O retrato de Venus e estudos de historia litterária - 7

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Cegou-se todavia o nosso bom Ferreira na imitação dos antigos;
copiou-os, não os imitou: e d’ahi, enriquecendo a lingua, empobreceu
a litteratura, porque a avezou a esse hábito de copista; cancro que
roe o espirito creador, alma e vida da poesia nacional. Tão cega foi
esta imitação, que seus mesmos versos, aos quaes hoje ninguem defende
da nota de asperos e duros (e muitos direi--errados) os fazia assim de
proposito por querer usar das ellipses gregas e latinas, a que repugna
a indole de nossa lingua, so toleraveis em certas vozes que na prosa
mesma se pronunciam e escrevem no final com _m_ ou sem elle. Este
desagradavel defeito dos versos de Ferreira é principalmente sensivel
nas dicções que teem final no que chamámos (mal ou bem) diphtongos
nasaes de _ão_, e muito mais quando n’elle é o accento predominante da
palavra.
Os sonetos são frios, desengraçados; nas eclogas ha bellezas muitas
e mui grandes, mas espalhadas: nenhuma d’estas composições tomada per
si póde merecer o nome de bella. Porem das odes, ha d’ellas que são
puramente horacianas, e se lhes fallece a elevação (que não era esse
o genio de Ferreira) sobeja-lhe a graça, a elegancia e a adornada
philosophia, que não agradam menos, nem de menos valor e merito são
que os extasis pindaricos, ou os requebros anacreonticos. O que é sem
duvida é que nas linguas vivas Ferreira foi o primeiro imitador feliz
de Horacio, e o primeiro dos modernos que pulsou a lyra classica. Das
epistolas, ha algumas que podem pleitear em concisão e fino dizer
com as boas do lyrico romano. Quanto á pureza da moral, ao nobre
patriotismo, áquelle generoso sentimento da honrada liberdade de
nossos avós, áquelle enthusiasmo da virtude; esse respira, mostra-se e
resplandece em todas as suas obras.
Mas a verdadeira glória de Ferreira é a Castro, producção admiravel
per si mesma, pelo tempo em que a escreveu, por todos os lados por que
se considere. Não é ainda liquido entre os philologos se era possivel
o ter visto Ferreira a Sophonisba de Trissino, que mui poucos annos
antes da Castro appareceu: mas é sem a minima questão reconhecida a
superioridade da tragedia portugueza á italiana: pasma como sem vêr um
theatro, sem mais exemplares que os gregos e latinos, podesse Ferreira
tratar tão delicadamente um tal assumpto em um genero desconhecido da
antiguidade. É notavel a primeira scena da Castro, a scena d’el-rei
e dos conselheiros no acto II., a do acto III. em que o côro traz a
Castro as novas de sua cruel sentença, onde aquella pergunta de Ignez:
«É morto o meu senhor, o meu infante?» rasgo de sublime, porém d’um
sublime todo sensibilidade, ao qual nem o _qu’il mourût_ de Corneille
póde comparar-se; e finalmente os coros, que sem paixão são superiores
a todos os exemplares da antiguidade, e não teem que invejar aos tão
gabados da Athalia. Não dou a Castro por uma tragedia perfeita: ainda
em relação ao seu tempo e aos conhecimentos da scena d’então tem ella
defeitos: não haver uma scena em que se encontrem Pedro e Ignez, não
haver algum esfôrço do infante para lhe valer, deixam a peça muito
nua de acção, e lhe entibiam o interesse. A versificação (que todavia
é de preferir aos versos sesquipedaes e himpados com que hoje está
pervertida a scena portugueza) pécca geralmente por dura; mas essa
mesma é por vezes bella; e para bons entendedores muito ha hi que
estudar; e oxalá que os nossos dramaticos lessem e relessem bem a
Castro, e apprendessem alli, pelo menos, naturalidade e verdade de
expressão, que tanto lhes fallecem.
Não estava ainda n’este auge a poesia portugueza quando um homem pouco
conhecido dos lettrados, mas já célebre per suas aventuras e valor,
foi para tão longe da ingratissima patria despicar-se de seu desamor
com a mais nobre vingança; a de levantar-lhe um padrão, com que não
entram as idades, e que conservará ainda o nome portuguez quando já
elle houver desapparecido da terra. Muita erudição (pois sabia quanto
se soube em seu tempo), ingenho dos que véem ao mundo de seculos a
seculos se reúniram em Camões. Esse homem levantou a cabeça la das
extremidades d’Asia, e viu tudo pequeno á roda de si, todos os poetas
pigmeus, todos acanhados com as linguas modernas ainda mal perfeitas,
escravos da imitação classica, incertos e entalados todos entre o cego
respeito da antiguidade e as novas precisões que as novas ideias, que
o novo estado do mundo requeria. Teve animo para conceber e força para
executar um rasgado e necessario atrevimento de se abrir caminho novo,
de crear emfim a poesia moderna, dar não só a Portugal, mas á Europa
toda um grande exemplo, e constituir-se o Homero das linguas vivas.
Não me dá espaço o acanho de meus limites para dizer de Camões o que
era indispensavel; antes a celebridade de seu nome me deixará parar
aqui para dar logar a tractar de menos conhecidos nomes. Só direi
que a influencia de Camões na nossa poesia, e em toda a litteratura
portugueza foi tal que desde então té hoje ainda se não deixou de
sentir, mesmo nas epochas em que mais desvairados teem andado nossos
poetas com as empolas do _gongorismo_, ou mais lunaticos com os
esfusiotes do _elmanismo_. Quasi que não houve genero de poesia que não
tractasse: tem sonetos admiraveis; eclogas (sôbre tudo as primeiras)
excellentes; mas principalmente de todas as poesias menores são o mais
sublime e perfeito as canções, genero a que deu uma nobreza e elevação
desconhecida mesmo em Petrarca: sirva de próva e exemplo aquella que
começa--«Junto d’um sêcco duro e esteril monte.» Dos Lusiadas, de suas
bellezas e defeitos, das controversias sobre umas e outros, está cheio
o mundo litterario.
Contemporaneo de Camões e ousado tambem como elle a encetar a carreira
epica foi Jeronimo Cortereal. O Cêrco de Diu, que é notavel monumento
litterario, e que de certo se teve algum exemplar foi a _Italia_ do
Trissino, é uma fria narração, em que ha bellas ideias áquem além,
muita riqueza de linguagem, pouca de poesia, e pelo geral maus versos.
E comtudo é talvez Cortereal o primeiro (em data) poeta descriptivo;
e creou elle acaso esse genero de que tanto blasonam hoje inglezes,
allemães, e até francezes, e que todavia nós tinhamos seculos antes
d’elles. Ja no Cêrco de Diu ha muitas boas descripções: mas no
naufragio de Sepulveda ha d’ellas sublimes.
Entre muito devaneio de imaginação e de mau gôsto, entre aquelles
insipidos requebros de Pan e de Protheu apparece todavia a morte de D.
Leonor que é um trecho da mais bella poesia, da mais fina sensibilidade
que se tem composto.
De todos esses poetas que então floreceram é na minha opinião o menos
poeta esse Pero d’Andrade Caminha, a quem da amisade e celebridade de
Ferreira e Bernardes vem talvez o maior renome. Ainda assim tem algumas
odes boas, simplicidade com elegancia por partes de suas composições:
epigrammas, são alguns excellentes.
Sôbreviveu a todos estes e á patria, que não tardou em perecer, o
suave cantor do Lima que levado per D. Sebastião para testimunhar
seus altos feitos, de que devia fazer um poema, perdeu-se com seu
rei, e jazeu captivo em Africa. Pondo de parte a questão das eclogas
(na qual de certo não andou de boa fé Faria e Sousa) a qual, ainda
que propria do logar, é mui longa para os meus limites; Bernardes foi
excellente poeta; e com quanto sua linguagem é pobre, e em geral pouco
variadas suas composições; a suavidade de seu stylo, certa melancholia
d’expressão que lh’o requebra e embrandece darão sempre a Bernardes um
logar mui distincto na poesia portugueza.
Mas ja a nação se perdêra nos areaes de Africa, já a glória portugueza
estava offuscada; com ella foram (como sempre vão) as boas artes. Ainda
brilham a espaços faíscas do grande luzeiro que se apagára; mas já não
eram senão faíscas.
Ainda Luis Pereira deplora na _Elegiada_ a ruina da patria, mas
esse canto funebre é quasi o canto de cysne da poesia nacional, que
parece querer fenecer com elle, e já n’elle moribunda se mostra. Ha
excellentes oitavas derramadas per esse poema, algumas descripções
felizes, grandissima riqueza de linguagem; mas pouco mais.
Ja Fernão Alves do Oriente diffuso, intrincado nos primeiros
labyrinthos dos _conceitos_ italianos mostra a visivel decadencia da
poesia: já as musas que tão louçans, e ingenuamente bellas tinham
folgado pelas varzeas do Tejo e do Mondego com Ferreira e Camões,
apparecem affeitadas com arrebiques e côres falsas, como essas damas
para quem se desbota a flor da idade e lhe querem ainda supprir o
viço com emprestados ornamentos, gentilezas compradas, e postiças.
E todavia ha na Lusitania transformada pedaços lyricos excellentes,
e alguns bucolicos soffriveis. Assim elle nos dissesse mais do seu
Oriente do que nos disse: assim houvesse enriquecido a litteratura com
mais imagens de tantas que sua Asia lhe offerecia, e com que houvera
additado a mãe patria. Onde o fez, n’aquella ecloga em que conta a
historia de Saladino, é elle verdadeiramente poeta; e se d’ahi tirarem
alguns trocadilhos que tinha apprendido em Italia, excellente e digno
de imitar-se é o resto.

NOTAS DE RODAPÉ:
[37] A. Rib. dos Santos traduziu este soneto em portuguez e (cousa
inexplicavel em tal homem!) o deu por seu.


IV
Terceira epocha litteraria; principia a corromper-se o gosto e a
declinar a lingua.--Começo, até o fim do XVII sec.

Porem os symptomas do _Gongorismo_ e _Marinismo_ se manifestavam já em
Italia e Castella; não perfeitos ainda, não no auge a que os levaram
os dous poetas, aliás ingenhosos, cujo nome vieram a tomar; mas já
assim mesmo a poesia moderna estava toda gafa d’essa lepra de suberba
requintada.
Vasco Mousinho de Quevedo, que sem disputar é depois de Camões, nosso
primeiro epico, ahi tem já em toda a nobreza de seus versos a quebra
de bastardia d’esse defeito, que todavia é n’elle ainda raro. Mas que
bellezas tem esse tão mal avaliado Affonso Africano, a que a cegueira e
o mau gosto tem querido preferir a _quixotica_ e sesquipedal Ulyssea,
a hyperborea e campanuda Malaca! Não é regular o poema, não é um todo
perfeito; o maravilhoso é frio, e a acção toda não mui bem deduzida;
mas que riquissimos episodios a enfeitam! A descripção de Zara, o
jardim incantado onde aporta o principe D. João, e alguns outros
trechos são cunhados com o sêllo da verdadeira poesia, e animados da
luz que só dá o ingenho. Quanto ao stylo, é com poucas excepções fluido
e elegante; custa a achar em tão longo poema uma rhyma forçada ou má:
e a mesma linguagem, supposto decline um tanto da primeira pureza, é
ainda de boa lei e valiosos quilates.
D’ésta epocha é tambem Rodrigues Lobo, cujo grande logar como prosista
não é aqui proprio de examinar: de seu merecimento poetico a commum
opinião tem com justiça decidido dando-lhe um dos primeiros (eu quizera
o primeiro) logar entre os bucolicos antigos; e outro mui differente e
inferior entre os epicos. E certo, o Condestabre, apezar de muitos e
bons pedaços descriptivos, é frouxa e morna composição. Que differente
era a frauta que ia soando pelas margens do Lis, a dulcissima frauta
de Lobo, quando comparada com a tuba heroica, para cuja altivez lhe
fallecem natureza e arte! seus pastores são verdadeiros pastores, sua
linguagem é verdadeira do campo, não lhes sahem pelos golpes do pellico
as alfaias da cidade, tão mal encubertas pelos outros bucolicos, os
quaes, sem excepção do proprio Camões, todos peccam por mui sabidos
e lettrados, por discretos e galantes mais que sóem ser aldeãos e
pastores.
Alem d’isso ha derramados pela Primavera, Pastor peregrino,
etc., pedaços lyricos de summa belleza, romances excellentes e
verdadeiramente dignos de admiração e estudo.
Tinhamos perdido a independencia; perdemos logo o espirito nacional,
o tymbre, o amor patrio (que amor da patria poderá haver em quem
patria já não tem!); a lisonja servil, a adulação infame levou nossos
deshonrados avós a desprezar seu proprio riquissimo e tão suave idioma,
para escrever no guttural Castelhano, preferindo os sonoros helenismos
do portuguez ás aspiradas _aravias_ da lingua dos tyrannos. Vergonha
que só tem par nas derradeiras vergonhas com que nos enxovalharam
a lingua e a fama os tarellos, francelhos, gallici-parlas e toda a
caterva dos gallo-manos!
Em Castelhano escreviam já esses degenerados portuguezes: mas pouco
importava que o fizessem, que n’isso fraca perda tivemos nós: de toda
essa çafra de versos castelhano-portuguezes pouco ou nada ha que
espremer.
D’ésta commum baixeza se alevantou o honrado e douto magistrado
Gabriel Pereira de Castro, que depois de ter aberto na jurisprudencia
um caminho novo e n’aquelle tempo tão difficil por grandes verdades
então perigosas, tomou ousado a trombeta de Homero, e não se arrojou
a menos que a competir ao mesmo tempo com a Iliada e Odyssea; que
tanto abraça o assumpto de seu poema. Grande é a concepção, bem
distribuidas as partes, regularissimo o todo, regular e bella a acção,
bem intendidos os episodios; mas o stylo... o stylo é, prototypo da
_Phenix-renascida_, o requinte do gongorismo, cujo patriarcha foi entre
nós, pervertendo-nos, á sombra de sua grande fama e brilhante ingenho,
todo o resto escasso que de gôsto tinhamos ainda, intrincando a poesia
(senão que tambem a prosa por mau exemplo) n’um dedalo inextricavel
de conceitos, de argucias, de exagerações, de affectada sublimidade,
falsa e van grandeza; com que de todo veio a terra a poesia nacional,
e acabou a grande eschola de Camões e Ferreira, que tantos e tamanhos
alumnos havia produzido. E suppunha esse homem vaidoso ter sobrepujado
com as queixotadas da sua Ulyssea as naturaes bellezas dos divinos
Lusiadas!
Quasi o mesmo errado trilho, mas que menos brilhante e com inferior
ingenho, seguiu Sá de Menezes na Malaca. Esse poema, que tanto tem
engrandecido o mau gôsto, é na minha opinião um dos derradeiros titulos
de glória da litteratura portugueza. E todavia é bem regular, bem
concebido, e a espaços se lhe encontram grandes rasgos de gentileza
poetica. A falla de Asmodeu no conselho infernal faz lembrar muito
a de Lucifer em Milton. Porem quando agitado o poeta do genio mau
que avexava e endemoninhava os poetas d’então, começa a guindar-se,
a transpor os derradeiros limites da naturalidade; esquece todo o
deleite que algumas estancias mais descuidadas nos haviam causado, e
é forçoso desemparar a dura tarefa de tão incommoda leitura, porque
verdadeiramente incommoda e cança tal stylo, tal phrase, tanto
hyperbolico luxo e destemperado alambicar.


V
Quarta epocha: idade de ferro; aniquila-se a litteratura, corrompe-se
inteiramente a lingua.--Fins do XVII, até meados do XVIII sec.

Mas ainda estes tinham sua nobreza, havia não sei que grande entre
todas essas _nuvens de talco_; talvez lhes viesse dos assumptos: porém
seus discipulos que ainda quizeram ir ávante, deram em fazer _silvas_,
_acrosticos_, e engendraram todos os outros monstros (originarios,
segundo Diniz, do _paiz das bagatellas_) e distillando mais e mais
as quintas essencias dos conceitos, tanto torceram e retorceram o
ja delgado fio poetico, que de todo o quebraram. So Manoel da Veiga
o atou momentaneamente em uma ou duas lyras da Laura de Amphriso.
Logo tornou a estalar: e per ahi andaram as pobres musas portuguezas
jogando as cabras-cegas pelas eclogas de Poliphemo e Galatea, pelos
romances hendecasyllabos, e per todos os outros escondrijos do gosto
depravado, de que boas amostas se conservam no precioso tombo da
_Phenix-renascida_ e alguns outros hoje ignorados livros d’essa triste
data.
E todavia ja nós tinhamos recobrado tão gloriosamente nossa
independencia, ja o nome portuguez tornára a ser honra e nobreza, e
ainda essa lepra castelhana lavrava.
Dous grandes escriptores, ambos prosistas e ambos dignos de muito
louvor, concorreram para a continuação d’este mal. Quem podia deixar de
admirar Vieira? Quem não iria levado pela torrente de sua eloquencia?
Quem resistiria aos impetos de arrebatamento de Jacinto Freire? O
grande talento de ambos, a vasta erudição e desmedido ingenho de Vieira
sobre tudo, fizeram grande damno á litteratura: sabiam, escreviam
perfeitamente a lingua, tinham grande crédito na côrte, tractavam
grandes assumptos, animava-os o nobre e sincero enthusiasmo da glória
e liberdade nacional: tudo foi após elles; imitaram-lhes vicios e
virtudes; como não distinguiam em Vieira o grande orador, o grande
philosopho do gongorista affectado (quando o era) não estremavam
em Jacintho Freire o historiador, o panegyrista do declamador, do
academico vão; ruim e bom seguiam. E como é mais facil imitar a
affectação, que a naturalidade, as argucias de má arte, que as graças
de boa natureza; os imitadores foram alem de seus typos no affectado,
no mau d’elles, ficaram immenso aquém do que n’esses era bello e para
imitar.
Nem o conde da Ericeira que traduziu a Arte poetica de Boileau e d’elle
levou tão immerecidos e banaes elogios, tomou d’ella triaga bastante
para se curar do veneno commum: e ainda assim melhor é sua frigida
Henriqueida que os outros versos que por então se faziam em Portugal:
porem o unico ôlho que o fez rei em terra de cegos, não lhe era
bastante para ver e acertar com a vereda da posteridade. Ahi morreu no
seu seculo e ahi jaz pela poeira de alguma livraria de bibliomanico.
As academias de historia, de litteratura do tempo de D. João V, as
associações ridiculas de todos os nomes e descripções que então se
formaram, a mais e mais empeioraram o mal, que progressivamente cresceu
até o ministerio do marquez de Pombal.


VI
Quinta epocha: restauração das lettras em Portugal.--Meio do seculo
XVIII até o fim

A civilisação e as luzes que a geram, tinham-se estendido do sul para o
norte. A corrupção que após ellas vem em seu marcado periodo, as fôra
apagando, ou ennevoando ao menos, na mesma direcção. De sorte que pelos
fins do XVII seculo o meio-dia, que havia sido berço da illustração da
Europa, quasi se ennoitava das trevas da ignorancia, as quaes pareciam
voltar como em _reacção_ para o ponto d’onde partíra a primeira _acção_
da luz que as dissipára.
O norte, que mais tarde se havia allumiado, progredia no emtanto: as
boas letras, as artes, as sciencias floreciam na Inglaterra e por quasi
toda a Allemanha. Milton, Descartes, Newton e Linneu brilharam ao
septentrião da Europa; e nós meridionaes estudavamos as _cathegorias_
e as _summas_, aguçavamos distincções, alambicavamos conceitos,
retorciamos a phrase no discurso, torciamos a razão no pensamento.
Porem a face do mundo estava começada a mudar: as antigas barreiras
que a politica e os preconceitos erguiam entre povo e povo quasi
desappareciam; as mutuas necessidades, e até o mesmo luxo, faziam quasi
indispensavel precisão as permutações do commércio; e o commércio
fraternizou as nações.
Reciprocamente se estudaram as linguas, generalizou-se esse estudo:
então é que exactamente os sabios começaram a ser de todos os paizes:
os bons livros pertenceram a todas as linguas; e verdadeiramente se
formou dentro de todos os estados um estado que (sem os inconvenientes
do _status in statu_ dos ultramontanos) com justiça e exacção obteve e
mereceu o nome de republica das lettras, a qual é uma, universal, e sem
perigo de schisma.
Os effeitos d’esta alteração no modo de existir do universo foram
sensiveis: as luzes não so reverteram (sem retrogradar) do norte para
o sul, mas se diffundiram geraes. A França viu então o seculo de Luiz
XIV; Italia deixou sancto Thomaz e os _concetti_ por melhor philosophia
e melhor gosto; Hespanha teve o seu Carlos III; e Portugal no reinado
d’el-rei D. José subiu á altura dos outros povos, senão é que em muitas
cousas acima.
E ainda na reforma da universidade não tinham apparecido
Monteiros-da-Rocha e os outros portuguezes que d’alli expulsaram a
barbaridade entrincheirada em Coimbra como em sua ultima cidadella da
Europa, e ja a razão e o gosto recobravam seu imperio na litteratura;
ja as odes do Garção, as obras do padre Freire e de outros illustres
philologos haviam afugentado as _silvas_, os _acrosticos_, e os
campanudos periodos do conde da Ericeira, regenerado a poesia e
restituído a lingua.
Outravez ainda o limitado d’este bosquejo me impede de mencionar outros
ingenhos que tanto mereceram da patria e da litteratura e remoçaram a
perdida lingua de Camões. Exige o meu assumpto e o meu espaço que me
estreite no círculo poetico.
Garção foi o poeta de mais gosto e (por aventurar uma expressão que não
é legitima, mas póde ser legitimada portugueza) de mais _fino tacto_
que entre nós appareceu até agora. Haverá n’outros mais fogo, outros
ferverão em mais enthusiasmo, crearão acaso mais; porem a delicadeza
de Garção so tem rival na antiguidade. A musa pura, casta, ingenua,
nunca lhe desvairou: em suas composições ha d’ellas onde a mais aguçada
crítica não esmiunçará um defeito. Tal é a cantata de Dido, uma das
mais sublimes concepções do ingenho humano, uma das mais perfeitas
obras executadas da mão do homem. Todo se deu ao genero lyrico,
especialmente ao Horaciano; e n’esse ninguem o excedeu, antes ninguem
o igualou. A ode á virtude, a que se intitula o Suicidio (que pela
primeira vez sai a lume n’esta collecção) outras muitas que longo fôra
enumerar, são de uma belleza, d’uma correcção, d’um _acabado_ (como
dizem os pintores) que difficilmente se imitará, tarde se chegará a
igualar.
Não da mesma sorte Antonio Diniz, que mais arrojado, mais pomposo,
menos correcto e elegante, assim correu mais caudalosa, porém menos
pura torrente. Em quanto lyrico, tem rasgos pindaricos verdadeiramente
sublimes; mas o todo de suas odes é em demasia ornamentado; e ellas
entre si peccam amiudo de monotonias e repetições. Talvez o jugo dos
consoantes, que tão desnecessariamente se impôz, o acanhou a isso. Mas
nas anacreonticas é elle sem disputa o primeiro poeta portuguez, e
digno rival do ancião de Teios. No genero bucolico tambem nos deixou
mui bonitas cousas, nenhuma perfeita. Porém a verdadeira corôa poetica
do Diniz Thalia lh’a teceu, que não outra musa. O Hyssope é o mais
perfeito poema heroicomico de seu genero[38] que ainda se compoz
em lingua nenhuma: se no castigado da dicção o excede o Lutrin; no
desenho da obra, na regularidade do edificio, na imaginação, foi
o discipulo de Boileau muito além de seu grande mestre: e com mais
exacção se diria de um e outro o que de Camões e Tasso presumpçosamente
disse Voltaire: que se a imitação d’aquelle fizera este, a sua melhor
obra era essa. O palacio do genio das Bagatellas, a conversa do deão
na cerca dos capuchos, a ressurreição e vaticinio _do gallo assado_,
a caverna d’Abracadabro serão, em quanto houver gosto, estudados como
exemplar pelos litteratos, lidos e relidos sempre com prazer per todos
os amigos das artes.
Após estes vem o virtuoso e honrado Quita, a quem pagou a patria com
miseria e fome as immensas riquezas que para a lingua e litteratura de
seus versos herdou. Um pobre cabelleireiro, a quem as musas que serviu,
os grandes que com ellas honrou nunca tiraram do triste officio, pôde
de sua baixa condição social alevantar-se do primeiro grau litterario,
que acaso lhe disputam ignorantes ou presumpçosos, nenhum homem de
gosto deixará de lh’o dar.
Este é em meu humilde conceito o nosso melhor bucolico: tómo a
liberdade de contrastar a opinião commum, porque o meu dever de
crítico me obriga a ennunciar lealmente o meu pensamento. Tenho para
mim (e fico que acharei quem me siga se de boa fé quizerem entrar no
exame) que a immensa cópia de composições pastoris, as quaes não são
riqueza, mas desperdicio de nossas musas, ou peccam por empoladas, por
inverosimeis, por baixas, por demasiado naturaes, por sobejo elevadas.
Um meio termo difficilimo de tocar, de n’elle permanecer, um stylo
singelo como o campo, mas não rustico como as brenhas, são dos mais
difficeis requisitos que d’um poeta se podem exigir. Se tem ingenho,
custa-lhe a moldar-se e a rete-lo que não suba mais alto que a difficil
medida, e raro deixa de a exceder, de perder-se do bosque e acabar em
jardins cidadãos e conversas de damas e cavalheiros o que começára no
monte ou na varzea entre pastores e serranas.
Nem Virgilio d’ahi escapou, nem Sannazaro, nem Camões; Gessner sim,
e depois de Gessner, o nosso Quita. Não digo que não tenha defeitos,
ainda em seu genero pastoril; mas a boa e honrada crítica falla em
geral, louva o bom, nota o mau, porém não faz timbre em achar defeitos
e erros na menor falta para se regosijar da censura. Grandes homens,
grandes erros: a natureza da mediocridade é cingir-se a tristes
preceitos para esconder sua mesquinhez: porém de taes nunca fallou
posteridade. Horacio e Boileau foram atrevidos quando lhes cumpriu, e
desprezaram regras e arte quando os chamou a natureza, e lhes mostrou
o sublime. Philinto, que os sabia de cór, tambem se levantou acima das
regras, e nunca foi tamanho. E todavia foi elle o maior poeta de seu
seculo: mas os grandes ingenhos não contraveem a lei, são superiores a
ella, e são elles viva lei.
Mui distincto logar obteve entre os poetas portuguezes d’esta epocha
Claudio Manoel da Costa: o Brazil o deve contar seu primeiro poeta,[39]
e Portugal entre um dos melhores.
Deixou-nos alguns sonetos excellentes, e rivalizou no genero de
Metastasio, com as melhores cançonetas do delicado poeta italiano. A
que dirige á lyra com sua palidonia imitando a tão conhecida do mesmo
Metastasio a Nice, _Grazie all’ ingani tuoi_, póde-se apontar como
excellente modêlo. Nota-se em muitas partes dos outros versos d’elle
varios resquicios de _gongorismo_ e affectação _seiscentista_.
E agora começa a litteratura portugueza a avultar e enriquecer-se com
as producções dos ingenhos brazileiros. Certo é que as magestosas e
novas scenas da natureza n’aquella vasta região deviam ter dado a
seus poetas mais originalidade, mais differentes imagens, expressões
e stylo, do que n’elles apparece: a educação europeia apagou-lhes o
espirito nacional: parece que receiam de se mostrar americanos; e d’ahi
lhes vem uma affectação e impropriedade que dá quebra em suas melhores
qualidades.
Muito havia que a tuba epica estava entre nós silenciosa, quando
Fr. José Durão a embocou para cantar as romanescas aventuras de
Caramurú. O assumpto não era verdadeiramente heroico, mas abundava
em riquissimos e variados quadros, era vastissimo campo sôbre tudo
para a poesia descriptiva. O auctor atinou com muitos dos tons que
deviam naturalmente combinar-se para formar a harmonia de seu canto;
mas de leve o fez: só se estendeu em os menos poeticos objectos; e
d’ahi esfriou muito do grande interesse que a novidade do assumpto e
a variedade das scenas promettia. Notarei por exemplo o episodio de
Moêma, que é um dos mais gabados, para demonstração do que assevero.
Que bellissimas cousas da situação da amante brazileira, da do heroe,
do logar, do tempo não podéra tirar o auctor, se tam de leve não
houvera desenhado este, assim como outros paineis?
O stylo é ainda por vezes affectado: la surdem aqui alli seus
_gongorismos_; mas onde o poeta se contentou com a natureza e com a
simples expressão da verdade, ha oitavas bellissimas, ainda sublimes.
Depois de Diniz o logar immediato nos anacreonticos pertence a outro
Brazileiro.
Gonzaga mais conhecido pelo nome pastoril de Dirceu, e pela sua
Marilia, cuja belleza e amores tam célebres fez n’aquellas nomeadas
lyras. Tenho para mim que ha d’essas lyras algumas de perfeita e
incomparavel belleza: em geral a Marilia de Dirceu é um dos livros a
quem o publico fez immediata e boa justiça. Se houvesse por minha parte
de lhe fazer alguma censura, só me queixaria, não do que fez, mas do
que deixou de fazer. Explico-me: quizera eu que em vez de nos debuxar
no Brazil scenas da arcadia, quadros inteiramente europeus, pintasse
os seus paineis com as côres do paiz onde os situou. Oh! e quanto não
perdeu a poesia n’esse fatal êrro! se essa amavel, se essa ingenua
Marilia fosse, como a Virgínia de Saint-Pierre, sentar-se á sombra das
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