O retrato de Venus e estudos de historia litterária - 6

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Italia, onde ouviu as lições de Raphael; honra, que bem mereceu por seu
aproveitamento. Chamado por Philippe II á Hespanha ennobreceu Madrid;
e sobre tudo o Escurial com suas pinturas. Um dos poucos exemplos do
merecimento premiado foi este illustre portuguez. João III de Portugal,
Philippe II, Gregorio XIII, o grão duque de Toscana, o da Saboia,
o cardeal Alexandre Farnese o estimaram, enriqueceram e honraram á
porfia. Sua alma bemformada escutou sempre a voz da natureza; e o
philologo não excedeu n’elle o homem. (_Vide_ Palomino, Bermudes, etc.)
Fernão, ou Fernando Gomes, mandado á Italia por D. Manoel, e em
consequencia vivendo no principio do seculo XVI, foi aproveitado
discipulo de Miguel Angelo; e suas obras o provam bem.
Manoel Campelo tambem enviado á Italia, e tambem do mesmo tempo. Ainda
hoje se admira em Belem nos seus quadros aquella correcção de desenho
da eschola Romana, aquella grandeza de stylo, que faz a glória de
Miguel Angelo, seu mestre, e que a não faz menos do illustre discipulo.
Estas brilhantes qualidades lhe grangearam os elogios de todos os
sabios nacionaes e estrangeiros. (_Vid._ D. Francisco Manoel de Mello:
_Hospital das lettras_; Guarenti, etc.)
Vasques... viveu pelos annos de 1562. Poucos pintores souberam, como
elle, anatomia tão necessaria para o bom desenho, e proporções, em que
se avantajou, e que lhe déram um mui distincto logar na historia da
arte, apezar de seu stylo um pouco rude.
Christovão Lopes n. 1516, m.... O stylo pomposo de Miguel Angelo, que
tanto agradava ao genio sublime e elevado dos portuguezes, foi o seu
modelo; e juntando a tam brilhante qualidade a expressão de Raphael,
enriqueceu a Patria com as magnificas producções, que ainda hoje são
admiradas depois de tantos seculos pelos sabedores, e amantes das
boas-artes.
D. Leonor de Noronha da casa de Linhares, n. 1550, m. 1636. De Duarte
Nunes de Leão na _Descripção de Portugal_, e de Barbosa na _Biblioth.
Lus._ sabemos só que pintou _excellentemente a oleo e illuminação_.
Antonio de Hollanda, inventor da illuminação a pontos brancos e pretos
em Portugal; e com tanto mais merecimento, que absolutamente ignorava
a mesma descoberta, que então se começava na Italia. Delle disse o
Imperador Carlos V, que _mejor le habia sacado al natural Antonio de
Hollanda en Toledo de iluminacion, que Ticiano en Boloña_. Bem pouco
vale este elogio, porque homens desta classe nada entendem de ordinario
de tudo o que póde ter algum valor ou merecimento, tendo de mais a
mais a presumpção do voto decisivo. Não consta porém, que Deus creasse
mais que um Salomão, e como este _um_ morreu ha muito tempo, e estes
senhores se não dão o incommodo de fazer aquillo, que fazem os que
não são Salomões, ou não tem a tal _infusa_, é bem claro o valor de
similhantes elogios. Carlos V porém (façamos justiça) posto que o mais
odioso monarcha por seu cruel despotismo, não era com tudo o mais tolo,
e algumas luzes lhe tinham ficado de senso commum, que se costumam
apagar com a...
Francisco de Hollanda floreceu pelo meio do seculo XVI.--Pintor,
architecto, poeta e philosopho.--Na Italia Paulo III, e todos os
grandes e sabios; toda a Hespanha; em Portugal João III, e toda a côrte
o estimaram como merecia. (Pois n’aquelle tempo tambem em Portugal
se dava preço ao merecimento!) O muito que se tem escripto sobre
este memoravel portuguez, me desobriga de mais extensa apologia. De
sobejo lh’a fazem seus preciosos escriptos, suas pinturas, e toda a
Europa.--De suas producções é sem questão a obra-prima, o baptismo de
S. Agustinho (que ainda se conserva em cabeça de morgado na casa dos
Castros) em que se admiram reunidos a sabia composição de Raphael,
o desenho nobre e altivo de Mig. Angel., e o bello colorido de
Ticiano.--Julga-se que morreu em 1574.

PINTORES PORTUGUEZES DA III EPOCHA
(Seculo XVII)
Diogo Pereira n. 1570, m. 1640. Trabalhou muito; e o desvalimento, em
que sempre viveu, não lhe affrouxou as graças naturaes e puras, que
fazem a belleza de suas composições. Mas sobre tudo as scenas de horror
foram o mimo do seu pincel. Tive o prazer de admira-lo muitas vezes em
suas obras, que por decisiva prova de merecimento, são procuradas por
altissimos preços para Italia, França e Inglaterra.
Estevão Gonsalves Neto n..., m. 1627. É delle o missal do convento de
Jesus tam gabado pelas excellentes miniaturas que o ornam. Soube bem o
ornato e perspectiva.
Amaro do Valle n..., m. em 1619. Seu gosto é delicado; seu stylo grande
e expressivo; o desenho correcto, e assizada a perspectiva. Foi pintor
de Philippe II.
José de Avelar Rebello viveu no tempo de D. João IV, que o condecorou
com o habito de Aviz. Caracterizam suas obras (das quaes a melhor é o
_S. Jeronymo_ da livraria de Belem) um stylo da grandeza de Mig. Ang.,
e um colorido de summa verdade.
D. Josepha de Ayala n..., m. 1684. Um ingenho fertil, muita verdade,
expressão vivissima são a caracteristica de seus quadros, pela maior
parte, de flores e fructos; mas o seu grande genero foi o retrato.
Claudio Coelho n..., m. 1693. Este homem tam grande e tam conhecido
tem sido abocanhado por muitos, e exagerado por alguns; mas a opinião
geral o constitue n’um dos mais superiores graus entre os mais
illustres pintores. Desenhou correctamente; coloriu como Ticiano; e
conheceu, como poucos, o effeito da perspectiva. Tudo isto se observa
principalmente no seu primoroso quadro da sacristia do Escurial bem
divulgado pela moderna estampa de Bartholozzi. (_Vid._ Palomin. _Mus.
Hist._ pag. 440 até 444; o abbade Ponzz. _Viag. d’Esp._ Tom. V. pag.
65 até 126; Bermudez _Diccion. histor._ Tom. I. pag. 337 até 347;
Bourgeoin _Tableau de l’Espagne moderne_ Tom. I. pag. 227).
Bento Coelho viveu no XVII sec. Grande facilidade, bom colorido, como o
de Rubens, que imitou; pouca correcção no desenho. Conservam-se ainda
muitas de suas obras.

PINTORES PORTUGUEZES DA IV EPOCHA
(Seculo XVIII)
Victorino Manoel da Serra n. 1692, m. 1747. Foi o primeiro, que em
Portugal introduziu o gôsto e ornato francez.
André Gonsalves, n..., m.... Foi correcto no desenho, e bom no
colorido; mas seu merecimento principal é o de copista.
Ignacio d’Oliveira, n..., m. 1781. Distinguiu-se sobre tudo pelos
encantos do colorido: estudou em Roma, e trabalhou muito em Mafra.
Francisco Vieira Lusitano n...., m. 1783. Estudou muito em Roma, aonde,
por concurso, levou o premio da academia de S. Lucas. Foi grande na
alegoria; desenhou bem, coloriu divinamente, e teve muita expressão.
Apezar de tudo o que a inveja e a ignorancia tem suscitado contra
este grande mestre, elle será sempre um d’aquelles, com que a pintura
nacional mais se honra e ennobrece. Vieira Lusitano é muito conhecido,
para me obrigar a maior elogio.
Joaquim Manoel da Rocha n. 1730, m. 1786. Distinguiu-se pela correcção
do desenho, e muita expressão. Foi director da academia do _nu_, e
professor na aula do desenho de Lisboa.
Francisco Apparicio n...., m. 1787. Distinguiu-se muito no retrato e
sobre tudo, por uma grande verdade de colorido. Estudou em França.
Luiz Gonsalves de Senna, n. 1713, m. 1790. Foi mui destro no pintar; e
em Lisboa se vêm muitas obras suas de grande merecimento.
Jeronymo de Barros Teixeira n. em 1750, m. em 1803. O stylo simples
e natural, bom colorido, muita sciencia de claro-escuro, e de
architectura, grande talento para o retrato o constituem em mui
distincto logar na ordem dos bons artistas.
Pedro Alexandrino de Carvalho n. 1730, m. 1810. Teve um pincel livre,
viveza de côres, e maneiras engraçadas, e foi um dos directores da
academia do _nu_.
José Teixeira Barreto nasc. no Porto 1763, m. 1810. Estudou muito em
Roma, e com grandes mestres. Seu stylo é caprichoso, mas bello. Foi
lente de desenho na academia do Porto.
Francisco Vieira Portuense n. 1765, m. 1805. Foi primeiro-pintor da
camera e côrte, director do instituto de desenho do Porto, e estimado e
honrado de toda a nação, e das estrangeiras, principalmente da Ingleza.
Foi premiado pela academia de Londres. Pintou no stylo do Guido e
Albano; e, no seu genero, não deixou aos portuguezes nada que invejar
ás outras nações.
FIM

NOTAS DE RODAPÉ:
[28] Nunca pude affeiçoar-me a D. João III apesar da sua piedade e
bondade, apezar do seu amor das sciencias, protecção que lhes deu,
etc., etc. Donde virá isto? Será do seu ainda maior amor, e do generoso
accolhimento, que fez á Sancta Inquisição.
[29] E com effeito qual será o bom portuguez, que possa perdoar a Faria
e Sousa o ter escripto as suas historias em castelhano? Os seus taes
e quaes commentarios a Camões, ao melhor dos escriptores portuguezes,
ao mais célebre da sua nação, na lingua dos oppressores da patria, dos
tyrannos de Portugal?
[30] Todos sabem que a philosophia
Aristotelico-Thomistico-escholastica, tam querida de nossos avós, era o
opposto diametral d’aquella deffinição de Seneca: _Non est philosophia
populare arteficium, nec ostentatione paratum. Non in verbis, sed in
rebus est._ SENEC. Epist. XVII ad Lucil.
[31] Em Coimbra não teve effeito: dizem as más linguas, que por ser
cousa d’utilidade e especie ommissa nos _ff._ e _Inst._
[32] Na regencia do actual reinante, e demencia da rainha.


BOSQUEJO
DA
HISTORIA DA POESIA E LINGUA PORTUGUEZA


A QUEM LER

A minha primeira ideia quando intentei esta collecção, foi dar ao
publico um extracto das melhores poesias de nossos classicos. Reflecti
depois que não seria ella completa, porque alguns generos ha que não
tractaram aquelles illustres escriptores: e em tam rica litteratura
como é a portugueza, pena fôra mostrar pouquidade e pobreza. Resolvi-me
por esse motivo a sahir dos limites classicos. Mas ainda apparecia
outra difficuldade: especies ha de poesia em que não escreveram senão
auctores vivos; atterrava-me a lembrança de haver de julgar e escolher
obras que aguardam ainda o conceito da posteridade, quasi sempre
unico tribunal recto das cousas dos homens, especialmente de materia
de gôsto. Todavia o mesmo motivo de querer fazer esta escolha o mais
completa que é possivel, me determinou a arrostar ess’outro escolho.
Procurei nos escriptores vivos cingir-me quanto racionavelmente pude
á mais geral opinião, escolhendo aquelles trechos que mais approvados
teem sido; observando pela minha parte a mais rigorosa imparcialidade
que humanamente se póde. E sendo, como sou, alheio a toda disputa e
rivalidade litteraria e poetica, se alguma hora no decurso d’esta obra
julgarem deslisei d’essa proposta impassibilidade, peço que o attribuam
a erro de meu juizo, não a proposito deliberado.[33]
Queria eu tambem ao principio conservar a cada escriptor sua
particular orthographia; mas a isso obstaram dous insuperaveis
obstaculos. Primeiro--não haver, sôbre tudo nos classicos, uma base
boa ou má em que cada um d’elles fundasse a sua orthographia para se
poderem regularizar as incalculaveis anomalias que se encontram em uma
mesma obra, na mesma pagina ás vezes. Segundo--que havendo sido muitas
das obras de nossos poetas antigos e modernos publicadas posthumas, é
impossivel acertar com o verdadeiro systhema orthographico d’elles.
Esta impossibilidade augmentou ainda e se estendeu áquelles que apezar
de publicarem suas obras em vida, cahiram em mãos de novos editores
todos ignorantes ou descuidados (nenhum conheço, a quem fique mal o
epitheto) que em vez de as melhorarem, estragaram e confundiram tudo.
Ora d’alguns d’esses não foi possivel, por mais diligencias que se
fizeram, descubrir as primeiras edições, as quaes, segundo observei,
ainda assim, não serviriam de muito.
Accresciam a estes dous motivos a feia apparencia que teria a obra que
mais houvera ficado recosida manta de retalhos furtacôres, do que uma
collecção de poetas da mesma lingua.
Determinei pois imprimir tudo com regular e geral orthographia; cujos
principios extrahi do uso dos melhores classicos, uso que nem sempre
seguiram, mas que manifestamente se vê quizeram seguir; e são estes:
I. Conservar fielmente a ethymologia quando se lhe não oppõe a
pronúncia.
II. Combiná-la com a pronúncia quando ésta se oppõe á inteira
conservação d’aquella.
III. Nas palavras de raiz incognita seguir o uso geral.
IV. Nas diversas modificações dos verbos conservar sempre a figurativa
quando a pronúncia não obsta.
V. Não pôr accentos (agudo e circumflexo que são os unicos
portuguezes) senão onde a palavra sem elles se confundiria com outra.
(Tambem me servi do agudo para marcar a dieresis por não estar aínda
adoptado entre nós o signal (..) que é bem necessario).
Julgo haver prestado algum serviço á litteratura nacional em offerecer
aos estudiosos de sua lingua e poesia um rapido bosquejo da historia
de ambas. Quem sabe que tive de encetar materia nova, que portuguez
nenhum d’ella escreveu, e os dous estrangeiros Bouterweck e Sismondi
incorrectissimamente e de tal modo que mais confundem do que ajudam a
conceber e ajuizar da historia litteraria de Portugal; avaliará decerto
o grande e quasi indizivel trabalho que me custou esse ensaio. Não
quero dá-lo por cabal e perfeito; mas é o primeiro, não podia se-lo.
Além de que, a maior parte das ideias vão apenas tocadas, porque
não havia espaço em obra de taes limites para lhe dar o necessario
desenvolvimento.

NOTAS DE RODAPÉ:
[33] Muito tempo hesitei se daria logar n’esta collecção a um poeta
(hoje morto) em quem de certo houve algum ingenho, mas que ignorou
e desprezou a tal ponto a lingua, tam cynicamente violou o decoro
do stylo, as mais indispensaveis regras do gôsto e da boa razão,
que seus poemas são uma _sentina_ de gallicismos, e um apontoado de
termos baixos, de expressões que não usa gente de bem, de construcções
barbaras, de versos prosaicos, semeados áquem além de uma ideia feliz,
de um bom verso, de uma imagem poetica. Já se vê que esta descripção
a ninguem quadra senão ao Santos e Silva. Cedi tambem n’este ponto
á opinião que o considera mais do que elle vale, e escolhi o que me
pareceu menos barbaro da tal excentrica Braziliada: e provavel é que
escolhesse mal, porque difficil é julgar um homem bem quando está
_cahindo com somno_.
Fui obrigado a pôr um grande pedaço, porque em maior espaço appareceria
um maior numero d’esses poucos _descuidos_ felizes do auctor.


BOSQUEJO
DA
HISTORIA DA POESIA E LINGUA PORTUGUEZA


I
Origem de nossa lingua e poesia

A lingua e a poesia portugueza (bem como as outras todas) nasceram
gemeas, e se criaram ao mesmo tempo. Erro é commum, e geral mesmo entre
nacionaes, pela maior parte pouco versados em nossas cousas, o pensar
que a lingua portugueza é um dialecto da castelhana, ou hespanhola
segundo hoje inexactamente se diz.
Das variadas combinações das primitivas linguagens das Hespanhas com o
Grego, o Latim, com os barbaros idiomas dos invasores do norte, e alfim
com o Arabigo, nasceram em diversas partes da Peninsula diversissimas
linguas que nem dialectos se podem chamar geralmente, porque, além de
não haver uma commum, de muitos d’elles é tam distincta a indole e tam
opposta que se lhes não colhe similhança.
Ninguem ignora hoje que o Proençal foi a primeira que entre as linguas
modernas se cultivou, mas que por sua breve dura não chegou nunca á
perfeição. Das nações da Hespanha, as mais vizinhas áquelle crepusculo
de civilização primeiro melhoraram sua linguagem: mas tambem lhes
coube igual sorte; nunca de todo se puliram. O Castelhano e Portuguez,
que mais tarde se cultivaram, permaneceram pelo sabido motivo da
conservação da independencia nacional, e vieram a completo estado
de perfeição e caracter cabal de linguas cultas e civilizadas. O
Biscaínho, Catalão, Gallego, Aragonez, Castelhano, Portuguez e outras
mais foram e são ainda alguns distinctos idiomas: porém so os dous
ultimos tiveram litteratura propria e perfeita, linguagem commum e
scientifica, tudo emfim quanto constitue e caracteriza (se é licita a
expressão) a _independencia_ de uma lingua.
Grande similhança ha entre o Portuguez e Castelhano; nem podia ser
menos quando suas capitaes origens são as mesmas e communs: porém tam
parecidas como são pelas raizes de derivação; no modo, no systhema
d’essas mesmas derivações, na combinação e amalgama de identicas
substancias e principios se vê todavia que diversos agentes entraram,
e que mui variado foi o resultado que a cada uma proveio. Filhas dos
mesmos paes, diversamente educadas, distinctas feições, vario genio,
porte e ademan tiveram: ha comtudo nas feições de ambas aquelle _ar de
familia_ que á prima vista se colhe.
Este ar de familia enganou os estrangeiros, que sem mais profundar,
decidiram logo, que o Portuguez não era lingua propria. Esse achaque
de decidir afoitamente de tudo é velho, sobre tudo entre francezes,
que são o povo do mundo entre o qual (por philaucia de certo) menos
conhecimento ha das alheias cousas.
Sem dúvida é que a lingua portugueza começou com seus trovadores,
unicos no meio do estrepido das armas que algum tal qual cultivo lhe
podiam dar; e provavel é que assim fosse com pouco melhoramento até os
tempos d’el-rei D. Diniz, que no remanso da paz de seu reinado protegeu
e animou as lettras, que elle proprio cultivou tambem.


II
Primeira epocha litteraria; fins do XIII até os principios do XVI sec.

D. João I o eleito do povo, e o mais nacional de todos os nossos reis,
deu ao idioma patrio valente impulso, mandando usar d’elle em todos os
actos e instrumentos publicos, que até então se fazim em Latim. Foi
esta lei carta de alforria e de cidade para a lingua que atélli vivera
escrava da dominação latina, a qual sobrevivera não só ao imperio
romano, mas a tantas conquistas e reconquistas de tam desvairados povos.
Aqui se deve pôr a data da verdadeira aurora das lettras em Portugal,
que por singular phenomeno pouco visto entre outros povos, raiou ao
mesmo tempo com a das sciencias; por maneira que quando o romantico
alaúde de nossas musas começava a dar mais afinados sons, e a subir
mais alto que o atélli conhecido, as sciencias e as artes cresciam a
ponto de espantar a Europa, mudar a face do mundo, e alterar o systema
do universo.
Desde então até á morte d’el-rei D. Manuel, tudo foi crescer em
Portugal; artes, sciencias, commércio, riqueza, virtudes, espirito
nacional.
Muitas foram as producções de nossa litteratura n’aquelle seculo
de glória em que Gil-Vicente abriu os fundamentos ao theatro das
linguas vivas, Bernardim Ribeiro puliu e adereçou com alguns mimos
da antiguidade o genero inculto dos romances[34] e seguiu (quasi o
segundo) o caminho encetado pelo nosso Vasco de Lobeira nas composições
romanescas; e ao cabo mostrou aos rusticos pastores do Tejo alguns dos
suaves modos da frauta de Sicilia que nenhuma lingua viva até então
ouvira soar.
A natural suavidade do idioma portuguez, a melancholia saudosa de
seus numeros nos levaram á cultura d’este genero pastoril, em que
raro poeta nosso deixou de escrever, quasi todos bem, porque a lingua
os ajudava; nenhum perfeitamente, porque (inda mal) deram ás cegas
em imitar Sannazaro, depois Boscan e Garcilasso, e copiaram pouco
do _vivo_ da natureza, que tam bella, tam rica, tam variada se lhes
presentava por todas as quatro partes de que em breve constou o mundo
portuguez, e das quaes todas ou assumpto ou logar de scena tiraram
nossos bucolicos. Nem d’este geral defeito[35] (o maximo que por
ventura se lhes nota) póde fazer-se excepção, senão fôr alguma rara
em favor de Camões e de Rodrigues Lobo. O Tejo, o Mondego, os montes,
os sitios conhecidos de nosso paiz e dos que nos deu a conquista,
figuram em seus poemas; porêm raro se vê descripção que recorde alguns
d’esses sitios que já vimos, que nos lembre os costumes, as usanças,
os preconceitos mesmos populares; que d’ahi vem á poesia o aspecto e
feições nacionaes, que são sua maior belleza.
Bernardim Ribeiro foi um tanto mais original em sua simplicidade,
o que lhe falta de sublime e culto sobeja-lhe em brandura, e n’uma
ingenua ternura que faz suspirar de saudade, d’aquella saudade cujo
poeta foi, cujos suaves tormentos tam longo padeceu, e tam bem pintou.
Foi seu contemporaneo Gil-Vicente fundador do theatro moderno, de cujas
obras imitaram os Castelhanos; e d’ellas se espalhou pela Europa o
mau e o bom d’essa irregular e caprichosa scena, que ainda assim suas
bellezas tem.
O proprio Gil-Vicente não deixa de ter seu comico sal, e entre
muita extravagancia muita cousa boa. Bouterweck e Sismondi parece
que escolheram o peior para citar; muito melhores cousas tem,
particularmente nos autos, superiores sem comparação ás comedias. A
soltura da phrase, e a falta de gôsto são os defeitos do seculo; o
ingenho que d’ahi transparece é do homem grande e de todas epochas[36].

NOTAS DE RODAPÉ:
[34] Não no sentido de _novellas_, mas no que então se lhe dava.
[35] Commum tambem nos outros generos de poesia, onde quer que entra o
descriptivo.
[36] Reservo-me para uma edição que pretendo publicar do nosso Plauto,
fructo de longo e penoso trabalho, para examinar melhor este ponto, e
demonstrar o que aqui enuncio.


III
Segunda epoca litteraria; idade de ouro da poesia e da lingua desde os
principios do XVI até os do XVII sec.

Com a morte d’el-rei D. Manuel declinou visivelmente a fortuna
portugueza: certo é que as artes progrediram, que a lingua se
aperfeiçoou; porêm esse movimento era continuado ainda do impulso
anterior e já não promettia longa dura. Assim succedeu. D. João III
colheu os fructos do que D. Manuel havia semeado; mas de lavras suas,
nem elle, nem seus successores viram colheita.
Uma cousa todavia que muita influencia teve sobre a lingua e
litteratura portugueza e que a instituições de D. João III se
deve, foi o cultivo das linguas classicas, que na reformação da
universidade de Coimbra augmentou muito. Os modelos gregos e romanos
foram então versados de todas as mãos, estudados, traduzidos,
imitados. Aperfeiçoou-se a lingua, enriqueceu-se, adquiriu aquella
solemnidade classica que a distingue de todas as outras vivas, seus
periodos se arredondaram ao modo latino, suas vozes tomaram muito da
euphonia grega; d’um e d’outro d’esses idiomas lhe vieram as muitas,
e principalmente da grega, os muitos hyperbatos; com o que vai rica,
livre e magestosa por todas as provincias da litteratura, que tem
decorrido, não havendo ahi genero de composição, para o qual, ou por
doce de mais como o Toscano, não seja propria,--ou por mui aspera e
guindada como o Castelhano, se não adapte,--por curta como o Francez,
não chegue,--por inflexivel e rispida como o Alemão e Inglez, se não
amolde.
Claro é que a historia, a oratoria, todas as artes do discurso deviam
de florescer com tal augmento. Com ellas todas medrou e cresceu a
poesia na delicadeza, na harmonia, no gôsto; porêm desmereceu muito,
demasiado na originalidade, no caracter proprio, que perdeu quasi todo,
em a _nacionalidade_, que por mui pouco se lhe ia. Todos os deuses
gregos tomaram posse do maravilhoso poetico, todas as imagens, todas as
ideias; todas as allusões do tempo de Augusto occuparam as mais partes
da poesia; e mui pouco ficou para o que era nacional, para o que já
tinhamos, para o que podiamos adquirir ainda, para o que naturalmente
devia nascer de nossos usos, de nossas recordações, de nossa
archeologia, do aspecto de nosso paiz, de nossas crenças populares, e
emfim de nossa religião.
Sá de Miranda, verdadeiro pae da nossa poesia, um dos maiores homens
de seu seculo, foi o poeta da razão e da virtude, philosophou com as
musas, e poetisou com a philosophia. Seu muito saber, sua experiencia,
seu tracto affavel, e até a nobreza do seu nascimento, lhe deram
indisputada superioridade a todos os escriptores d’aquelle tempo, dos
quaes era ouvido, consultado e imitado. Sá de Miranda exerceu sobre
todos os poetas d’aquella epocha a mesma especie de imperio que veio
a ter Boileau em França, e mais modernamente Francisco Manuel entre
nós. Introduziu na poesia os metros italianos, e os modos, versos
e combinações de rhymas de Dante e Petrarca: e desd’ahi quasi se
abandonaram inteiramente (excepto nas voltas e glosas) os nossos
antigos versos de redondilha, e absolutamente os de arte maior e menor,
que ainda assim mui proprios são para certos assumptos, segundo com
feliz exemplo no-lo mostraram antigos e modernos poetas. Nem o mesmo
Sá de Miranda igualou nunca em composições hendecasyllabas a pureza, a
correcção, a naturalidade e sublime simplicidade de suas redondilhas
nas epistolas, que hoje são seu maior e quasi unico titulo de glória.
São de admirar suas comedias, e são notavel monumento para a historia
das artes pela feliz imitação dos antigos, e pelo que excedem quanto
até então se tinha escripto. Porem o theatro portuguez creado pela
musa negligente e travêssa de Gil-Vicente e João Prestes, carecia
de reforma, mas não podia supportar uma revolução. As comedias de
Sá de Miranda sem caracter nacional, mui classicas de mais não eram
para reformá-lo: o mesmo direi, e o mesmo succedeu ás de Ferreira, a
algumas poucas mais que depois vieram. O effeito d’estas composições,
aliás preciosas, foi funesto: os litteratos enjoaram-se (e com razão)
do theatro nacional, e não se deram a corrigi-lo e melhora-lo: o
publico preferia (e com razão tambem) o com que fôra creado, o que o
interessava, o que o divertia, e antes queria rir com as grosserias
dos autos populares, que bocejar e adormecer-se com as finuras d’arte
e correcções d’essas comedias, que tudo tinham, menos interesse, onde
todo o spirito havia, menos o nacional.
Se houveram Sá de Miranda e Ferreira escolhido assumptos portuguezes,
se houveram pintado os costumes nacionaes, e presentado ao publico, em
vez de quadros italianos, um espelho em que se elle visse a si e aos
seus usos, e se risse de seus proprios defeitos; fico em que houveram
reformado o theatro em vez de lhe empecer: e acaso gosariamos ainda
hoje em uma scena rica e abastada dos resultados d’esse impulso, quando
não temos senão que chorar, e vivemos, sobre o theatro, das migalhas
que mendigamos a estrangeiros pelo triste meio de traducções, que (as
dramaticas sôbre tudo) nunca podem ser boas.
Sá de Miranda escreveu além d’isto algumas eclogas bastante frias,
varios sonetos geralmente de pouca monta. Um d’elles á morte de
Leandro e Hero é excellente, mas castelhano, e por esse achaque o não
incluí na escolha.[37]
Não posso deixar de querer mal a tam illustre portuguez pelo muito que
escreveu n’essa lingua estranha; com que não só privou a natural do
fructo de suas tarefas, mas fez maior damno ainda com o exemplo que
abriu; exemplo funesto que nos cerceou a litteratura, que nos defraudou
d’uma Diana de Monte-maior, de tantas boas coisas mais, e ao cabo ia
perdendo a lingua.
Mas eis ahi Antonio Ferreira para combater esse mal em sua origem:
ei-lo ahi esse portuguez verdadeiro, ardente amador da lingua, clamando
a todos, pugnando contra todos os que não prezavam e aditavam o
patrio idioma com as producções do ingenho e das artes. O profundo
conhecimento dos classicos gregos e latinos, o finissimo gosto que em
seu estudo tinha adquirido, a felicidade com que sempre os imitou, a
pureza da phrase, as riquezas com que adornou a lingua deram aos versos
de Ferreira grande popularidade entre os litteratos e cortezãos (que,
ao aveço de hoje, as lettras viviam então quasi só na côrte) e fixaram
determinadamente o genero classico entre nós.
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