Romanceiro I: Romances da Renascença - 3

Total number of words is 3875
Total number of unique words is 1461
32.0 of words are in the 2000 most common words
45.1 of words are in the 5000 most common words
53.3 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
É teu pae, que hade querer-te,
Que hade amar-te como eu te amo.’
E tomou-a nos seus braços,
E a levanta Auzenda bella.
Pasma o pae, suspira ella;
E a custo os doces abraços
De pae, de filha se deram.

XII
Pouco alegre a companhia
Entrou nos paços brilhantes;
E os atabales soantes
Pregoaram festa e alegria
No castello de Landim.

CANTIGA SEGUNDA
But yet thou art my flesh, my blood, my daughter!
SHAKSPEARE.

I
Oh! que alegrias que vão
Pelos paços de Landim!
Que magnificos banquetes,
Que sumptuoso festim!
Juncto ao valente campeão,
Á cabeceira da mesa
Ficou a bella Adozinda.
A tam celeste belleza
Estão todos admirando;
E o imbevecido Sisnando
Não se farta de abraçá-la,
De beijar filha tam linda.
Auzenda de gôsto chora,
E abençoa a feliz hora
Em que tanto amor nasceu.
—‘Inda bem’ diz ‘que a rudeza
De tanto lidar com armas
Á innocencia, á belleza
Da amada filha cedeu!’
Ella as caricias paternas
Ja não ousa de esquivar-se;
Cora, mas deixa abraçar-se;
Ve-se que tantos affagos
A repugnancia venceram
Da timidez natural,
—Ou, se outra causa fatal,
Mais incuberta ella tinha...
Ao menos lh’a adormeceram.

II
Ja de exquisitos manjares
Os convivas saciados,
De folias e cantares
Pagens, donzellas cançados,
E dos brindes amiudados
Finda a primeira alegria,
Doce repoiso pedía
Quanto ésta noite em Landim
Velou em baile e festim.
A seus nobres aposentos
Adozinda retirada,
Com permissão outorgada
—A custo—do pae, se foi.
Auzenda, em grave cortêjo
De suas damas rodeada
Deixou ha muito o festêjo,
E em seu camarim deitada
Espera o momento anciosa
Em que a sós a amante e a espôsa
Nos braços de Dom Sisnando
Se hãode em breve confundir.

III
Como um tapete mimoso,
Juncto ao paço de Landim
Se estende jardim formoso,
De boninas arrelvado
Da verde gramma e de flores:
Remata em bosque frondoso
Cujos opacos verdores
Eternas sombras acoitam.
—De pesados sentimentos
Oppresso o peito fremente,
A respirar livremente
O ar puro da noite fria
Entrou insensivelmente
Dom Sisnando em seu vergel
Jamais tam rico docel
De azul bordado d’estrellas
Se estendeu por sôbre a terra
Do estio nas noites bellas.

IV
Alta a lua vai no ceo,
E as sombras leves e raras
Não impedem ás florinhas,
Não tolhem ás aguas claras
De brilhar co’a luz nocturna,
Menos resplendente e fúlgida,
Porêm mais suave e placida,
Mais amavel que a diurna.
Manso o vento, que murmura
Entre as folhas brandamente,
Convida suavemente
A respirar, a bebê-la,
Essa fresca viração,
Das flores exhalação,
Tam doce como o bafejo
De dous amantes queridos
Quando por amor unidos
Se dão mútuo e doce bejo.

V
Na feiticeira belleza
Da noite, do ceo, das flores
Várias d’aroma e de côres,
Sisnando todo imbebido,
No seio da natureza
Do resto do orbe esquecido,
Pouco a pouco a agitação
D’alma lhe foi abrandando,
E o pesado coração
Do affôgo desappertando:
Ja póde gemer,—suspira,
E como que se lhe tira
Um pêso de sôbre o peito,
Que a suspirar foi desfeito.

VI
Porque geme, porque anceia
Dom Sisnando, o lidador?
Sisnando, o triumphador,
Cujo alto pendão campeia
Victorioso e senhor
Por tanta suberba ameia
De nunca entrado castello,
De jamais vencida tôrre!
—Dor que lhe nasce no peito
É dor que no peito morre;
Ancia que lhe ralla a vida
Não é para ser sabida.
—E desde quando? ha tam pouco
Feliz e ditoso ainda,
Com tanta alegria e júbilo
Festejada sua vinda!..
Vassallos, espôsa, filha...
Filha!.. A filha é tam formosa!
Oh! essa Adozinda bella
Nos olhos incantadores
Tem com que matar d’amores
A metade dos humanos!
Não, não é peito sensivel
Peito que lhe resistir:
Mas o pae!.. não é possivel.

VII
Não é, não é.—Mas Sisnando,
Sem saber onde caminha,
Melancholico e pesado,
Insensivel foi entrando
Pelo bosque immaranhado
Que ao jardim avizinha:
E o silencio, que o seguiu,
Que no espesso coito habita,
Nem um verde ramo agita,
Nem uma folha buliu.
—Á toa por entre as árvores
Sem seguir carreiro ou trilho,
Nem guiado d’um só brilho
De froixa estrella que entrasse
Por tam medonha espessura,
Ora lento e vagaroso,
Ora os passos apressura,
Ja por caminho fragoso,
Ja por vereda macia,
Té que n’um claro onde os troncos
Escasseiam de repente,
E onde pallido e tremente
Seu reflexo a lua infia,
Sem o saber, foi parar.

VIII
Agreste, não feio é o sitio,
Medonho, horrivel de ver;
Porêm tem a natureza
Horrores que são belleza,
Tristezas que dão prazer,
Mão d’arte alli não chegou;
A virginal aspereza
Ficou em toda a rudeza
Que a creação lhe deixou.
De um lado, choupos anciãos
Seus ramos lobregos pendem,
E o vivo seixo fendem
Crespas raizes nodosas
Das sovereiras annosas
Que as cortiças remendadas
Têem dos estios lascadas
A pedaços a cahir.
—Do outro, altivos rochedos,
Como do ceo pendurados,
Diffundem pallidos medos
Que em funda gruta acoitados
De espectros a povoaram.
—Di-lo toda a vizinhança,
Que ou são sombras de finados,
Ou de negras bruxas más
Alli ha nocturna dança.
—Redobra ao sítio o pavor
Um jôrro alto que despenha
Saltando de penha em penha,
E os echos em deredor
Vai temeroso acordando.
Este unico som d’horror
Á callada solidão
Da mudez quebra o condão.
—Sisnando, o ardido Sisnando,
O do forte coração,
Sentiu soçobrar-lhe o ânimo:
Uma voz dentro do peito
Lhe diz que não passe ávante;
Mas outra voz mais possante,
Outra voz que é voz do fado,
Voz que ao mortal desgraçado
Não deixa fôrça ou razão,
Lhe brada: _Persiste, segue_...
—Ai do que a ella se intregue,
Que se intrega á perdição!

IX
No seixo cavada grutta
Tem escassa entrada aberta,
Quasi de todo cuberta
De festões d’hera lustrosa
Que cingindo a rocha bruta
Pende em grinalda ramosa.
Entre as folhas, que meneia
Ligeiro sôpro de vento,
Viu Sisnando—e alma lhe anceia—
Um lampejar vago, incerto
De luz fraca,—ouve um accento
De voz doce mas gemente,
Voz que se ouve que está perto,
Que intoa suavemente
Uma angelica harmonia,
Tam triste que faz chorar!
E ésta voz assim dizia
Em seu languido cantar:
—‘Anjos do ceo, acudi-me,
Valei-me, sanctos do ceo,
Que me rouba mais que a vida
Quem só a vida me deu.
‘Sancto ermitão, que me deste
Aquella esperança ainda
Que a desgraçada Adozinda
Viria a ser venturosa
Apóz de longo penar...
Sorte que vieste
Sôbre mim deitar,
Sorte desastrosa
Vem ver começar.
‘Anjos do ceo, acudi-me,
Valei-me, sanctos do ceo,
Que me rouba mais que a vida
Quem só a vida me deu.
Mas ah! tam negro crime,
Tam horrida paixão
D’um pae no coração...
D’um pae...—Como é possivel!
Não, não, não hade entrar.’

X
—‘Pois treme, infeliz, e sabe
Que essa horrorosa paixão
Aqui n’este coração...’
Sisnando, a quem ja não cabe
No peito a angústia, o tormento
De tam criminoso amor,
N’estas vozes de terror
Rompendo, a caverna entrou.

XI
Oh que pavoroso instante!
Os anjos todos cubriram
Seus rostos co’a aza brilhante;
Sem vento os troncos d’emtôrno
A ramagem sacudiram;
A lua no ceo mais pallida
Como de susto infiou
E para traz da montanha
Foi correndo, e se eclipsou.

XII
Quem hade a filha chorar
Que está nos braços paternos!
Oh! quem se hade horrorizar
Dos beijos doces e ternos
Que o amor...—Que amor é esse
De ouvir tam medonho horror
O proprio inferno estremece,
E só lá... ha tal amor!

XIII
Oh! como heide eu cantar
Se no peito a voz me treme!
Historia que é de chorar,
Quem a diz não canta, geme.
—Só não gemia Adozinda,
Que toda morta, gelada,
Sancto Deus!—mais bella ainda,
Na viva rocha, estirada
Como um cadaver ficou.

XIV
E o pae ousou levantá-la,
E apertar juncto a seu peito
Aquella morta belleza!
—Repugnou a natureza;
E, da paixão a despeito,
De si a affasta, vacilla...
O anjo da sua guarda
Inda um momento o resguarda...
Mas ha na terra ou no ceo
Fôrça maior que a paixão,
Que subjugue um coração
Que d’amor indoudeceu?
Se a ha, não lhe acudiu Deus,
Venceram peccados seus.
Lembrou-lhe fugir... ficou:
Sim, lembrou-lhe a salvação...
E á sua condemnação
O infeliz se votou.

XV
Geme, chora; altos soluços
Do peito lhe véem bradando;
Porêm fugir de Adozinda
Não póde o triste Sisnando.
Ella acorda, e em voz sumida:
—‘Piedade, senhor, piedade!...’
Só pôde dizer: perdida
Nos echos da soledade
Vai soando e murmurando
A voz triste e condoida.
Ouve-a elle; e o coração
No peito lhe estremeceu;
Na execranda pretenção
Recúa,—mas não cedeu.

XVI
Palavras que lh’elle disse,
Respostas que lh’ella deu,
Oh! não as contarei eu,
Não as contará ninguem....
Quiz que lh’ella promettesse
(E a terra alli não se abriu
Quando tal a um pae ouviu!)
Que para a noite seguinte,
Quando tudo em paz jazesse
Em seu leito o recebesse....

XVII
Chora a infeliz, chora, geme,
De horror e de pasmo treme:
Insta o perigo imminente,
A esperança na demora....
Com voz cortada e gemente:
—‘Senhor, não insteis agora,
Deixae-me cobrar alento,
E ámanhan responderei.’
—‘Pois solemne juramento
Farás de que...’—‘Sim, farei...’
—‘Que ámanhan, antes que o dia
Do horisonte despareça,
Darás resposta final
E ai de ti, ai do mortal
A quem ousasses!...—Pereça
O infeliz n’esse momento:
Só a morte, só o inferno
De meu cru resentimento
O poderiam salvar.’

CANTIGA TERCEIRA
I must a tale unfold whose lightest word
Will harrow up thy soul; freeze thy blood;
Make thy two eyes, like stars, start from their spheres.
SHAKESPEARE.

I
Que mau fado, que hora má,
Oh! qual agoirada estrella
Levou Adozinda bella
Á fadada grutta escura?
Que foi ella fazer lá?
No mais denso da espessura,
A tão aziagas horas,
Só, alta noite, a deshoras,
Sem donzella ou escudeiro,
Como o pedia a decencia,
Sem levar mais companheiro
Que sua debil innocencia,
Que seu joven coração!

II
Quem o sabe?—No castello
Nem a propria mãe, que a adora,
Que pela filha querida
Dera tudo, dera a vida...
Nem a propria mãe sabê-lo!
E como é que Auzenda ignora,
Por que incanto ou maravilha,
Que ao pino da meia noite
Todos os dias a filha
O escuro parque atravessa,
E tenteando a treva espessa
Vai sosinha áquella grutta
Que no mais claro do dia
Ninguem a entrar ousaria?
—Mas vai; não o sabe Auzenda:
N’este segredo fatal
Coisa sobrenatural,
Coisa medonha, tremenda
Ha por certo... oh! que inda mal!

III
Desde aquella madrugada
Que Adozinda em seu balcão
Fallou c’o velho ermitão,
De noite á grutta fadada
Sempre vai. Sibille o vento
No bosque medonho e feio,
Ás nuvens o pardo seio
Rasgue horrisono trovão,
Nada teme; a passo lento,
Só, para alli se incaminha
E em rezas, em penitencia
Horas longas jaz sosinha.
Talvez d’aquelle romeiro,
Por salutar providencia,
Seu fado lhe foi preditto;
Talvez lhe fôsse prescritto
Por tam sancto conselheiro
Que passasse em oração
N’aquellas medonhas fragas
Certas horas aziagas
Em que a fatal conjuncção
D’um astro seu inimigo
Maior fizesse o perigo
Da terrivel maldicção
Que a persegue,—ella inocente!—
Que tam injusta cahiu
N’aquella votada frente...
Mas diz que não ha condão
Peior que o da maldicção!
E quantas não attrahiu
Sôbre a familia inculpada
A suberba despiedada
D’esse orgulhoso Sisnando?
Quantas vezes o infeliz,
C’os filhinhos expirando,
Á porta do seu castello
Se viu gemendo e chorando,
E o desalmado senhor
Essa gentalha atrevida
Escorrassar a mandou!
Taes peccados não guardou
Para os punir na outra vida
O supremo Arbitrador.

IV
Mas ja despontava o dia,
Que tam alegre hoje vem,
Tam risonho parecia,
Que não dissera ninguem
Senão que traz alegria:
—E tantas, tam negras mágoas,
Nunca as trouxe o sol nascente
Desde que assoma no oriente
E se sepulta nas aguas.
Toda a noite longa, immensa,
Auzenda velou chorando,
De suas lagrymas regando
O leito viuvo e só;
A ninguem sua dor intensa
A desgraçada confia:
Ninguem da triste houve dó,
Que do espôso em companhia
Todo o castello a julgou.
Porêm a noite passou,
E porfim, do novo dia
Ja o alvor vinha raiando,
Sem apparecer Sisnando.

V
É manhan;—tenue inda a luz,
Mas ve-se que é madrugada.
Auzenda ainda acordada
Sente abrirem-lhe com tento
A porta do aposento,
E entrar...—‘Será elle?... Oh vem!
És tu, suspirado espôso?!
Disse ella em timida voz:
Não lhe responde ninguem.
Um suspiro doloroso
Lhe dissipou a illusão.
Oh! quem se hade inganar
Com aquelle suspirar!
É Adozinda,—voaram
Do maternal coração
Toda a mágoa e dissabores;
E os sentidos que ficaram
Foi para amargar as dores
Que n’aquelle _ai_ a assaltaram.

VI
—‘Filha, filha... a ésta hora!
Que succedeu?... que tens tu?’
Callada Adozinda chora.
—‘Ai, não, não me chameis filha!’
Rompe em fim, a soluçar,
Nadando n’um mar de pranto.
Pasmo, terror, maravilha,
Susto, medo, horror, espanto
No peito da triste Auzenda
Em confusão estupenda
De tropel foram quebrar.
—Que será?—E esse tyranno
De todo o socêgo humano,
_Dúvida_, o monstro fatal,
Que até nos deixa a esperança
Paraque do incerto mal
Seja maior a pujança,
Venha mais fino o punhal
Quando n’alma se nos crava,
Esse do peito lhe trava,
E ao cruel padecimento
Dobra angústias e tormento.

VII
Adozinda, ajoelhada
Juncto ao leito onde convulsa
Jaz a mãe attribulada,
Do coração, que lhe pulsa
Como se fôra quebrar,
Traz d’amargo pranto um rio,
Que dos olhos vem a fio
As maternas mãos banhar;
As mãos que ella aperta e beja,
E que o pranto que gotteja
Ja não sentem derramar.

VIII
Volve a ti, mãe desgraçada,
Volve, que o morrer agora
Tammanha ventura fôra
Que da sorte despiedada
Concedido não será.
Vem ouvir tua sentença
De morte... peior que morte,
Vergonha horrorosa, offensa...
E de quem!... de teu consorte,
Do pae monstro, monstro espôso...
Ai! para o tormento odioso,
Para tammanha afflicção
Não tem fôrça o coração.

IX
Tudo lhe conta Adozinda,
Tudo... tudo,—interrompendo
A horrorosa narração
Ora as lagrymas fervendo,
Ora os soluços rompendo
Do rasgado coração,
Ora os labios descorados
De pejo e terror gelados,
Sem podêr nem balbuciar
O que é fôrça revelar.

X
—‘Irás’ disse Auzenda emfim,
E a voz, que treme, assegura:
‘Irás a teu...’—_pae_ não disse,
E um som rouco lhe murmura
Nos labios onde a meiguice,
Onde a maternal ternura
Procuram em vão surrir:
‘Irás, filha, a Dom Sisnando
E lhe dirás que...’
—‘Senhora!’
Interrompe ella chorando
—‘Que’ torna a mãe ‘quando a hora
Da meia-noite soar,
Em teu quarto o hasde esperar.
Não temas, filha, não tremas,
Não chores, minha Adozinda,
Querida filha, não gemas,
Que hasde ser feliz ainda.
No angustiado seio
Guardemos inda a esperança:
Do ceo mandada me veio
Uma ditosa lembrança
Que nos poderá salvar.
No teu leito d’ouro fino
Sou eu que me heide ir deitar;
Tua camiza de hollanda
A meu corpo heide lançar:
E quando elle nos seus braços
Ter Adozinda julgar...
Ah! que o ceo hade abençoar
Este ingano virtuoso,
E a ser pae, a ser espôso
Dom Sisnando hade voltar.’

XI
O dia em rezas passaram
Em devotas orações;
Mas quando as trevas poisaram
Sôbre as muralhas da tôrre,
Voltaram as afflicções:
E o tempo—que leve corre
Para todos os viventes—
Só áquellas innocentes
Accintoso parecia
Que da ampulheta fadada
Bago por bago espremia
Cada hora minguada.

XII
Emfim meia-noite soa:
Dom Sisnando, aguilhoado
Do torpe amor—do peccado,
Impaciente ao prazo voa
Que elle d’amor julga dado.
Como louco, arrebatado
Corre ao leito de Adozinda,
Cego bêja a face linda,
Que decerto não é d’ella,
Mas que não é menos bella;
Ao convulso peito aperta
Aquelle peito formoso...
—Desgraçado, é tempo ainda,
Do cruel sonho desperta,
Que ao precipicio horroroso
Ja te vai a despenhar!...

XIII
Dom Sisnando é criminoso
Quanto o podia ficar;
Do intento abominoso
Nada resta a consummar.
Ja tristemente acordou
De seu delirio fatal,
E surrindo amargamente,
Á infeliz assim fallou:
—‘E era por isto... innocente!
Que tanto se recatava
Tua virtude fingida?
Ah! essa alma corrompida
Mais do que teu corpo estava.
E tu...’
—Não pôde ouvir mais
A triste mãe; não lhe soffrem
As intranhas maternais
Ouvir a filha adorada
De tal modo calumniada,
E por quem, e em que momento!
C’um suffocado lamento,
Que do peito rebentando
Trouxe aos labios alma e vida,
Quebra o silencio:—‘Ah, Sisnando!
Ah, senhor, mattae-me embora;
A desgraçada sou eu.’
E a terra n’aquella hora
Rasgada não soverteu
O infeliz, que meio morto,
No abysmo do crime absorto,
D’este golpe inesperado
A violencia cedeu!

XIV
Silencio largo, mortal
Foi a unica expressão
Que por longa duração
N’aquelle estado fatal
Entre esses dous foi ouvida.
Porêm no perdido peito
De Sisnando atribulado
Foi a vergonha vencida
Pelo irritado despeito:
Dos remorsos avexado,
Porêm mais pungido ainda
De seu crime mallogrado,
Brada em cholera abrasado:
—‘Pereça a filha descrida
Que deshonrou seu...’
—_Pae_ não,
_Pae_ não ousa proferir.
A palavra, suspendida
Por fria, pesada mão
De remorso insubjugado,
Lhe voltou ao coração
A lacerar-lh’o, a vingar-se
Da mal-soffrida oppressão.

XV
—‘Ouvi-me, senhor: culpada
Sou eu só...’ a triste espôsa
Lhe diz; mas não ouve nada
Aquella alma furiosa,
Ja n’este mundo rallada
De quanta pena horrorosa
No inferno está guardada
Para crimes como o seu.

XVI
Parte, corre;—o brado horrivel
Por todo o castello soa
Tam medonho como troa
Medonho trovão d’outomno.
Despertos do brando somno
Todos são:—ordens que deu
São taes, que de horror tremeu
A gente absorta e pasmada.
Tristemente obedecendo,
Co’a face ao chão inclinada
Se vão a medo, e mal crendo
Que não seja sonho vão
O que ouvindo e vendo estão.

XVII
Do castello para um lado
Uma antiga tôrre havia
Cercada de largos fossos,
Que é memoria haver fundado
Um rei mouro que vivia
Ha muito, de quando os nossos
Mourisca gente regia.
Alli uma espôsa sua,
Que elle achou ser-lhe infiel,
Sette annos e mais um dia
Fechada a teve o cruel,
Sozinha, a grilhões e nua;
E só pão sêcco lhe dava,
Mas agua não consentia
Que nunca ninguem lh’a desse
Para que á sêde morresse.
Valeu-lhe quem tudo póde,
Que ao infeliz sempre accode:
Vinha-lhe orvalho do ceo,
De que os sette annos bebeu.
E emfim o septimo anno
De tal milagre vencido
Foi o proprio rei tyranno,
Que a liberdade lhe deu,
E do crime commettido,
Se o havia, se esqueceu.

XVIII
Para ésta tôrre deserta,
No verão ao sol exposta,
Que abrasado a queima e tosta,
No rigor do hinverno aberta
A chuvas, á ventania,
Sisnando—quem tal diria!
Mandou a filhinha linda,
Que alli fechada gemesse,
A virtuosa Adozinda!...
E ai de quem agua lhe desse,
Lhe desse vestido ou cama,
Que da sêde á morte crua
—Qual o mouro a sua dama—
Alli quer que morra nua,
De todos desemparada,
De seu pae amaldiçoada,
Só da triste mãe chorada!

XIX
Sem dar somente um gemido,
Sem se carpir nem queixar,
Como a ovelhinha tremente
Que sem dar nem um balido
Se deixa á morte levar,
Vai Adozinda innocente
Para aquella feia tôrre.
Pranto que furtivo corre
De quantos olhos a viam
A acompanha tristemente.
E o pae!... Ancias que o remordem
Ninguem as sabe nem vê.
N’um aposento incerrado,
Onde nem ao mais privado
Concedido é metter pé,
Só ficou, só permanece:
Só!—antes acompanhado
De quem os seus não esquece,
Do remorso,—do peccado.

CANTIGA QUARTA
You do me wrong, to take me out o’the grave:—
Thou art a soul of bliss: but I am bound
Upon a wheel of fire, that mine own tears
Do scald like molten lead.
SHAKSPEARE.

I
Sette annos e um dia
Foi a sentença cruel
Que Adozinda cumpriria
N’aquella tôrre fechada.
E o tyranno bem sabia
Que nem tres dias somente
Viver podia a innocente
Com a sêde, a denudez.
Uma semana é passada
Passado é um mez e outro mez,
Anno e annos decorreram;
E os sette annos feneceram
Sem que Adozinda formosa
Em tal mingua perecesse,
Sem que ao menos desmer’cesse
Em seu rosto uma só rosa.

II
Veio um dia—n’esse dia
O captiveiro acabava—
No mais alto o sol ardia
E a terra toda abrasava,
Na tôrre uma voz se ouvia,
(E é ésta a primeira vez)
Era uma voz que pedia,
Que supplicava piedade:
—‘Uma sêde, uma só d’agua,
Uma só por compaixão,
Que me abraso n’esta fragua,
Que me estalla o coração.’

III
A voz de Adozinda bella
Todos clara conheceram;
C’os olhos na alta janella
De toda a parte correram:
—‘Vive, inda vive!’ bradavam,
‘A innocente! vinde ve-la.’
E uns aos outros recontavam
Das virtudes, da paciencia
D’aquelle anjo d’innocencia
Que, ha muito, morta julgavam.
—Outra vez se torna a ouvir
O mesmo clamor sahir
Da torreada prisão:
—‘Uma sêde, uma só d’agua,
Uma só por compaixão,
Que me abraso n’esta fragua,
Que me estalla o coração!’

IV
A todos se commoveu
O mais intimo do peito,
Mas não ousam a affrontar
Do pae o sevo despeito.
—‘Tem paciencia, anjo do ceo!’
Com lagrymas responderam,
‘Que ja não póde tardar
O pae que te vem soltar.
Os sette annos decorreram,
O dia está a acabar;
Soffre mais este momento,
Que hoje acaba o teu tormento.’

V
—‘Oh! como heide eu supportar,
Amigos meus da minha alma,
Se a vida sinto acabar,
Sinto abrasar-me da calma?
Sette annos me accudiu Deus,
Que por milagre vivi,
Dava-me orvalho dos ceos,
De que sette annos bebi.
Do estio ardentes queimores
No meu corpo os não senti,
Do hinverno os frios rigores
Tambem esses não tremi.
Mas ha tres dias que a mão
Do Senhor me abandonou.
Tudo, tudo me faltou...
Oh! tende de mim piedade!
Uma sêde, uma só d’agua,
Uma só por compaixão,
Que me abraso n’esta fragua,
Que me estalla o coração!’
—De novo alto chôro ergueram,
Lastimado pranto gemem;
Mas de seu tyranno tremem,
Só a chorar se atreveram.

VI
Soa a nova no castello,
Vai correndo em derredor,
De que porfim fôra ouvido
Aquelle anjo soffredor
Soltar queixoso gemido,
Piedade emfim suppllicar.
Só a Auzenda, que expirando
No leito da morte jaz,
Para que morresse em paz
Vão a noticia occultando.
Mas soube tudo Sisnando,
E no duro coração
Ja vacilla a crueldade,
Ja vislumbra a compaixão:
Dos seccos olhos covados,
Que inspiravam medo e espanto,
Como que da mão tocados
D’algum anjo punidor,
Salta repentino o pranto,
Qual onda que estalla em flor
Sôbre o penedo ourissado.
Todo em lagrymas sanguineas
O infeliz debulhado,
Para aquella infausta tôrre
Com incerto passo corre
Em altos gritos bradando:
—‘Agua! trazei agua, vinde,
Accudi á desgraçada,
A uma filha malfadada
Que por mãos de seu pae morre!’

VII
Assim correndo e gritando
Chegava á horrivel prisão
Em que gemia Adozinda:
—‘Filha, filha, é tempo ainda;
Perdão, ó filha, perdão
Para este algoz...’—Cortou-lhe
O excesso da paixão
Lingua e fôrça; a voz quebrou-lhe,
E por morto cai no chão.

VIII
Oh! que povo se ajuntava
No castello de Landim!
E com que horror que elle olhava
Para aquelle triste fim
De tammanho cavalleiro,
Tam ricco e grande senhor,
Tam esforçado guerreiro!
A Auzenda chega o rumor
Do successo inesperado,
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - Romanceiro I: Romances da Renascença - 4
  • Parts
  • Romanceiro I: Romances da Renascença - 1
    Total number of words is 4432
    Total number of unique words is 1717
    31.2 of words are in the 2000 most common words
    45.2 of words are in the 5000 most common words
    52.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Romanceiro I: Romances da Renascença - 2
    Total number of words is 4185
    Total number of unique words is 1739
    31.7 of words are in the 2000 most common words
    45.3 of words are in the 5000 most common words
    52.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Romanceiro I: Romances da Renascença - 3
    Total number of words is 3875
    Total number of unique words is 1461
    32.0 of words are in the 2000 most common words
    45.1 of words are in the 5000 most common words
    53.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Romanceiro I: Romances da Renascença - 4
    Total number of words is 4073
    Total number of unique words is 1769
    25.5 of words are in the 2000 most common words
    35.6 of words are in the 5000 most common words
    40.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Romanceiro I: Romances da Renascença - 5
    Total number of words is 4134
    Total number of unique words is 1543
    35.3 of words are in the 2000 most common words
    48.4 of words are in the 5000 most common words
    54.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Romanceiro I: Romances da Renascença - 6
    Total number of words is 4194
    Total number of unique words is 1668
    27.2 of words are in the 2000 most common words
    36.0 of words are in the 5000 most common words
    39.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Romanceiro I: Romances da Renascença - 7
    Total number of words is 4055
    Total number of unique words is 1555
    19.1 of words are in the 2000 most common words
    24.8 of words are in the 5000 most common words
    27.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Romanceiro I: Romances da Renascença - 8
    Total number of words is 4121
    Total number of unique words is 1672
    30.3 of words are in the 2000 most common words
    41.5 of words are in the 5000 most common words
    47.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Romanceiro I: Romances da Renascença - 9
    Total number of words is 1522
    Total number of unique words is 727
    39.5 of words are in the 2000 most common words
    51.3 of words are in the 5000 most common words
    57.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.