Romanceiro III: Romances Cavalherescos Antigos - 2

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—‘Como te heide abrir a porta,
Meu frei João da minha alma,
Se tenho a menina ao peito
E meu marido á ilharga?’
Estando n’estas razões,
O marido que acordava:
—‘Que é isso, mulher minha[32],
A quem dás as tuas fallas?’
—‘Digo á môça do forno,
Que veio ver se amassava,
Se amassasse pão de leite,
Que lhe deitasse pouca agua.’
—‘Ergue-te, ó mulher minha,
Vai cuidar da tua casa;
Manda teus moços á lenha,
Teus escravos buscar agua.’
—‘Ergue-te d’ahi, marido,
Vai ao monte pela caça;
Não ha coelho mais certo
Do que é o da madrugada.’
O marido que sahia,
Morena que infeitava;
Seu manteo de cochonilha[33]
De dôze testões a vara,
Meia de seda incarnada
Que na perna lhe estalava,
Sua bengalla, na mão
Que mal no chão lhe tocava.
Foi-se direita ao convento,
Á portaria chegava.
O porteiro é frei João[34]
Que pela mão a tomava;
Levou-a á sua cella,
Muito bem a confessava...
Penitencia que lhe deu,
Logo alli mesmo a resava.
Á sahida do convento
O marido que a incontrava:
—‘D’onde vens, ó mulher minha,
Donde vens tam arraiada?’
—‘Venho de ouvir missa nova,
Missa nova bem cantada:
Disse-a o padre frei João,
Que assim venho consolada.’
—‘Consolar-te heide eu agora
Com a ponta d’esta espada...’[35]
Deu-lhe um golpe pelos peitos,
Deixou-a morta deitada.
—‘Não se me dá de morrer,
Que o morrer não custa nada;
Da-se-me da minha filha,
Que a não deixo desmamada!’
—‘Fôras tu melhor mãe que es,
Não fôras tam mal casada,
Não havias de morrer
D’esta morte desastrada.’
Levavam-n’a ao convento,
N’uma tumba amortalhada:
Surria-se o frei João,
E o marido... é quem chorava.


XXIV
DONZELLA QUE VAI Á GUERRA

Apezar de que se não incontra nas collecções impressas, sabemos, pelos
nossos escriptores portuguezes, que este romance é de inquestionavel
origem castelhana. Por fins do seculo XVI ainda se cantava na
_sociedade_, por gentis damas e galantes cavalheiros; e, ja se vê,
em castelhano se cantava. D’esse tempo escrevia Jorge Ferreira na
AULEGRAPHIA[36]; ‘Não ha entre nós quem perdoe a hũa troua portugueza,
que muytas vezes he de vantagem das castelhanas que se tem aforado
comnosco e tomado posse do nosso ouvido.’ Bem ás vessas do que succedia
dois seculos antes, em tempos do marquez de Santillana, que os
castelhanos trovavam em portuguez para serem acceitos seus dizeres e
cantares na propria côrte dos reis de Castella[37].
Devia dar-se, ao menos entre nós, a este romance o seu titulo primitivo
‘_O rapaz do Conde Daros_’, porque assim lhe chama Jorge Ferreira em
outra das muito curiosas scenas da ja citada AULEGRAPHIA, tam riccas
todas de preciosa e rara informação para o estudo dos costumes e usos
d’aquelle tempo. É na primeira do acto III, chistosa e desinfadada
conversação entre dois galantes do paço, Dinardo Pereira e Grasidel
de Abreu, que se divertem fazendo de _l’esprit_ á moda do tempo com
agudezas e requintes, em quanto não vem o jantar ‘que está para dois
toques’. Tracta-se entre aquelles fashionaveis da era de quinhentos, de
fazer alguma coisa elegante: sonetos, por exemplo, trovas, ou quejandas
galanices d’então—como hoje sería jogar um _ruber_ (róber?), experimentar
uma walsa nova no piano etc. Não é o menos gracioso d’este quadro, o
áparte dos dois criados Rocha e Cardoso, que á soccapa estão glosando e
mettendo a ridiculo os alambicados conceitos dos amos. Dinardo, que é o
mais prendado, resolve-se emfim pelo romance e a guitarra.
DINARDO
Ora poys que assi te tocarey: _O rapaz do Conde Daros_.
ROCHA
De prazer vem vosso amo, algum passarinho novo vio lá.
CARDOZO
Vería muyto má ventura, que sempre anda apos estes...
DINARDO, canta
Pregonadas son las guerras
De Francia contra Aragone...
ROCHA
O que elle tem para seu remedio he gentil voz!...
DINARDO, continuando a cantar
Como las haria triste
Viejo cano y pecador?...
(Quebra-se-lhe uma corda) Ah pezar de Mafoma!
CARDOZO
Quebrou-lhe a prima, inda bem!
DINARDO
Vedes este desar tem a musica, quando estais no melhor,
leixa-vos em branco uma prima falsa...[38]
Dei mais largas á curiosa citação por ser, como é, tam indubitavel e
interessante documento para a historia do romance em Portugal, e porque
tambem são ja rarissimos os exemplares d’essa obra de Jorge Ferreira.
Assim andava pois este romance, extrangeiro, e por tal prezado na alta
sociedade portugueza; até que, descendo dos salões para o terreiro,
a popularidade o naturalizou. Era castelhano no paço, foi-se fazer
portuguez na aldea.
Vai em tres seculos que Jorge Ferreira nos deu as últimas novas d’elle
quando andava por casas de senhores; achamo-lo hoje á lareira d’algum
pobre abegão do Alemtejo,—que para riccos lavradores, com filhas que ja
contradançam talvez, senão é que walsam e polkam tambem—é o triste de
muito má companhia ja. Tambem das provincias do Norte vieram noticias
e cópias d’elle; dos Açores é a mais completa ou a mais extensa que me
chegou. Desvairados nomes traz das diversas provincias: aqui é ‘Dona
Leonor’ além ‘Dom João’ n’outra parte ‘Dom Carlos’ etc.
Quando ha dez annos o erudito auctor de ISABEL OU A HEROINA DE
ARAGÃO[39], o publicou sob o mesmo titulo e como illustração e fundamento
do seu poema, era este o quarto romance tradicional que apparecia
impresso em portuguez; contando o primeiro no suspeitoso ‘Figueiredo’
de Fr. Bernardo de Brito, o segundo e terceiro na ‘Silvana’ e no
‘Bernal-Francez’ que eu publicára em 1828 em Londres.
Deixo-lhe por titulo, o que trouxe das ilhas, da ‘Donzella que vai á
guerra’, porque lhe acho certa graça e simplicidade toda popular, bem
propria sempre de taes rhapsodias.
São muitas as variantes, por ser este romance dos mais espalhados pelo
reino, e mais favoritos do povo.

DONZELLA QUE VAI Á GUERRA
—‘Ja se apregoam as guerras[40]
Entre a França e Aragão:
Ai de mim que ja sou velho,
Não nas posso brigar, não[41]!
De sette filhas que tenho
Sem nenhuma ser barão!...’
Responde a filha mais velha[42]
Com toda a resolução:
—‘Venham armas e cavallo
Que eu serei filho barão.’
—‘Tendes los olhos mui vivos[43].
Filha, conhecer-vos-hão.’
—‘Quando passar pela armada[44]
Porei os olhos no chão.’
-—‘Tendes-los hombros mui altos
Filha, conhecer-vos-hão.’
—‘Venham armas bem pesadas,
Os hombros abaterão[45].’
—‘Tende’-los peitos mui altos
Filha, conhecer-vos-hão.’
—‘Venha gibão apertado[46],
Os peitos incolherão.’
—‘Tende’-las mãos pequeninas[47]
Filha conhecer-vos-hão.’
Venham ja guantes de ferro[48],
E compridas ficarão.’
—‘Tende’-los pés delicados,
Filha, conhecer-vos-hão.’
—‘Calçarei botas e esporas,
Nunca d’ellas sahirão.’
—‘Senhor pae, senhora mãe,
Grande dor de coração;
Que os olhos do conde Daros[49]
São de mulher, de homem não.’
—‘Convidae-o vós meu filho,
Para ir comvosco ao pomar[50].
Que se elle mulher for,
Á maçan se hade pegar’[51].
A donzella por discreta,
O camoez foi apanhar[52].
—‘Oh que bellos camoezes
Para um homem cheirar!
Lindas maçans para damas
Quem lh’as podéra levar!’
—‘Senhor pae, senhora mãe,
Grande dor de coração;
Que os olhos do conde Daros[53]
São de mulher, de homem não.’
—‘Convidae-o vós, meu filho,
Para comvosco jantar;
Que, se elle mulher for[54]
No estrado se hade incruzar[55].’
A donzella, por discreta,
Nos altos se foi sentar[56].
—‘Senhor pae, senhora mãe,
Grande dor de coração;
Que os olhos do conde Daros[57]
São de mulher, de homem não.’
—‘Convidae-o vós, meu filho,
Para comvosco feirar;
Que, se elle mulher for,
Ás fittas se hade pegar.’
A donzella, por discreta.
Uma adaga foi comprar[58].
—‘Oh que bella adaga ésta
Para com homens brigar!
Lindas fittas para damas:
Quem lh’as podéra levar!’
—‘Senhor pae, senhora mãe,
Grande dor de coração;
Que os olhos do conde Daros
São de mulher, de homem não.’
—Convidae-o vós, meu filho,
Para comvosco nadar;
Que, se elle mulher for,
O convite hade escusar[59].’
A donzella, por discreta,
Começou-se a desnudar...
Traz-lhe o seu page uma carta,
Pôs-se a ler, pôs-se a chorar:
—‘Novas me chegam agora,
Novas de grande pezar:
De que minha, mãe é morta,
Meu pae se está a finar.
Os sinos da minha terra
Os estou a ouvir dobrar;
E duas irmans que eu tenho,
D’aqui as oiço chorar.’
—‘Monta, monta, cavalleiro!
Se me quer acompanhar.’
Chegavam a uns altos paços[60],
Foram-se logo apear.
—‘Senhor pae, trago-lhe um genro,
Se o quizer acceitar;
Foi meu capitão na guerra,
De amores me quiz contar...
Se ainda me quer agora,
Com meu pae hade fallar.’
Sette annos andei na guerra
E fiz de filho barão.
Ninguem me conheceu nunca
Senão o meu capitão;
Conheceu-me pelos olhos,
Que por outra coisa não.


XXV
O CAPTIVO

Vendido no mercado de Salé pelos corsarios que o tomaram, um pobre
captivo christão vai ser escravo de avarento e ricco judeu, que lhe dá
negra vida. É o primeiro capítulo de uma historia sabida e commum: e
naturalmente se espera ja o segundo, que é namorar-se do interessante
captivo a bella filha do mau perro judio, animá-lo, consolá-lo, querer
fugir com elle de moirama.—Atéqui vamos pela estrada coimbran d’estas
aventuras, que por seculos foram quasi quotidianas entre nós. Mas d’ahi
por deante o caso sai um tanto da marcha ordinaria. O captivo não renega
nem foge com a bella judia; e ella apaixonada, rendida, perdida...
conhece porfim que não é amada: nos molles braços da amante, o ingrato
christão suspirava, chorava por sua terra talvez, por outros amores, quem
sabe? Mas
‘Chorava—que não por ella!’
Não se espera a vingança da bella judia: da-lhe dinheiro para se
resgatar, dinheiro do seu d’ella que sua mãe lhe deixára. Apertada pelo
pae que suspeita a verdade, ella confessa tudo, mas defende o christão
por innocente; e só de uma alta tôrre, contempla a última vela que lhe
foge no horisonte com o ingrato amante.
O romance anda por Lisboa, Ribatejo e Extremadura fóra; não me chegou
informação de que se internasse mais pelas provincias: não deve de ser
mais antigo que o meado do seculo XVII se a copla em que se allude a
Ceuta e a Mazagão não é ‘rifacimento’ moderno, como tambem póde ser, e me
inclino a crer que é, porque no resto, o sabor e o stylo é mais velho.
Não apparece nas collecções castelhanas; e se não foi originalmente
escripto em portuguez, nacionalizou-se por tal modo, que se lhe não
descobre vestigio bem auctorisado e certo de outra origem. Nem façam
dúvida os artigos _lo_, _la_ em vez de _o_, _a_; porque não só os
escriptores antigos, mas o povo de hoje os substitue assim a miudo quando
lh’o pede o mal soante do hyato. Tambem dizem _mi’_ por _minha_, _padre_
e _madre_ por _pae_ e _mãe_; e outros que parecem castelhanismos sem o
serem. _Me’ pae_ diz ainda hoje, por euphonia, o alemtejano, como em
tempos de Gil-Vicente, se dizia e cantava _m’ amor_ por _meu amor_.

O CAPTIVO
Eu vinha do mar de Hamburgo[61]
N’uma linda caravella;
Captivaram-nos os moiros
Entre la paz e la guerra.
Para vender me levaram[62]
A Salé, que é sua terra.
Não houve moiro nem moira
Que por mim nem branca dera[63];
Só houve um perro judio
Que alli comprar-me quizera;
Dava-me uma negra vida,
Dava-me uma vida perra:
De dia pisar esparto,
De noite moer canella,
E uma mordaça na bôcca
Para lhe eu não comer d’ella.
Mas foi a minha fortuna.
Dar c’uma patroa bella,
Que me dava do pão alvo,
Do pão que comia ella.
Dava-me do que eu queria,
E mais do que eu não quizera,
Que nos braços da judia
Chorava—que não por ella.
Dizia-me então:—‘Não chores,
Christão, vai-te á tua terra.’
—‘Como me heide eu ir, senhora,
Se me falta la moeda?’
—‘Se fôra por um cavallo,
Eu uma egua te dera[64];
Se fosse por um navio,
Dera-te uma caravella[65].’
—‘Não fôra por um cavallo,
Não fôra, senhora bella,
Que está longe Mazagão,
Ceuta tem voz de Castella.
Nem por navio não fôra,
Que eu fugir não quizera,
Que era roubar a teu pae
Dinheiro que por mim dera.’
—‘Toma ésta bolsa, christão,
Feita de seda amarella[66];
Minha mãe quando morreu
Me deixou senhora d’ella.
Vai-te, paga o teu resgate;
E ás damas de tua terra
Dirás o amor da judia
Quanto mais vale que o d’ellas.’
Palavras não eram dittas,
O patrão que era chegado.
—‘Venhais embora, patrão,
E vinde com Deus louvado,
Que agora tenho recado
Que o meu resgate é chegado[67].’
—‘Christão, Christão, que disseste!
Olha que é muito cruzado.
Quem te deu tanto dinheiro
Para seres resgatado?’
—‘Duas irmans m’o ganharam.
Outra m’o tinha guardado[68];
E um anjo do ceo m’o trouxe,
Um anjo por Deus mandado.’
—‘Dize-me, ó christão, dize
Se queres ser renegado,
Que te heide fazer meu genro,
Senhor de todo o meu estado.’
-—‘Eu não quero ser judio
E nem turco arrenegado,
E não quero ser senhor,
De todo esse teu estado[69],
Porque trago no meu peito
A Jesus crucificado[70].’
—‘Que tens tu, filha Rachel[71]?
Dize-me cá, filha amada,
Se é pelo christão malditto[72]
Que ficaste desgraçada.’
—‘Meu pae, deixe o christão, deixe,
Que elle não me deve nada:
Deve-me a flor de meu corpo,
Mas de vontade foi dada.’
Mandou fazer-lhe uma tôrre
De pedraria lavrada;
Que não dissessem os moiros:
—‘A judia é deshonrada.’
Violla, minha violla,
Fica-te aqui pendurada[73],
Que lá vão os meus amores
Por essa agua salgada.


XXVI
A NAU CATHRINETA

Não é para admirar que seja tam geralmente sabida e querida ésta xácara.
O que admira é que não seja mais commum entre nós o romance maritimo. Um
paiz de navegantes, um povo que viveu mais do mar que da terra; que as
suas grandes glórias as foi buscar ao largo oceano; que por não caber em
seus estreitos limites de Europa, devassou todo o imperio das aguas para
se extender pelo universo,—não póde deixar de ter produzido muito Cooper
popular e muito Camões de rua e de aldea que, em seus pequenos Lusiadas,
cantasse as mil aventuras de tanto galeão e caravella que se lançavam
destemidos
Por máres nunca d’antes navegados.
Temos em prosa muita relação popular de naufragios que rivaliza em
simplicidade antiga com os Chronicons da meia-edade, e cujos escriptores
parecem discipulos do arcebispo Turpin, do auctor da ‘Formosa Magallona’
ou da ‘Donzella Theodora.’ Como elles, andaram muitos annos a cavallo em
barbantes no logar do cego stacionario, ou no bornal do cego ambulante;
e só em meios do seculo passado começaram a junctar-se em volumes na bem
conhecida collecção intitulada ‘Historia tragico-maritima[74].’
Algumas d’estas narrativas feitas por pessoas que tiveram parte na
aventura, são palpitantes de interêsse e de verdade, contêem descripções
inimitaveis, desenhadas do vivo, e taes que fazem impallidecer as mais
animadas paginas do ‘Reddrover’ e do ‘Pirata.’
Não cingrariam jamais com os nossos argonautas senão os Homeros das
grandes Odysseas? Nunca um pobre menestrel do povo que dissesse na harpa
ou na violla esses humildes cantares que não cabem na tuba epica, mas
tambem não precisam dos characteres de Gerardo da Vinha ou de Craesbeck,
porque se gravam na memoria do povo e se perpetuam no livro vivaz das
gerações?
É impossivel: seus poetas tem, seus chronistas, seus historiadores; havia
de ter seus menestreis e seus trovadores, a aventurosa vida de nossos
mareantes.
Mas essas ingenuas rhapsodias, quem as apagou assim do livro popular? Que
estupidos monges fizeram palimpsestes de suas páginas bellas?—que apenas
hoje podêmos decyphrar a custo algum fragmento oblitterado como este!
Não é facil responder com precisão. Mas são certas as razões geraes
e sabidas do orgulho monachal, e falso gôsto de nossos litteratos de
universidade e de côrte. Se tirarmos Gil-Vicente e Bernardim-Ribeiro, o
mesmo ou peior diremos dos poetas, que todos ou quasi todos venderam sua
alma aos classicos latinos, aos italianos da renascença, e desprezaram,
por vulgares, as primitivas fórmas de seus cantores naturaes.
‘A nau Cathrineta’ foi provavelmente o nome popular de algum navio
favorito; diminutivo de affeição pôsto na Ribeira-das-naus a algum galeão
Sancta Catherina, ou coisa que o valha. Dar-lhe-iam esse appellido
_coquet_ por sua airosa mastreação, pelo talhe elegante de seu casco,
por alguma d’essas qualidades graciosas que tanto apprecia o ôlho
exercitado e fino da gente do mar. Ou talvez é o nome supposto de um
navio bem conhecido por outro, que o discreto menestrel quiz occultar
por considerações pessoaes e respeitos humanos. Entre as narrativas em
prosa que ja citei, ha uma, por titulo—‘Naufrágio que passou Jorge de
Albuquerque Coelho, vindo do Brazil no anno de 1565’—que não está muito
longe de se parecer com a do romance presente. Larga e difficil viagem,
temporaes assombrosos, fome extrema, tentativas de devorarem os mortos,
resistencia do commandante a ésta bruteza, milagroso surgir á barra de
Lisboa quando menos o esperavam, e quando menos sabiam em que paragens se
achassem—tudo isto ha na prosa da narração; e até o poetico episodio de
estarem a ver os monumentos e bosques de Cintra sem os reconhecer—como na
xácara se viam, pela falsa miragem do demonio, as tres meninas debaixo do
laranjal.
Fôsse porêm este, ou fôsse outro o caso que celebra o romance, houve
tantos similhantes n’aquelles tempos, que de alguns d’elles, e no fim
do seculo XV ou no XVI, se havia de compor. Mais antigo não é. Alêm
de outras razões, é hoje averiguado que a poesia primitiva da nossa
peninsula rarissima vez admitte o maravilhoso, o _Deus ex machina_ para
solução de suas ingenuas peripecias. Composição em que elle appareça,
quasi sem hesitar, se deve attribuir a origem franceza, franco-normanda,
ou mais seguramente ainda á dos bardos e scaldos que por essas vias se
derivasse até nós. Depois é que a mythologia de todas as crenças se
confundiu, e ainda a mais extranha é a que mais figurava entre nós.
Tem muitas variantes a ‘nau Cathrineta’; as mais notaveis vão
appontadas.

A NAU CATHRINETA
Lá vem a nau Cathrineta[75]
Que tem muito que contar!
Ouvide agora, senhores,
Uma historia de pasmar.
Passava mais de anno e dia[76]
Que iam na volta do mar[77],
Ja não tinham que comer,
Ja não tinham que manjar.
Deitaram solla de molho
Para o outro dia jantar;
Mas a solla era tam rija[78],
Que a não poderam tragar.
Deitam sortes á ventura
Qual se havia de mattar;
Logo foi cahir a sorte
No capitão general.
—‘Sobe, sobe, marujinho,
Áquelle masto real[79],
Vê se vês terras de Hespanha,
As praias de Portugal.’
—‘Não vejo terras d’Hespanha,
Nem praias de Portugal;
Vejo sette espadas nuas
Que estão para te mattar[80].’
—‘Acima, acima, gageiro,
Acima, ao tope real!
Olha se inxergas Hespanha[81],
Areias de Portugal.’
—‘Alviçaras, capitão,
Meu capitão general!
Ja vejo terras d’Hespanha,
Areias de Portugal.
Mais inxergo tres meninas[82]
Debaixo de um laranjal:
Uma sentada a cozer,
Outra na roca a fiar,
A mais formosa de todas
Está no meio a chorar.’
—‘Todas tres são minhas filhas,
Oh! quem m’as dera abraçar!
A mais formosa de todas
Comtigo a heide casar.’
—‘A vossa filha não quero,
Que vos custou a criar.’
—‘Dar-te-hei tanto dinheiro
Que o não possas contar.’
—‘Não quero o vosso dinheiro,
Pois vos custou a ganhar.’
—‘Dou-te o meu cavallo branco,
Que nunca houve outro egual[83].’
—‘Guardae o vosso cavallo,
Que vos custou a insinar.’
—‘Dar-te-hei a nau Cathrineta[84],
Para n’ella navegar.’
—‘Não quero a nau Cathrineta,
Que a não sei governar.’
—‘Que queres tu, meu gageiro,
Que alviçaras te heide dar?’
—‘Capitão, quero a tua alma
Para commigo a levar.’
—‘Renego de ti, demonio,
Que me estavas a attentar!
A minha alma é só de Deus;
O corpo dou eu ao mar[85].’
Tomou-o um anjo nos braços,
Não n’o deixou affogar.
Deu um estouro o demonio,
Accalmaram vento e mar;
E á noite a nau Cathrineta
Estava em terra a varar[86].


XXVII
O CEGADOR

A edição arraiana d’este romance que me veio de Tras-os-montes chama-lhe
‘A filha do imperador de Roma.’ Não a segui no titulo nem em muitas
partes do texto, incostei-me antes á licção da Beiralta. E so éstas
duas me chegaram; não me consta que n’outras provincias do reino seja
conhecido.
Que imperador será este? Teremos aqui algum episodio da crapulosa
historia byzantina, ou é outro capitulo licencioso da chronica secreta
de Carlos-Magno? O trovador, que a trovou n’essa meia-edade, cujo sêllo
visivelmente lhe pende de todas as coplas, não pôs nomes nem datas,
segundo o geral costume: e adivinhe quem quizer se este imperador de
Roma era do occidente ou do oriente, do alto ou do baixo imperio, Cesar
verdadeiro ou Kaiser de imitação germanica? Deve de ser d’estes ultimos
pela menção do duque de Lombardia que no fim apparece.
A licção da Beira, que segui mais que a transmontana, tem muitas
variantes obscenas que forçosamente deviam ser desprezadas. Nem as creio
originaes, senão introduzidas pelo depravado gosto de algum _roué_
d’aldea.
Nos romanceiros castelhanos não se incontra, e para o sul de Portugal é
inteiramente desconhecido. Todavia, assim restituida pela collação dos
dois textos que obtive, ésta ficou uma das mais completas reliquias da
nossa poesia popular que possam incontrar-se.

O CEGADOR
O imperador de Roma
Tem uma filha bastarda
A quem tanto quer e tanto
Que a traz mui mal criada.
Pedem-lh’a condes, senhores[87],
Homens de capa e d’espada;
Ella isenta e desdenhosa
A todos lhes punha tacha:
Um é criança, outro é velho[88],
Este que não tinha barba,
Aquelle que não tem pulso
Para puchar pela espada.
Dizia-lhe o pae surrindo:
—‘Inda hasde ser castigada!
De algum villão de porqueiro
Te espero ver namorada.’
Por manhan de San’ João,
Manhan de doce alvorada,
Ao seu balcão muito cedo[89]
A infanta se assomava.
Viu andar tres cegadores
Fazendo sua cegada;
O mais pequeno dos tres
Era o que mais trabalhava.
Fitta que traz no chapeu
De oiro e seda era bordada;
Fina prata que luzia
A foice com que ceifava.
De seu garbo e gentileza
A infanta se namorava.
O ceifeiro vai ceifando...
Bem sabe elle o que ceifava!
Alli estava a aia discreta
Em quem toda se fiava:
—‘Ves, aia, aquelle ceifeiro
Que anda n’aquella cegada?
Condes, duques, cavalleiros,
Nenhum que o ceifeiro valha.
Vai-m’o chamar em segredo,
Que ninguem não saiba nada.’
—‘Bom cegador, vem commigo,
Que te quer fallar minha ama.’
—‘Tua ama, não n’a conheço
Nem tam pouco a quem me chama[90].’
—‘Cegador de boa estrea,
Traze’la vista mui baixa:
Alça os olhos e verás
A estrella da madrugada.’
—‘Vejo o sol que vem nascendo,
Não vejo a estrella d’alva.’
—‘Estrella ou sol, vens commigo?’
—‘Irei, pois quem póde, manda.’
Entraram por um postigo,
Que a porta inda era cerrada;
No camarim da princeza
O bom do ceifeiro estava.
—‘Senhora que me quereis?
Pois venho á vossa chamada.’
—‘Quero saber se te atreves
A fazer minha cegada?’
—‘Atrever, me atrevo a tudo;
Trabalho não me accovarda.
Dizei vós, senhora minha,
Onde é a vossa cegada.’
—‘Não é no monte ou no valle,
No baldio ou na coitada;
Cegador, é nos meus braços,
Que de ti estou namorada.’
Passou todo aquelle dia[91],
O mais da noite passava,
Ceifando vai o ceifeiro...
Bem sabe elle o que ceifava!
—‘Basta, basta, cegador,
Feita está tua cegada:
Vai-te, que meu pae não venha,
Antes de ser madrugada.’
Palavras não eram dittas,
O pae á cama chegava:
—‘Com quem fallas, minha filha,
Tam cedo de madrugada?’
—‘Fallo com ésta minha aia
Que me tem desesperada;
Uma cama tam mal feita
Que dormir me não deixava.’
—‘É forte aia essa tua
Que a barba tem tam cerrada!
Vista-se ja a donzella,
Que, antes de ser madrugada,
Pelo barbeiro do algoz
A quero ver barbeada.’
O cegador muito inchuto
Sua sentença escutava,
Com uma mão se vestia,
Com a outra se calçava.
Saltou no meio da casa
Como se não fôra nada:
—‘Venha ja esse barbeiro
Com a navalha affiada:
Ao duque de Lombardia
Veremos quem faz a barba.’
O imperador mui contente
Depressa alli os casava.
Não quiz senhores, nem condes
Homens de capa ou de espada,
Senão só o cegador
Que andava em sua cegada.
Podia ser um porqueiro
Que a deixasse deshonrada...
Sahiu-lhe um duque reinante,
Senhor de alta nomeada.
Pois tudo é sorte no mundo,
A sorte foi bem deitada.


XXVIII
A NOIVA ARRAIANA

Veio de Almeida ésta xácara; e de nenhuma outra parte do reino me chegou
outra licção d’ella, nem vestigio. Bem antiga me parece. O fronteiro
que mandou ao mar a armada do cavalleiro ausente, faz pensar que isto
seja coisa do tempo das nossas emprezas de Africa. O logar da scena é
inquestionavelmente na raia—e bem pôsto está ao romance o titulo de
‘Noiva arraiana’. Mas aqui ha mar, e armadas que vão ao mar: não póde
pois ser outra a raia senão a do Algarve. O stylo da cantiga é ingenuo
e purissimo; os costumes que descreve primitivos e patriarchaes; ha um
sabor homerico n’este narrar e n’este fallar, que ninguem póde confundir
com o dizer estudado de trovadores mais modernos. Poetas de civilisação
mais adeantada não sabem ou não podem chegar tanto a rés da natureza.
O facto é simples e mil vezes visto. Outra edição da Lucia de Lamermoor,
outro cavalleiro de Ravenswood que apparece de repente no meio da voda
de sua debil e mal constante namorada, quando ella, ja desposada com
outro, menos esperava tornar a ver o primeiro amante—o seu, o que ella
unicamente quer. Quem não lembra de Walter-Scott, e de Donizetti tambem,
e do que vibram na alma as palavras de um, as notas do outro, inspiradas
por ésta situação altamente dramatica; sublime de angústia e desesperação?
O nosso trovador arraiano tomou as coisas com mais tento e socêgo; não
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