contae-me, pagem Burlor,
O caso como passou,
Quem foi aquelle traidor
Que mattou vosso senhor,
Ou por que causa o matou
FALLA O PAGEM
—Seria mui mal contado
Se a sua gran’ senhoria
Não contasse o que é passado.
Eu sei certo que faria
O que não é esperado
Contra quem me deu estado,
E ha feito tantas mercês
Que nunca meu pae me fez:
Que é meu senhor amado,
E mais vós, senhor marquez.
Estando pois em Paris
O filho do imperador,
Mandou chamar meu senhor
Nos passos da imperatriz:
Fallaram muito a sabor;
O que fallaram não sei,
Se não que logo n’essa hora,
E sem fazer mais demora,
Com quatro detraz de si
Foram da cidade fóra,
Armados secretamente,
Segundo depois ouvi.
Partimos todos d’ahi,
E Dom Carloto presente
Tambem armado outrosi.
E tanto que aqui chegaram,
N’este valle de pezar
Todos juntos se apearam
E fizeram-me ficar
C’os cavallos que deixaram.
E logo todos entraram
Em este esquivo logar,
Onde meu senhor mattaram,
E depois de o mattar,
Nos cavallos se tornaram.
Como eu os vi tornar,
Sentindo muito tal dor,
Temendo de lhe fallar,
Não ousei de perguntar
Onde estava meu senhor.
Vendo-os assim caminhar,
Porque nenhum me fallava,
Quiz a meu senhor buscar,
Porque o coração me dava
Sobresaltos de pezar.
Não o podia topar
Porque a grande espessura
E a noite medrosa, escura
Me fazia não o achar:
De que tinha gran’ tristura.
Buscando-o com gran’ paixão,
N’aquelle lugar remoto
O achei d’esta feição.
Disse-me como á traição
O mattára Dom Carloto.
Perguntei porque razão:
Triste, cheio de agonias,
Disse-me com afflicção:
—‘Vai-me buscar confissão,
Ja se acabaram meus dias.’
Como taes novas ouvi,
Com grande tribulação
E pezar de vê-lo assi,
Me parti logo d’aqui
A buscar este ermitão.
Isto é, senhor, o que sei
D’este caso desastrado,
Quanto me ha perguntado:
Outra coisa não direi
Mais do que lhei contado.
DIZ O MARQUEZ
—Quando sua majestade
Justiça me não fizer
Com toda a rogaridade.
Á força de meu podêr
Cumprirei minha vontade.
DIZ O ERMITÃO
—Ja o senhor se ha confessado,
E fez actos de christão;
Morre com tal contricção,
Que eu estou maravilhado
De sua gran’ discrição.
Muito não póde tardar,
Segundo n’elle senti.
Acabei de lhe fallar
Porque lhe quero rezar
Os psalmos d’elrei David.
FALLA VALDEVINOS
—Não tomeis, tio, pezar,
Que me parto de vos ver
Para nunca mais tornar,
Pois Deus me manda chamar
E não posso mais fazer.
Torno-vos a incommendar
Minha espôsa e minha mãe,
Que as queirais consolar
E ambas as amparar,
Poisque não têem mais a quem.
ORAÇÃO DE VALDEVINOS
—Em as tuas mãos, Senhor,
Incommendo meu espirito;
Poisque es Salvador meu,
Meu Deus e meu Redemptor,
Não me falte favor teu:
Pois, Senhor, me redemiste,
Como Deus, que es de verdade,
Senhor de toda a piedade,
Lembra-te d’esta alma triste
Cheia de toda a maldade.
Salve, Senhora benigna,
Madre de misericordia,
Pas de nossa gran’ discordia,
Dos peccadores mezinha,
Vida doce e concordia,
Spes nostra, a ti invocamos,
Salva-nos da escura treva.
A ti, Senhora, chamamos
Desterrados filhos de Eva,
A ti virgem, suspiramos,
A ti gemendo e chorando
Em aqueste lagrymoso
Valle sem nenhum repouso,
Sempre, Virge’, a ti chamamos,
Que es nosso prazer e gôso.
Ora pois, nossa advogada,
Amparo da christandade,
Volve os olhos de piedade
A mim, Virgem consagrada,
Poisque es nossa liberdade.
Dá-me, Senhora, virtude
Contra todos meus imigos;
Poisque es nossa saúde,
Eu te rogo que me ajudes
Nos temores e perigos:
Roga tu por mim, Senhora,
Oh Sancta Madre de Deus,
A quem a minha alma adora,
Pois es rainha dos ceus
E dos anjos superiora.
Aqui expira Valdevinos e
DIZ O MARQUEZ
—Oh triste velho coitado,
Oh cans cheias de tristura!
Oh doloroso cuidado,
Oh cuidado sem ventura,
Sem ventura desestrado!
Quebrem-se minhas intranhas,
Rompa-se meu coração
Com minha tribulação.
Chorem todas as campinas
Minha grande perdição,
Scureça-se o sol com dó,
Caiam estrellas do ceu,
As trévas de Faraó
Venham ja sôbre mim só.
Pois minha luz se perdeu
Na luz de mui claro dia,
Claridade sem clareza,
Minha doce companhia,
Onde está vossa alegria,
Que me deixa tal tristeza?
Oh velhice desestrada,
Sem gloria e sem prazer,
Para que me deixais ser,
Pois que sendo, não sou nada,
Nem desejo de viver?
Porque não vens, padecer,
Porque não vindes, tormentos,
Paraque são soffrimentos
A quem os não quer ja ter,
Nem busca contentamentos?
Paraque quero razão,
Paraque quero prudencia,
Nem saber, nem discrição?
Paraque é paciencia,
Pois perdi consolação?
DIZ O PAGEM
—Oh meu senhor muito amado,
Porque vos tornastes pó?
Porque me deixastes só
Em este mundo coitado
Com tanta tristeza e dó?
Leváreis-me em companhia,
Pois sempre vos tive, vivo.
Oh minha grande alegria,
Porque me deixais captivo,
Mettido em tanta agonia?
Meu senhor, minha alegria,
Dizei, porque nos deixais
Com tanta pena notoria?
Lembrai-vos, tende memoria
De quantos desemparais.
Oh sem ventura Burlor!
De quem serás amparado,
De quem terás o favor
Que tinhas de teu senhor,
Poisque ja te ha faltado?
FALLA O ERMITÃO
—Não tomeis, filho, pezar,
Pois claramente sabeis
Que pelo muito chorar
Não cobrais o que perdeis.
Deveis, filho, de cuidar
Que nossa vida é um vento
Tam ligeiro de passar,
Que passa em um momento
Por nós assim como o ar.
Quem viu o senhor infante,
Tam pouco ha, fazer guerra,
E ser n’ella tam possante,
E agora em um instante
Se tornado escura terra,
Diria com gran’ razão
Que este mundo coitado
Não dá outro galardão,
Senão tristeza e paixão,
Com a vós outros foi dado.
Olhae a elrei Salomão
O galardão que deu;
A Amon e Absalão,
E ao valente Sansão,
E ao forte Macabeu.
Em a Sacra Escritura
Muitos mais podia achar
Se os quizesse contar;
Mas vossa grande cordura
Supprirá donde faltar.
E poisque não tem ja cura
O mal feito e o passado,
Cesse a vossa tristura,
E demos á sepultura
Este corpo ja finado.
Levemo-lo onde convêm
Para que seja interrado;
E póde bem ser guardado
N’aquella ermida que vêem
Até ser imbalsemado.
Aqui levam a Valdevinos á ermida. E entra o imperador, o conde Ganalão, e
DIZ O IMPERADOR
—Certo, conde Ganalão,
Muito gran’ perda perdemos.
Péza-me no coração,
Porque na côrte não temos
Reinaldos de Montalvão,
Nem o conde Dom Roldão,
Nem o marquez Oliveiros,
Nem o duque de Milão,
Nem o infante Gaifeiros,
Nem o forte Meredião.
DIZ GANALÃO
—Muito alto imperador,
Muito estou maravilhado
Porque mostrais tal favor
A quem vos ha deshonrado
Com tanta íra e rigor,
Que, chamando-se Almansor;
Com o seu rosto mudado
Aquelle falso traidor
Com mui grande deshonor
Quiz deshonrar vosso estado:
Porquê, senhor, não sentis
Que este malvado ladrão
Vos prendeu de sua mão
Tomando-vos a Paris
Com muito grande traição?
Pondo-vos em Montalvão
Apezar do vosso imperio,
Onde com gran’ vituperio
Estivestes em prizão,
Sem ter nenhum refrigerio?
FALLA O IMPERADOR
—Verdade é isso, cunhado:
Porêm deveis de saber
Que em Reinaldos me prender
Eu mesmo sou o culpado:
Isto bem o podeis crer.
Se então me quiz offender
Não é muita maravilha,
Pois ja me quiz guarnecer
Mattando elrei Carmeser,
Que me trouxe a sua filha.
DIZ GANALÃO
—Vossa real majestade
Dirá tudo o que quizer,
Mas eu espero a Beltrão...
Que se conheça a maldade
De quem se hade conhecer.
Aqui se vai Ganalão; e vêem dois embaixadores mandados pelo marques de
Mantua, chamados Dom Beltrão e duque Amão: e virão vestidos de dó: e
DIZ BELTRÃO
—Gran’ Cesar Octaviano,
Magno, augusto, forte rei,
Grande imperador romano,
Amparo da nossa lei,
Poderosa majestade,
Senhor de toda a Magança,
Da Gascunha e da França,
Gran’ patrão da christandade,
Esteio de segurança!
Pois sois senhor dos senhores,
Imperador dos christãos,
Somos vossos servidores,
Amigos leaes e sãos.
DIZ O IMPERADOR
—Eu me espanto, Dom Beltrão,
De vos ver d’aquella sorte,
E a vós, forte duque Amão:
Não é ésta disposição
E trajo da nossa côrte.
FALLA O DUQUE
—Muito mais será espantado
De nossa triste embaixada,
E do caso desestrado
O qual lhe será contado,
Se seguro nos é dado.
DIZ O IMPERADOR
—Bem o podeis explicar
Sem ter medo nem temor.
Para que é assegurar?
Pois sabeis que o embaixador
Tem licença de fallar.
DIZ O DUQUE Á EMBAIXADA
—Quiz, senhor, nossa mofina
Que o infante Valdevinos,
Primo do forte Guarinos,
Filho da linda Hermelinda
E do grande rei Salinos,
Fôsse morto á traição
Na floresta sem ventura.
A tam grande desventura
Haverá quem não procure
De vingar tal perdição?
FALLA O IMPERADOR
—É certa tam gran’ maldade,
Que o sobrinho do marquez
É morto, como dizeis?
DIZ O DUQUE
—Pela maior falsidade
Que nunca ninguem tal fez.
DIZ O IMPERADOR
—Este caso é desestrado:
Saibamos como passou
E quem tam mau feito obrou:
Que o que tal senhor mattou,
Merece bem castigado.
FALLA O DUQUE
—Saiba vossa majestade
Que dez dias póde haver
Que o marquez foi á cidade
De Mantua com gran’ vontade
Á caça que sohe fazer.
Andando assim a caçar,
Da companhia perdido
Foi por ventura topar
Com seu sobrinho ferido
Quasi a ponto de expirar.
Bem póde considerar
O gran’ pezar que teria
De se ver sem companhia,
E a morrer em tal logar
A coisa que mais queria.
Perguntando a razão,
Sendo d’ella mui ignoto,
Disse com grande paixão
Que o mattára á traição
Vosso filho Dom Carloto.
A causa que o moveu
Dar morte tam dolorosa
A tam grande amigo seu,
Não foi outra, senhor meu,
Salvo tomar-lhe a espôsa.
Mattou-o á falsa fe,
Indo muito bem armado,
Com quatro homens de pé.
Quem matta tam sem porquê
Merece bem castigado.
O marquez Danes Ogeiro
Lhe manda pedir, senhor,
Justiça mui por inteiro:
Que ainda que perca herdeiro,
Elle perde successor.
DIZ DOM BELTRÃO
—Não deve deixar passar
Tam gran’ mal sem o prover,
Porque deve de cuidar
Se seu filho nos mattar,
Quem nos deve defender?
E mais lhe faço saber
Porque esteja apparelhado,
Se justiça não fizer,
Que o marquez tem jurado
De por armas a fazer.
O mui valente e temido
Reinaldo de Montalvão
Entre todos escolhido
Está bem apercebido
Como geral capitão.
Dom Chrisão e Aguilante
Com o forte Dom Guarinos,
E o valente Montesinos,
Primo do morto infante,
Primo de elrei Dom Salinos,
E o mui grande rei Jaião,
De Dom Reinaldos cunhado,
E o esforçado Dudão,
E o gran’ duque de Milão,
E Dom Richarte esforçado,
O marquez Dom Oliveiros,
E o famoso Durandarte,
E o infante Dom Gaifeiros,
E o mui forte Ricardo,
E outros fortes cavalheiros,
Todos têem boa vontade
De ajudar ao marquez
Em essa necessidade;
Porque foi gran’ crueldade
A que vosso filho fez.
Evitae, senhor, tal damno,
Pois que sois juiz sem par;
Não vos mostreis inhumano,
Acordae-vos de Trajano
Em a justiça guardar.
Assim que, alto, esclarecido,
Poderoso sem egual,
O que fez tam grande mal
Bem merece ser punido
Por seu mandado imperial.
E pois, senhor, hei proposto
A causa porque viemos,
E sabeis o que queremos,
Mandae-nos dar a resposta
Com que ao marquez tornemos.
DIZ O IMPERADOR
—Oh poderoso Senhor,
Que grande é o vosso mysterio!
Pois para meu vituperio
Me deste tal successor
Que deshonrasse este imperio.
Se o que dizeis é verdade,
Como creio que será,
Nunca rei na christandade
Fez tam grande crueldade
Como por mim se verá.
Por minha coroa juro
De cumprir e de mandar
Tudo que digo e procuro.
Ao marquez podeis dizer
Que elle póde vir seguro,
E todos quantos tiver,
Venham de guerra ou de paz,
Assim como elle quiser.
E pois que justiça quer,
Com ella muito me praz.
ENTRA DOM CARLOTO, E DIZ
—Bem sei que com gran’ paixão
Está vossa majestade
Pela falsa informação
Que de mim, contra razão;
Deram com gran’ falsidade;
Porque um filho de tal home
E tão grande geração
Não deve sujar seu nome
Em caso tal de traição.
Por vida de minha madre,
Que se tam gran’ deshonor
Não castigar com rigor,
Que me será cruel padre,
Não direito julgador.
DIZ O IMPERADOR
—Não vos queirais desculpar
Pois que tendes tanta culpa,
Que se o mundo vos desculpa,
Não vos heide eu desculpar.
E portanto mando logo
Que estejais posto a recado,
Até ser determinado,
Por conselho do meu povo,
Se sois livre ou condemnado.
Mando que sejais levado
Á minha gran’ fortaleza,
E que lá sejais guardado
De cem homens do estado,
Até saber a certeza.
FALLA DOM CARLOTO
—E como, senhor, não quer
Vossa real majestade
Saber primeiro a verdade,
Senão mandar-me prender
Por tam grande falsidade?
DIZ O IMPERADOR
—Não vos quero mais ouvir.
Levem-no logo á prizão
Onde eu o mando ir;
Porque tam grande traição
Não é para consentir.
Vós outros podeis tornar,
E contar-lhe o que é passado
A quem vos cá quiz mandar;
Que o seguro que lhe hei dado,
Eu o torno a affirmar.
AQUI VEM A IMPERATRIZ E DIZ
—Eu muito me maravilho
De vossa grande bondade:
Que sem razão nem verdade
Trattais assim vosso filho
Com tam grande crueldade.
Olhe vossa majestade
Que é herdeiro principal,
E que toda a christandade
Lh’o hade ter muito a mal.
DIZ O IMPERADOR
—A mim, senhora, convem
Ser contra toda a traição:
E se vosso filho a tem,
Castiga-lo-hei muito bem:
E essa é minha tenção.
E mais eu vos certifico
Que com direito e rigor
Heide castigar o iniquo,
Ora seja pobre ou ricco,
Ou servo ou gran’ senhor.
FALLA A IMPERATRIZ
—Como quer vossa grandeza
Infamar o nosso estado
Sem causa, com tal crueza?
DIZ O IMPERADOR
—Quem me cá mandou recado
Não foi senão com certeza.
DIZ A IMPERATRIZ
—Por tal recado, senhor,
Quereis trattar de tal sorte
Vosso filho e successor,
Que depois de vossa morte
Hade ser imperador?
FALLA O IMPERADOR
Em eu o mandar prender
Não cuideis que o maltratto.
Mas se elle o merecer,
Eu espero de fazer
A justiça do Troquato;
Porque pae tam poderoso,
Sendo de tantos caudilho,
Senão for tam rigoroso,
Nem elle será bom filho,
Nem será rei justiçoso.
Que agora, mal peccado!
Nenhum rei nem julgador
Faz justiça do maior;
Mas antes é desprezado
O pequeno com rigor.
Todo o mundo é affeição;
Julgam com rara remissa
O nobre que, sem razão
Alguma, tem opinião
lhe tocar a justiça...
Que conta posso eu dar
Ao Senhor dos altos ceos,
Se a meu filho não julgar
Como outro qualquer dos meus?
Assim que escusado é
Buscar este intercessor;
Porque Deos de Nazaré
Não me fez tam gran’ senhor
Para minha alma perder.
DIZ A IMPERATRIZ
Ai triste de mim coitada!
Para que quero viver,
Poisque sempre heide ser
Do meu filho tam penada
Como uma triste mulher?
Pois tão triste heide ser
Por meu filho muito amado,
Nunca tomarei prazer,
Senão tristeza e cuidado.
DIZ O IMPERADOR
—Não façais tantos extremos,
Pois dizeis que tem desculpa,
Que antes que sentença dêmos.
Primeiro todos veremos
Se tem culpa ou não tem culpa.
Mostrae maior soffrimento,
Que o caso é desestrado;
E i-vos a vosso aposento,
Que elle não será culpado.
Aqui se vai a imperatriz; e vem a mãe e espôsa de Valdevinos, e
DIZ A MÃE
—Oh coração lastimado,
Mais triste que a noite escura!
Oh dolorosa tristura,
Cuidado desesperado
E fortunosa ventura!
Oh vida da minha vida,
Alma d’este corpo meu!
Oh desditosa perdida,
Oh sem ventura nascida,
A mais que nunca nasceu!
Oh filho meu muito amado,
Minha doce companhia,
Meu prazer, minha alegria,
Minha tristeza e cuidado,
Minha sab’rosa lembrança,
Que serei eu sem vos ver?
Filho da minha alegria,
Oh meu descanço e prazer,
Porque me deixais viver
Vida com tanta agonia?
Adonde vos acharei,
Consôlo de meu pezar?
Onde vos irei buscar,
Poisque perdido vos hei
Para jamais vos cobrar?
Filho d’esta alma mesquinha,
Dos meus olhos claridade,
Onde estais, minha mezinha.
Filho de minha saudade,
Meu prazer e vida minha?
DIZ A ESPOSA POR NOME SYBILLA
—Que é de vós, meu coração,
Que é da minha liberdade,
Espelho da christandade,
Quem vos mattou sem razão
Com tão grande crueldade?
Quem vos apartou de mim,
Meu querido e meu espôso?
Oh meu prazer saudoso,
Porque me deixais assim
Com cuidado mui penoso?
Oh minha triste saudade,
Oh meu espôso e senhor,
Minha alegria e vontade,
Escudo da christandade,
Das tristes consolador!
Que farei pobre coitada,
Mais que nenhuma nascida?
Miseravel, angustiada,
Para que quero ter vida,
Pois minha alma é apartada?
Oh fortuna variavel,
Triste, cruel, mattadora,
De prazeres roubadora,
Inimiga perduravel,
Matta-me se que’s agora.
DIZ HERMELINDA AO IMPERADOR
—Se vossa gran’ majestade
Não der castigo direito
A quem tanto mal ha feito,
Nem sustentar a verdade,
Não será juiz perfeito.
Não olhe vossa grandeza
Sua madre dolorosa,
Nem sua tanta tristeza;
Mas olhe tam gran’ princeza
Com ésta sua espôsa.
FALLA O IMPERADOR
—Faz-me tanto intristecer
Este tam gran’ vituperio,
Que mais quizera perder
Junctamente meu imperio,
Que tal meu filho fazer.
Mas se a verdade assim é,
Como ja sou informado,
Que tal castigo lhe dê
Que seja bem castigado.
DIZ SYBILA
—Seja justiça guardada
A ésta orphã sem marido.
Viuva desamparada,
Tam triste e desconsolada
Mais que quantas têem nascido.
Olhae, senhor, tam gran’ mal
Como vosso filho, ha feito,
E não queirais ter respeito
Ao amor paternal,
Poisque não é por direito.
FALLA O IMPERADOR
—Senhora, não duvideis,
Que eu farei o que hei jurado,
Se é verdade o que dizeis,
Porque cumpre a meu estado
De fazer o que quereis:
Que mais quero ter commigo
Fama de regoridade,
Que deixar de ter castigo,
Quem commetteu tal maldade.
Para que é ser caudilho
De tanto povo e tam grado,
E imperador chamado,
Se não julgasse meu filho
Como qualquer estragado?
Não cuidem duques nem reis
Que, por meu herdeiro ser,
Que por isso hade viver:
Que aquelle que faz as leis
É obrigado a as manter.
Assim que, por bem querer,
Amizade nem respeito,
Como agora sohem fazer,
Não heide negar direito
A quem direito tiver.
E bem vos podeis tornar,
Fazei certo o que dissestes
E não tomeis tal pezar,
Porque o bem que ja perdestes
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