O retrato de Venus e estudos de historia litterária - 8

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palmeiras, e em quanto lhe revoavam em tôrno o cardeal suberbo com a
purpura dos reis, o sabiá terno e melodioso,--que saltasse pelos montes
espessos a cotia fugaz como a lebre da Europa, ou grave passeasse pela
orla da ribeira o tatu esquamoso,--ella se entretivesse em tecer para o
seu amigo e seu cantor uma grinalda não de rosas, não de jasmins, porém
dos roixos martyrios, das alvas flores dos vermelhos bagos do lustroso
cafezeiro; que pintura, se a desenhára com sua natural graça o ingenuo
pincel de Gonzaga!
Justo elogio merece o sensivel cantor da infeliz Lindoya que mais
nacional foi que nenhum de seus compatriotas brazileiros. O Uraguay
de José Bazilio da Gama é o moderno poema que mais merito tem na
minha opinião. Scenas naturaes mui bem pintadas, de grande e bella
execução descriptiva; phrase pura e sem affectação, versos naturaes
sem ser prosaicos, e quando cumpre sublimes sem ser guindados; não são
qualidades communs. Os Brazileiros principalmente lhe devem a melhor
corôa de sua poesia, que n’elle é verdadeiramente nacional, e legítima
americana. Mágoa é que tam distincto poeta não limasse mais o seu
poema, lhe não désse mais amplidão, e quadro tão magnifico o acanhasse
tanto. Se houvera tomado esse trabalho, desappareceriam algumas
incorrecções de stylo, algumas repetições, e um certo desalinho geral,
que muitas vezes é belleza, mas continuado e constante em um poema
longo, é defeito.
Muito ha que os nossos auctores desempararam o theatro: eis ahi
o faceto Antonio José, a quem muitos quizeram appellidar Plauto
portuguez e que sem duvida alguns serviços tem a esse titulo, porém
não tantos como apaixonadamente lhe decretaram. Em seus informes
dramas algumas scenas ha verdadeiramente comicas, alguns dictos de
summa graça; porém essa degenera amiudo em baixa e vulgar. Talvez que
o _Alecrim e Mangerona_ seja a melhor de todas; e de certo o assumpto
é eminentemente comico e portuguez: hoje teria todo o merito de uma
comedia historica: e se fôra tractada no genero de Beaumarchais,
produziria uma excellente peça.

NOTAS DE RODAPÉ:
[38] Digo de seu genero, porque o Orlando furioso tambem é heroicomico,
mas d’outro genero.
[39] Em antiguidade.


VII
Epocha, segunda decadencia da lingua e litteratura; gallicismo e
traducções

Á volta este tempo se formou a academia das sciencias de Lisboa pelos
generosos esforços do duque de Lafões. Esse corpo scientifico, de
quem tanto bem se augurou para a lingua e litteratura nacional, nem
fez tudo o que d’elle se esperava, nem uma parte mui pequena do que
podia e lhe cumpria fazer: mas nem foi inutil, nem, como alguns teem
querido, prejudicial. E todavia sua força moral não foi bastante para
vencer um mal terrivel que já no tempo de sua creação se manifestava,
mas que depois, cresceu e avultou a ponto, que veio a tornar-se quasi
indestructivel.
Este mal foi o _gallo-mania_, que sôbre perverter o caracter da nação,
de todo perdeu e acabou com a já combalida linguagem: phrases barbaras
repugnantes á indole do idioma, termos hybridos, locuções arrastadas,
sem elegancia, formaram a algaravia da moda, e prestes invadiram todas
as provincias das lettras. Estudar a lingua materna, como aquella em
que fallamos e escrevemos, é dos mais difficeis estudos, ha mister
longa e porfiada applicação. Que bella invenção para a ignorancia e
para a preguiça não foi esta nova linguagem mascavada e de furtacôres,
que todos podiam saber sem fadiga, cujas leis cada-um moderava e
arbitrava a seu modo, alterava a seu sabor com tam plena liberdade de
consciencia! Foi a religião de Mafoma: propagou-a a incontinencia,
a soltura, o desenfreio do appetite. Desprezaram-se os classicos,
apodaram-se de ignorantes, de rançosos; e os que não ousavam, por
algum resto de vergonha, desacatar assim as honradas cans dos nossos
mestres, sahiram então com o banal e ridiculo pretexto de que ninguem
podia lê-los pelas materias que tractaram; que tudo eram sermões, vidas
de sanctos, historias de conventos, de frades. Vergonhosa desculpa!
Comquê as decadas de Barros, que foi talvez o primeiro que introduziu
com feliz execução o stylo classico na historia moderna, são chronicas
de conventos? Fernão Mendes Pinto, o primeiro europeu que escreveu uma
viagem regular da China e dos extremos d’Asia, são vidas de sanctos?
E d’essas mesmas vidas de sanctos, quantas d’ellas são de summo
interesse, divertida e proficua leitura! A vida de D. Fr. Bartholomeu
dos Martyres tem toda a valia das mais gabadas memorias historicas,
de que hoje anda cheia a Europa, e que ninguem taxou ainda de pouco
interessantes. Quando outra cousa não contivesse aquelle excellente
livro senão a narração do concilio de Trento, a viagem e estada do
arcebispo em Roma, ja seria elle uma das mais curiosas e importantes
obras do seculo XVI. E D. Francisco Manoel de Mello, e Rodrigues Lobo,
e Camões, e grande cópia de poetas de todos os generos,--tudo isso são
sermonarios, vidas de sanctos?
Miseria é que o geral dos portuguezes jurou nas palavras de quatro
peralvilhos que essas calumnias apregoavam: passou em julgado que os
classicos se não podiam ler, e ninguem mais quiz tomar o trabalho nem
sequer de examinar se sim ou não assim era.
N’este estado de cousas appareceram em Portugal dous homens
extraordinarios, ambos dotados pela natureza de prodigioso ingenho
poetico, Francisco Manoel e Bocage. Aquelle, filho da eschola de Garção
e Diniz, cultivou muito tempo as musas classicas, e já imbuido no gosto
da antiguidade, já imitador e rival de Horacio e Pindaro, começou a ser
conhecido em idade madura. Este, quasi desd’a infancia poeta, appareceu
no mundo em toda a effervescencia dos primeiros annos, ardente cantor
das paixões, enthusiasta, agitado do seu proprio natural violento,
rapido, insoffrido, sem cabal instrucção para poeta, com todo o talento
(raro, espantoso talento!) para improvisador.
Ambos começaram imitando os grandes mestres de seu tempo, seguindo
cada-um em seu genero o stylo e gosto adoptado e geral desde a
restauração das letras no meado do seculo. Mas não são ingenhos
grandes para seguir, senão para fundar escholas: nem tardou muito que
cada-um, per seu lado, não sacudisse todo jugo da imitação, e seguisse
livre e rasgadamente um trilho novo. Bocage a quem seu fado, por mais
aventureira lhe fazer a vida, levou ao antigo theatro das glórias
portuguezas, voltando d’Asia foi recebido em Lisboa entre os applausos
dos muitos admiradores que já tinha deixado na viril infancia de seu
talento poetico. Augmentou-se esta admiração com os novos improvisos
do joven poeta, com a extrema facilidade, com o mui sonoro de seus
versos. O fogo de suas ideias ateou o enthusiasmo geral; a mocidade
inflammou-se com o nome de Bocage: de enthusiasmo degenerou em
cegueira, em mania; não lhe viam já defeitos; menos elle em si mesmo.
Ninguem duvidava que os improvisos dos cafés do Rocio eram superiores
a todas as obras da antiguidade, e que um soneto de Bocage valia mais
que todos esses volumes de versos do seculo de João III. e do de José
I. Ésta era a opinião commum da mocidade; e tam geral se fez, tantas
vezes a ouviu repetir o objecto de tal idolatria, que força era que a
acreditasse, que com ella se desvanecesse e desvairasse.
Isso lhe aconteceu. O temperamento irritavel e ardentissimo de Bocage
o levava naturalmente ás hyperboles e exagerações: essas eram as
mais admiradas de seus ouvintes; requintou n’ellas, subiu a ponto
que se perdeu pelos espaços imaginarios de sua creação phantastica,
abandonou a natureza, e a suppôz acanhado elemento para o _genio_. Mais
elle repetia _eternidades_, _mundos_, _ceos_, _espheras_, _orbes_,
_furias_, _gorgonas_; mais dobrava o applauso; mais delirava elle,
mais o admiravam. Ao cabo, nem elle a si, nem os outros a elle o
intendiam.[40] A par e passo que as ideias desvairavam, desvairava
tambem o stylo, e emfim se reduziu a uma continuada antithese,
perpetuos trocadilhos, _tours-de-force_, pulos, saltos, rumpantes,
castelhanadas, com que se tornou monotono e (usarei d’uma expressão de
pintor) _amaneirado_.
A metrificação de Bocage, julgam-na sua melhor qualidade; eu a peior;
ao menos, a que peiores effeitos causou. Não fez elle um verso duro,
mal soante, frouxo; porém não são esses os unicos defeitos dos versos.
As varias ideias, as diversas paixões e affectos, as distinctas
posições e circumstancias do assumpto, do objecto, de mil outras
cousas,--variada medida exigem; como exige a musica varios tons e
cadencias. A mesma medida sempre, embora cheia e boa,--o mesmo tom,
embora afinado,--a mesma harmonia, embora perfeita,--o mesmo compasso,
embora exacto, fazem monotona e insuportavel a mais bella peça de
musica ou de poesia. E taes são os versos de Bocage, que nos pretendem
dar para typo seus apaixonados cegos: digo _cegos_, porque muitos tem
elle (e n’esse numero que conto!) que o são, mas não cegos. Imitar
com o som mechanico das vozes a harmonia intima da ideia, supprir
com as vibrações que só pódem ferir a alma pelo orgão dos ouvidos,
a vida, o movimento, as côres, as fórmas dos quadros naturaes, eis
ahi a superioridade da poesia, a vantagem que tem sobre todas as
outras bellas artes: mas quam difficil é perceber e executar esse
delicadissimo ponto! Poucos o conseguiram: Francisco Manoel foi entre
nós o que mais finamente o intendeu e executou, mas nem sempre, nem
cabalmente.
Porém nos intervallos lucidos que a Bocage deixava o fatal desejo de
brilhar, n’alguns instantes que, despossesso do demonio das hyperboles
e antitheses, ficava seu grande ingenho a sos com a natureza e em paz
com a verdade, então se via a immensidade d’essa grande alma, a fina
tempera d’esse raro ingenho que a aura popular estragou, perdeu o pouco
estudo, os costumes desregrados, a miseria, a dependencia, a soltura,
a fome. Muitas epistolas, varios idilios maritimos, algumas fabulas,
e epigrammas, as cantatas, não são mediocres titulos de glória. Dos
sonetos ha grande cópia que não tem igual nem em portuguez, nem em
lingua nenhuma, d’uma força, d’uma valentia, d’uma perfeição admiravel.
O resto é pequeno e pouco. A linguagem é pobre; ás vezes facil, mas
em geral escaça. Sabía pouco a lingua; a força do grande instincto
lhe arredava os erros; mas as bellezas do idioma, só as dá e ensina o
estudo. As traducções de Ovidio, Delille e Castel são primorosas.
Mas de traducções estamos nós gafos: e com traducções levou o ultimo
golpe a litteratura portugueza; foi a estocada de morte que nos
jogaram os estrangeiros. Traduzir livros d’artes, de sciencias é
necessario, é indispensavel; obras de gosto, de ingenho, raras vezes
convem; é quasi impossivel fazê-lo bem, é míngua e não riqueza para a
litteratura nacional. Essa casta de obras estuda-se, imita-se, não se
traduz. Quem assim faz accomoda-as ao character nacional, dá-lhes côr
de proprias, e não só veste um corpo estrangeiro de alfaias nacionaes
(como o traductor), mas a esse corpo dá feições, gestos, modo, e
indole nacional: assim fizeram os Latinos, que sempre imitaram os
Gregos e nunca os traduziram; assim fizeram os nossos poetas da boa
idade. Se Virgilio houvera traduzido a Iliada, Camões a Eneada, Tasso
os Lusiadas, Milton a Jerusalem, Klopstock o Paraiso perdido; nenhum
d’elles fora tamanho poeta, nenhuma d’essas linguas se enriquecera com
tam preciosos monumentos: e todavia imitaram uns dos outros, e d’essa
imitação lhes veio grande proveito.
Esta mania de traduzir subiu a ponto em Portugal, e de tal modo
estragou o gosto do público, que não só lhe não agradavam, mas quasi
não intendia os bons originaes portuguezes: a poesia, a litteratura
nacional reduziu-se a monotonos sonetos, a trovinhas d’amores, a
insipidas enfiadas
_De versinhos anões a anans Nerinas._
Tam baixos nos pozeram os admiradores e imitadores de Bocage, a quem
justamente a critica stigmatizou com o nome de _elmanistas_,--e de
_elmanismo_ sua affectada eschola. N’elles se mostraram exagerados os
defeitos todos do enthusiasta Elmano, sem nenhum dos grandes dotes, das
brilhantes qualidades do poeta Bocage.
Alguns ha comtudo de quem esta asserção não deve intender-se em todo
o rigor da phrase. João Baptista Gomes, auctor da Castro, mostrou
n’ella muito talento poetico e dramatico. D’entre os bastos defeitos
d’essa tragedia sobresahem muitas bellezas. Desvaira-o o _elmanismo_;
derrama-se per madrigaes quando a austeridade de Melpomene pedia
concisão, força e naturalidade; perde-se em declamações, extravaga
em logares communs, inverte a dicção com antitheses, destroi toda a
illusão com versos amiudo sesquipedaes e entumecidos; mas per meio de
todas essas nevoas brilha muita luz de ingenho, muita sensibilidade,
muita energia de coração; predicados que com o estudo da lingua que não
tinha, com a experiencia que lhe fallecia, triumphariam ao cabo do mau
gosto do tempo, e viriam provavelmente a fazer de João Baptista Gomes
o nosso melhor tragico. Atalhou-o a morte em tam illustre carreira,
e deixou orphão o theatro portuguez que de tamanho talento esperava
reforma e abastança.
Mas em quanto Bocage e seus discipulos tyrannizavam a poesia e
estragavam o gosto, Francisco Manuel, unico _representante_ da grande
eschola de Garção, gemia no exilio, e de la com os olhos fitos na
patria se preparava para luctar contra a enorme hydra cujas innumeras
cabeças eram o gallicismo, a ignorancia, a vaidade, todos os outros
vicios que iam devorando a litteratura nacional.
A sua epistola sobre a arte poetica e lingua portugueza, póde rivalizar
com a de Horacio aos Pisões: força d’argumentos, eloquencia da poesia,
nobre patriotismo, finissimo sal da satyra, tudo ahi peleja contra o
monstro multiforme.
Que direi das odes? Minha intima persuasão é que nunca lingua nenhuma
subiu tam alto como a portugueza na lyra de Francisco Manuel. Que ha
em Pindaro comparavel á ode a Afonso d’Albuquerque? onde ha poesia
sublime, elegante, immensa como seu assumpto, na dos novos Gamas? se
o patriotismo fallasse alguma hora aos degenerados netos de Pacheco
e Albuquerque, que poderia elle dizer-lhes igual áquella inestimavel
ode que se intitula _Neptuno aos portuguezes_? E quando a liberdade
troa na espada de Washington, submette os raios de Jupiter ao sceptro
dos tyrannos aos pés de Franklin, ou tece pelas mãos de Penn os
laços de fraterna união! Que immenso, que grandioso é o cantor de
tamanhos objectos! Quando nas odes a Venus, a Marfisa, a Marcia
_voltando inopinada_, no hymno á noite se requebra em amoroso jubilo,
ou se enternece de saudade, todo é graças e primores de linguagem, de
imaginação, de stylo, de delicadeza, de inimitavel poesia. No genero
Horaciano não é elle tam puro e perfeito como Garção, mas nem intendeu
menos nem imitou peior o seu modêlo.
Entre as epistolas ha muitas admiraveis: dos contos e fabulas, alguns
com elegante sal e chiste. As traducções do Oberon de Wielland, da
Guerra punica de Silio Italico, mas sobre todas, a dos Martyres de
Chateaubriand, são thesouros de linguagem e de poesia.
Nenhum poeta desde Camões havia feito tantos serviços á lingua
portugueza: so per si Francisco Manuel valeu uma academia, e fez mais
que ella; muita gente abriu os olhos, e adquiriu amor a seu tam rico e
bello, quanto desprezado idioma: e se ainda hoje em Portugal ha quem
estude os classicos, quem se não envergonhe de lêr Barros e Lucena,
deve-se ao exemplo, aos brados, ás invectivas do grande propugnador de
seus foros e liberdades.
Nos ultimos periodos de sua longa vida afrouxaram as energicas
faculdades d’este grande poeta, e excepto a traducção dos Martyres
(que assim mesmo tem seus altos e baixos) quasi tudo o mais que fez é
tibio e morno como de um octogenario se podia esperar. O nimio temor de
commeter gallicismos, a que tinha justo e sancto horror, o fez cahir em
archaismos e affectação demasiada de palavras antiquadas e excessivos
hyperbatos. Não são porém estas faltas, nem tantas nem tamanhas como o
pregoou a inveja e a ignorancia.
Muito honrosa menção deve a historia da lingua e poesia portugueza a
Domingos Maximiano Torres, cujas eclogas rivalizam com as de Quita e
Gessner, cujas cançonetas são, depois das de Claudio Manuel da Costa,
as melhores que temos. Foi este muito intimo de Francisco Manuel, mas
tenho por mui exagerados os elogios que d’elle recebeu.
Antonio Ribeiro dos Santos, honra da magistratura portugueza, foi
imitador e émulo de Ferreira: poucos ingenhos, poucos characteres,
poucos stylos ha tam parecidos; se não que o auctor dos coros da Castro
era muito maior poeta, e o cantor do grande D. Henrique muito melhor
metrificador. Ésta ode ao infante sabio, algumas outras a varios heroes
portuguezes, algumas das epistolas, e especialmente os versos que lhe
dictava a amizade para o seu Almeno, são d’uma elegancia e pureza de
linguagem rarissima em nossos dias.
Este Almeno é Fr. José do Coração de Jesus, missionario de Brancannes,
que traduziu os primeiros livros das methamorphoses de Ovidio em
excellente, riquissimo, purissimo portuguez, mas em maus versos: e
ainda assim, alguns d’elles são felizes: é de estudar, de versar com
mão _diurna_ e _nocturna_ esse comêço de traducção para quem quizer
conhecer as riquezas de uma lingua que compete, emparelha, vence ás
vezes, a sua propria mãe latina.
Duas ou tres odes d’este virtuoso e erudito padre são mui bonitas.
Nicolau Tolentino é o poeta eminentemente nacional no seu genero:
Boileau teve mais força, mas não tanta graça como o nosso bom mestre
de rhetorica. E de suas satyras ninguem se pode escandalizar; começa
sempre per casa, e primeiro se ri de si antes que zombeteie com os
outros. As pinturas dos costumes, da sociedade, tudo é tam natural,
tam verdadeiro! Confesso que de todos os poetas que meu triste mister
de critico me tem obrigado a analysar, unico é este em cuja causa
me dou por suspeito: tanta é a paixão, a cegueira que tenho polo
mais verdadeiro, mais engraçado, mais _bom homem_ de todos os nossos
escriptores. Aquelle _bilhar_, aquella _funcção de burrinhos_, aquelle
_cha_, aquellas despedidas _ao cavallo deitado á margem_; o memorial
ao principe, o presente do _perum_, são bellezas que so não admirarão
atrabilarios zangãos em perpetuo estado de guerra com a franca alegria,
com o ingenuo gôsto da natureza.
De José Anastacio da Cunha, que das mathematicas puras nos deu o melhor
curso que ha em toda Europa, d’esse infeliz ingenho (que talento houve
já feliz em Portugal?) a quem não impediam as rectas de Euclides, nem
as curvas de Archimedes de cultivar tambem as musas; de tam illustre
e conhecido nome que direi eu senão o muito que me peza da raridade
de suas poesias? Todas são philosophicas, ternas e repassadas d’uma
tam meiga sensibilidade algumas, que deixam n’alma um como echo
de harmonia interior que não vem do metro de seus versos, mas das
ideias, dos pensamentos. Todavia ha mister lê-lo com prevenção, porque
(provavelmente estropiada de copistas) a phrase nem sempre é portugueza
de lei.
O padre A. P. de Sousa Caldas, brazileiro, é dos melhores lyricos
modernos. A poesia biblica, apenas encetada de Camões na paraphrase
do psalmo _super flumina Babylonis_, foi per elle maravilhosamente
tractada; e desde Milton e Klopstock ninguem chegou tanto acima n’este
genero.
A cantata de Pygmalião, a ode O homem selvagem são excellentes tambem.
Aqui me cai a penna das mãos: o estadio livre para a critica imparcial
acabou. Nem posso continuar a exercê-la sem temor, nem o faria ainda
assim, pois não quizera vêr revogadas minhas presumidas sentenças pela
severa posteridade, quasi sempre annulladora de juizos contemporãos.
Não posso todavia fechar este breve quadro sem patentear a admiração,
e o indizivel prazer que me deu o poema do Passeio do snr. J. M. da
Costa e Silva, cuja existencia tinha a infelicidade de ignorar (tam
pouco sabemos nós portuguezes das riquezas que temos em casa!) e que
não sei que tenha que invejar a Thompson e Delille, se não fôr na pouca
extensão e, acaso dirá mais severo juiz, em algum verso de demasiado
_elmanismo_. Quanto a mim, folgo de me lisongear com a esperança que
seu auctor lhe dará a amplidão e mais (poucos mais) retoques com que
ficará por ventura o melhor poema d’esse genero.
Apezar dos motivos referidos, pedirei uma venia mais para mencionar
como um poema que faz summa honra ao nome portuguez, a Meditação do
snr. J. A. de Macedo, que tem sido censurada por quem não é capaz
de intendê-la. Não sei eu se ella tem defeitos; é obra humana, e de
certo lhes não escapou; mas sublimidade, cópia de doctrina, phrase
portugueza, e grandes ideias, só lh’o negará a cegueira ou a paixão.
Cita-se com elogio o nome do snr. J. F. de Castilho, joven poeta que
se despica da injuria da sorte que o privou da vista, com muita luz de
ingenho poetico.
Os _dythirambos_ do snr. Curvo Semedo, as odes do snr. J. Evangelista
de Moraes merecem grande favor do publico: os apologos do snr. J. V.
Pimentel Maldonado são por certo dignos da maior estimação.
As Georgicas do snr. Mozinho d’Albuquerque fizeram a reputação poetica
de seu benemerito auctor. Alguns lhe acharam demaziada erudição, e
queriam mais poesia e menos sciencia. Eu por mim tomarei a confiança
de pedir ao illustre poeta, em nome da litteratura portugueza, que
na segunda edição de sua tam util obra não desdenhe de aproveitar os
muitos e riquissimos ornatos que habilmente póde tirar de nossas festas
ruraes, de nossas usanças (como feiras, serões, desfolhas, etc.), das
descripções de nosso formoso paiz; com que decerto fará mais nacional e
interessante seu estimavel poema. Não sei tambem se alguma incorrecção
typographica ou de cópia, seria origem de varias imperfeições e
impurezas de linguagem, que os escrupulosos (e em tal materia é forçoso
sê-lo) lhe notam.
Tudo isso esperamos os portuguezes que nos vangloriamos de sua
excellente obra, vê-lo melhorado na proxima edição que já reclama o
publico impaciente.
A litteratura portugueza não mostra presentemente grandes symptomas de
vigor: mas ha muita força latente sob essa apparencia; o menor sôpro
animador que da administração lhe venha, ateará muitos luzeiros com que
de novo brilhe e se engrandeça.
FIM
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