Romanceiro III: Romances Cavalherescos Antigos - 3

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indoudeceu nem mattou a sua Lucia; e nem d’ella nem do seu Ravenswood nos
diz que mattassem a mais ninguem. O cavalleiro portuguez faz justiça por
outro modo nos que o tinham atraiçoado. Levou-lhes a noiva, e deixou-lhes
ficar a voda e o jantar.

A NOIVA ARRAIANA
—‘Deus vos salve, minha tia,
Na vossa roca a fiar!’
—‘Venha embora o cavalleiro
Tam cortez no seu fallar!’
—‘Má hora se elle foi, tia,
—‘Má hora torna a voltar!
Que ja ninguem o conhece
De mudado que hade estar.
Por lá o mattassem moiros,
Se assim tinha de tornar!’
—‘Ai sobrinho de minha alma,
Que es tu pelo teu fallar!
Não ves estes olhos, filho,
Que cegaram de chorar?’
—‘E meu pae e minha mãe,
Tia, que os quero abraçar?’
—‘Teu pae é morto, sobrinho,
Tua mãe foi a interrar.’
—‘Qu’é da minha armada, tia,
Que eu aqui mandei estar?’
—‘A tua armada, sobrinho,
Mandou-a o fronteiro ao mar.’
—‘Qu’é do meu cavallo, tia,
Que eu aqui deixei ficar?’
—‘O teu cavallo, sobrinho,
Elrei o mandou tomar.’
—‘Qu’é de minha dama, tia,
Que aqui ficou a chorar?’
—‘Tua dama faz hoje a voda,
Ámanhan se vai casar.’
—‘Dizei-me onde é, minha tia,
Que me quero lá chegar.’
—‘Sobrinho, não digo, não,
Que te podem lá mattar.’
—‘Não me mattam, minha tia;
Cortezia eu sei usar:
E onde faltar cortezia,
Ésta espada hade chegar.’
—‘Salve Deus, ó lá da voda,
Em bem seja o seu folgar!’
—‘Venha embora o cavalleiro,
E que se chegue ao jantar!’
—‘Eu não pretendo da voda
Nem tam pouco do jantar;
Pretendo fallar á noiva,
Que é minha prima carnal.’
Vindo ella lá de dentro
Toda lavada em chorar,
Mal que viu o cavalleiro,
Quiz morrer, quiz desmaiar.
—‘Se tu choras por me veres,
Ja me quero retirar;
Se é os teus gastos que choras,
Aqui estou para os pagar.’
—‘Pagar devia co’a vida
Quem me queria inganar,
Quando te deram por morto
N’essas terras d’além-mar.
Mas que fiquem com a voda
E bem lhes preste o jantar,
Que os meus primeiros amores
Ninguem m’os hade quitar.’
—‘Venha juiz de Castella,
Alcaide de Portugal;
Que, se aqui não ha justiça,
Co’ésta espada a heide tomar.’


XXIX
GUIMAR

Dona Guimar—ou Dona Agueda—de Mexia, como lhe chama a licção do Alemtejo,
é um interessante romancinho que apparece na tradição d’aquella provincia
e na de Extremadura. Por ambas se apurou o texto que aqui dou.
Nem por outras provincias nossas, nem pelas collecções castelhanas ha
outro vestigio d’elle, que eu saiba.
Não é muito antigo o stylo. Mas o facto celebrado é o de uma morte
apparente com a qual parece se julgou dissolvido o matrimonio: e d’isto
houve exemplos em tempos remotos em que tinham por certa a morte, e por
verdadeira resurreição o tornar a si o supposto defuncto.
Seja porêm qual for a data d’esta composição, ha coplas d’ella que vão
de par com o mais bello e original da poesia mais primitiva. Notarei
especialmente a volta de Dom João á sua terra n’aquella manhan de maio,
que os passarinhos cantavam, os sinos tangiam e o rir da natureza se
misturava com o chorar dos homens. Tambem não creio que haja nada mais
bello que estoutros versos quanto a morta vai tornando a si e pondo olhos
no amante:
Volta a vida que se fôra
Com todo o amor que não se ia.

GUIMAR
Era a menina mais linda[92]
Que n’aquella terra havia;
Tam formosa e tam discreta
De outra egual se não sabia.
Muito lhe quer Dom João,
Muito demais lhe queria:
Seus amores, seus requebros
Não cessam de noite e dia.
Por fidalgo e gentil moço
Ninguem tanto a merecia;
Senão que o pae da donzella[93]
Outro conselho seguia:
Casá-la quer muito ricca
Com um mercador que ahi havia,
Sem fazer caso de amores,
Sem lhe importar fidalguia.
Dom João, quando isto soube[94],
Por pouco se não morria:
Foi-se d’alli muito longe
Sem dizer para onde ia.
Tres mezes por lá andou,
Tres mezes n’essa agonia;
A vida que lhe pesava
Soffrê-la ja não podia.
Mandou sellar seu cavallo
Sem cuidar no que fazia;
Deitou por esses caminhos
Sem saber adonde ia.
O cavallo é quem mandava,
Cavalleiro obedecia.
Passou por terras e terras,
Nenhuma não conhecia.
Á sua tinha chegado,
Onde estava não sabia.
Era por manhan de maio,
Todo o campo florecia,
Os passarinhos cantavam,
O prado verde surria;
Lá de dentro da cidade
Um triste clamor se ouvia
Eram sinos a dobrar,
E era toda a clerezia,
Eram nobres, era povo
Que da egreja sahia...
Entrou de portas a dentro,
De rua em rua seguia,
Chegou á de sua dama[95],
Essa sim que a conhecia.
As casas onde morava,
Janellas aonde a via,
Tudo é cuberto de preto,
Mais preto que ser podia[96].
Mandou chamar uma dona[97]
Que ella comsigo trazia:
—‘Dizei-me por Deus, senhora,
Dizei-me por cortezia,
Esse lutto tam pesado
Por quem trazeis, que seria?’
—‘Trago-o por minha senhora,
Dona Guimar de Mexia[98],
Que é com Deus a sua alma,
Seu corpo na terra fria.
E por vós foi, Dom João,
Por vosso amor que morria[99].’
Dom João quando isto ouviu[100]
Por morto em terra cahia,
Mas a dor era tammanha[101]
Que á fôrça d’ella vivia.
Os seus olhos não choravam,
Sua bôcca não se abria.
Mirava a gente em redor
Para ver o que faria.
Vestiu-se todo de preto,
Mais preto que ser podia[102],
Foi-se direito á egreja
Onde sua dama jazia[103]:
—‘Eu te rogo, sacristão,
Por Deus e Sancta Maria,
Eu te rogo que me ajudes[104]
A erguer ésta campa fria.’
Alli a viu tam formosa
Tal como d’antes, a via;
Alli, morta, sepultada,
Inda outra egual não havia,
Pôs os joelhos em terra,
Os braços ao ceo erguia,
Jurou a Deus e á sua alma
Que mais a não deixaria.
Puchou de seu punhal de oiro[105],
Que na cintura trazia,
Para a accompanhar na morte
Ja que em vida não podia.
Mas não quiz a Virgem sancta[106],
A Virgem Sancta Maria,
Que assim se perdesse uma alma
Que só de amor se perdia.
Por juizo alto de Deus
Um milagre se fazia:
A defuncta a mão direita
Ao seu amante extendia,
Seus lindos olhos se abriram,
A sua bôcca sorria;
Volta a vida que se fôra,
Com todo o amor que não se ia.
Seu pae, o foram buscar,
Que ja estava na agonia;
Véem amigos, véem parentes,
Todos em grande alegria.
Dão graças á Sancta Virgem,
Cujo milagre seria;
E a Dom João dão a espôsa,
Que tam bem a merecia.


XXX
DOM DUARDOS

O último conhecido dos nossos poetas populares antigos, o verdadeiro
fundador do theatro d’Hespanha, Gil-Vicente, não era só poeta comico,
segundo vulgarmente se crê ás cegas, porque poucos abrem os olhos para
o ler com attenção, para estudar n’elle, como todos deviam, lingua,
costumes, stylo, côr e tom nacional da epocha: nenhum outro escriptor
portuguez os teve tam verdadeiros, tam characterizados e sinceros.
O romance heroico ou epico, isto é, o que celebrava grandes feitos
e successos nacionaes, ou interessantes aventuras de guerras e de
amores—que d’elle tomaram depois o appellido de _romanescas_, ou porque
não _romancescas_? hoje mais inglezadamente _romanticas_—este que tambem
rhymou muitas vezes devotas legendas de sanctos e de milagres, os passos
da historia sagrada de ambos os Testamentos, e até os proprios mysterios
do dogma; o romance epico em toda a sua primitiva simpleza foi tambem
cultivado por Gil-Vicente.
Com elle e com Bernardim-Ribeiro creio que morreu, litterariamente
fallando, nos fins do seculo XV, principios do XVI, para resuscitar
depois, á primeira trombeta do seiscentismo, como todos os generos
populares que por essa reacção resurgiram; mas rebicado e contrafeito,
secante de metaphoras, pesado de conceitos, escripto emfim com a penna
d’aza da ‘Phenix-renascida.’
Quanto elle fôra estimado e cultivado entre nós em tempos de Gil-Vicente,
vê-se de muitos logares de seus dramas. E ahi se vê tambem que
promiscuamente compunham os nossos trovadores ja no dialecto de Castella,
ja no de Portugal, e ainda o mesmo romance ou soláo ora se cantava em
uma, ora n’outra linguagem.
Para exemplo e próva, leia-se com attenção o dialogo do feiticeiro
com a ama de Cismena na scena II de Rubena[107]. Ahi véem citados como
portuguezes e em portuguez, apar de outras cantigas castelhanas, muitos
romances que alguns passam hoje por legitimos filhos de Castella e em
suas collecções se incontram; de outros nem por ellas ha memorias. Tal é
o que começa:
‘Eu me sam Dona Giralda’;
de que não achei outro vestigio nem nos romanceiros castelhanos, nem na
nossa tradição oral. Tal é est’outro:
‘Em Paris está Donalda’;
que vem nos citados romanceiros, pôsto que differentemente escripto.
Tambem no auto dos _Quatro tempos cantam estes ‘até chegar ao presepio,’_
manda a rubrica[108], _uma cantiga franceza que diz_:
‘Ai de la noble
Villa de Paris!
É claro que este é um romance; e romance conhecido, e que não era
castelhano nem portuguez, mas francez. E d’aqui se deprehende tambem
uma coisa que muitas vezes tenho julgado intrever, e de que tenho quasi
uma consciencia íntima, sem ousar dá-la por certa, porque não ha ainda
todas as próvas documentaes que se precisam para uma asserção que hade
parecer atrevida: e é—que os romances primitivos quasi que eram communs
ás linguas _romanas_, e que nenhuma os vindicava exclusivamente; porque
o trovador catalão ou provençal, portuguez, normando ou castelhano
pertencia mais á _republica litteraria_ e artistica de sua profissão,
do que a nenhum reino ou nação, ou divisão politica do paiz. Cantava-se
o romance para lá do Ebro? davam-se ás palavras desinencias mais curtas
e contrahidas; dizia-se para cá d’elle? produziam-se mais arredondadas.
Entre Portugal e Castella menos era preciso ainda, porque as linguas,
ja tam similhantes, ainda o eram mais então, e no especial dialecto do
romance dobradamente.
Apponto isto aqui somente como ementa, para mais devagar se reflectir
e estudar no que indico. Ha grande verdade na indicação; mas até onde
ella chega, não sei dizer porora, nem saberei talvez nunca, porque me
não sobra tempo nem paciencia para dar professadamente a estas coisas.
Vou escrevendo o que me occorre como curioso. A sciencia fará o seu
officio com o tempo. Eu não pretendo a litterato nem a crítico, e n’estas
coisas menos que em nenhuma. Occupo as minhas horas vagas com estes
divertimentos innocentes; não faço mais nada.
Tornando ao nosso Gil-Vicente, na segunda scena—acto, jornada, ou parte
II—da _Rubena_, canta a Cismena em portuguez outro princípio de romance
mui notavel pelo metro pouco usado na nossa lingua:
‘Grandes bandos andam na côrte,
Traga-me Deus meu bonamore.’
Muitas outras próvas achará alli o leitor curioso de que este genero
era o mais popular então entre nós. Como tal o cultivou Gil-Vicente; e
assim o mostra o romance dos _Padres no Limbo_ no auto da ‘Historia de
Deus’, o da _Barca dos Anjos_ no auto do ‘Purgatorio’, o da _Infanta_ no
auto das ‘Côrtes de Jupiter’, e muitos outros dispersos por suas obras
dramaticas, alêm dos dois bem conhecidos que expressamente compôs, um á
morte d’elrei Dom Manuel, outro á acclamação de Dom João III.
Este primeiro que aqui ponho é o de Dom Duardos que vem ao fim da
tragicomedia (aliás drama cavalheiresco) do mesmo titulo. Em castelhano
foi escripta a tragicomedia, e em castelhano alli vem o romance; na
collecção, que por vezes tenho citado, do cavalheiro de Oliveira,
apparece em portuguez com declaração de se incontrar assim n’um antigo
manuscripto do seculo XVI que visivelmente era contemporaneo do poeta. Eu
dou-o em ambas as linguas. E pôsto que os nossos vizinhos o codificassem
em seus romanceiros como proprio, fica assim evidente o ser elle de
fábrica portugueza e do nosso Gil-Vicente, quer primitivamente o
composesse elle na nossa lingua, quer na d’elles.
Eisaqui o que, no fim da tragicomedia, diz Artada, antes de cantar o
romance:
‘Por memoria de tal trance
Y tam terrible partida
Venturosa,
Cantemos nuevo romance
A la nueva despedida
Peligrosa.’
Acabado de cantar e findo o auto, diz o patrão, virando-se para elrei—não
o rei da comedia, mas o rei portuguez Dom João III em cuja côrte e
presença ella se representava:
‘Lo mismo iremos cantando
Por esa mar adelante,
Á las sirenas rogando
Y Vuestra Alteza mandando:
Que en la mar siempre se cante.’
Era pois novo o romance, por seu o dava Gil-Vicente, que não precisava
nem usava de brilhar com o alheio, e a elrei seu amo e seu protector,
como tal o endereçava. Não posso deixar de o crer e acceitar como seu.
A licção portugueza de Oliveira differe algum tanto da castelhana de
Gil-Vicente; e ésta não pouco da que vem no ROMANCEIRO GERAL de Duran e
no TESORO de Ochoa.
Juntam-se aqui todas tres, para que as confrontem os curiosos, e se
illustre assim a questão que, tórno a dizer, suscito, não resolvo.

DOM DUARDOS[109]
Era pelo mez de Abril,
De Maio antes um dia,
Quando lyrios e rosas
Mostram mais sua alegria;
Era a noite mais serena
Que fazer no ceo podia,
Quando a formosa infanta,
Flérida ja se partia;
E na horta de seu padre
Entre as árvores dizia:
—‘Com Deus vos ficade, flores,
Que ereis a minha alegria!
Vou-me a terras extrangeiras
Pois lá ventura me guia;
E se meu pae me buscare,
Pae que tanto me queria
Digam-lhe, que amor me leva,
Que eu por vontade não ia;
Mas tanto atimou commigo
Que me venceu co’a porfia.
Triste, não sei onde vou,
E ninguem não m’o dizía!...’
Alli falla Dom Duardos:
—‘Não choreis, minha alegria,
Que nos reinos de Inglaterra
Mais claras aguas havia,
E mais formosos jardins,
E flores de mais valia.
Tereis trezentas donzellas
De alta genealogia;
De prata são os palacios
Para vossa senhoria;
De esmeraldas e jacynthos
E oiro fino de Turquia,
Com lettreiros esmaltados,
Que a minha vida se lia,
Contando das vivas dores
Que me déstes n’esse dia
Quando com Primalião
Fortemente combatia:
Mattastes-me vós, senhora,
Que eu a elle o não temia...’
Suas lagrymas inchugava
Flérida que isto ouvia.
Ja se foram ás galeras
Que Dom Duardos havia.
Cinquenta eram por conta,
Todas vão em companhia.
Ao som do doce remar
A princeza adormecia
Nos braços de Dom Duardos,
Que tam bem a merecia.
Saibam quantos são nascidos
Sentença que não varia:
Contra a morte e contra amor
Que ninguem não tem valia.

I
VERSÃO CASTELHANA DE GIL-VICENTE[110]
En el mes era de Abril,
De Mayo antes un dia,
Cuando lirios y rosas
Muestran mas su alegria,
En la noche mas serena
Quel el cielo hacer podia,
Cuando la hermosa infanta
Flérida ya se partia:
En la huerta de su padre
A los árboles decia:
—‘Quedaos adios, mis flores,
Mi gloria que ser solia;
Voyme á tierras estrangeras
Pues ventura alla me guia.
Si mi padre me buscare
Que grande bien me queria
Digan que amor me lleba
Que no fué la culpa mia:
Tal tema tomó conmigo
Que me venció su porfia.
Triste nó se adó vó,
Ni nadie me lo decia.’
Alli habla Don Duardos:
—‘No lloreis mi alegria,
Que en los reinos de Inglaterra
Mas claras aguas habia,
Y mas hermosos jardines
Y vuesos, señora mia.
Terneis trecientas doncellas
De alta genealogia;
De plata son los palacios
Para vuesa señoria,
De esmeraldas y jacintos,
De oro fino de Turquia
Con lettreros esmaltados
Que cuentan la vida mia,
Cuentan los vivos dolores
Que me distes aquel dia
Cuando com Primaleon
Fuertemente combatia:
Señora vos me matastes,
Que yo a el no lo temia.
Sus lagrimas consolaba
Flérida qu’esto oia;
Fueron-se a las galeras
Que Don Duardos tenia.
Cincuenta eran por cuenta,
Todas van en compañia.
Al son de sus dulces remos
La princesa se adormia
En brazos de Don Duardos
Que bien le pertenecia.
Sepan cuantos son nacidos
Aquesta sentencia mia:
Que contra la muerte y amor
Nadie no tiene valia.

II
VERSÃO CASTELHANA DE DURAN[111]
En el mes era de Abril,
De Mayo antes un dia,
Cuando los lirios y rosas
Muestran mas sua alegria,
En la noche mas serena,
Qu’el cielo hacer podria,
Cuando la hermosa infanta
Flérida ya se partia;
En la huerta de su padre
A los árboles decia:
—‘Jamas en cuanto viviere
Os veré tan solo un dia,
Ni cantar los ruiseñores
En los ramos melodia.
Quédate á Dios, agua clara,
Quédate á Dios, agua fria,
Y quedad con Dios, mis flores,
Mi gloria que ser solia.
Voime á las tierras estrañas,
Pues ventura allá me guia.
Si mi padre me buscáre,
Que grande bien me queria,
Digan que el amor me lleva,
Que no fué la culpa mia.
Tal tema tomó conmigo,
Que me forzó su porfia.
Triste nó sé donde voy:
Ni nadie me lo decia.’
Alli habló Don Duardos:
—‘No lloreis mas, mi alegria,
Que en los reinos de Inglaterra
Mas claras aguas habia,
Y mas hermosos jardines,
Y vuestros, señora mia.
Terneis trescientas doncellas
De alta genealogía;
De plata son los palacios
Para vuestra señoria;
D’esmeraldas y jacintos
Toda la tapeçaría;
Las camaras ladrilladas
D’oro fino de Turquia,
Com letreros esmaltados
Que cuentan la vida mia,
Contando vivos dolores
Que me diéstedes un dia
Cuando com Premaleon
Fuertemente combatia.
Señora, vós me matastes,
Que yo a el no lo temia.’
Sus lagrimas consolaba
Flérida qu’esto oia,
Y fueron-se á las galeras,
Que Don Duardos habia:
Cincuenta eran por todas,
Todas van en compañia.
Al son de sus dulces remos
La infanta se adormecia
En brazos de Don Duardos,
Que bien le pertenecia.
Sepan cuantos son nacidos
Aquesta sentencia mia:
Que contra muerte y amor
Nadie no tiene valía.


XXXI
A AMA

Bernardim-Ribeiro foi natural da villa do Torrão no Alemtejo, vivia por
fins do XIV, principios do XV seculo; era moço fidalgo d’elrei Dom Manuel
e servia no paço, onde a belleza e perfeições da infanta Dona Beatriz
lhe inspiraram uma paixão de verdadeiro ‘Macias namorado.’ Ainda não
estava tam longe o tempo em que princezas e rainhas ouviam sem infado e
acceitavam sem desaire as homenagens dos trovadores. Bernardim era moço,
talvez bem parecido, discreto decerto: ha toda a razão de crer que foi
ouvido com sympathia e indulgencia. Toda a sua felicidade ficou por
aqui, segundo elle diz:
‘Que para mais esperar
Nunca me deram logar.’
E ésta deve de ser a verdade; ou elle, de fino amante, no’la occultou: em
qualquer dos casos devemos crê-lo sôbre sua palavra.
A infanta casou por procuração com o duque Carlos de Saboia, em Lisboa
nos paços da Ribeira, a 7 de Abril de 1520[112]; e em Agosto seguinte
partiu para Italia. As ‘Saudades’[113] do seu amante ficaram eternizadas
no mysterioso livro que com esse titulo compôs. D’elle se extrahiu este
romance, propriamente soláo. Tudo aqui é contado e ditto por um modo
de enigmas e allegorias inteiramente inexplicaveis para quem ignorasse
os mysteriosos amores do trovador e da princeza. Tam sincero—e amiude
grosseiro a podêr de sincero—é o modo de dizer dos antigos menestreis,
quanto este é delicado por demais, e á força de o ser, obscuro.
O argumento simplissimo diz-se em poucas palavras. Beatriz está retirada
em sua camera. Sua paixão por Bernardim é segredo para a boa ama que a
criou e que tanto lhe quer. Canta-lhe ésta um ‘cantar’ a modo de ‘soláo’
em que tristemente conta e lamenta a má ventura que desde a nascença tem
perseguido a sua querida menina, e que maiores desgraças lhe faz temer no
futuro.
O stylo tem toda a ingenuidade dos antigos cantares, todo aquelle perfume
de bonina selvagem que só se incontra pelas devezas incultas da poesia
primitiva. E todavia, se ainda são as flores singelas do monte, ja se
conhece arte no formar do ramalhete. Ja não são as notas desgarradas, e
asperas por vezes, do primeiro trovar asturiano ou leonez que tiniam á
dureza de ferro dos descendentes de Pelayo. Ja por aqui andam _modos_
de trovador proençal. A melodia porêm ainda é puramente romantica; as
harmonias é que presentem fórmas mais classicas. Vê-se o antigo toante
do romance peninsular cedendo á difficil e dura lei das complicadas
rhymas proençaes. Ha mais ainda; ha uma perfeição no _número_ dos rhytmos
que adivinha ja as doçuras italianas. É o trovador do seculo XV dando a
mão ao poeta do seculo XVI. O que predomina todavia é o modo provençal; e
este é, repitto, um legitimo soláo.

A AMA
Pençando-vos[114] estou, filha,
Vossa mãe me está lembrando;
Enchem-se-me os olhos d’agua,
N’ella vos estou lavando.
Nascestes, filha, entre mágoa;
Pera bem inda vos seja!
Pois em vosso nascimento
Fortuna vos houve inveja.
Morto era o contentamento
Nenhuma alegria ouvistes;
Vossa mãe era finada,
Nós outros eramos tristes.
Nada[115] em dor, em dor criada,
Não sei onde isto hade ir ter:
Vejo-vos, filha, fermosa,
Com olhos verdes crescer.
Não era ésta graça vossa
Pera nascer em destêrro:
Mal haja a desaventura
Que pôs mais n’isto que o êrro!
Tinha aqui sua sepultura
Vossa mãe, e a mágoa a nós!
Não éreis vós, filha, não,
Pera morrerem por vós.
Não ouvem fados razão,
Nem se consentem rogar;
De vosso pae hei mor dó,
Que de si se ha de queixar.
Eu vos ouvi a vós só
Primeiro que outrem ninguem;
Não foreis vós se eu não fôra:
Não sei se fiz mal se bem.
Mas não póde ser, senhora,
Pera mal nenhum nascerdes,
Com esse riso gracioso
Que tendes sob olhos verdes.
Confôrto, mas duvidoso,
Me é este que tómo assi!
Deus vos dê melhor ventura
Do que tivestes téaqui.
A Dita e a Fermosura,
Dizem patranhas antigas,
Que pelejaram um dia,
Sendo d’antes muito amigas.
Muitos hão[116] que é phantesia:
Eu, que vi tempos e annos,
Nenhuma coisa duvido
Como ella é azo de damnos[117].
Nem nenhum mal não é crido,
O bem so é esperado:
E na crença e na esperança,
Em ambas ha hi cuidado,
Em ambas ha hi mudança.


XXXII
AVALOR

Este, que é verdadeiro romance na fórma assim como no stylo, parece ter
sido feito á partida da infanta para Saboia, ou talvez por occasião da
viagem que Bernardim-Ribeiro alli fez para a ver.
Fôsse como ou quando fôsse, elle é admiravel. Ha menos artificio metrico,
não menos belleza de poesia que nos outros, não menos sentimento. O stylo
é mais desleixado, mais vago, mais de romance.
Em todas as vastissimas collecções castelhanas não ha nada tam bello
de elegante simplicidade. Ja se vê que não faço a comparação no genero
heroico ou historico; digo-o dos romances de amor e aventura.

AVALOR
Pela ribeira de um rio
Que leva as aguas ao mar,
Vai o triste de Avalor,
Não sabe se hade tornar.
As aguas levam seu bem,
Elle leva o seu pesar;
E so vai, sem companhia,
Que os seus fôra elle leixar;[118]
Ca quem não leva descanço
Descança em so caminhar.
Descontra d’onde ia a barca,
Se ia o sol a baixar;
Indo-se abaixando o sol,
Escurecia-se o ar;
Tudo se fazia triste
Quanto havia de ficar.
Da barca levantam remos,
E ao som do remar
Começaram os remeiros
Da barca este cantar:
—‘Que frias eram as aguas!
Quem as haverá de passar?’
Dos outros barcos respondem:
—‘Quem as haverá de passar?’
Frias são as aguas, frias,
Ninguem n’as póde passar;
Senão quem pôs a vontade
Donde a não póde tirar.[119]
Tra’la barca lhe vão olhos
Quanto o dia dá logar:
Não durou muito, que o bem
Não póde muito durar.
Vendo o sol pôsto contr’elle[120],
Não teve mais que pensar;
Soltou redeas ao cavallo
Á beira do rio a andar.
A noite era callada
Pera mais o magoar,
Que ao compasso dos remos
Era o seu suspirar.
Querer contar suas mágoas
Seria areias contar;
Quanto mais ia alongando,
Se ia alongando o soar.
Dos seus ouvidos aos olhos
A tristeza foi egualar;
Assi como ia a cavallo
Foi pela agua dentro entrar.
E dando um longo suspiro
Ouvia longe fallar:
Onde mágoas levam olhos,
Vão tambem corpo levar.
Mas indo assi por acêrto,
Foi c’um barco n’agua dar
Que estava amarrado á terra,
E seu dono era a folgar.
Saltou assi como ia, dentro,
E foi a amarra cortar:
A corrente e a maré
Acertaram-n’o a ajudar.
Não sabem mais que foi d’elle,
Nem novas se podem achar:
Suspeitaram que foi morto,
Mas não é pera affirmar:
Que o imbarcou ventura,
Pera so isso aguardar.
Mas mais são as mágoas do mar
Do que se podem curar.


XXXIII
CUIDADO E DESEJO

Todo este soláo—e creio que propriamente este é tambem um verdadeiro
soláo—todo elle é alegorico dos mysteriosos amores do ‘poeta das
saudades.’
Bernardim-Ribeiro vaga triste e solitario pelas margens de um rio escuro
e cuberto de arvoredo. Apparece-lhe o seu _Cuidado_ na figura de um
velho incannecido que lhe mostra o seu fatal _Desejo_ todo cuberto de
dó; chorando e pensativo declara-lhe que em má hora o viu porque nunca
mais o hade esquecer. Some-se a visão; e elle caminha rio abaixo, até dar
‘antre uns medonhos penedos’ (se será Cintra?) onde a _Phantasia_ lhe
apresenta sua triste _Lembrança_ na figura de uma bella mulher de ‘loiros
cabellos e olhos verdes,’ cuberta de um negro manto. É Beatriz que elle
ama, que o adora e que não póde ser sua! Escura noite lhe esconde a visão
bemaventurada; e de um ‘alto oiteiro’ lhe bradam (porque não dos Alpes,
do Piemonte onde lh’a tinham levado?)—‘Bernardim-Ribeiro, olha onde
estás.’
Da demasiada altura onde subiram, seus atrevidos pensamentos lhe fazem
recordar quam baixo o tinha pôsto a sorte para se atrever a tanto.—O
namorado trovador cerra os olhos para nunca mais os abrir. Que lhe resta
a elle que ver o mundo?
Este romance seria feito ao ordenar-se o casamento da infanta com o
duque de Saboia? Não vem inserto nas SAUDADES, como o antecedente, da
Ama, e o subsequente de Avalor: por isso aqui pôs claro o seu nome
de Bernardim-Ribeiro, que no mysterioso livro de cavallarias, ora se
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