Romanceiro I: Romances da Renascença - 2

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offerece ás fórmas e cadencias metricas; os nossos mais rudos camponezes
improvisam em seus serões e festas com uma facilidade que deve de
espantar os extrangeiros: mas observe-se que o metro d’estes improvisos é
sempre sem excepção alguma o de redondilha de oito syllabas, rara vez o
da endexa; acaso farão os versos compostos visivelmente de dois metros,
isto é, os alexandrinos ou dittos de arte-maior. A causa é óbvia; aquella
é a medição mais natural que lhes offerece a musica da lingua.
Entre as canções antiquissimas conservadas nos dois cancioneiros, o do
Collegio dos Nobres (impresso por Sir Charles Stuart em París) e o de
Rezende, ha muita variedade de metros; mas outras poesias mais antigas,
os romances populares ou _xácaras_, que por tradição immemorial se
conservam entre o povo, principalmente nas aldeias, todos são no metro
octosyllabo ou em endexas. Logo direi aqui alguma coisa mais de vagar
sôbre éstas curiosissimas, e tam desprezadas mas tam interessantes,
reliquias da nossa archeologia.
O genero romantico não é coisa nova para nós. Não fallo em relação aos
primeiros seculos da monarchia: restam-nos ainda _specimens_ das canções
que não serão talvez de Gonçalo Hermigues, de Egas Moniz, d’elrei D.
Pedro Cru, mas são antiquissimos documentos de certo. As trovas dos
Figueiredos, apezar do tam suspeito testimunho de Fr. Bernardo de Brito,
creio, por convicção intima, que são das mais antigas composições
poeticas da lingua que chegaram até nós. Não alludo porêm a epochas
tam remotas e incultas. Depois de introduzido o gôsto classico por
Sa-Miranda, e Ferreira principalmente, depois de esquecidas as graças
singellas de Bernardim Ribeiro pelos mais ataviados primores de Camões
e Bernardes, ainda então houve quem de vez em quando deixasse a lyra
de Horacio e a frauta de Theocrito para tocar o alahude romantico dos
menestreis. O proprio auctor dos Lusiadas nas canções, que, depois
d’aquella, são sua melhor composição, para meu gôsto, n’essas canções
tam bellas e tam profundamente sentidas, tam repassadas de melancholia
suavissima, em alguns episodios dos mesmos Lusiadas, foi todo romantico,
e felicissimamente o foi. Francisco Rodrigues-Lobo, segundo ja
observei, em muitas das pequenas peças que se incontram dispersas pelo
_Pastor-peregrino_, pela _Primavera_, e nos seus romances moiriscos
e historicos, é eminentemente romantico. Tal é Jeronymo Cortereal no
_Naufragio-de-Sepulveda_, quando o deixam com a natureza e lhe permittem
ter _senso commum_ as loucuras mythologicas com que perdeu tam bem
escolhido assumpto, tam bellas scenas.
Deixando outros muitos, dos quaes o menor exame facilmente mostrará o
mesmo, citarei aquelle romancesinho de Gaia e do rei Ramiro, que V.
descobriu em Londres com o precioso achado dos papeis e livros do nosso
infeliz Oliveira.
Depois que, na extincção dos Jesuitas, e pelos esforços da benemerita
Arcadia se restauraram as bellas-letras e a lingua, e o verdadeiro gôsto
poetico affugentou os _acrostichos_ e os _labyrintos_ seiscentistas, o
genero classico resuscitou mais puro e tam bello nas lyras do elegante
e puro Garção, do altissonante Diniz, do sublime Filinto, do numeroso
Bocage, do classico Ribeiro-dos-Sanctos, do ingenuo Maximiano Tôrres,
do galantissimo Tolentino, do philosopho Caldas; mas o genero romantico
injustamente involvido na proscripção do seiscentismo, esse desprezado
e perseguido, ninguem curou d’elle, julgaram-n’o sem o intender,
condemnaram-n’o sem o ouvir.
No meu poemasinho do Camões aventurei alguns toques, alguns longes de
stylo e pensamentos, annunciei, para assim dizer, a possibilidade da
restauração d’este genero, que tanto tem disputado na Europa litteraria
com aquelloutro, e que hoje coroado dos louros de Scott, de Byron e de
Lamartine vai de-par com elle, e, não direi vencedor, mas tambem não
vencido.
D. Branca, essa mais decididamente entrou na lice, e com o alahude do
trovador desafinou a lyra dos vates; outros dirão, não eu, se com feliz
ou infeliz successo.
Não é portanto, em nenhum sentido, novo hoje para a litteratura
portugueza o genero romantico, nem me appresento agora com este meu
romancesinho ao público portuguez a pedir privilegio de invenção ou
patente de introducção. Se reclamo aqui prioridade é somente em ter
instaurado as antigas e primitivas fórmas metricas da lingua em uma
especie de poesia que tambem foi a primitiva sua, e ao menos a mais
antiga de que tradição nos chegou.
De pequeno me lembra que tinha um prazer extremo de ouvir uma criada
nossa, emtôrno da qual nos reuniamos nós os pequenos todos da casa, nas
longas noites de hinverno, recitar-nos meio cantadas, meio rezadas,
éstas xácaras e romances populares de maravilhas e incantamentos, de
lindas princezas, de galantes e esforçados cavalleiros. A monotonia do
canto, a singelleza da phrase, um não-sei-quê de sentimental e terno e
mavioso, tudo me fazia tam profunda impressão e me inlevava os sentidos
em tal estado de suavidade melancholica, que ainda hoje me lembram como
presentes aquellas horas de gôso innocente, com uma saudade que me dá
pena e prazer ao mesmo tempo[4].
Veio outra edade, outros pensamentos, occupações, estudos, livros,
prazeres, desgostos, afflicções—tudo o que compõe a variada tea da
vida,—e da minha tam trabalhosa e trabalhada vida!—tudo isso passou; e
no meio de tudo isso, lá vinha de vez em quando uma hora de solidão e de
repouso,—e as noites da minha infancia e os romances incultos e populares
da minha terra a lembrarem-me, a lembrarem-me sempre.
Lendo depois os poemas de Walter Scott, ou, mais exactamente, suas
novellas poeticas, as _ballads_ allemans de Bürger, as inglezas de
Burns, comecei a pensar que aquellas rudes e antiquissimas rhapsodias
nossas continham um fundo de excellente e lindissima poesia nacional, e
que podiam e deviam ser aproveitadas.
Em París fui ver o cancioneiro do Collegio dos Nobres na defeituosa
edição de Sir Charles Stuart; depois voltando a Portugal tornei a
percorrer o de Rezende: no primeiro nada, no segundo pouco achei do
romance historico ou narrativo. D’ésta última especie não ha impresso
mais que esses duvidosos fragmentos conservados por Fr. Bernardo de Brito
e por Miguel Leitão.
Recorri á tradição: estava então eu fóra de Portugal; stimulava-me a
leitura dos muitos ensaios extrangeiros que n’esse genero íam apparecendo
todos os dias em Inglaterra e França, mas principalmente em Allemanha.
Uma estimavel e joven senhora de minha particular amizade—a quem por
agradecida retribuição é dirigida a introducção do presente romance—foi
quem se incumbiu de me procurar em Portugal algumas cópias das xácaras e
lendas populares.
Depois de muitos trabalhos e indagações, de conferir e estudar muita
cópia barbara, que a grande custo se arrancou á ignorancia e acanhamento
de _amas-sêccas_ e lavadeiras e saloias velhas, hoje principaes
depositarias d’esta archeologia nacional,—galantes cofres, em que
para descobrir pouco que seja é necessario esgravatar como o _pullus
gallinaceus_ de Phedro,—alguma coisa se pôde obter, informe e mutilada
pela rudeza das mãos e memorias por onde passou; mas emfim era alguma
coisa, e forçoso foi contentar-me com o pouco que me davam e que tanto
custou.
Assim consegui umas quinze rhapsodias ou, mais propriamente, fragmentos
de romances e xácaras que em geral são visivelmente do mesmo stylo,
mas de conhecida differença em antiguidade, todavia remotissima em
todos. Comecei a arranjar e a vestir alguns com que ingracei mais; e
para lhe dar amostra do modo por que o fiz, adeante copio um dos mais
curiosos[5], ainda que não dos menos estropiados, e com elle o restaurado
ou recomposto por mim, o melhor que pude e soube sem alterar o fundo da
historia e conservando, quanto era possivel, o tom e stylo de melancholia
e sensibilidade que faz o principal e peculiar character d’estas peças.
A minha primeira idea foi fazer uma collecção dos romances assim
reconstruidos e ornados com os infeites singelos porêm mais
symetricos da moderna poesia romantica, e publicá-la com o titulo de
_Romanceiro-portuguez_, ou outro que tal, para conservar um monumento
de antiguidade litteraria tam interessante, e de que talvez só a lingua
portugueza, entre as cultas da Europa, careça ainda; porque de quasi
todas sei, e de todas creio, que se não pode dizer tal[6].
Mas sobreveio tanta interrupção, tanta distracção de tam variado genero,
mortificações, cuidados, trabalhos mais serios; emfim desisti da impreza.
Ja tinha decorrido muito tempo, e voltado eu a Portugal, lembrando-me
sempre de vez em quando este impenho tam antigo e tam fixo; e a occasião
a fugir-me. Uma circumstância fatal e terrivel me fez voltar ás minhas
queridas antigualhas. Lançado n’uma prisão pela maior e mais patente
injustiça que jamais se ouviu[7], voltei-me, para occupar minha solidão
e distrahir as amarguras do espirito, aos meus romances populares, que
sempre commigo têem andado, como uma preciosidade, que bem sei não avalia
ninguem mais, de que muita gente rirá, mas que eu apprecio, e me ponho
ás vezes a contemplar, e a estudar como um antiquario fanatico a quem se
vão as horas e os dias deante d’um tronco de estatua, d’um capitel de
columna, d’um pedaço de vaso etrusco, d’um bronze ja carcomido e informe,
desinterrado das ruinas de Pompeia ou de Herculano. Mas quantos Davids
e Canovas não faz, quantos Raphaeis e Miguel-Angelos não fez o estudo
d’esses fragmentos que despreza porque mais não intende o vulgo ignorante!
Assim passei muitas horas de minha longa e amofinada prisão, suavizando
mágoas e distrahindo pensamentos.—Tinha eu começado a ageitar outro
romance que originalmente se intitula _A Silvana_, cujo assumpto notavel
e horroroso exigia summa delicadeza para se tornar capaz de ser lido sem
repugnancia ou indecencia. Era nada menos que uma nova Myrrha, ou antes
o inverso da tragica, interessante, mas abominosa historia da mythologia
grega; é um pae namorado de sua propria filha!—A filha joven, bella,
virtuosa, sancta emfim.—A difficuldade do assumpto irritou o desejo de
luctar com ella e vencê-la se possivel fosse. Dava larga o tempo, pedia
extenção a natureza dos obstaculos; o que fôra começado para uma xácara,
para uma cantiga, ou, como lhe chamam Allemães e Inglezes, para uma
_ballada_, sahiu um poemeto de quatro cantos, pequenos sim, porêm muito
maiores do que eu pensei que fossem, e do que geralmente são taes coisas.
Mudei-lhe o titulo e chamei-lhe _Adozinda_, que soa melhor e é portuguez
mais antigo. O fundo da historia, as circumstâncias do desfecho d’ella
são conservadas do original; o ornato, o mechanismo do maravilhoso é
outro mas accommodado, creio eu, ao genero e á indole do assumpto.
Mando-lhe aqui tambem uma cópia do romance original para ver e combinar.
É dos mais mutilados e desfigurados, mas certamente dos que têem mais
visiveis signaes de vetustade quasi immemorial[8].
Ora eis-aqui, meu amigo, a historia e origem da minha _Adozinda_, gerada
no exilio, nascida entre sustos, criada na miseria e padecimentos de
uma prisão. Entre tudo o que tenha rabiscado de prosas e versos este
romancesinho é a composição minha a que tenho mais amor pelas memorias
que me lembra, pelas affecções que me desperta.—Que de coisas passaram
por mim durante o tempo que o compuz, os intervallos tam longos em que o
deixei!—até o nascimento e a morte de uma filha unica, tam querida e para
sempre chorada!...
Adeus, meu amigo: não sei o que ahi vai escripto, nem como. São ideas
sem nexo, pensamentos desatados, coisas á toa como o espirito de quem
as escreve. Lea-as assim, e assim se imprimam se porventura estão em
termos d’isso,—do que muito duvido, porque eu por mim, nem que me dessem
os louros de Camões, ou me fizessem apotheoses como a Homero, me punha
a corrigir, nem siquer a rever o que ahi vai escripto, quer prosa quer
versos[9].
Londres, 14 d’Agosto de 1828.

A ELYSA
_Campolide, 11 d’Agosto 1827._
Thus, while I ape the measure wild,
Of tales that charmed me yet a child,
Rude though they be, still with the chime
Return the thoughts of early time;
And feelings, roused in life’s first day
Glow in the line, and prompt the lay.
WALTER SCOTT.
Campo da lide é este; aqui lidaram,
Elysa, os nossos quando os nossos eram
Lidadores por glória,—aqui prostraram
Suberbas castelhanas, e—venceram;
Que pelo rei e patria combatendo
Nunca foram vencidos Portuguezes.
—Este terreno é sancto: inda estás vendo
Alli aquelles restos mal poupados[10]
Do tempo esquecedor,
Dos homens deslembrados;
Nobres reliquias são d’altas muralhas
Forradas ja de lucidos arnezes,
De tresdobradas malhas.
Talvez fluctuava alli n’aquelle canto,
Suberbo e vencedor
Das Quinas o pendão victorioso;
E junctos ao redor
D’esse paladio augusto e sacrosancto,
Invencivel trincheira lhe faziam
Toda a flor dos mais nobres e esforçados;
Que á voz da patria (voz que nunca ouviam
Sem sentir redobrados
Do nobre coração os movimentos)
Heroes são todos, facil a victoria,
Faceis as palmas que lh’infeixa a glória.
Ah!—paremos aqui:—ve quaes na frente
As arterias violentas me rebatem:
Febril, descompassado corre e ardente
E me angustia o sangue...—Ah! sim paremos
Aqui... Não, aqui não; esse outeirinho
Depressa o desceremos.
Faz-me bem ésta vista:—essas arcadas[11]
Suberbas, elevadas,
Que uniram monte a monte e serra a serra,
Acaso não serão
Tam illustres talvez,—não lembram guerra,
Glória não lembram; nem com sangue livido
A morte da victoria companheira
Para o erguido padrão
O cimento amassou.
Um rei que amou as artes, rei pacífico,
A quem amor fadou
Que seu fôsse e das musas,—que fugidas
Da pátria ha tanto, á patria as volveria;
Do povo á utilidade
Este sublime monumento erguia.
Para a posteridade
Isto só lhe appurou o nome e a glória,
E lhe ganhou as paginas da historia.
Inda é muita oppressão; inda me acanha
Tanta arte humana o coração no peito.
Tam grandes massas, fábrica tammanha
Absorto deixarão—mas satisfeito
O ânimo, os sentidos?.. Não, Elysa,
Não satisfaz ao homem a arte humana:
Por mais que ella se uffana,
Que aos abysmos o centro opprime e pisa
C’os fundamentos de eternaes pyramides,
Ou c’os erguidos vertices
Ás nuvens rasga o seio tempestuoso.
Nem assim:—á tristeza ou á alegria,
E áquelle estado de innefavel gôso
Que entre a dor e o prazer a alma suspende
Brandamente e se diz _melancholia_,
Oh! nada d’isso o excita.
Oh! nada d’isso o coração intende!
Oh! nada d’isso o espirito nos move
Se a natureza, a pura natureza
Por sua ingenua attracção nos não commove.
Posso admirar o homem e a grandeza
De suas nobres feituras,
Mas somente admirar;
Mais não póde excitar
Mesquinha creação de creaturas.
Vamos por essa incosta
Subindo.—Eu gósto do alto das montanhas,
Dos picos das erguidas serranias,
O avaro á terra mãe abra as intranhas,
Cave oiro e crimes, com que incurte os dias
Seus e dos seus, e a sombra da virtude
Acabe de varrer da face d’ella.
Mas o que, em paz commigo e co’a existencia,
Ainda ama a innocencia,
Inda se apraz co’a natureza bella,
A seus quadros surri, com seus dons gosa,
Oh! esse venha ao cume do alto monte,
Venha estender a vista saudosa
Pelo valle que á falda lhe verdeja,
A messe que loureja,
E a despenhada fonte
Que vai garrula e trepida saltando
Té que se junta em cava pederneira.
D’onde sai, o arco d’Iris imitando
Na espadana da férvida cachoeira.
Venha na solidão—e o só dos montes
É mais só que nenhum,—o silencioso
Mais augusto, solemne e magestoso!
Venha na solidão
Comsigo conversar, fallar um’hora
Com o seu coração.
—Quantos ha que annos longos hão vivido
C’os outros sempre, sempre c’os de fóra
Sem viverem comsigo nem um dia,
Nem um momento só!
Tenhamos d’elles dó;
Viver não... têem apenas existido.
Tua meiga companhia
É doce, Elysa; e sempre na minha alma
Foi teu brando fallar—e quantas vezes!—
Celeste orvalho que abrandou a calma
De paixões, que adoçou o agro a revezes:
Porêm a minha solidão querida,
De vez em quando, lá quando a alma o pede,
Oh! não m’a tirem que é tirar-me a vida.
Agora conversemos: eu ignoro
A arte das vans palavras que bem soam;
Oiço-as, e não demoro
No ouvido os sons que de per si se escoam.
O sol declina;—temos largamente
Hoje philosophado.
Na viva flor da edade e da saude
Nem de todos sería accreditado
Que tam suavemente
Em austeras conversas de virtude
Nos fôsse o tempo.—Crê-me, Elysa amavel,
Tem muito mais prazeres a amizade
E mais doces que amor:
Para todos os sexos, toda a edade,
Em todo o tempo a mesma, sempre affavel,
Sem o cancro roedor
Do ciume voraz que no mais puro
D’amor, no mais seguro
Suas raizes venenosas lança,
E co’a mais branda flor
Seus mordentes espinhos lhes intrança.
Detestemos, Elysa, essa funesta
Paixão brutal que a tudo e em tudo damna,
Da virtude a tyranna:
Não nos illuda a tam commum cegueira;
Detesta o crime quem amor detesta.
Crimes!—vê a amizade prazenteira,
Que nenhuns tem;—e amor, ai! quantos, quantos!
Honras perdidas, thalamos violados,
Os vinculos mais sanctos
Dos homens e de Deus, da natureza,
Da propria natureza—espedaçados
Por esse amor, que sua tocha accesa
Do vivo fogo traz do averno immundo
Para de crimes abrazar o mundo.
Honesto, justo, sancto, consagrado,
Nada respeita:—o sangue, o altar em meio
De seus desejos não é termo ou freio;
Não ha pomo vedado
No Eden da virtude
Que a mão perversa e rude
Tocar não ouse,—árvore da vida
Que dos gryphos mordida,
Em peçonha de morte não converta,
E a seiva salutar já corrompida
Em lethal beneficio não perverta.
Lembra-te aquella historia
Que ingenuo o povo em seus trabalhos canta,
E de longa memoria
Entre elles perpetuada,
É singella legenda de uma sancta,
Que por brutal amor sacrificada,
Desvalida virtude,
Só do crime escapou no seio á morte?
Eu a canção magoada
Em verso menos rude,
Mais moldado verti, dei novo córte
Ao vestido antiquissimo, á simpleza
Que ha seculos lhe deu
De nossos bons maiores a rudeza.
—Sereno está o ceo,
Tranquillo o vento, a calma descahida;
E, pois que não te infada
A singella toada
Do bardo alahude que sem arte soa
E a rhyma desgarrada
Da popular canção rustico intoa,—
Aqui t’a cantarei, ouve: e se ao pranto
Te commover a saudosa endeixa,
Na selvagem bonina,
Na campainha agreste d’esse mato
Arrociá-lo deixa;
São lagrymas sinceras, propria fonte
Para regar as innocentes flores
Que arte não sabem, nem conhecem arte;
Flores como os meus versos não variados
De refinadas côres,
Em que alma só e coração tem parte,
Não por classica musica modulados
Ao graduado som de grega lyra,
De cithara romana.
A minha é melodia que só mana
Dos intimos accordes só do peito;
Nem ha corda que fira
Em meu alahude rustico
Tom menos natural, mais contrafeito.
Em suberbos canaes, alto impedrados
Por ingenhoso hydraulico,
Vão d’arte subjugados
Os caudaes da torrente conduzindo
Riquezas de preciosa mercancia:
E o arroio, que serpeia entre pedrinhas
Pela relva macia,
Bordado em-tôrno sinuosamente,
Que póde elle levar
Em sua doce e trépida corrente?
—Alguma folha de silvestre rosa
Que, ingenua divagando,
Pastorinha formosa
Lhe foi acaso á margem desfolhando.

ADOZINDA

CANTIGA PRIMEIRA
No, I’ll not weep:
I have full cause of weeping; but this heart
Shall break into an hundred thousand flaws
Or ere I’ll weep.
SHAKSPEARE.

I
Onde vas tam alva e linda,
Mas tam triste e pensativa
Pura, celeste Adozinda,
Da côr da singella rosa
Que nasceu ao-pé do rio?
Tam ingenua, tam formosa
Como a flor, das flores brio
Que em serena madrugada
Abre o seio descuidada
A doce manhan d’Abril!
—Roupas de seda que leva
Alvas de neve que cega
Como os picos do Gerez
Quando em Janeiro lhe neva.
Cinto côr de violeta
Que á sombra desabrochou;
Cintura mais delicada
Nunca outro cinto apertou.
Anneis louros do cabello
Como o sol resplandecentes
Folgam soltos; dá-lh’o vento,
Dá no veo ligeiro e bello,
Veo por suas mãos bordado,
De um sancto ermitão fadado
Que vinha da Palestina;
Passou pelo povoado,
Foi-se direito ao castello
Pediu pousada, e lh’a deram
Porque intercede a menina:
Que o pae suberbo e descrido,
—‘N’essa gente peregrina,
Disse, quem sabe o que vem?’
—Mas pede Adozinda bella,
Tal virtude e formosura,
Quem lh’o hade negar a ella?
Não póde o pae nem ninguem.

II
Mas o outro dia á luz nada
Houve quem visse Adozinda
Debruçada em seu balcão
Haver prática alongada
Co’ aquelle velho ermitão.
Quem sabe o que lhe elle disse?
—Ninguem no castello ouviu:
Mas d’aquella occasião
A alegria lhe fugiu
Dos olhos e do semblante:
Ficou triste, sempre triste;
Mas em seu rosto divino
Fez-se formosa a tristeza.
Como olhos d’amor quebrados
Disseras os olhos d’ella;
Mas não tem d’amor cuidados,
Que a ninguem conhece a bella.

III
Qual semente arrebatada
Da flor de vergel mimoso
Pelos furacões do Outomno,
Vai no incôsto pedregoso
Cahir de serra escalvada;
Vem Abril, e a seu bafejo
Brota e nasce a linda flor,
De ninguem vista ou sabida,
Nem de damas cubiçada
Nem de pastores colhida,
E o vento da solidão
Lhe bebe o perfume em vão.

IV
Quinze annos tem Adozinda;
E desd’a vez que o romeiro
Do saio pardo e grosseiro
Lhe fallou ao seu balcão,
Faz tres para o San-João.

V
E Adozinda sempre triste
Vai sosinha pelo eirado
Pelo jardim, pelo prado;
Nem ja a divertem flores
Em que punha o seu cuidado.
Pelos sombrios verdores
De sua espessa coutada
Vaga á toa e derramada,
Como a novilha perdida,
Como a ovelha desgarrada
A quem o tenro filhinho
Lobo do mato levou:
—Desfaz-se a mãe em balidos,
Que de ninguem são ouvidos,
E o filhinho não tornou!

VI
Que tem Adozinda bella
Que em tal desconsôlo a traz?
Serão saudades do pae
Que anda co’os Mouros á guerra
Por defender sua terra
Mais a sancta lei de Deus?
Tres annos ha que se foi;
E dous filhos que levou,
A cadaqual sua espada
Com juramento intregou
De lh’a tornarem lavada
No sangue mouro descrido:
E assim cada um jurou.
Fizeram gente em suas villas,
(Que preito muitas lhe dão)
E guiaram seu pendão
Para terras de Moirama.
Ja vejo chorar donzellas,
Vejo carpir muita dama,
Que onde chega Dom Sisnando,
Com sua espada portugueza
Não ha lanças nem rodellas
Que sirvam para defesa.

VII
Mas não são do pae saudades,
Que sempre a lidar com armas
Como ellas duro se fez;
Mais lhe importam do que a filha
Seus ginetes, seu arnez.
E até—quem diria tal!—
Quando a mãe, por diverti-la,
Lhe falla do pae ausente
E lhe diz que hade voltar,
Parece que se lhe sente
O coração apertar.
—Suspira em silencio Auzenda,
Auzenda tam bella ainda
Que ao-pé da bella Adozinda
Mais irman que mãe parece
De filha tam môça e linda.
Suspira em silencio a triste,
Porque suspira não diz:
—‘Filha amante de seu pae
Conceder-me o ceo não quiz!’
—Ai! que sem razão se chora!
—Ai! Auzenda malfadada,
Tem de vir minguada hora
Que á filhinha desgraçada
Darás mais razão que agora.

VIII
Que tropel que vai nos paços
De Landim ao-pé dos rios!
Sons de festa e sons de guerra
Em seus muros e alta tôrre?
Geme a ponte, treme a terra
C’o peso d’homens armados.
Cavallos acobertados
Trotam ligeiros;—e corre
O alferes que tremolando
Vai guião de roxa cruz...
Ja chegado é Dom Sisnando.
Entre os cavalleiros todos
Sua armadura reluz:
E o pennacho fluctuante
Das plumas alvas de neve
Sôbre o elmo rutilante
De longe a vista percebe.

IX
—‘Portas do castello, abri-vos,
Correi, pagens e donzellas,
Que é chegado meu senhor,
Meu espôso e meu amor!’
Auzenda bradava e corre.
Portas se abrem, soam vivas,
E o echo da antiga tôrre
Com o som festivo acordou.
—‘Viva, viva Dom Sisnando!’
E o tropel que dobra e cresce,
E ás portas que chega o bando
Dos guerreiros triumphantes.
Do corcel suberbo desce
E aos braços anhelantes
Da cara espôsa voou.
Doce amor que os apertou
Não lhes deixou mais sentidos
Que para se ver unidos,
Ajuntar-se peito a peito,
E em laço tam brando e estreito
Longa saudade afogar.
A Auzenda gotteja o pranto,
Pranto que é todo alegria;
E o rosto que nunca infia
Do esforçado lidador
Tambem sentiu—mais que a dor
Póde o gôso!—descuidada
Uma lagryma sensivel
De seus olhos escapada.

X
Mas as lagrymas de gôsto,
Como as de mágoa, teem fim;
Dom Sisnando inchuga o rosto,
E tomando a mão á espôsa:
—‘D’onde vem, lhe diz, senhora,
Que a joia mais preciosa
Não vejo d’estes meus paços,
D’onde vem que aos meus abraços
Minha filha?..’ A filha bella,
Pasmada, trémula, a um lado,
O rosto ao chão inclinado,
Parecia humilde estrella
Que ao primeiro raio vivo
Do sol que no alvor reluz
Não fica, não, menos bella,
Porêm pállida e sem luz.

XI
Tres annos ja são passados
Que Dom Sisnando a não via,
N’essa joven, linda dama
Sua filha não conhecia.
—‘Ei-la aqui, senhor,’ dizia
A mãe, que d’um braço a trava,
‘Ei-la aqui.’—Os olhos crava
O pae na formosa filha,
E de assombro e maravilha
Mudo, estatico ficou.
Cora Adozinda, suspira,
E—‘Pae!’ disse em voz tremente
Submissa...—; languidamente
Ajoelha, osculo frio
Na paterna mão imprime:
Pranto que atelli reprime,
Corre agora em sôlto rio.
—‘Que tens tu, filha querida,
Que assim choras tam carpida?
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