Romanceiro III: Romances Cavalherescos Antigos - 1

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OBRAS
DO
V. DE ALMEIDA GARRETT
XV
(TERCEIRO DO ROMANCEIRO)


ROMANCEIRO
PELO
V. DE ALMEIDA GARRETT
III
ROMANCES CAVALHERESCOS ANTIGOS
TERCEIRA EDIÇÃO
LISBOA
IMPRENSA NACIONAL
1875


ADVERTENCIA DA PRIMEIRA EDIÇÃO

Por não fazer demaziado volume, dividiu-se o segundo livro d’esta
collecção em duas partes, cada uma das quaes forma um tomo separado.
N’este segundo vão tambem em appendice as traducções inglezas de Sir John
Adamson de alguns dos romances do primeiro livro.
O tomo quarto está destinado a conter o terceiro livro, que é o
das lendas e prophecias. Se porêm apparecerem no intervallo alguns
romances ainda não descubertos que pertençam á classe do segundo livro,
accrescentar-se-ha uma terceira parte; e com ella começará, n’esse caso,
o seguinte quarto volume.
Lisboa, agosto 9, 1851.


ROMANCEIRO
LIVRO SEGUNDO
PARTE SEGUNDA


XVII
A ROMEIRA

Aqui vai outra romeira, e não sei se de Sanctiago tambem; mas creio que
não, porque o diria algures o texto do romance: não é orago que deixasse
de se nomear.
É lindo, singelo, perfeito exemplar no seu genero. Não me consta que ande
por mais terras nossas do que pelas do Minho e Tras-os-montes. So pelas
duas versões d’estas provincias o tive de appurar; e sem muito custo,
porque é simples de si, e pouco o alteraram na tradição. Tem todo o sabor
e ingenuidade antiga, conserva perfeitamente os costumes crus da edade
barbara a que se refere. Tambem não occorre nos romanceiros dos nossos
vizinhos, e estou seguro que é ésta a primeira vez que se vê escripto e
impresso.
As variantes que valem alguma coisa vão notadas á margem, e não são
muitas.

A ROMEIRA
Por aquelles montes verdes
Uma romeira descia;
Tam honesta e formosinha
Não vai outra á romaria.
Sua saia leva baixa
Que nas hervas lhe prendia;
Seu chapelinho cahido
Que lindos olhos cubria!
Cavalleiro vai traz d’ella,
De má tenção que a seguia[1]!
Não a alcança, por mais que ande,
Alcançá-la não podia
Senão juncto a essa oliveira[2]
Que está no adro da ermida.
Á sombra da árvore benta
A romeira se accolhia:
—‘Eu te rogo, cavalleiro,
Por Deus e a Virgem Maria,
Que me deixes ir honrada
Para a sancta romaria.’
Cavalleiro, de malvado,
Nem Deus nem razão ouvia;
Cego no desejo bruto,
De amores a accommettia.
Pegaram de braço a braço:
Lucta de grande porfia![3]
A romeira, por mais fraca,
Emfim rendida cahia...[4]
No cahir, lhe viu á cinta
Um punhal que elle trazia;
Com toda a fôrça lh’o arranca,
No coração lh’o mettia.
O sangue negro saltava,
O negro sangue corria...
—‘Por Deus te peço, romeira[5],
Por Deus e a Virgem Maria,
Que o não digas em tua terra,
Nem te vás gabar á minha
Da vingança que tomaste,
Da affronta que te eu fazia.’
—‘Heide dizê-lo em tu’terra,
Heide me ir gabar á minha,
Que mattei um vil covarde
Co’as armas que elle trazia.’
Tocou a campa da ermida,
A campa que retinia:
—‘Ermitão, por Deus vos peço[6],
Bom ermitão d’esta ermida,
Tenhais dó d’essa má alma
Que inda agora se partia:
Dae terra benta ao seu corpo,
Que Deus lhe perdoaria.’


XVIII
CONDE NILLO

So se incontrou este bello romancinho do ‘Conde Nillo’ na provincia de
Tras-os-montes e nas ilhas dos Açores. Nas collecções castelhanas é
ommisso. Não sei porquê, mas sinto que tem o ar francez ou proençal. Ou
talvez normando? Da nossa Hespanha é que elle me não parece oriundo. Tudo
isto porêm é sentir; julgar não, que não tenho por onde.
Nillo não é nome portuguez, nem sei que fôsse castelhano, leonez ou de
Aragão. De donde será? Ou é corrupção, como tantas, de outro nome? Mas
de que nome? Series e series de dúvidas e perguntas ás quaes confesso a
minha completa inhabilidade de responder.
Seja como for, o romance é bonito, elegante e gracioso, tem todo o cunho
antigo verdadeiro, e não parece dos que mais padeceram na sua transmissão
até nós.

CONDE NILLO
Conde Nillo, conde Nillo
Seu cavallo vai banhar;
Em quanto o cavallo bebe,
Armou um lindo cantar.
Com o escuro que fazia
Elrei não o póde avistar.
Mal sabe a pobre da infanta
Se hade rir, se hade chorar.
—‘Calla, minha filha, escuta,
Ouvirás um bel cantar:
Ou são os anjos no ceo[7],
Ou a sereia no mar.’
—‘Não são os anjos no ceo,
Nem a sereia no mar:
É o conde Nillo, meu pae,
Que commigo quer casar.’
—‘Quem falla no conde Nillo,
Quem se atreve a nomear
Esse vassallo rebelde
Que eu mandei desterrar?’
—‘Senhor, a culpa é só minha[8],
A mim deveis castigar:
Não posso viver sem elle...
Fui eu que o mandei chamar.’
—‘Calla-te, filha traidora,
Não te queiras deshonrar.
Antes que o dia amanheça[9]
Ve-lo-has ir a degollar.’
—‘Algoz que o mattar a elle,
A mim me tem de mattar;
Adonde a cova lhe abrirem,
A mim me têem de interrar.’
Por quem dobra aquella campa,
Por quem está a dobrar?
—‘Morto é o conde Nillo,
A infanta ja a expirar[10].
Abertas estão as covas,
Agora os vão interrar:
Elle no adro da egreja[11],
A infanta ao pé do altar.’
De um nascêra um cypreste,
E do outro um laranjal;
Um crescia, outro crescia,
Co’as pontas se iam beijar.
Elrei, apenas tal soube,
Logo os mandára cortar.
Um deitava sangue vivo[12],
O outro sangue real;
De um nascêra uma pomba,
De outro um pombo torquaz.
Senta-se elrei a comer[13],
Na mesa lhe iam poisar:
—‘Mal haja tanto querer,
E mal haja tanto amar!
Nem na vida nem na morte
Nunca os pude separar.’


XIX
ALBANINHA

Ésta pequena xácara, curta, simples e que mais parece alludir a uma
anecdota sabida, do que recontá-la, não a incontrei senão na provincia de
Tras-os-montes. Tres differentes, mas pouco differentes, versões d’alli
me vieram; e, approveitando de todas, se restituiu o texto como aqui vai.
Tem não sei que resaibo á sarcastica ‘sirvente’ do trovador. É mordaz,
epigrammatica; e até se permitte fazer o seu _calimburgo_, quando a
donzella requestada responde ao seductor:
‘Pouco tempo são tres horas,
Mas vem depois o contar.’
Onde a graça do equívoco está em que o verbo ‘contar’ tanto significa
fazer ‘contas’ como ‘referir o que se passou.’
Não ha variantes que mereçam a pena de se conservar, nem licção
castelhana que se ache nos romanceiros.

ALBANINHA
—‘Albaninha, Albaninha,
A filha do conde Alvar!
Oh! quem te vira Albaninha
Tres horas a meu mandar!’
—‘Pouco tempo são tres horas,
Mas vem depois o contar.’
—‘Usança de maus villões
Nunca a eu soubera usar.
Com ésta espada me cortem,
Com outra de mais cortar,
Donzella que em mim se fie
Se eu d’isso me for gabar.’
Inda bem manhan não era
Ja na praça a passeiar;
Aos tres irmãos de Albaninha
Se foi de braço travar:
—‘Ésta noite, cavalleiros,
Sabereis que fui caçar;
Em minha vida não tive
Noite de tanto folgar.
Era uma lebre tam fina
Que nunca vi tal saltar:
Com tres horas de corrida
Não a cheguei a cançar!’
Disseram uns para os outros:
—‘Bom modo de se gabar!
Será de nossas mulheres?
Das irmans nos quer fallar?’
Responde agora o mais môço
Discreto no seu pensar:
—‘Não vêdes que é de Albaninha,
Que o traidor quer diffamar?’
Foram-se os tres para um canto,
Poseram-se a aconselhar;
Diziam os dois mais velhos:
—‘Vamo’-lo nós a mattar?’
E o mais moço respondia:
—‘Vamo’-la nós a casar?’
—‘Sim! e o dote que ella tem,
Nós o temos de pagar.’
Vão ao quarto de Albaninha,
De voda a foram achar;
Duas aias a vestiam,
Duas a estão a toucar.
—‘Albaninha, Albaninha,
A filha do conde Alvar!
As barbas de teu pae conde
Que bem lh’as soubeste honrar!’
—‘As barbas de meu pae conde
Trattae vós de as honrar,
Pagando-me ja meu dote,
Que agora me vou casar.’


XX
A PEREGRINA

Não é dos que mais se cantam, nem tem a popularidade de outros muitos,
o romance da ‘Peregrina’ que alguns tambem chamam da ‘Princeza’.—A
licção que principalmente segui veio-me do Porto, e é a mais completa.
Das outras provincias só obtive fragmentos muito interpolados. Comtudo
approveitei bastante d’elles para restituir o texto e dar nexo e clareza
á narrativa. O que se não utilisou para este fim, vai nas variantes.
O final, sublime e poetica idea que tanta predilecção mereceu aos
antigos menestreis, é o mesmo de outros romances. Ja notei[14] que
francezes e inglezes o usaram em suas composições. Entre nós apparece
repetido muitas vezes. Fez-se um ‘logar commum’ romantico assim como
tantas coisas bellas dos poetas gregos e latinos se fizeram, por sua
popularidade, logares communs classicos. Que Homero ou que Virgilio
da meia-edade foi o original inventor d’este? Não é possivel sabê-lo.
E sabemos nós se eguaes bellezas da Iliada ou da Eneada são ou não
repettições, reminiscencias de outros poetas mais antigos cujas obras ou
cujos nomes não chegaram até nós?
A ‘Peregrina’ tem todos os characteres de antiga e original. É bella
e simples e verdadeira. Nos romanceiros castelhanos não vem; nem se
incontra nada parecido com a singella historia que ingenuamente narra.
Mas d’estas historias houve tantas n’aquelles ditosos tempos da andante
cavallaria! Mal haja o damninho talento de Cervantes que as fez acabar
n’um Dom Quixote e na sua Dulcinea!

A PEREGRINA
Peregrina, a peregrina[15]
Andava a peregrinar
Em cata de um cavalleiro
Que lhe fugiu, mal pezar!
A um castello torreado
Pela tarde foi parar:
Signaes certos, que trazia
Do castello, foi achar.
—‘Mora aqui o cavalleiro[16]?
Aqui deve de morar.’
Respondêra-lhe uma dona
Discreta no seu fallar:
—‘O cavalleiro está fóra,
Mas não deve de tardar.
Se tem pressa a peregrina,
Ja lh’o mandarei chamar.’
Palavras não eram dittas,
O cavalleiro a chegar:
—‘Que fazeis porqui, senhora[17],
Quem vos trouxe a este logar?’
—‘O amor de um cavalleiro
Por aqui me faz andar.
Prometteu de voltar cedo,
Nunca mais o vi tornar;
Deixei meu pae, minha casa[18],
Corri por terra e por mar
Em busca do cavalleiro,
Sem nunca o podêr achar.’
—‘Negro fadairo, senhora,
Que tarde vos fez chegar!
Eu de vosso pae fugia
Que me queria mattar;
Corri terras, passei máres,
A este castello vim dar.
Antes que fôsse anno e dia
(Vós me fizestes jurar)
Com outra dama ou donzella
Não me havia desposar.
Anno e dia eram passados
Sem de vós ouvir fallar,
Co’a dona d’esse castello
Eu hontem me fui casar...’
Palavras não eram dittas,
A peregrina a expirar.
—‘Ai penas de minha vida,
Ai vida de meu penar!
Que farei d’esta lindeza
Que em meus braços vem finar?’
Do alto de sua tôrre
A dama estava a raivar:
—‘Levá-la d’ahi, cavalleiro[19],
E que a deitem ao mar.’
—‘Tal não farei eu, senhora,
Que ella é de sangue real...
E amou com tanto extremo
A quem lhe foi desleal.
Oh! quem não sabe ser firme,
Melhor fôra não amar.’
Palavras não eram dittas
O cavalleiro a expirar.
Manda a dona do castello[20]
Que os vão logo interrar
Em duas covas bem fundas
Alli junto á beira-mar.
Na campa do cavalleiro
Nasce um triste pinheiral[21],
E na campa da princesa
Um saudoso canavial.
Manda a dona do castello
Todas as canas cortar;
Mas as canas das raizes
Tornavam a rebentar:
E á noite a castellana[22]
As ouvia suspirar.


XXI
DOM JOÃO

O assumpto d’este romance é um casamento á hora da morte, uma d’aquellas
tardias mas solemnes reparações que a religião, a honra, o amor tantas
vezes têem arrancado á consciencia do moribundo.
Os preconceitos de nascimento luctam, poderosos ainda n’esse momento
extremo, com os deveres da religião, com os sentimentos d’alma, com
os mesmos dictames da verdadeira honra. Oiro é a primeira coisa que
o fidalgo expirante se lembra de deixar á infeliz donzella,—_infelix
virgo!_—em compensação da sua honra perdida. ‘Mil cruzados’ lhe deixa:
falta ahi villão que a queira, burguez que a requeste e cubra de seu nome
vulgar a doirada fragilidade de uma menina tam bem dotada por seu senhor
e seductor?
‘Mil cruzados não é nada’: lhe objectam.—‘Pois darei mais duzentos’:
regateia a suberba agonizante.—‘A honra não se paga aos cruzados.’—‘Pois,
terras, villas, senhorios e castellos a quem casar com ella. Ha tanto
escudeiro e cavalleiro pobre! Casar com a manceba de seu senhor, e senhor
tam generoso, quem hade recusá-lo? E para o que duvidasse... argumento de
rei velho e de republicano novo: Tenha a cabeça cortada!’
Forte é o orgulho que assim lucta, quando ja na beira do sepulchro.
Tenaz o preconceito que ainda agora fez mentir villanmente o cavalleiro
pundonoroso, quando, n’uma derradeira esperança de vida, falsamente
promettia á inganada donzella ‘as bençãos de um arcebispo e a estolla
da sancta egreja’. Vivesse elle, e taes promessas se cumpririam tanto
como as primeiras que a seduziram. Porêm mais forte é a piedade, a honra
verdadeira de quem, até o último, combate esse vão orgulho, esse falso
pundonor. Era sua mãe; não a mãe da desgraçada, que o não ousaria se viva
era—que por ventura foi morrer de vergonha a um canto.—Não, mas sua
propria mãe d’elle, do moribundo. Verdadeira mulher de alma e de coração,
tudo o mais lhe esquece e despreza, e não vê na infeliz, que alli está
debulhada em lagrymas junto ao leito da agonia, senão uma mulher; uma
mulher que é victima de seu amor, que tudo quanto era deu a quem tudo lhe
quer pagar com tam pouco.
A mulher triumphou. As últimas palavras do vencido são bellas:
—‘Pois fique ésta mão ja fria
Na ma mão adorada.
De Dom João é viuva,
Condessa será chamada.’
Estes grandes quadros desenhados em poucos traços, vivos só de verdade
e natureza, são—não me canço de o fazer notar—os que dão á poesia do
romance este vigor que se não acha n’outras, este character que a
distingue em todas as nações, em todas as linguas.
Mais adeantada civilização trará poetas que _inluminem_, que repintem a
côres estes simples desenhos a lapis do menestrel. Mas crear não hãode
elles nunca, se não fecharem os livros escriptos, para abrirem o do
coração, para estudar por elle o homem, a natureza que o cria, e o Deus
que o fez.
O presente romance veio-me do Minho; variantes notaveis não me
appareceram; nas collecções castelhanas não está; e não o creio—isto é,
não o presinto mais antigo do que o seculo XV ou principios do XVI.

DOM JOÃO
Lá das bandas de Castella
Triste nova era chegada:
Dom João que vem doente,
Mal pezar de sua amada!
São chamados tres doutores
Dos que têem mais nomeada:
Que, se algum lhe désse vida
Teria paga avultada.
Chegaram os dois mais novos,
Dizem que não era nada;
Porfim que chega o mais velho,
Diz com voz desinganada:
—‘Tendes tres horas de vida,
E uma está meia passada;
Essa é para o testamento:
Deixar a alma incommendada!
A outra é para os sacramentos,
Que inda é mais bem impregada.
Na terceira as despedidas
Da vossa dama adorada.’
Estando n’estas conversas,
Dona Isabel que é chegada.
Ergueu os olhos para ella
Com a vista ja turvada:
—‘Ainda bem que vieste,
Minha prenda desejada,
Que tanto queria ver-te
N’esta hora minguada!’
—‘Tenho fe na Virgem sancta,
N’ella venho confiada,
Que me hade ouvir e salvar-te,
Que o teu mal não será nada.’
—‘Oh! que se eu chegar a erguer-me,
Minha rosa namorada,
No vaso d’este meu peito
P’ra sempre serás plantada,
Co’as bençaos de um arcebispo
E de agua benta regada,
Co’a estolla da sancta egreja
Ao meu coração atada.’
Estando n’estas conversas,
Sua mãe que era chegada:
—‘Que tens tu, filho querido
D’esta alma amargurada?’
—‘Tenho, mãe, que estou morrendo,
Que ésta vida está acabada;
Com só tres horas por minhas,
E uma ja meio passada.’
—‘Filho de minhas intranhas,
N’esta hora minguada
Lembra-te se algo deves
A alguma dama honrada.’
—‘Minha mãe, que devo, devo...
E Deus me não peça nada!
Dona Isabel que em má hora
Por mim fica diffamada.
Mas deixo-lhe mil cruzados
Para que seja casada.’
—‘A honra não se paga, filho;
Mil cruzados não é nada.’
—‘Ja lhe deixo mais duzentos
E a cruz de minha espada.’
—‘A honra não se paga, filho;
Os cruzados não são nada.’
—‘Deixo-a a estes tres doutores
Muito bem incommendada;
E a vós, minha mãe, vos peço
Que a tenhais bem guardada.
O que com ella casar
Tem uma villa ganhada;
O que lhe disser que não
Tenha a cabeça cortada,’
—‘A honra não se paga, filho;
Nem com terras é comprada:
Se a essa dama lhe queres,
Não a deixes deshonrada!’
-—‘Pois fique esta mão ja fria
Na sua mão adorada:
De D. João é viuva,
Condessa será chamada.’


XXII
HELENA

Se a Dona Izabel da xácara antecedente achou na mãe do seu amante todas
as divinas compaixões de um coração feminino, Helena, a boa Helena d’este
romance, não incontrou na mãe de seu marido senão a proverbial ‘sogra’
de todos os rifões e dittados de todos os povos. Inredadora, invejosa,
má-lingua, sogra emfim, sogra extreme, e puro sangue—como em stylo cigano
do Jockey-club, manda a moda anglo-galla que hoje se diga—a sogra excita
com dicterios e mentiras a bruteza estupida de seu filho: faz com que
elle vá arrancar da cama, e trazer de noite para sua detestavel casa, a
infeliz mulher que, sentindo-se com dôres de parto, tinha ido para a de
sua mãe buscar o aninho e confôrto que juncto da odiosa sogra não podia
achar. Cego de cholera e despeito, o bruto a nada attende. É a morte
que lhe dá; bem o sabe, mas pouco lhe importa. A resignação angelica
da victima, as suas despedidas ao filhinho recem-nascido, as deixas de
seu testamento quando se sente finar nas desabridas alturas ‘d’aquella
serra’ por onde a levam n’aquelle cavallo andaluz que ‘anda mais que o
luar’—tudo são bellezas de primeira ordem, poesia de coração verdade.
Obtive este romance em Maio de 1843 de uma saloia velha das vizinhanças
de Lisboa. Outra licção veio depois, da Beiralta, que não differe muito.
Sempre noto porêm alguma variante, pôstoque ellas valham pouco. Parece-me
portuguez de nascença; não ha d’elle vestigio em collecção castelhana de
que eu saiba.

HELENA
—‘Ai! que saudades me apertam
Pela casa de meu pae!
Tambem me apertam as dores,
E minha mãe sem chegar!’
—‘Se as saudades te apertam,
Bem n’as podes ir mattar;
As dores não serão muitas,
Toma o caminho—e andar!’
—‘E á noite meu marido,
Quem lhe dará de cear?’
—‘Da caça que elle trouver,
Eu lh’a farei amanhar[23].
Do meu pão e do meu vinho
que elle quizer tomar.’
—‘Onde está mi’ espôsa Helena
Que me não dá de cear?’
—‘Tua espôsa Helena, filho,
Foi-se para não tornar.
Que ia para sua casa,
Que nos não póde aturar.
Chamou-me a mim perra velha,
A ti filho de mãe tal.’
—‘O meu cavallo andaluz[24]
Ja e ja m’o vão sellar.
Essa mulher, por Deus juro
Que ella m’as tem de pagar.’
—‘As boas novas, meu genro[25],
Que tenho para vos dar!
Filho barão, e tam lindo,
Um anjo de pôr no altar!’
—‘Novas me dão, boas novas;
Más as trago eu para dar:
Que a mãe que o pariu
Não é que o hade criar.
Ergue-te d’ahi, Helena,
Que me tens de accompanhar.’
—‘Paridinha de uma hora,
Onde a quereis levar?’
—‘Para perto, e bom caminho;
Não tem muito que penar,
Que o meu cavallo andaluz
Anda mais do que o luar.’
—‘Ande elle, que não ande,
Onde a quereis levar?’
—‘Call’-se d’ahi, minha mãe,
Ja se havia de callar;
Que a mulher que é bem casada,
O marido a hade mandar.
Que me dem a minha cinta,
Para eu me conchegar,
E esse meu gibão forrado
Para melhor me abafar.
E agora dem-me o meu filho,
Que o quero abraçar.
Ai! d’estes beijos, meu filho,
Se te saberás lembrar?
Lembrae-lh’o vós, minha mãe,
Quando elle souber fallar.’
—‘Que dizes, filha, que dizes?’
—‘Minha mãe, isto é folgar;
Que é tam perto e bom caminho
Para onde temos de andar;
E o cavallo andaluz,
Anda mais do que o luar.’
O cavallo era andaluz
Andava mais que o luar;
O caminho era de pedras,
Elle ia a tropeçar.
Vão andando, vão andando
Sem um nem outro fallar,
Ella ja tem as mãos frias,
O corpo está-lhe a inchar;
Chegando ao alto da serra[26]
Deu um ai, quiz desmaiar.
—‘Que ais são esses, Helena?
Porque estás a suspirar?’
—‘É que se me acaba a vida,
—‘É que me estou a finar:
Paridinha de uma hora,
Sinto-me em sangue alagar.’
Ja se não tem a cavallo,
Alli a foi apear:
Era a agonia da morte
Que ja lhe estava a apertar.
—‘A quem deixas, o teu oiro[27],
Que t’o hajam de estimar?’
—‘Deixo-o a minhas irmans,
Se tu lh’o quiseres dar.’
—‘A quem deixas essa cruz
E as pedra do teu collar?’
—‘A cruz, deixo-a a minha mãe
Que por mim lha hade rezar.
As pedras, não as quer ella,
E bem n’as podes guardar:
Se a outra as deres, marido,
Melhor lh’as deixes lograr.’
—‘Tua fazenda, a quem deixas,
Que t’a saibam grangear?’
—‘Deixo-t’a a ti, marido;
Que t’a deixe Deus gosar!’
—‘A quem deixas o teu filho
Que t’o hajam de criar?’
—‘A tua mãe—que Deus queira
Amor lhe venha a ganhar!’
—‘Não o deixes a essa perra,
Que é capaz de t’o mattar.
Ai! deixa-o antes á tua,
Que bem n’o hade criar.
Com lagrymas de seus olhos
Bem n’o ella hade lavar;
Toucas de sua cabeça[28]
Tirará para o pençar.’
De ouvir aquellas palavras
A pobre quiz-se animar;
Mas a voz que vem do peito
A bôcca não póde achar[29].
Inda lhe disse c’os olhos
Que lhe estava a perdoar.
—‘Não me perdoes, Helena,
Que Deus te hade escutar.
Ai! as penas do inferno,
Ja as eu coméço a penar,
Que vejo subir ao ceo
O meu anjo tutelar.
Mal hajam linguas traidoras[30]
E ouvidos que lhe eu fui dar!
Que por amor das más linguas
Meu anjo vim a mattar!
Sette annos e mais um dia
Me irei a peregrinar,
Á porta sancta de Roma
Me quero ir ajoelhar;
E aqui um sancto convento
Fundarei n’este logar,
Com sette missas por dia
Cada uma em seu altar;
Que digam todos que o virem:
_‘Aqui foi seu mal-peccar,_
_E aqui fez penitencia_
_Para Deus lhe perdoar.’_


XXIII
A MORENA

Este romance é vulgar na Extremadura e Beira e nas duas provincias d’alêm
do Tejo. Seguiu-se principalmente o exemplar vindo de Castello-branco,
que era o mais amplo; mas approveitou-se de outras licções provinciaes
o que foi necessario para lhe dar complemento. Transmittidas de bôcca
em bôcca,—não me canso de o repisar—por tantas gerações, éstas coplas
foram-se alterando com mutilações e interpolações graduaes, mas não
constantes nem uniformes. O rustico menestrel de uma aldea tinha ás vezes
pretenção de corrigir e enfeitar a singeleza dos primitivos cantares;
outras, a avó velha que os recitava á lareira aos pasmados netinhos,
cortava o que lhe parecia demais ou o que lhe esquecia; não poucas
vezes, algum Macias namorado recorreu, na esterilidade de sua musa, ao
bem parado d’este depósito commum, e, com mudanças de nomes e sitios,
transformou a historia de uma antiga aventura em monumento moderno de
suas glórias ou desgraças—como das mutiladas reliquias de um templo
d’Isis se fazia nas eras byzantinas uma basilica de christãos; como de
versos de Virgilio se compunham os celebrados _centões_; de pensamentos
de Homero, de phrases de todos os poetas antigos, cozidos uns nos outros,
se urdiam os poemas latinos de ha dois e tres seculos; como ainda até
ha bem pouco tempo se escreviam tambem quasi todos os mesmos poemas
vulgares. Dem desconto á simplicidade da obra e á inexperiencia do
artista, e hão de achar a comparação exacta.
Fazia-se isto porêm desvairadamente em epochas e logares differentes; e
d’aqui a necessidade de collacionar as tradições de uma provincia, de um
districto, de uma aldea ás vezes, com as de outra.
No romance da ‘Morena’ não parecem descubrir-se vestigios de mui remota
antiguidade: assim a adivinhar, deitá-lo-hia pelo seculo dezeseis. A
elle sabe o mandar os escravos _á fonte buscar agua_, o _manteo de
cochonilha_, e outras expressões que taes. Tem comtudo um certo sabor
de originalidade no stylo, um tom familiar sem baixeza, um natural
tam despido de todo o ornato, que lhe imprimem o cunho verdadeiro e
inquestionavel da poesia primitiva de um povo. Quando quer que nascesse
ésta flor singella, foi na serra inculta, foi entre o mato virgem
das florestas, longe das formalidades da arte, das fataes tesoiras e
indigestos adubos do jardineiro.
O assumpto é uma vulgar aventura d’aldea—d’essas que fez tam communs a
devassidão dos mosteiros ruraes: isso mesmo a deixou porventura conservar
na memoria dos homens como historia do que tinha sido, do que era e
sería. Na última copla ha uma pincelada de mestre, dos mestres que faz
a natureza, sublime de verdade e profunda de moral: ao incarar com a
victima de sua profana leviandade, estendida n’uma tumba, o seductor
_riu-se_, e o marido—diz o sincero trovador—_o marido é que chorava_!
Não se tomaram aqui liberdades de editor que restaura: é o quadro velho
limpo, mas não repintado. Algumas camadas de côr postiça, que tinha
porcima, cahiram ao lavar, e ficou mais claro o desenho original. Não foi
preciso, como n’outros casos muitas vezes é, cozer a tella rasgada ou
avivar o desenho summido: o fundo estava são e inteiro.
Nas collecções castelhanas não ha vestigio d’este romance; tenho-o por
inteiramente portuguez e absolutamente popular.

A MORENA
Fui-me á porta da Morena[31],
Da Morena mal casada:
—‘Abre-me a porta, Morena,
Abre-m’a por tua alma!’
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