Romanceiro III: Romances Cavalherescos Antigos - 4

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disfarça em anagrammas de suas proprias lettras, ora sob as de outros se
desfigura, para confundir e inredar a todo o que não tivesse a chave do
querido segredo. O nome porêm da infanta nem aqui, nem em parte nenhuma
o expôs a ser deciphrado pela mais remota inducção. N’este romance não ha
nomes femininos; os que se incontram em tudo quanto escreveu, assim podem
ser Maria, Antonia, como Joanna, etc. Em nenhum ha lettras ou sons que se
pareçam com os de Beatriz.
Nada digo do stylo, é o mesmo da peça precedente. As bellezas são
infinitas; nenhum poeta portuguez escreveu tanto com o sangue de seu
coração.

CUIDADO E DESEJO
Ao longo de uma ribeira
Que vai pelo pé da serra,
Aonde me a mi fez a guerra
Muito tempo o grande amor,
Me levou a minha dor:
Ja era tarde do dia,
E a agua d’ella corria
Por antre um alto arvoredo,
Onde ás vezes ia quedo
O rio, e ás vezes não.
Entrada era do verão,
Quando começam as aves
Com seus cantares suaves
Fazer tudo gracioso.
Ao ruido saudoso
Das aguas cantavam ellas:
Todalas minhas querellas
Se me puseram deante;
Alli morrer quizera ante
Que ver por onde passei.
Mas eu que digo—passei!
Antes inda heide passar,
Em quanto hi houver pezar,
Que sempre o hi hade haver.
As aguas, que de correr
Não cessavam um momento,
Me trouxera’ ao pensamento
Que assim eram minhas mágoas,
D’onde sempre correm aguas
Por estes olhos mesquinhos,
Que têem abertos caminhos
Pelo meio do meu rosto.
E ja não tenho outro gôsto
Na grande desdita minha.
O que eu cuidava que tinha
Foi-se-me assim não sei como,
D’onde eu certa crença tómo
Que, para me leixar, veio.
Mas, tendo-me assi alheio
De mi o que alli cuidava,
Da banda d’onde agua estava
Vi um homem todo cam[121],
Que lhe dava pelo cham
A barba e o cabello.
Ficando eu pasmado d’ello,
Olhando elle para mi,
Fallou-me e disse-me assi:
—Tambem vai ésta agua ao Tejo.’
N’isto olhei, vi meu Desejo
Estar de trás triste e só,
Todo cuberto de dó,
Chorando sem dizer nada,
A cara em sangue lavada,
Na bôcca posta ũa mão,
Como que a grande paixão,
Sua falla lhe tolhia.
E o velho que tudo via,
Vendo-me tambem chorar
Começou a assi fallar:
—‘Eu mesmo são[122] teu Cuidado
Que n’outra terra criado,
N’esta primeiro nasci.
E ess’outro que está aqui
É o teu Desejo triste;
Que má hora o tu viste
Pois nunca te esquecerá!
A terra e mar passará
Traspassando a mágoa a ti’
Quando lhe eu aquisto ouvi,
Soltei suspiros ao chôro;
Alli clarante o fôro
Meus olhos tristes pagaram
De um bem só que elles olharam,
Que outro nunca mais tiveram.
Nem o tive, nem m’o deram,
Nem o esperei somente:
De só ver fui tam contente,
Que pera mais esperar
Nunca me deram logar.
E n’aquisto, triste estando
Com os olhos tristes olhando
D’aquellas bandas d’alêm,
Olhei e não vi ninguem.
Dei então a caminhar
Rio abaixo, até chegar
A cêrca de Montemór.
Com meus males de redor,
Da banda do meio-dia,
Alli minha Phantasia,
D’antre uns medrosos penedos,
Onde aves que fazem medos
De noite os dias vão ter,
Me sahiu a receber
Com ũa mulher pelo braço,
Que, ao parecer de cansaço
Não podia ter-se em si,
Dizendo:—‘Vês, triste, aqui
A triste Lembrança tua.’
Minha vista então na sua
Pus, d’ella todo me enchi:
A prima coisa que vi
E a derradeira tambem,
Que no mundo vão e vem!
Seus olhos verdes rasgados
De lagrymas carregados,
Logo em vendo-os, pareciam
Que de lagrymas enchiam
Contino as suas faces,
Que eram, gran’ tempo, paces[123]
Antre mi e meus cuidados.
Loiros cabellos ondados
Um negro manto cubria:
Na tristeza parecia
Que lhe convinha morrer.
Os seus olhos de me ver,
Como furtados, tirou,
Depois em cheio me olhou.
Seus alvos peitos rasgando
Em voz alta se aqueixando,
Disse assi mui só sentida:
—‘Pois que mor dor ha na vida
Para que houve ahi morrer?’
Callou-se sem mais dizer.
Eu de mi gemidos dando,
Fui-me para ella chorando
Para a haver de consolar...
N’isto pôs-se o sol ao mar,
E feze-se noite escura,
E disse mal á ventura
E á vida, que não morri...
E muito longe d’alli,
Ouvi de um alto oiteiro
Chamar:—‘Bernardim-Ribeiro!’
E dizer:—‘olha onde estás!’
Olhei de ante e de traz
E vi tudo escuridão,
Cerrei meus olhos então,
E nunca mais os abri,
Que depois que a perdi
Nunca vi tam grande bem.
Porêm inda mal, porêm!


XXXIV
O CORDÃO DE OIRO

Não parece ésta uma d’aquellas _verdes_ anecdotas que a prosa de Bocacio
e os versos de Lafontaine immortalizaram? O stylo é menos licencioso,
porque, sincera e nua ás vezes, comtudo é sempre mais casta a poesia
primitiva. O seu pudor é o da ingenuidade que se despe porque mal não
pensa, não o da hypocrisia que por maliciosa se cobre. Comtudo os dois
ultimos versos são um verdadeiro remate de epigramma que faria honra a
um poeta da eschola de Voltaire, e podia ser feixo de uma cantiga de
vaudeville de Scribe. Entre portuguezes, só D. Francisco Manuel de Mello
ou Nicolau Tolentino os faria tam naturaes e tam picantes ao mesmo tempo.
Assim a adivinhar, que é o unico modo de entrar n’estes pontos, orço a
data d’esta composição pelos tempos da guerra da acclamação, isto é, por
meados do seculo XVII.
É ommisso nos romanceiros dos nossos vizinhos; e em Portugal não tenho
noticia de que se incontre senão na tradição oral de Tras-os-Montes, onde
achei tres cópias d’elle, uma mais completa que as outras: d’ellas se
appurou o presente texto. As variantes quasi todas despreziveis.

O CORDÃO DE OIRO
Lá se vai o capitão
C’os seus soldados á guerra:
Duzentos eram quintados,
Eram duzentos de leva[124].
Se todos elles vão tristes,
Um mais que todos o era;
Baixa trás a sua espada,
Seus olhos postos em terra.
Lá no meio do caminho
O capitão lhe dissera:
—‘Porque vais triste, soldado,
Essa paixão por quem era?’
—‘Não é por pae nem por mãe,
Nem por irman que eu tivera[125],
É pela espôsa que deixo
Lá tam só na minha terra.
Este cordão de oiro fino,
Que sette arrateis bem pésa,
Mais me pésa a mim levá-lo,
Que ao partir lh’o não dera!’
—‘Soldado, tens sette dias
Para que voltes a vê-la.
Se a incontrares chorando,
Ficas sette annos com ella:
Senão, nem mais uma hora
Terás de aguardo ou de espera.’
Quem saltava de contente
O meu soldadito era.
Deixou estrada direita,
Por atalhos se mettêra;
Inda não é meia-noite,
Á sua porta batêra.
—‘Quem bate á minha porta;
Quem bate com tanta pressa?’
—‘É um soldado, senhora,
Que vos trás novas da guerra.’
—‘Mal haja a nova que trás,
E mais quem veio trazê-la!
Ergue-te tu, minha vida,
Assoma-te a essa janella;
Despede-me esse soldado
Que a tam má hora aqui chega.’
—‘Amigo, vindes errado
Co’as vossas novas da guerra:
Deixae-nos dormir em paz,
Que bem precisamos d’ella.’
Foi-se d’alli o soldado
Mais prompto do que viera:
—‘Bem haja o meu capitão
Pelo bem que me fizera!
Com sette dias de aguardo...
Nem sette horas carecêra
Para me quitar saudades,
Livrar-me de toda a pena!
Tomae lá meu capitão
Os mimos da minha terra;
Este cordão de oiro fino,
Que agora inda mais me pésa.
Minha mulher não precisa,
Que os primos podem mantê-la.’
—‘Pois tua mulher tem primos,
E tu vinhas com dó d’ella!...’


XXXV
O CEGO

Ha duas balladas escriptas em dialecto escocez por elrei James V de
Escocia, que ambas se parecem muito com ésta. Uma especialmente, ‘_The
Gaberlunzie man_,’ até no metro e nas fórmas exteriores dá bastantes ares
da nossa xácara. Começa assim:
The pauky auld carle come ovir the lee
Wi’ mony good-eens and days to mee,
Saying: Goodwife, for zour courtesie,
Will ze lodge a silly poor man?[126]
O rei James, que morreu de trinta e tres annos, em 13 de Dezembro de
1542, era um joven rei, tunante e maganão, que se disfarçava em trajos de
mendigo, de adello, ou que taes, para andar correndo baixas aventuras
pelas aldeas ou pelos bairros escusos das cidades. Cantor de seus
proprios feitos, celebrava-os depois em gallantes trovas, a que não falta
a graça nem o chiste do genero. A que se intitula _The Jolly Beggar_, e
que por licenciosa e fresca de mais, a não admittiu o bispo Percy na sua
collecção, talvez tenha ainda mais merito de arte.
O _Gaberlunzie man_ da real ballada é porêm todo inteiro o _Cego_ da
nossa xácara, menos em certos incidentes que são mais poeticos e mais
interessantes na composição portugueza.
Disfarçado em trajos de cego mendigo, um senhor de alta jerarchia fallou
de amores a uma donzella de muito inferior nascimento que vivia com sua
velha mãe. Por accôrdo, mais ou menos expresso entre os dois amantes,
se appresenta este por noite á porta da velha com sua caramunha. A mãe
dorme; e Anninhas, que responde ao cego, parece fazê-lo ou com ironia ou
em pique de ciumes, e por nenhum modo lhe quer abrir ‘porta ou postigo.’
Põe-se o cego a cantar lamentosamente a soa desgraça; e com a chorada
cantilena se abranda ou finge abrandar-se o coração da rapariga. Desperta
a mãe para que o venha ouvir; e quando ésta condoida lhe manda dar
esmola, o cego recusa, não quer senão que o ponham no caminho que perdeu.
É a propria velha, coitada, a que diz á filha que lh’o va insinar. E
assim fogem os dois, com a maior tranquilidade com que ainda fugiram
amantes.
Note porêm a maestria do nosso poeta popular. A fugitiva sustenta sempre
aquella tam perdoavel hypocrisia feminina, último protesto do pudor
moribundo. Fiando homericamente na sua roca, vai fingindo guiar o cego,
vai parecendo acreditar que não sabe aonde nem a que vai. Senão quando,
apparece um tropel de cavalleiros: é a comitiva do nosso rei incuberto,
principe ou conde pelo menos. Adeus gaivão de cego, e andrajos de
mendigo! A cavallo e trotar largo! Ja o cego vê, ja a donzella sabe onde
vai. E com este seu fino e malicioso ditto, conclue a trova:
Um cego me leva, e vejo o caminho!
Tal é o argumento da cantiga portugueza muito mais romanesco do que o das
escocezas, pôsto que seja o mesmo o fundo da anecdota.
Não duvido suppor que talvez de Glasgow ou de Aberdeen trouxessem os
nossos mareantes ésta historia, e de Vianna ou do Porto se internasse
pelo Minho onde ella é mais vulgar. Não lh’o pagariamos so em vinho e
frutta aos nossos amigos do norte, porque em mercadorias d’aquelle mesmo
genero para lá temos exportado bastante.
A forma métrica é a do romance de Sancta Iria. O texto foi restituido com
difficuldade, porque ésta fórma se presta ainda mais á corrupção do que
a outra, desafiando o prolifico talento dos nossos trovadores de aldea
a bordar seus pretenciosos floripondios sôbre a singela telagarsa do
original.
Vão por ementa, appontadas algumas variantes menos absurdas.

O CEGO
—‘Abre a porta, Anna, abre de mansinho[127],
Que venho ferido, morto do caminho.’
—‘Se vindes ferido, pobre coitadinho!
Ireis muito embora por outro caminho.’
—‘Ai! abre-me a porta, abre de mansinho,
Que tam cego venho, não vejo o caminho.’
—Porta nem postigo não abro ao ceguinho,
Va-se na má hora pelo mau caminho.’
—‘Ai do pobre cego que anda sosinho
Cantando e pedindo por esse caminho!’
Minha mãe acorde, oiça aqui baixinho[128]
Como canta o cego que perdeu o caminho.’
—‘Se elle canta e pede, da-lhe pão e vinho;
E o pobre cego que va o seu caminho.’
—‘O teu pão não quero, não quero o teu vinho,
Quero só que Anninhas[129] me insine o caminho.’
—‘Toma a roca, Anna, carrega-a de linho,
Vai com o pobre cego, pô-lo a caminho.’
—‘Espiou-se a roca, acabou-se o linho,
Fique embora o cego, que este é o seu caminho.’
—‘Anda mais, Anninhas, mais um bocadinho,
Sou um pobre cego, não vejo o caminho.’
—Ai! arreda, arreda para este altinho,
Que ahi véem cavalleiros por esse caminho.’
—‘Se vêem cavalleiros, vêem de vagarinho,
Que ha muito me tardam por este caminho.’
A cavallaria passou de mansinho...
Cego, lo meu cego ja via o caminho[130].
Montou-me a cavallo com muito carinho...
Um cego me leva... e vejo o caminho!


XXXVI
LINDA-A-PASTORA

Quem desce Tejo abaixo, por ésta margem do Norte onde está Lisboa, e
tendo saudado o precioso monumento de Belem, a sua tôrre não menos bella,
entra no fashionavel Pedroiços e d’ahi segue ás praias do Dafundo até
á Cruz-quebrada, tem dado o mais bonito passeio que se póde dar nas
vizinhanças da capital, e visitado os sitios que, depois de Cintra,
mais frequenta a sociedade elegante da nossa terra. De fins de Agosto
a principios de Novembro é que tudo alli corre, e que os banhos do mar
povoam aquelles bellos ermos, nas outras estações desamparados.
Quem tiver porêm o bom gôsto de resistir ao despotismo tarifeiro da moda,
e se abalançar em Maio ou Junho a este largo passeio, que no estado dos
nossos caminhos é antes uma pequena viagem, creia que hade ser pago de
sua nobre ousadia. Não ha palavras que digam todas as bellezas d’aquella
terra, d’aquelle ceo, d’aquellas aguas. Á esquerda o Tejo, os navios
que entram e sahem, as frotas de barcos pescarejos, a areia alva juncto
á beira d’agua, e logo pegada á salsugem, a prodigiosa vegetação das
plantas que a amam e em que se pasce gulloso e largo á vontade o gado.
Perto, um saveiro que chegou á terra e cuja companha pucha ao longo da
praia pela rede que arrasta os innumeraveis cardumes de peixes que logo
virão saltar na areia. Á direita nas eminencias, as ruinas picturescas
de conventos desertos, de moinhos abandonados, de fortes, de atalaias. E
tudo isto incastoado na verdura viçosa e florida da primavera que ainda
não queimou o sol do estio. No fim do verão quando vai todo o mundo,
ja não ha senão resteva nos campos, talos de hervas seccas nos montes,
árvores sem folha, poeira nos ares, e uma ventaneira despregada que não
cessa.
Ja me eram familiares de annos aquelles sitios; mas posso dizer que os
não conheci bem e como elles são devéras, senão quando, haverá hoje
tres annos, alli fui um dia primeiro de Maio. Fui, como de maravilha em
maravilha, por todos os pontos que tenho nomeado; mas chegando á ribeira
de Jamor, parei extasiado no meio de sua ponte, porque a varzea que d’ahi
se extende, recurvando-se pela direita para Carnaxide, e os montes que
a abrigam em deredor, estava tudo de uma belleza que verdadeiramente
fascinava. O trigo verde e viçoso ondeava com a viração desde as veigas
que rega o Jamor, até os altos onde velejam centenares de moinhos.
Árvores grandes e bellas, como rara vez se incontram n’esta provincia
_dendroclasta_, rodeavam melancholicamente, no mais fundo do vale, a
velha mansão do Rodizio. E lá, em prespectiva, no fundo do quadro, uma
aldea de Suissa com suas casinhas brancas, suas ruas em soccalcos, seu
presbiterio ornado de um ramalhete de faias; grandes massas de basalto
negro pelo meio de tudo isto, parreiraes, jardinzitos quasi pensis,
e uma graça, uma simplicidade alpina, um sabor de campo, um cheiro de
montanha, como é difficil de incontrar tam perto de uma grande capital.
O logarejo é bem conhecido de nome e fama, chama-se Linda-a-Pastora.
Porque? Não sei. Tem-me jurado antiquarios de ‘meia-tijella’ que o seu
nome verdadeiro é _Niña a Pastora_. Mas emquanto não achar algum de
‘tijella inteira’ que me saiba dar a razão por que se havia de chamar
assim, meio em portuguez meio em castelhano, um aldeote de aopé de
Lisboa—heide chamar-lhe eu, como os seus habitantes e toda a gente diz:
Linda-a-Pastora.
Namorei-me do sitio por modo, que alli passei o verão todo; e d’alli
fiz deliciosas excursões pelas vizinhanças, que todas são bonitas. Foi
n’este proprio e appropriado sitio que a Sr.ª Francisca, lavadeira bem
conhecida do logar, me deu a última e, ao parecer, mais correcta licção
que do presente romance tinha obtido. Em outras partes do reino traz elle
o titulo de ‘Pastorinha;’ aqui era justo e natural que se lhe désse o de
Linda-a-Pastora’, que assentei conservar-lhe.
Na fórma é um romance em endeixas, mas o fundo é de uma verdadeira
pastourella do genero provençal; nem a fariam mais graciosa Giraud
Riquier ou Giraud de Borneill.
Tem muitas variantes, porque todo o reino a sabe e canta. Eu noto somente
as principaes.

LINDA-A-PASTORA
—‘Linda pastorinha, que fazeis aqui?’
—‘Procuro o meu gado que por ahi perdi.’
—‘Tam gentil senhora a guardar o gado!’
—‘Senhor, ja nascemos para esse fado.’
—‘Por éstas montanhas em tam grande p’rigo!’
Diga-me, ó menina, se quer vir commigo.’
—‘Um senhor tam guapo dar tam mau conselho[131].
Querer que se perca o gado alheio!’
—‘Não tenha esse medo que o gado se perca[132]
Por aqui passarmos uma ora de sésta.’
—‘Tal razão como essa não n’a ouvirei[133]:
Ja dirão meus amos que de mais tardei.’
—‘Diga-lhe, menina, que se demorou
Co’esta nuvem de agua que tudo molhou.’
—‘Fallarei verdade, que mentir não sei:
Á volta do gado eu me descuidei.’
—‘Pastorinha, escute, que oiço ballar gado...’
—‘Serão as ovelhas que me tem faltado.’
—‘Eu lh’as vou buscar ja muito depressa,
Mas que me espedace por essa charneca.’
—‘Ai como vai grave de meias de seda!
Olhe não as rompa por essa resteva[134].’
—‘Meias e sapatos[135], tudo romperei[136]
So por lhe dar gôsto, minha alma, meu bem.’
—‘Ei-lo aqui vem; é todo o meu gado.’
—‘Meu destino foi ser vosso criado.’
—‘Senhor, va-se embora, não me dê mais pena,
—‘Que hade vir meu amo trazer-me a merenda.’
—‘Se vier seu amo, venha muito embora;
Diremos, menina, que cheguei agora.’
—‘Senhor, va-se, va-se, não me dê tormento:
Ja não quero vê-lo nem por pensamento.’
—‘Pois adeus, ingrata da Linda-a-Pastora!
Fica-te, eu me vou pela serra fóra[137].’
—‘Venha cá, Senhor, torne atrás correndo...
Que o amor é cego, ja me está rendendo.’
Sentaram-se á sombra... tudo estava ardendo...[138]
Quando ellas não querem, então ’stão querendo.


XXXVII
O MARQUEZ DE MANTUA

Ei-lo que se apea de seu classico barbante em que tantos annos cavalgou,
e despindo o papel-pardo em que o imbrulhavam os cegos e vendilhões de
nossas feiras, vem o nobre ‘Marquez de Mantua’ tomar o seu logar entre
os mais venerandos e antigos romances do cyclo de Carlos-Magno. Sua
nobre origem bem sabida é e bem manifesta: franceza ou provençal. Se foi
a lingua _d’oeil_ ou a lingua _d’oc_ a primeira que fallou, não sei;
quando atravessou os Pyreneus e veio para nós, certo que era ja familiar
com ambas. Passou muito tempo em Hespanha por ser composição de Jeronymo
Treviño[139]; hoje com razão se crê que o Treviño não foi senão o editor
que em 1598 o imprimiu: sem dúvida o romance é muito mais antigo que
isso; so da licção portugueza me parece que posso responder que é dos
fins do XIV, principios—quando muito—do XV seculo. E todavia a fórma em
que elle apparece em portuguez não creio que fosse a primitiva que entre
nós teve, e me inclino a que ella seja posterior á que teem os nossos
vizinhos castelhanos em suas collecções[140]. Aqui é mais dramatico, lá
mais épico: nas multiplicadas edições dos cegos chegou a obter o nome de
tragedia. Todavia, não deixarei de observar que revestidos d’esta mesma
fórma ha romances muito mais antigos do que os narrativos. As rúbricas de
_aqui falla o marquez, agora diz o imperador_ etc., não são indisputavel
próva de que a composição fôsse para se representar theatralmente.
Sem profundar nenhuma d’estas questões, contento-me de sacar do lixo
da “feira-da-ladra”, ésta bella reliquia da nossa litteratura popular
e romanesca, e de restituir ao seu eminente logar o nobre marquez de
Mantua, embora me criminem e escarneçam os superciliosos academicos de
todas as academias reaes e não reaes d’este mundo.

O MARQUEZ DE MANTUA
Na caça andava perdido
De Mantua o velho marquez,
E no peito presentido
O coração traz de envez;
Mais, não sabe o succedido!
Farto ja de caminhar
Por tam fragosa montanha,
Cançado assim sem companha,
Sem ter onde repousar
N’essa terra tam extranha,
Vendo o mato tam cerrado,
Assentou de se apear
E o seu cavallo deixar
Porque estava de cançado
Que ja não podia andar:
FALLA O MARQUEZ
—Fortunosa caça é ésta
Que a fortuna me ha mostrado,
Poisque, por ser manifesta
Minha pena e gran’ cuidado,
Me mostrou ésta floresta.
Nunca vi tam forte brenha
Desque me accordo de mi,
Eu creio que Margasi
Fez ésta serra Dardenha,
Estes campos de Methli.
Quero tocar a bosina
Por ver se algum me ouvirá;
Mas cuido que não será,
Porque minha gran’ mofina
Commigo começou ja.
Todavia quero ver
Se mora alguem n’esta serra
Que me diga d’esta terra
Cuja é para saber;
Que quem pergunta não erra.
Agora vejo-me aqui
N’esta tam grande espessura,
Que nem eu me vejo a mi,
Nem sei de minha ventura,
Nem menos será cordura.
DIZ VALDEVINOS
—Oh Virgem minha senhora,
Madre do rei da verdade,
Por vossa gran’ piedade
Sêde minha intercessora
Em tanta necessidade.
Oh summa regina pia,
Radiante luz phebea,
Custodia animæ meæ,
Pois está na terra fria
A alma de pezar chea,
Pois es amparo dos teus,
Consola os desconsolados,
Rainha dos altos ceos,
E roga a meu senhor Deos
Que perdoe meus peccados.
FALLA O MARQUEZ
—Não sei quem ouço gemer
E chorar de quando em quando:
Alguem deve de aqui estar...
Segundo se esta queixando,
Deve ter grande pezar.
FALLA VALDEVINOS
—Domine, memento mei,
Lembrae-vos de minha alma,
Pois que sois da glória rei,
Nascido da flor da palma,
Remedio de nossa lei.
DIZ O MARQUEZ
—Segundo d’elle se espera,
Aquelle home anda perdido,
Ou, por ventura ferido
De alguma besta fera.
Quero ver este mysterio,
Que a falla me dá ousadia,
Porque dois em companhia
Terão grande refrigerio
Para qualquer agonia.
DIZ VALDEVINOS
—Oh minha espôsa e senhora,
Ja não tereis em podêr
Vosso espôso que assim chora,
Pois a morte roubadora
Vos roubou todo o prazer.
Oh vida do meu viver,
Resplandecente narciso,
Gran’ pena levo em saber
Que nunca vos heide ver
Até o dia do juizo.
Oh esperança por quem
Tinha victoria vencida!
Oh minha glória, meu bem,
Porque não partis tambem,
Poisque sois a minha vida?
Senão for vossa vontade
De haver de mim compaixão,
Mandae-me meu coração,
Minha fe e liberdade,
Que está em vossa prizão.
Madre minha muito amada,
Qu’é de o filho que paristes,
De quem ereis consolada?
Como se ha tornado nada
Quanta glória possuistes?
Ja me não vereis reinar,
Ja me não dareis conselho,
Nem eu o posso tomar;
Que quebrado é o espelho
Em que vos sabeis olhar.
Ja nunca me haveis de ver
Fazer justas e torneios,
Nem vestir nobres arreios,
Nem cavalleiros vencer,
Nem tomar bandos alheios.
Ja não tomareis prazer
Quando me virdes armado;
Ja vos não virão dizer
A fama de meu podêr,
Nem louvar-me de esforçado.
Oh valentes cavalleiros,
Reinaldos de Montalvão,
Oh esforçado Roldão,
Oh marquez Dom Oliveiros,
Dom Ricardo, Dom Dudão,
Dom Gaifeiros, Dom Beltrão,
Oh gran’ duque de Milão,
Que é de vossa companhia?
Duque Maime de Baviera,
Que é de vosso Valdevinos?
Oh esforçado Guarinos,
Quem comsigo vos tivera!
Meu amigo Montesinhos,
Ja nunca mais vos verei;
Dom Alonso de Inglaterra,
Ja nunca acompanharei
O conde Dirlos na guerra.
Oh esforçado marquez
De Mantua, teu senhorio,
Ja não me poreis arnez,
Nem me vereis outra vez
Gozar vosso senhorio.
Ja não quero o vosso estado,
Ja não quero ser pessoa,
Nem mandar, nem ter reinado;
Ja não quero ter coroa,
Nem quero ser venerado.
Oh Carlos imperador,
Senhor de mui alta sorte,
Como sentireis gran’ dor
Sabendo da minha morte,
E quem d’ella é causador:
Bem sei, se sois informado
Do caso como passou,
Que serei mui bem vingado,
Ainda que me mattou
Vosso filho mui amado.
Oh principe D. Carloto,
Quem, sendo tam desegual,
Te moveu a fazer mal
Em um logar tam remoto
A teu amigo leal?
Alto Deus omnipotente,
Juiz direito sem par,
Sôbre ésta morte innocente
Justiça queirais mostrar,
Pois morro tam cruelmente.
Oh Madre de Deus benigno,
E fonte de piedade,
Arca da Sancta Trindade,
De donde o Verbo Divino
Trouxe sua humanidade,
Oh Sancta Domina mea,
Oh Virgem gratia plena
Em que a alma se recrea,
Dae remedio á minha pena,
Pois que morro em terra alhea.
FALLA O MARQUEZ
—Senhor, porque vos queixais?
Quem vos tratou de tal sorte,
E quem é o que tal morte
Vos deu, como publicais,
Que assás é ésta má sorte?
Não me negueis a verdade,
Contae-me vosso pezar,
Que vos prometto ajudar
Com toda a força e vontade.
DIZ VALDEVINOS
—Muito me agasta, amigo,
Certamente teu tardar,
Dize se trazes comtigo
Quem me haja de confessar?
DIZ O MARQUEZ
—Eu não sou quem vós cuidais:
Nunca comi vosso pão,
Mas vossos gritos e ais
Me trouxeram aonde estais
Mui movido a compaixão.
Dizei-me vossa agonia,
Que, se remedio tiver,
Eu vos prometto fazer
Com que tenhais alegria.
DIZ VALDEVINOS
—Meu senhor, muitas mercês
Por vossa boa vontade!
Bem creio que me fareis
Muito mais do que dizeis,
Segundo vossa bondade.
Mas minha dor é mortal,
Meu remedio so é morte,
Porque estou parado tal,
Que nunca homem mortal
Foi trattado de tal sorte.
Tenho, senhor, vinte e duas
Feridas todas mortais,
As intranhas rotas, nuas,
E passo penas tam cruas,
Que não poderão ser mais.
Ha-me morto á traição
O filho do imperador,
Carloto, a gran’ sem razão,
Mostrando-me todo o amor,
Não o tendo no coração.
Muitas vezes requeria
Minha espôsa com maldade,
Mas ella não consentia
Pelo bem que me queria,
Por sua grande bondade.
Carloto com gran’ pezar,
Como mais traidor que forte,
Ordenou de me matar,
Cuidando com minha morte
Com ella haver de casar.
Mattou-me com gran’ falsia,
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