Romanceiro I: Romances da Renascença - 1

Total number of words is 4432
Total number of unique words is 1717
31.2 of words are in the 2000 most common words
45.2 of words are in the 5000 most common words
52.5 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.


OBRAS
DO
V. DE ALMEIDA GARRETT
IV
(PRIMEIRO DO ROMANCEIRO)


ROMANCEIRO
PELO
V. DE ALMEIDA GARRETT
I
ROMANCES DA RENASCENÇA
QUINTA EDIÇÃO
LISBOA
IMPRENSA NACIONAL
1875


NA TERCEIRA EDIÇÃO

Publicamos emfim ésta nova edição da primeira parte do ROMANCEIRO que
vai muito superior ás antecedentes, tanto pela correcção como pelos
addicionamentos importantes que leva.
A de Londres de 1828 continha apenas a Adozinda e o Bernal-francez; a de
Lisboa de 1843 ja lhe accrescentou mais quatro romances; na presente ha
oito, alêm das novas traducções em várias linguas que n’este intervallo
se teem publicado pela Europa. Não são todas porém, e ja muitas das mais
notaveis versões appareceram colligidas no appendice do terceiro volume
da presente obra publicado em 1851; outras o tinham sido no segundo
junctamente com os originaes portuguezes primitivos que o nosso auctor
reconstruíra.
A sua predilecção por éstas reliquias da antiga poesia peninsular tem
feito com que, desde a infancia até hoje, tenham ellas sempre sido a
occupação das suas ‘Horas de lazer’—‘_Hours of idleness_’ segundo a
frisante expressão de Lord Byron; um quasi mialheiro poetico em que por
intervallos, mas sempre, se vão deitando pequenas quantias até que chegam
a formar um thesouro. Este é ja um verdadeiro thesouro para os que sabem
avaliar a riqueza de uma lingua e de uma litteratura.
No meio dos trabalhos mais graves, das contrariedades mais apertadas
da vida pública, o auctor não se tem esquecido do seu mialheiro, que,
tornâmos a dizê-lo, para nós é thesouro riquissimo. Se ainda assim o não
julga Portugal, saiba ao menos que essa é a opinião da Europa.
Julho 8, 1853.
OS EDITORES.


NA SEGUNDA EDIÇÃO

Depois que publiquei em Londres, em 1828, o meu romancinho a
_Adozinda_ que aqui vai na frente d’este volume, cheguei a ter uma
bastante collecção d’essas trovas e romances populares, xácaras e
soláos—designações que, sinceramente confesso, não sei ainda quadrar bem
nas diversas especies e variedades em que se divide o genero.
Eram uns vinte e tantos havidos pela tradição oral do povo, quasi todos
colligidos nas circumvizinhanças de Lisboa pela indústria de amigos
zelosos, e principalmente pelo obsequioso cuidado de uma joven senhora
minha amiga muito do coração.
Por voltas do anno seguinte, 1829, os tinha eu pela maior parte
correctos, annotados,—e collacionadas as principaes das infinitas
variantes que todos trazem, porque cada rhapsodista d’estes que sabe a
sua xácara, a repette a seu modo, e sempre differente em alguma coisa do
que outro a diz.
Cresceram logo mais os meus haveres pela contribuição de outro amigo
tambem muito particular e muito prezado, o Sr. Duarte Lessa, homem de
raras e prestantes qualidades que amenizava a constante applicação a
mais graves estudos, cultivando a litteratura e as artes, cujas obras
appreciava com tacto finissimo e zelava com fervor patriotico, porque
intendia—e bem o intendia!—que ellas são o espirito, a alma, o _in ipso
vivimus et sumus_ de uma nação. Tinha elle adquirido em Londres varios
livros e manuscriptos que haviam sido do célebre portuguez o cavalheiro
de Oliveira, aquelle que renunciou ao importante cargo de nosso ministro
na Haya para abraçar a communhão protestante, na qual viveu em Inglaterra
os ultimos annos da sua vida, quasi unicamente da charidade de seus novos
correligionarios.
Havia entre esses livros um exemplar da Bibliotheca de Barboza,
inquadernados os tomos com folhas brancas de permeio, e escriptas éstas,
assim como as amplas margens do folio impresso, de lettra muito miuda,
mas muito clara e legivel, com annotações, commentarios, emendas e
addições aos escriptos do nosso douto e laborioso mas incorrecto abbade.
Via-se por muitas partes que o longo trabalho do Oliveira fôra feito
depois da publicação das suas _Memorias_, porque a miudo se referia
a ellas, confirmando e ampliando, corrigindo ou retractando o que lá
dissera.
Nos artigos _D. Diniz_, _Gil-Vicente_, _Bernardim-Ribeiro_, _Fr. Bernardo
de Brito_, _Rodrigues-Lobo_, _D. Francisco-Manuel_, e em varios outros
que vinha a proposito, as notas manuscriptas citavam, e transcreviam como
illustração, muitas coplas, romances e trovas antigas—e até prophecias,
como as do Bandarra—fielmente copiadas, asseverava elle, de Mss. antigos
que tivera em seu poder na Hollanda e em Portugal, franqueados uns por
judeus portuguezes das familias emigradas, outros havidos das preciosas
collecções que d’antes se conservavam com tão louvavel cuidado nas
livrarias e cartorios dos nossos fidalgos.
Foi-me logo confiada a inextimavel descuberta; percorri com avidez
aquellas notas, examinei-as com escrupulosa attenção, e, extractando
uma por uma quantas coplas, cantigas e xácaras achei, completas e
incompletas, accrescentei assim os meus haveres com umas cinquenta e
tantas peças, d’ellas anonymas e verdadeiramente tradicionaes, d’ellas
de auctor conhecido e que nas edições de suas obras se incontram,—taes
como Bernardim-Ribeiro, Gil-Vicente e Rodrigues-Lobo—mas que differiam
das impressas, consideravelmente ás vezes, muitas até na linguagem da
composição, poisque algumas alli achei em portuguez, e manifestamente
antigo e da respectiva epocha, as quaes só andam impressas em castelhano.
Com este auxilio corrigi denovo muitos dos exemplares que ja tinha, e
completei alguns fragmentos que ja desesperára de podêr vir nunca a
restaurar. E tomando para modêlo as estimadas collecções de Elis e do
bispo Percy, e a das fronteiras de Scocia por Sir Walter Scott, comecei
a dar novo methodo e mais amplos limites á minha compilação que ao
principio intitulára _Romanceiro-Portuguez_.
O longo e mais serio trabalho que por esse tempo emprehendi no meu
tractado geral _Da Educação_, cujo primeiro volume se publicou em Londres
em 1829, me fez relaxar n’aquell’outro: depois os cuidados politicos e
alguns officiaes, o complemento e impressão de outra obra de mais grave
assumpto, o _Portugal na Balança da Europa_, que foi impresso no anno
seguinte, 1830,—talvez alguma inconstancia de auctor, bem desculpavel
n’aquella tarefa, tam tediosa ás vezes, de collacionar, estudar e
explicar textos ja viciados da ignorancia do vulgo por cujas bôccas e
memorias andaram, ja de outra ignorancia mais confiada e mais corruptora
ainda, a de copistas presumpçosos de lettrados e de castigadores do que
elles suppoem vício.
Comtudo, e apezar d’aquellas e de outras occupações e distracções, eu
sempre voltava de vez em quando ao meu _Romanceiro_, e o tinha bastante
adeantado, quando nos fins de 1831 abandonei tudo o que eram cuidados
de sciencia ou recreações litterarias para me alistar no exercito da
Rainha, e imbarcar para os Açores. Em Janeiro de 1832 sahi de París com
praça de simples soldado, consegui por este modo tomar minha humilde
parte n’aquella expedição, cujos avisados e cautelosos directores com
tanto impenho afastavam toda a gente conhecida de verdadeira liberal,
por todos os modos, por modos que hãode parecer incriveis, e que elles
hoje negariam a pés junctos, se fosse possivel negar o de que ha tantas
testimunhas e tantas victimas ainda vivas, tantos documentos que hãode
durar mais que ellas.
A minha curta estada nas ilhas foi impregada quasi toda nos trabalhos
de legislação e organização administrativa a que alli se procedeu, e de
que me encarregou a amizade e confiança de um amigo particular, então
em grande valimento, ao qual e á dura necessidade de me achar eu unico
alli que tivesse estudado aquellas materias, teve de ceder forçosamente
a ciosa malevolencia dos accaparadores que ja na esperança estavam
devorando as ruinas de Portugal a que almejavam chegar—pelos esforços e
risco alheio—não porcerto para meditar sôbre ellas como outros Marios—oh
que Marios!—mas para as revolver e basculhar como Alaricos...
Faziam-me a honra de me querer mal esses senhores: lisongeio-me de lh’o
merecer: davam-se ao incómmodo de me intrigar; e era desperdicio de tempo
e de arte, porque não ha mister intrigas para tirar favor de principes
a quem, como eu, os apprecia muito e se honra muito d’elles, mas não é
capaz de fazer o mais leve sacrificio para os conservar; jamais soube, em
tantas opportunidades, convertê-los em nenhuma _consequencia legítima_;
nunca, nem o mais indirectamente que é possivel, tractou de os consolidar
em nenhuma realidade utilitaria e de proveito pessoal.
Peço perdão da digressão: não a fiz eu mas as coisas,—que pelos tempos
em que vivemos tam baralhado anda tudo, que até a historia litteraria e
poetica se confunde com a dos successos e relações politicas.
D’esse tam pouco e tam occupado tempo permittiu comtudo o accaso
que alguns instantes se podessem approveitar em beneficio do pobre
_Romanceiro_, que alli ia tambem, o coitado, na expedição, incolhido
e amarrotado na mochilla de um triste soldado raso, sem se lembrar de
aspirar á inaudita honra de seu illustre predecessor, o Cancioneiro de
Rezende, que serviu de Evangelho para jurar aquelle rei gentio.—Havia
pouco por alli quem lhe importasse com Evangelhos e juramentos.
Foi o caso que umas criadas velhas de minha mãe e uma mulata brazileira
de minha irman appareceram sabendo varios romances que eu não tinha,
e muitas variadas licções de outros que eu sim tinha, porêm mais
incompletos. Assim se additou copiosamente o meu _Romanceiro_.
Mas este achado fez mais do que inriquecer, salvou-o: porque, ao partir
para San’Miguel, o deixei em Angra com minha mãe que Deus tem em glória,
que desejava distrahir, com essas curiosidades que ella intendia e
avaliava com o tacto perfeito e a sensibilidade elegantissima de que
era dotada, alguma hora das tantas em que ja lhe pesavam duramente
as molestias do último quartel da vida... Molestias aggravadas de
muita afflicção e cuidado—nenhum que seus filhos voluntariamente lhe
dessem—todos a adorámos e honrámos sempre—mas que lhe davamos, comtudo,
pelas circumstâncias fataes da epocha e das confusões politicas em que
andavamos mettidos.
Os meus outros papeis, trabalhos de historia consideraveis, fructo
de longas visitas ao Museu-Real de Londres e á riquissima livraria
portugueza do meu amigo o Sr. Goodeen; uma tragedia que tinha sido
julgada valer alguma coisa pelos que a viram—era o assumpto o
Infante-Sancto em Fez;—um largo poema com pretenções, antes desejos,
de ser Orlando, ja em trinta e tantos cantos—e promettia crescer!—cujo
assumpto era o _Magriço_ e os seus _Doze_;—o segundo volume do tractado
_Da Educação_ prompto a entrar no prélo:—quatro livros ou cantos de um
romance ou poema—cabia-lhe uma e outra designação—a que dava thema a
interessante e romanesca legenda da fundação da casa de Menezes—pedido
de minha boa irman que decerto não tinha vaidade, porque sempre lhe
sobrou o juizo, mas gôsto sim, de que seus filhos se honrassem com o
nome illustre de seu pae:—uma quantidade immensa de estudos e trabalhos
sôbre administração pública;—tudo isso veio commigo para S. Miguel e ahi
o deixei ao imbarcar, porque era defeso ao pobre soldado levar as suas
mallas, e o logar era pouco para as bagagens dos que só eram bagagem.
D’ahi me vinha, com outros valores mais substanciaes, e se perdeu tudo
em um navio que affundaram as ballas inimigas á entrada do Porto nos
derradeiros dias d’esse mesmo anno de 1832.
Descancem em paz no amigo lodo do meu patrio rio! N’outros lodaçaes
peiores teriam de cahir talvez se escapassem: o da indifferença pública
que porventura mereciam, o de muitos odiosinhos e invejasinhas tolas que
não mereciam decerto, porque eram filhos de bom e innocente ânimo, como
sempre têem sido os meus.
Assim fossem todos!
Desde 1834, que me voltou a Lisboa o milagrosamente escapado
_Romanceiro_, ainda não passei verão que lhe não désse algumas das horas
descuidadas que n’aquella quadra ou se hãode dar a éstas occupações
mais leves ou a nenhumas. E n’estes oito annos tem-se locupletado
consideravelmente com as contribuições de muitos amigos e benevolentes
a alguns dos quaes nem posso ter o gôsto de agradecer aqui o favor
recebido, porque incitados pela leitura da _Adozinda_, me remetteram
anonymamente pelo correio o fructo de suas colheitas. A principal parte
de um bello romance, um dos mais bellos que jamais vi em collecção alguma
nacional ou extrangeira e que hoje inriquece o meu Romanceiro, assim me
foi mandada, creio que do Minho. Outro fragmento que vinha nos respigos
ajunctados n’esta ceara pelo nosso insigne poeta o Sr. A. F. de Castilho,
e que elle teve a bondade de me confiar, veiu dar-lhe o complemento que
faltava e restituir á perfeição em que hoje está. É um romance de origem
visivelmente franceza, se provençal ou normanda não me atrevo a decidir,
em que se conta—um tanto diversa das chronicas antigas e do elegante
poema de _Millevoix_, a historia do secretario Eginard e da muito bondosa
filha de seu senhor e amo o poderoso imperador Carlos-Magno. Os nossos
Scaldos vulgares lem hoje... não lem tal, mas repettem _Gerinaldo_,
corrupção do que ao principio foi Eginaldo, adoçados em _ll_ os _rr_
francezes, como se fez em Giraldo, Reginaldo, antigamente em Bernal e
Bernaldo, e em outros muitos nomes que de la vieram tam duros ou mais.
Mencionei este exemplo entre muitos por cahir em coisa notavel, e para se
ajuizar dos outros.
Mr. Pichon, bem conhecido em Lisboa, que foi ultimamente consul francez
no Porto e agora creio que em Barcelona, tinha começado a formar em
1832-33 uma pequena colecção de xácaras portuguezas de que tambem me
approveitei. Mas o incançavel collector a quem mais obrigações devi em
Portugal foi o meu condiscipulo o Sr. Dr. Emygdio Costa, advogado n’esta
côrte e ha pouco fallecido, que generosamente me confiou a sua larga
collecção principalmente feita nas duas Beiras, n’aquelle verdadeiro
coração e amago do Portugal primitivo que occupa a região d’entre Lamego
e Serra d’Estrella.
O Sr. Rivara, bibliothecario em Evora, o meu velho amigo o Sr. M.
Rodrigues d’Abreu, bibliothecario em Braga, o meu antigo e fiel
companheiro o Dr. J. Eloy Nunes-Cardoso, de Montemor-o-Novo, com
assentamento dobrado, como diria um _bel esprit_, um _dos cultos_ de
Seiscentos, na Casa Real d’Apollo, por doutor e trovador tambem,—todos
estes cavalheiros me têem ajudado com indicações, livros, folhetos
antigos e cópias laboriosamente escriptas sob o dictar dos rusticos
depositarios das nossas tradições populares.
Os trabalhos e recopilações de D. Agustin Duran sôbre os cancioneiros e
romanceiros castelhanos, obra publicada em Madrid em 1832, mas que só por
aqui chegou cinco ou seis annos depois, veiu illustrar-me em muita dúvida
e ajudar-me a classificar muita coisa difficil. A nova e augmentada
edição do Sr. Ochoa, impressa em París em 1838, e que mais depressa nos
trouxe a mais habitual conversação e commercio litterario que temos com
a França, algum tanto me auxiliou tambem. A traducção elegante de Mr.
Lockart que n’aquella tam linda e fastosa edição de Londres de 1841 deu
á lingua e á nação ingleza a mais poetica e romantica idea que jamais
será possivel dar a um povo extranho e em idioma extranho das immensas
riquezas do Nibelungen peninsular, mais que nenhuma coisa me inspirou e
animou no meu trabalho, porque é um documento, um monumento grandioso
da extraordinaria importancia e valia que este genero de coisas está
merecendo á Europa culta.
O Sr. Herculano, bibliothecario da Real bibliotheca da Ajuda, com cuja
provada amisade me honro tanto quanto a nação deve gloriar-se de seus
escriptos, tambem me tem ajudado não pouco com os preciosos achados
que, no seu incessante lavrar das minas archeologicas, tem incontrado
e repartido commigo. Por seu favor tornei a examinar, no Ms. original,
o famoso cancioneiro ditto do Collegio dos Nobres, hoje na bibliotheca
Real; e com éstas e com as collecções allemans e francezas, e creio que
com quasi todas as dos povos do Norte, tenho collacionado as nossas
rhapsodias populares, muitas das quaes, por este modo vim a conhecer
visivelmente, que tinham a mesma commum origem. Os eruditos trabalhos de
Mr. Raynouard sôbre a lingua romance ou provençal me allumiaram muita vez
n’esta obscura e inredada tarefa.
A interessante e conscienciosa memoria do Dr. Bellermann impressa em
Berlim em 1840, e o conhecimento de que a sociedade alleman para a
reimpressão dos livros raros estava publicando em portuguez o nosso
Cancioneiro de Rezende; o interêsse geral que hoje se tem desenvolvido
no mundo pela litteratura popular das nações modernas e especialmente das
nossas peninsulares—interêsse que, porfim e emfim, hade vir a reflectir
em nós tambem, e despertar-nos para abrir os olhos ás riquezas proprias,
ainda que não seja senão pelas ver tam prezadas de extranhos—os conselhos
e rogos do meu particular amigo e quasi compatriota nosso, o sr. João
Adamson, tudo isto me fez alargar mais o plano da minha obra e collecção.
Resolvi, sob nova denominação de _Romanceiro e Cancioneiro-Geral_[1],
reunir todos os documentos que eu podesse para a historia da nossa poesia
popular, desde onde memorias ou conjecturas ha, até á epocha actual,
acompanhando-os de explicações e glossas, que vão servindo de nexo, que
sejam como a liaça, o nastro que áte estes pergaminhos.
Quem não tem olhado senão á superficie da nossa litteratura, quem cego do
brilho classico das nossas tantas epopeas, seduzido pela flauta magica
dos nossos bucolicos, enthusiasmado pelo estro tam ricco e variado dos
innumeraveis poetas que, nos quartetos e tercetos sicilianos da elegia,
da epistola e do soneto, rivalizam, e tantas vezes luctam de vantagem,
com o proprio Petrarcha: quem, sôbre tudo—porque n’esse genero é a musa
portugueza superior á de todas as linguas vivas—adora em Sá-de-Miranda,
Ferreira, Diniz, Garção e Filinto o genio redivivo de Horacio e de
Pindaro—não crê, não suspeita, hade ficar maravilhado de ouvir dizer,
como eu quero dizer e provar no presente trabalho, que ao pé, por baixo
d’essa aristocracia de poetas, que nem a viam talvez, andava, cantava,
e nem com o desprêzo morria, outra litteratura que era a verdadeira
nacional, a popular, a vencida, a tyrannizada por esses invasores gregos
e romanos, e que a todos os esforços d’elles para lhe oblitterarem e
confundirem o character primitivo, resistia na servidão com aquella fôrça
de inercia com que uma raça vencida, com que a população aborigine de um
paiz resiste a igual impenho de seus conquistadores que lhe usurparam
a dominação, e que, seculos e seculos depois, quando esses já não são,
ou não cuidam ser, senão uma casta privilegiada e patriciana, reagem
fortes aquell’outros com o que seus proprios senhores lhes insinaram,
regenerados por seu longo martyrio, e extirpam muitas vezes, mas
geralmente se contentam de avassallar, os seus antigos oppressores.
É a historia de todos os povos, e por consequencia de todas as
litteraturas.
É a historia litteraria de Portugal no segundo quartel d’este seculo: é o
que foi ésta reacção vulgarmente chamada romantica, mas que não fez mais
do que trazer a _renascença_ da poesia nacional e popular. Nenhuma coisa
póde ser nacional se não é popular.
Aqui está o porquê, o como e o paraquê fiz a collecção de que este volume
é a primeira parte, ou mais exactamente a introducção, e que apenas
contêm o que eu, á mingua de melhor nome, designarei com o titulo de
_Romances da renascença_: são os que resuscitei e como que traduzi das
quasi apagadas e mutiladas inscripções que desinterrei da memoria dos
povos.
Os textos originaes d’estes, restituidos quanto é possivel, os de muitos
outros que appareceram menos imperfeitos na mesma excavação, muitissimos
que se têem achado em livros e papeis desprezados hoje, e em collecções
Mss., estão promptos, classificados, annotados, e sahirão em seguimento
d’este volume, apenas o permittam as difficuldades, sempre recrescentes
em Portugal, de se publicar qualquer coisa.
Eu tenho posto termo, ou pelo menos suspensão indefinida a toda a
occupação litteraria propriamente ditta, para absolutamente me dedicar,
em quanto posso e valho, á conclusão de um trabalho antigo, mas
interrompido muitas vezes, que agora jurei acabar; são _Vinte annos da
historia de Portugal_, periodo que começa em 1820 e chega aos dias de
hoje, mas que não sei se ja anda mais inredado e confuso do que o dos
mais antigos e obscuros seculos da monarchia.
Espero começar a publicá-lo no fim d’este anno[2]; e nenhum tempo ou
logar me sobrará portanto para mais nada. O _Romanceiro_ porêm e _Fr.
Luiz de Sousa_ estão promptos a entrar no prelo e, quanto é por minha
parte, não farão esperar o público.
Lisboa, 12 de Agosto de 1843.


ROMANCEIRO
LIVRO PRIMEIRO


I
ADOZINDA

AO SR. DUARTE LESSA[3]
Eis-ahi vai, meu amigo, o romance em que lhe fallei n’uma das minhas
últimas cartas de Portugal. Estava quasi todo copiado; e aqui nem
paciencia nem tempo me chegavam para as muitas correcções e alterações
que elle precisava; por limar lhe vai, e por limar irá para a imprensa:
tanto melhor para quem gostar de dizer mal, que não lhe faltará de quê.
Creio que é ésta a primeira tentativa que ha dous seculos se faz em
Portuguez de escrever poema ou romance, ou coisa assim de maior
extenção, n’este genero de versos pequenos, _octosyllabos_, ou de
redondilha como lhe chamavam d’antes os nossos. No meu resummo da
historia da lingua e da poesia portugueza, que vem no primeiro volume do
_Parnaso-Lusitano_ impresso ultimamente em París,—a so coisa minha que ha
n’aquella collecção, porque assim na escolha das peças, como na ordem e
systema da obra me transtornaram e me inxovalharam tudo com notas pueris,
ridiculas, e até malcreadas algumas,—n’esse resummo toquei de leve, e em
tudo o mais, sôbre a belleza d’estes nossos versos _octosyllabos_, que
nos são proprios a nós hespanhoes, tanto portuguezes como castelhanos, e,
para certos assumptos e certos generos de poesia, mais adequados do que
nenhuma outra especie de rhythmo. Boscan gaba-se de haver introduzido na
Peninsula os metros toscanos: hoje está averiguado com certeza que não
foi comeffeito elle o primeiro que nas duas linguas cultas das Hespanhas
compoz dos taes versos hendecasyllabos; mas é certo e alêm de toda a
dúvida que do tempo de Boscan e de Garcilasso em Castella, e logo de
Sá-de-Miranda e Ferreira em Portugal, começaram aquelles nossos metros
primitivos a cahir em mais desuso, a não se impregarem senão em certo
genero de poesia ligeira ou, segundo lhe os Francezes chamam, _fugitiva_.
Francisco Rodrigues-Lobo e muito depois D. Francisco Manuel-de-Mello
ainda n’elles fizeram romances historicos; Violante do Ceo muitas das
suas lindas e agora tam mal appreciadas poesias; ainda se fizeram
posteriormente eglogas, e o que os poetas da Phenix-renascida e os
campanudos vates das mil e uma academias do seculo XVII e XVIII chamavam
_romances_—que certamente não eram o que hoje strictamente se intende
por este nome. Em tempos mui posteriores felicissimamente os reviveu
o nosso grande e incomparavel Tolentino na satyra, e no tam faceto e
delicadissimo seu proprio e privativo genero da poesia _de sociedade_.
A nossa poesia primitiva e eminentemente nacional, a que do principio
e, para assim dizer, do primeiro balbuciar da nossa lingua, nos foi
commum com todos os outros povos que mais ou menos tiveram communhão
com a lingua provençal, primeira culta da Europa depois da invasão
septentrional, foi seguramente o romance historico e cavalheresco,
ingenua e ruda expressão do enthusiasmo de um povo guerreiro. Logo
vieram esses trovadores de Provença e nos insinaram modos mais cultos
porêm menos originaes e menos cunhados do sêllo popular: era coisa mais
de côrte. E como tal não pôde absorver, senão modificar, o que brotára
spontaneamente do natural da terra. Mas as duas feições ficaram ambas, e
deram assim á poesia portugueza um character talvez unico no mundo,—nas
Hespanhas decerto.
Em geral a poesia da meia-edade, singela, romanesca, apaixonada, de uma
especie lyrica-romantica que não tem typo nos poetas antigos, comquanto
deixou seu cunho impresso no caracter das linguas e poesias modernas de
todo o sul e occidente da Europa, não teve comtudo imitadores nem se
cultivou e apperfeiçoou nunca mais, quasi desde o completo triumpho dos
classicos, senão agora recentemente depois que as balladas de Bürger,
os romances poeticos de Sir W. Scott e alguns outros ensaios inglezes
e allemães, mas principalmente os do famoso escocez, introduziram este
gôsto e o fizeram _da moda_. Fatigados do grego e romano em architecturas
e pinturas, começámos a olhar para as bellezas de Westminster e da
Batalha; e o appetite imbotado da regular formosura dos Pantheons e
Acropolis, começou, por variar, a inclinar-se para as menos classicas
porêm não menos lindas nem menos elegantes fórmas da architectura e da
sculptura gothica.
Succedeu exactamente o mesmo com a poesia: infastiados dos Olympos e
Gnidos, saciados das Venus e Apollos de nossos paes e avós, lembrámo’-nos
de ver com que maravilhoso infeitavam suas ficções e seus quadros
poeticos nossos bis e tres-avós; achámos fadas e genios, incantos e
duendes,—um stylo differente, outra face de coisas, outro modo de ver,
de sentir, de pintar, mais livre, mais excentrico, mais de phantasia,
mais irregular, porêm em muitas coisas mais natural. O antiquado
agradou por novo, o obsoleto entrou em moda: arte mais fina, gôsto
mais delicado e de ingenhos mais cultos o soube impregar habilmente,
‘decalcar n’outra civilização.’ A poesia romantica, a poesia primitiva,
a nossa propria, que não herdámos de Gregos nem Romanos nem imitámos de
ninguem, mas que nós modernos creámos, a abandonada poesia nacional das
nações vivas resuscitou bella e remoçada, com suas antigas galas porêm
melhor talhadas, com suas feições primeiras porêm mais compostas. É a
mesma selvatica, ingenua, caprichosa e aeria virgem das montanhas que se
appraz nas solidões incultas, que vai pelos campos allumiados do pallido
reflexo da lua, involta em veos de transparente alvura, folga no vago
e na incerteza das côres indistinctas que nem occulta nem patenteia o
astro da noite;—a mesma beldade mysteriosa que frequenta as ruinas do
castello abandonado, da tôrre deserta, do claustro coberto de hera e
musgo, e folga de cantar suas endeixas desgarradas á bôcca de cavernas
fadadas—por noite morta e horas aziagas. É a mesma sem dúvida: porêm
o gôsto mais puro e fino de seus adoradores, sem alterar a lithurgia,
modificou os ritos e os accommodou para espiritos e ouvidos costumados
aos hymnos, menos variados porêm mais cadentes, da antiguidade classica.
Não ficou menos natural nem menos nacional, porêm muito mais amavel e
incantadora a nossa poesia primitiva assim resuscitada agora.
Muito antes do nomeado escocez ja tinha havido tentativas para
nacionalizar a poesia moderna e a libertar do jugo da theogonia
d’Hesiodo:—mas a propria e verdadeira restauração da poesia dos
trovadores e menestreis, sem questão nem disputa, só W. Scott a fez
popular e geral na Europa.—Com ella se restauraram tambem os metros
simples e curtos que mais naturaes são ao stylo cantavel, essencial ás
composições d’aquelle genero.
Depois de muitas tentativas, de exame longo e reflectido, eu por mim
convenci-me de que o metro proprio e natural de nossa lingua para
este genero de poesia, e para todos os generos populares, não era o
hendecasyllabo, o que dizemos vulgarmente heroico. Os portuguezes são
uma nação poetica, a sua lingua naturalmente se presta e spontanea se
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - Romanceiro I: Romances da Renascença - 2
  • Parts
  • Romanceiro I: Romances da Renascença - 1
    Total number of words is 4432
    Total number of unique words is 1717
    31.2 of words are in the 2000 most common words
    45.2 of words are in the 5000 most common words
    52.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Romanceiro I: Romances da Renascença - 2
    Total number of words is 4185
    Total number of unique words is 1739
    31.7 of words are in the 2000 most common words
    45.3 of words are in the 5000 most common words
    52.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Romanceiro I: Romances da Renascença - 3
    Total number of words is 3875
    Total number of unique words is 1461
    32.0 of words are in the 2000 most common words
    45.1 of words are in the 5000 most common words
    53.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Romanceiro I: Romances da Renascença - 4
    Total number of words is 4073
    Total number of unique words is 1769
    25.5 of words are in the 2000 most common words
    35.6 of words are in the 5000 most common words
    40.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Romanceiro I: Romances da Renascença - 5
    Total number of words is 4134
    Total number of unique words is 1543
    35.3 of words are in the 2000 most common words
    48.4 of words are in the 5000 most common words
    54.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Romanceiro I: Romances da Renascença - 6
    Total number of words is 4194
    Total number of unique words is 1668
    27.2 of words are in the 2000 most common words
    36.0 of words are in the 5000 most common words
    39.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Romanceiro I: Romances da Renascença - 7
    Total number of words is 4055
    Total number of unique words is 1555
    19.1 of words are in the 2000 most common words
    24.8 of words are in the 5000 most common words
    27.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Romanceiro I: Romances da Renascença - 8
    Total number of words is 4121
    Total number of unique words is 1672
    30.3 of words are in the 2000 most common words
    41.5 of words are in the 5000 most common words
    47.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Romanceiro I: Romances da Renascença - 9
    Total number of words is 1522
    Total number of unique words is 727
    39.5 of words are in the 2000 most common words
    51.3 of words are in the 5000 most common words
    57.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.