O retrato de Venus e estudos de historia litterária - 2

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Seu renome inda vive; e o teu com elle,
Emque lhe péze á inveja, e seus furores,
Hade eterno brilhar. Assim raivosas,
Frustradas gralhas invejosas grasnam
Á ave olympia de Jove; e entanto os vôos
Ella ao sol remontando, as mofa, e burla.
Porem mais longe da rinhosa Hesperia
Voltemos a attenção: ve como em Flandres,
Scena outr’ora infeliz da glória Franca,
Da Cypria deusa demandando a estancia
Vai turba immensa dos rivaes d’Italia.
As graças naturaes, singellas, puras
Á porfia a accompanham: não se enfeita
Por suas mãos a simples natureza:
Em loução desalinho bella, e nua
Mimos lhe outorga, que ella só conhece,
Que a vós é dado só, magos pintores,
Com arte ignota do universo ao resto
No pincel exprimir fiel, divino.
Prodigios fallem de Van-Eick famoso,
Do correcto, vivaz, firme Duréro;
Dize-o por todos; se inda alguem no mundo
Ignora tanto, que te ignore os dotes;
Fertil, brilhante, verdadeiro Rubens.
Rubens! Oh nome! Ó filhas de Memoria,
Vós, que no Pindo entre o verdor mimoso
Lhe bafejastes divinal espirito,
Quando, librado sobre as azas d’ouro
De sublime, elevada allegoria,
Viu, pintou... Ah! fez mais: creou, deu vida
A chymericos entes, vãos, mas bellos,
Que o vivo imaginar lhe debuxara.
Quam doce, e meiga a enternecida Venus
Com suspiros, com ais, com ternos bejos
Tenta a furia applacar, retter nos braços
Gradivo impaciente! Olha do monstro
O torvo gesto, o faxo sanguinoso...
Ella!... a guerra cruel! a horrivel frente
Co’a máscara da glória esconde ao numen,
E o veneno lethal lhe infunde n’alma.
Lá baqueia de Jano o templo augusto;
As artes, as sciencias calca o monstro;
E a d’auradas espigas, rubros pomos
Gentil coroa á agricultura arranca.
Ternura, horror, assolação, belleza
Com portentosa mão juntaste, ó Rubens.[6]
Quam bello é na expressão Vaén correcto!
Hólbein sublime, vigoroso, nobre!
Van-Rin saliente, harmonioso, e doce!
Quam firme é Wanderwérff singello, e puro!
E tu, mimoso Van-Dernér, que em Gnido
Bebeste as graças, possuiste os risos.
Ah! ja cançada se me affrouxa a lyra:
Rouca, e sem voz mal associa ás cordas
Difficeis nomes de estremados mestres.
Um por tantos direi; e o nome illustre
Te baste, ó Flandria, a coroar-te a gloria:
O bello, o simples, verdadeiro, e grande,
Do mestre a obra maior, Vandick insigne.
Mas, qual ruido, que tumulto, ó musas,
Do Pindo a sacra paz impio disturba?
Quanto vivem!... Que heroes da patria raios!
Armas! guerra! o furor! o sangue! a morte!
Destrôço! horror! assolações! ruinas!
Eis dos Alpes franqueado o gêlo eterno;
Nada resiste: c’o rugido extremo
Baqueia exangue de Pyrene a fera.
Co’a Europeia ruina Africa nuta,
Asia treme; e nas praias de Colombo
A fugitiva liberdade apporta.
A longes terras se accolheu Minerva,
Sem rumo as artes desgrenhadas fogem,
A Roma de Catão, d’Augusto a Roma
Não é de Pio a effeminada côrte;
E em vez d’um Fabio tardador, d’um Quincio,
D’um Bruto, um Manlio; prostituta prole
No deshonrado Capitolio avulta.
Quem, bellezas d’Italia, hade amparar-vos?
Quem!... Animos cobrai; volvei sem medo
Artes, sciencias: já no Sena ovante
O proprio vencedor no seio amigo
Vos accolhe, e accarinha, e no alto alcaçar
Augusto solio perenal vos ergue.
No Sena ovante (oh do porvir assombro!)
Em quanto os filhos seus, terror do mundo,
Raios desferem, que o universo atterram;
Renasce mais gentil, vive mais fúlgido
O sec’lo de Luiz; succede á velha,
Á pedante Sorbona, almo Instituto.
Eis novos Raphaeis, arte divina!
Não lamentes Poussin, Gallia ditosa,
De Mignard, e Blanchard divinas côres,
De Lebrun a expressão, fieis costumes,
Paizagens de Lorrain, maga ternura
Do voluptuoso, encantador Santerre,
Grandioso stylo do vivaz Subleyras:
Teus modernos heroes excedem tudo;
E ao seio da opulencia amamentados,
Á voz da glória redobrando exforços,
Talvez irão com denodado arrôjo
Do solio d’arte derribar a Italia.
Se, entre barbaras mãos gemendo outr’ora,
Devêste a Belisario a vida, ó Roma;
Se das furias crueis d’horrida guerra
O juramento te isentou d’Horacios;
Se quanto foste em gloriosas quadras
A um necessario roubo, á paz, que o segue,
Ao ferro audaz de Romulo devêste;[7]
Treme d’elles agora, treme, ó Roma;
Que no heroico pincel David illustre
As cinzas lhe animou; marcham por elle
Tua fama a conquistar, roubar teus louros:
De Urbino, e Buonarrotti o throno prostram;
Eis campeia David!--Não longe d’elle
O terno Girodet, suave, e brando,
Que, do Meschacebeu vingando as margens,
C’o vate insigne emparelhou nos vôos,
E na pasmada Europa ergueu d’Americo
As pomposas florestas, e a nobreza,
Ornamento feroz d’um mundo virgem:
Que os encantos d’amor, e os seus furores,
O podêr da virtude, e os seus exforços
Dignos d’elle exprimiu, e fez de novo
Olhos sensiveis afogar em pranto.
Eis á voz de Gérard das campas rompem
Extinctas gerações: Saturno as azas
Indignado encolheu, e a prêsa antiga
Viu roubar-lh’a o pincel, quebrar-lhe os éllos
Da impreterivel, perenal cadeia.
* * * * *
Ruge fremente o mar, bramindo, e ronca
Nas oucas rocas, nas quebradas fragas
Do tormentorio mar... Lá se ergue ingente,
E immenso troa o colossal gigante.
Treme d’entôrno o mar, e a terra, e o mundo;
E a voz, que os polos com fragor desloca,
Pela primeira vez á gente Lusa
Pallida imprime a sensação do medo.
Só impavido, um só, Vasco lhe arrosta:
Pasma a ousadia d’um mortal a um nume.
* * * * *
Oh lagrimas d’Ignez, sangue innocente,
Correi, correi do milagroso panno;
E em lagrimas de sangue o applauso eterno
Aos vates recebei, aos vates ambos.
Oh Gérard! oh Camões! qual mão divina
Vos uniu, vos juntou? Oh! folga, ó patria!
E tu, Sousa immortal, grata homenagem
Recebe eterna da mui grata Elysia.[8]
Ve nas mãos de Guérin qual geme e anceia
Pincel, que hervou na dor, que embebe em pranto,
Que incestos, crimes (de Trezena horrores)
C’o Euripides Francez disputa ainda.
Quem de pavor, de compaixão não gela
Ao ver nas murchas, esmyrradas faces
Da bella ainda, miseranda Phedra
Surgir do panno, que as conter mal póde,
D’um criminoso amor, violencia, e fogo?[9]
Guerreira a mente de Vernet fulmina
Os raios de Mavorte, o horror das armas;
E sobre os quadros de Le-Gros famoso
Os manes folgam de Rollin, Voltaire.
Mas tanta glória inda não basta, ó Francos,
Para o completo, universal triumpho:
Que no Ibero pincel inda refulge
O nome de Ribera, o de Murillo,
E duvida d’Albion mosqueada fera,
Vaidosa d’West, conceder-te a palma;
Inda lhes guardam justiçosas musas
No bifido Parnaso um grau distincto.
Assim quando no ceu, callada a noute,
Candida brilha sup’rior Diana,
Se com menos fulgor, astros com tudo,
Gentis avultam nitidas estrellas.

NOTAS DE RODAPÉ:
[6] Quadro allegorico da guerra por R.
[7] Quadros celebres de David.
[8] Celebres pinturas de Gérard na edição dos Lusiadas pelo Sr. José
Maria de Sousa.
[9] Pinturas de Guérin tiradas de Racine.


FIM DO CANTO TERCEIRO


CANTO QUARTO

Eia! colhamos as cançadas vélas,
Musa: o filhinho da amorosa Venus
Ja pelos ares liquidos se entranha,
E ledo corre co’as donosas tribus
Dos illustres rivaes da natureza.
Da Europa toda ja voaram férvidos
Da voz ennamorada ao som fagueiro,
Só Lysia falta... A minha Lysia, ó Venus!
A patria dos heroes, a mãe dos vates,
A patria de Camões, do teu Filinto!
Onde a voz de Bocage, a voz de Gomes
Sempre em teu nome resoou na lyra!
Onde a teu culto, mais que em Roma, ou Grecia,
Em cada coração se eleva um templo!
Lysia, de Venus esqueceram filhos!
Ah! volve os olhos immortaes, divinos,
Aos seculos remotos; ve no Tejo
Como entre as sombras da ignorancia Gothica
Brilham nas trevas Lusitanas tintas;
Ve do gran Manoel na épocha d’ouro
Sobre as bellas irmans como se eleva
A divinal pintura; ve mais perto,
Em quanto geme c’o ferrenho jugo
A flor, a augusta das nações princeza,
Erguer das ruinas sobranceira a frente;
E alfim nas quadras que marcara o fado
Ao brio Lusitano extremo exforço;
Calcando a juba de Leões gryfanhos,
Parando ás Aguias remontados voos,
Como á porfia sobre o Tejo e Douro
Apelles mil e mil revivem, fulgem;
Brilha o Luso pincel... Ah! se aura amiga
Continúa a soprar... Não; ferrea pésa
A mão do despotismo, opprime, esmaga,
Destroe renovos das mimosas artes.
Mas qual ouço confuso borborinho!
E sois vós! Ah! perdoa, alma Erycina:
O teu povo fiel tu bem conheces;
Nem chama-lo cumpria: é-lhe sagrada,
Inviolavel lei um teu desejo.
Ei-lo corre: que luz, que ethereo brilho
De louro e rosas lhe engrinalda as frentes!
Olha entre a nevoa de allongados évos,
De atroz barbaridade embrutecidos,
Como Alvaro rebrilha, um Nuno, um Annes,
E do energico Vasco a fertil mente;
E Duarte, e Gomes tam famosos ambos,
Tam caros ao gran rei, Manoel ditoso.
Ve do illustre Resende a mão facunda,
Trocando a penna, que mandara aos évos
Os feitos dignos de perenne historia,
Pelo arguto pincel; o sabio Carlos,
Que ao divino Correggio usurpa as cores;
Dias, que á patria transportara ovante
O mel, e as graças dos famosos mestres;
Harmonioso Christovão, claro Sanches,
Que os monarchas d’Europa inteira vira
D’honras, de bens, accumulá-lo anciosos.
Eis sobre as azas de elevado arrojo
Vinga altivo Campello o cume erguido
Dos montes de Judá. La surge, e avulta
No mysterioso panno um deus, um homem.
Pasmou a natureza ao ver confusos
No seio maternal o pae e o filho.
Mago pintor lhe renovou prodigios;
E aos tormentos d’um deus tremeu de novo
A longa serie dos criados mundos.[10]
Sensiveis corações, vinde espelhar-vos
Nos ternos quadros, que sagrou virtude;
Vinde á sombra do vate, ao seio augusto
Da sancta religião, da mãe caroavel
De humanas afflições verter o pranto:
Vinde; e entre a dor vos surgirão prazeres,
Prazeres do Christão, doçuras d’alma.
Quanta glória Fernando ao sabio mestre,
Quantos louros grangeou! Lopes sublime
Juntou d’Urbino aos expressivos rasgos
A ardideza gentil d’Angelo altivo.
Vasques douto, e regrado os traços mede
No exacto petipé da natureza.
E tu, Leonor, d’entre a nobreza e fasto,
Origens sempre de brutal inercia,
Soubeste ás artes levantar o espirito.
Qual do Luso pincel nos fastos vive.
Hollanda creador! Deusas do Pindo,
Eis novo esmêro vosso, invento novo!
Vastos arcanos da pintura se abrem,
Accumulam-se a rodo almos tesouros;
Graças lhe admira o árbitro da Europa,
E na boca dos reis louvores fulgem.
Hollanda venturoso! Ah! de tuas ditas
Taes as menores são: mais déste ás musas,
Mais a ti, ao teu nome, á patria, ao mundo
No filho, o grande filho, a glória nossa,
Mimo ao patrio pincel do numen louro.
Cedendo á voz d’um deus, que o chama a nome,
O Cicero Africano erros abjura;
Sancto prelado o omnipotente invoca,
E d’agua exulta candido Agustinho.
Portento d’expressão, viva faisca
Do lume eterno, que lhe ardeu na mente.
Vate!... Ah! não vate: um anjo, um deus te guia,
Move o arguto pincel na sabia dextra.
Do Olympo eis surge a magestade, a pompa;
Olha d’Ambrosio o venerando aspeito,
Os olhos, onde em goso alma trasborda,
D’Agustinho a humildade, e o gesto vívido,
Onde a força transluz d’activa mente,
Da eloquencia viríl, saber profundo.[11]
Pereira natural, severo e forte
O terrivel pincel por entre ruinas,
Entre chammas e horror meneia ardido.
De novo a cinzas reduzida Troia
Por elle foi; por elle Pyrro ingente
C’o faxo assolador vagou por Illion.
Antolha ouvir-se em pavidos lamentos
O confuso ulular da mãe, que espira,
E no extremo bocejo aperta os filhos,
Do pae tremente, que a rugosa face
Entre o seio da filha esconde, e geme,
E quizera morrer no doce amplexo.
O crepitar das estridentes chammas,
O baquear dos templos, dos palacios,
E quantas vozes de terror, d’espanto,
Quantas scenas d’horror cantaram vates
Nas Gregas cordas, Mantuana lyra.[12]
Elementos, cedei-lhe ao mago encanto
Das vozes do pincel! Stridentes rompem
Com ruidoso estampido as cataratas;
Confunde a natureza a essencia, os termos,
Na face do universo impera a morte,
Mysterioso baixel ao longe avulta;
E de novo o castigo formidavel
Os olhos da razão cega d’espanto.[13]
Olha como apoz elle vem seguindo
Valle expressivo, delicado e grande,
Nobre Gonçalves, entendido e ornado,
Rebello audaz, o Buonarrotti Luso,
E as do patrio pincel divinas Saphos,
Ayalla, e Guadalupe, e Ritte, e Browne,
E Luiza gentil, que os sabios tempos
Ao Porto renovou da Grega Aspasia.
Fastoso monumento d’alta Iberia,
Voragem, golphão, que absorveste os rios
Do precioso metal, que a ti correram
Do Chily, e Potozi, das Indias duas,
Soberbo Escurial, onde se aninham,
Sob apparente sacco o vicio, o crime,
Tu de Claudio por mim celebra o nome,
Do Camões da pintura, a quem deveste
De teus ornatos o maior, mais bello.
Nem sorva o Lethes de confuso olvido
Victorino engraçado, André mimoso,
Verdadeiro Apparicio, simples Barros,
Vivaz Alexandrino, destro Senna,
Barreto original, brando Oliveira,
E tu, Rocha correcto, ameno e vívido,
Que obscuras scenas da marinha Pathmos,
E o confuso vêdor nos exprimiste.
Olhos em alvo, mysteriosos seguem
Prophetico furor, que o volve e agita.
Na dextra a penna mal segura fórma
Nunca entendidas, enredadas notas.[14]
Terra fertil d’heroes, solo fecundo,
Salve! Eis novo clarão, eis novos louros
Sobre a frente gentil pululam, vivem!
Eis do patrio esplendor eterna gloria,
Raios de Lysia, que a remotas praias,
Do magico pincel nas azas d’Iris
Levaram em triumpho o Tejo e Douro,
Dous Vieiras! Não ousa a minha lyra
Dotes brilhantes numerar nas cordas:
Assaz por meu silencio o dizem, cantam
Lysia, Hesperia, Britania, Europa, o mundo.
Dest’arte á voz da meiga Cytherea,
D’amor guiados, sobre as azas do éstro,
Rapidos voam num momento, e chegam:
Pasmam de vêr a face á natureza,
Tam bella e simples qual na infancia ao mundo;
Os bosques entram: no matiz do prado
Vão com delicia apascentando os olhos.
Eis outeiro gentil se eleva á dextra;
Sobre elle... Assombro quem já viu, que iguale
Dos illustres varões subito assombro?
Amor, o mesmo amor parou de espanto,
De maravilha subita cortado.
Sobre altas se ergue Doricas columnas
De fino jaspe cupula suberba.
Brilha c’o azul do ceo linda saphira
Nos capiteis, nas bases. Das cornijas
Scintilla em fogo do carbunculo a chamma.
Mimos, riquezas de pomposo fausto,
Quantas com larga mão semeou profusas
Nas entranhas da terra a natureza,
Na vastidão dos mares; tudo aos olhos
Extasiados se ostenta. Riu do encanto,
E a causa do prodigio amor conhece:
Entra; e apoz elle os estremados chefes.
Languidamente o braço repousado
Nos hombros niveos do formoso Adonis,
Ei-la ao encontro a deusa da ternura
Lhes sai, e assim lhes falla: «Ésta, que vêdes,
Consagrada ao prazer, mansão ditosa,
Ergueu á minha voz a natureza.
De per si se puliu, lavrou-se o marmor,
E se entalharam gemmas. N’um instante
Meu doce intento completado houvera,
Se o que vós só podeis, dar-lhe eu pudera.
Frio, e sem vida não me falla ao peito,
Não falla ao coração todo esse esmêro.
Oh! cortai-lhe a mudez, dai-lhe existencia,
E c’o mago pincel tornai-o á vida.»
Disse: e a divina voz do ouvido aos peitos
Chammas d’estro, e de ingenho accende aos vates;
E em breve espaço divinaes assomos
D’aqui, d’alli se apinham. Clio alteia
Com portentosa mão contados feitos;
Alem da natureza o vôo erguido
Alça a maga, gentil Alegoria;
Desalinhada, rustica beldade,
Singella, e pura a Paizagem doce
Sem mysterio, sem véo candida ostenta.
Ja vida é tudo; satisfeita a deusa
Vai alfim completar os seus intentos;
E c’um meigo surrir, c’um doce agrado,
Que vale tanto, que enamora tudo,
Assim lhes falla a carinhosa Venus:
«Vinde, ó filhos; que um nome tam suave
Vossos dotes merecem; vinde: e a empresa,
Que na mente revolvo, effeituai-me.
Não mando, peço... (Ah! d’uma bella o rogo
Quanto mais vale, que uma lei d’um nume!)
Retratai-me, ó pintores.» Nisto a deusa
O mimoso sendal, ja pouco avaro
Do thesouro, despiu. Quantas bellezas,
Que divinos encantos não descobrem,
Não pesquizam, não vem avidos olhos!
Sonhos da phantasia, ah! não sois nada!
Guindado imaginar, ideal belleza,
É frouxo o vôo, limitado o arrôjo;
Não tenteis franquear mysterios tantos.
Cai das mãos o pincel, sem que o percebam,
Aos pintores na vista embevecidos;
No Olympo os deuses, ignorando a causa,
De insolito prazer sentem banhar-se.
A natureza inteira revolveu-se;
Sonhada Pythagorica harmonia
Nas espheras soôu mais branda e doce.
Aos entes todos pelas veias lavra
O incentivo do gosto: gemem ternas,
Que ha pouco uivaram, pelo bosque as feras;
Arrulharam d’amor meigas pombinhas;
Correu á esposa o nadador salgado;
E nos olhos da amante leu ditoso
O constante amador perdão á culpa;
Á doce culpa tam querida e bella!
Ah! muitas vezes não descubras, Venus,
Magos encantos; ou verás que em breve
Á força de prazer se extingue o mundo.
Ja do extasi accordada um pouco a turba
Dos vates se prepara ao doce emprego.
Tintas fornece amor, pinceis as graças;
E eis no panno avultando a pouco e pouco
Assomos divinaes!... É ella... é Venus!
Eis a fórma gentil do corpo airoso
Salta, deslisa o fundo apavonado;
Roseos descurvam, se arredondam braços;
Ondeiam n’alva frente as tranças d’ebano;
Doce brilham d’amor os olhos meigos,
Os meigos olhos, que prazer scintillam,
Que o facho accendem dos desejos soffregos,
E contra o debil resistir do pejo
Do atrevido mancebo a audacia imploram.
Nas lindas faces purpureia a rosa,
Que insensivel esvai na côr de neve;
Surri nos labios o delirio, o encanto,
Que importuna razão tam doce affasta,
Que ávidos bejos, deliciosos, ternos,
Annuncios de prazer, mutuam fervidos.
Despontam no alvo, crystallino collo
Os arcanos d’amor, que anceiam d’elle,
Que a furto ousaste, mui ditoso Anchises,
Nas trevas do prazer palpar ardido;
Formosos pomos, que ao pastor Idalio
Pelo tam cubiçado outr’ora déste...
Déste; que bem o sei: (não te envergonhes)
Era pobre o pastor, e os seus thesouros
Juno lhe franqueou, seus mimos Pallas:
Sem troca tam gentil tu não vencêras.
Mas quanto voa nas mui sabias dextras
O divino pincel! Que eburneas fórmas
Voluptuosas surgir das tintas vejo!
Que exactas, lindas proporções esbeltas!
Que norma tam gentil as regra, as mede!
Ja, por milagre de Cyprina, é prompta
N’um momento a grande obra. Ei-los de novo
Á vista do retrato absortos, raptos,
E, novos Pygmaliões, por elle anceiam.
De transportada a deusa ao doce amante
Nas mãos a entrega; e: «Esta (lhe diz) conserva
Copia fiel da tua amada Venus.
Com ella, ausente, ó caro, te consola,
Quando longe de ti me retiverem
Crueis deveres, perfidas suspeitas.»
Admira o joven a belleza, as graças
Do mimoso traslado; beja, e rega
Com lagrimas d’amor qual um, qual outra.
Co’elle, em quanto viveu, sempre abraçado
As poucas horas, que ficava ausente,
Mitigava a saudade: e quando a morte
O mancebo infeliz roubou sem pejo,
No templo a deusa o collocou de Paphos,
E longas eras recebeu d’amantes
Ternas off’rendas, amorosos votos.
Alli, quando natura se empenhára
Em dar-te ao mundo, carinhosa Annalia,
Um e um copiou meigos encantos,
Que, ó minha Venus, te compõe, te adornam.
Alli, olhos no quadro, os teus formosos
Estremada rasgou; alli as faces
De neve, e rosas coloriu divinas;
Alli risonha boca, onde contino
Foi aninhar-se amor, te abriu mimosa;
Alli o collo d’alabastro puro;
Os lacteos pomos, que devoram bejos
Do faminto amador; lisas columnas,
Que sustentam avaras mil segredos;
Segredos, que... Perdoa: eis-me calado.
Volve a meus versos, compassiva amante,
Benignos olhos: para ti voando,
Da critica mordaz censuras fogem:
Se accolheres o rude offertamento,
Serão meus versos, como tu, divinos.
FIM DO ULTIMO CANTO

NOTAS DE RODAPÉ:
[10] Quadros da paixão de Ch. por Campello.
[11] Quadro do baptismo de S. Agustinho.
[12] Quadro da destruição de Troia.
[13] Quadro do diluvio.
[14] Quadro de S. João, escrevendo o Apocalypse.


NOTAS


Notas ao canto primeiro

«_Alma origem do ser, germe da vida._»
..... Per te quoniam genus omne animantum
Concipitur, visitque exortum lumina solis;
......................................
....... tibi suaves dedala tellus
Summittit flores.
LUCRET. _de rer. nat._ Lib. I.
«_Que na ellipse invariavel rotam fixos._»
Todos sabem, que tal é a orbita, que todos os planetas descrevem.
«_Qual és, qual foste, qual te appura os mimos
A arte engenhosa._»
Artes repertæ sunt, docente natura.
CIC. _de leg._ Lib. I, 8.
«_Como é dado aos mortaes bellezas tuas._»
Platão, fallando da musica, diz: (_De republ._) que se não deve
conceituar pelo prazer, nem preferir a que não tem outro objecto, senão
o prazer; mas a que em si contiver a similhança da _bella natureza_.
Esta sentença é perfeitamente applicavel á pintura. E tal é d’ha
muito a opinião de todos os rhetoricos e philologos. (Vid. Aristot.,
Le Batteux, Laharpe, Lemercier, etc.) Não nos enganemos porém com
esta--_natureza bella_.--Nem só aquillo que tem _bellas_ e lindas
fórmas, é _bello_; e nem tudo aquillo, que as tem, o é. Boileau o
declara manifestamente, e o prova:
Il n’est point de serpent, ni de monstre odieux,
Qui, par l’art imité, ne puisse plaire aux yeux.
D’un pinceau délicat l’artifice agréable
Du plus affreux objet fait un objet aimable.
BOILEAU: _Art. Poet._ Chant 3.
«_A mestra, a sabia antiguidade o diga._»
Quid virtus, et quid sapientia possint
Utile proposuit nobis exemplar.
HORAT. _Ep._ II, L. I.
......... Fabularum cur sit inventum genus,
Brevi docebo. Servitus obnoxia... etc.
PHOEDR. Lib. III, prolog.
«_Não: fabula gentil, volve a meus versos._»
......... Et, s’il est vrai, que la fable autrefois
Sut á tes fiers accents mêler sa douce voix;
Si sa main délicate orna ta tête altière;
Si son ombre embellit les traits de ta lumière,
Avec moi sur tes pas permets-lui de marcher.
Pour orner tes attraits, et non pour les cacher.
VOLTAIRE: _Henr._ Chant I.
Cosia egro fanciul porgiamo aspersi
Di soave licor gl’orli del vaso, etc.
TASSO: _Gerusalem_ Canto I, stanz. 3.
«_....... O Cyprio moço, o Teucro._»
Adonis, filho de Cyniras, rei do Chypre (_Cyprum_) Anchises, Troiano
etc.
Achises conjugio Veneris dignate superbo.
VIRG. _A En._ Lib. 2.
«_Em quanto nas lidadas officinas.M_»
Retumbam nas _lidadas officinas_
Echos gostosos das nascentes almas,
Que novos corpos a habitar caminham.
FILINT. ELYS. _Ode a Venus_ (Tom. 5).
«_C’o estremecido arrulho a dona imitam._»
Presentem ja no _estremecido arrulho_
Os propinquos prazeres.
FILINT. ELYS. ibid.
«_Porque mesquinhas leis nos vedam barbaras
Tam suave pecar......_»
Si il peccar è si dolce,
E’l non peccar si necessario; ò troppo
Imperfetta natura,
Che repugni ala legge!
O troppo dura legge,
Che la natura offendi!
GUARINI: _past fld._
Se este crime é tam doce,
Se tanto fugir delle é necessario;
Imperfeita parece a natureza,
Que fraca á lei repugna,
Ou lei muito severa,
Que a natureza offende.
_Traducç. de_ THOM. JOAQ. GONZAGA.
«_E do amado na dor, sua dor recresce._»
Che l’esempio del dolore
È un stimolo maggiore,
Che richiama a sospirar.
METASTAZ: _Artass._ atto I.
«_Dos antigos errores esquecido._»
Errores é usado por Camões no sentido de--_longas, e desvairadas
viagens_--; Ferreira porem, e outros classicos de igual nota o tomaram
na mesma accepção, em que aqui se toma.
«_Com o amante fugir, morrer com elle?_»
Uma deusa não póde morrer: me diz ja algum critico, muito contente do
quinau. Assim é, Sr. critico; mas no delirio das paixões quem se lembra
da sua natureza?--Uma deusa com paixões!--Os deuses da mythologia, os
numes dos Gregos, e Romanos não são o mesmo que o deus do philosopho
(digno de tal nome) que, satisfeito de reconhecer a existencia d’um
ente supremo, pára, onde se lhe acabam as forças, nem prosegue em
investigações, onde se lhe apaga a luz da fraca razão; nem empresta
á desconhecida causa das causas os habitos, as paixões, a fórma, e
toda a natureza da fragil e apoucada humanidade. O orgulho de se
occultar a si proprio a sua fraqueza, e de abaixar até á sua mesquinhez
a idea de deus, por não poder subir até á altura d’ella, nasce da
nossa vaidade, da nossa ignorancia e da nossa miseria. Por isso os
theologos desbocadamente nos pintam, e nos querem fazer crer em um deus
vingativo, irado, e capaz em fim de todos os crimes e vicios, que elles
em sua alma alimentam e nos querem vender por virtudes.
«_..... Comsigo ao carro o sobe._»
Subir é um verbo neutro; mas é este um idiotismo bem notavel da nossa
lingua, usar de taes verbos com força activa, como o fazem os nossos
classicos a cada passo.
«_Que lhe spira dos labios, das pupillas._»
Aquelle não sei que,
Que _spira_ não sei como,
Que invisivel sahindo, a vista o vê.
CAMÕES: _Ode 6_.
_Spirem_ suaves cheiros
De que se encha este ar todo.
FERR. _Castr._ act.
«_Arde voltar ao suspirado asylo._»
... Jamdudum errumpere nubem
_Ardebant_.
VIRGIL. _AEneid._ L. I. v. 580.
«_Disenhos volve..........._»
Esta palavra mui portugueza e antiga (embora de origem estrangeira)
não é gallicismo; exprime bem o--_dessein_--francez, e tem por si a
auctoridade d’um escriptor bem notavel e bem antigo, qual é Damião de
Goes. (v. Chron. de D. Man. part. I, cap. 4, e _passim_).
«_Que tam suave rege a natureza._»
......... Omnis natura animantium
Te sequitur cupide.
LUCRET. Lib. I. v. 15.
«_Mal disse; e o raio mais veloz não rue._»
Este verbo muito adoptado por Filinto Elysio, e pelo erudito traductor
da lyrica de Horacio, Antonio Ribeiro dos Santos; e cujos compostos,
e derivados ja tinhamos (_correr_, _decorrer_ etc.) tem todas as
qualidades necessarias para a sua naturalisação.
«_Da rubra dextra do Tonante irado._»
........ _Et rubente_
Dextra sacras jaculatus arces
Terruit urbem.
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