Fanny: estudo - 7

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encontros uma larga calça branca de flanella. Despeitorado, arregaçado o
colleirinho, arremangada a camiza, ia e vinha pelo quarto, fumando um
charuto, dando corda ao relogio, mirando-se ao espelho, e esticando os
braços. Assentou-se depois na grande cadeira encoirada, cruzou uma perna
sobre o joelho da outra, e bamboando-a deixou cahir a chinela. D'onde eu
estava, via-lhe perfeitamente a sola do pé nú levantada ao nivel dos
meus olhos, e o braço carnudo descançado sobre o encosto da cadeira. O
outro braço subia e baixava do joelho para o rosto, quando levava aos
beiços o charuto, cujo fumo odorifero se exhalava até mim.
De repente, voltou a cara para uma porta que eu não tinha devisado,
collocada ao pé do leito. Esta porta estava aberta, e no inquadramento
obscuro que ella cortava no fundo do quarto, vi, duvidoso da minha
razão, uma fórma vaga alumiada em rosto por um castiçal que ella trazia.
Potestades do céo! Era ella! Oh Deus! por que me não fulminaste
n'aquelle momento!
Entrou vagarosamente, depoz o castiçal sobre a commoda, e, atravessando
longitudinalmente o recinto, foi direita a elle, que a observava
tranquillo, e sem levantar-se.
Fanny estava meio vestida com aquelle desleixado traje que eu lhe vira
algumas vezes pelas manhãs, quando, ao sahir da cama, passeava no jardim
com os filhos. Era um chambrão muito farto de cachemira azul aberta no
peito, entre flocos de cambraia, deixando vêr o começo dos seios.
Sahiam-lhe das largas mangas os braços nús. Trazia desmanchados
negligentemente os cabellos, apanhados sobre as faces lizas, e apertados
por grossos tufos sobre a nuca. Aquelle eterno porte de placido pudor,
lá o apparentava no semblante.
Mas que vinha ella fazer alli a tal hora? quem lhe pedira isso? Não póde
a recordação do amante retêl-a no limiar d'aquella porta? Dir-se-hia que
ella nem se quer se lembrava de ter jurado, nem lhe passava pela mente a
existencia d'algum homem para ella, senão aquelle que alli estava
sentado, encarando-a, sereno como ella.
Fuzilou-me na alma um relampago de esperança, mas foi relampago.
Abaixado sobre os joelhos e as mãos, embaciado o vidro pelo meu bafo,
senti oscillar-me os braços como se o balcão estremecesse debaixo de
mim. Suor de agonia, acre e frio, me banhava a face e os membros;
rangiam-me os dentes, cahi, desfallecido, como arvore tombada ao ultimo
golpe do machado. Mas ouvi palavras; e, repuchando quantas forças tinha,
ergui-me sobre os joelhos e punhos.
Via-a andar mansamente d'um para o outro lado do quarto. Tocava,
vagamente, e como em distracção nos objectos de sobre os moveis, tal
qual costumava fazer em minha casa. E o marido tendo-a sempre d'olho.
Fallavam; mas a minha commoção só me deixava ouvir um murmurinho.
Rodeava-o ella, socegada e perfida, com os seus azues e suaves olhos, e
apparencias de simpleza vaga. A instantes, sorria um sorriso
melancolico. Quiz vêr n'esse rir, que lhe dilatava os labios sem
illuminar-lhe o olhar, alguma coisa forçada. Não se mostrava pensativa,
nem contemplativa, nem commovida. Estava perfeitamente á sua vontade,
natural e tranquilla. Bem sabia ella que a sua grande magia era a
irritadora tranquillidade.
O marido riu tambem, por sua vez. Vi-lhe o brilho dos seus alvos dentes.
Dava mostras de defender-se ingenuamente d'uma accusação que ella fazia,
sem cólera, mas como uma malignidade gracejadora, que não era isempta de
desdem e altivez. Discutiam tão pacificamente que pareciam nenhum
acreditar na realidade da sua disputa familiar. A final, debaixo da
testa quadrada do marido, brilharam mortiços os olhos; e, quando ella
perpassava diante d'elle, rossando-lhe com o vestido o pé, a decisão foi
prompta; calçou a moira; e tirando brandamente pela cintura da mulher,
sem resistencia, fêl-a assentar no seu joelho.
Saltaram-me as lagrimas então, lagrimas ardentes, que as palpebras não
podiam reprezar, e desceram silenciosas pelas faces até aos labios.
Emfim, comprehendia tudo; via a profanação, posto que a não quizesse
vêr; affirmava que não era sonho aquillo, e queria duvidar. Não posso
exprimir o que então se apartava de mim, o melhor de minha essencia, e o
mal que me fazia vêr aquella mulher, que eu adorava, nos braços d'outro.
Fanny continuava sentada com as mãos cruzadas sobre os joelhos, e com os
olhos no marido, conversava serenamente. Nada ha ahi mais casto que a
simplicidade da sua attitude, a pureza do seu perfil, e aquella
expressão dos olhos azues. No entanto elle, comprimindo-a cingida pela
cinta, amimava-lhe a face com a mão livre. A final, Fanny lançou-lhe por
sobre o hombro o braço esquerdo, e pendeu para elle langorosamente.
Vi-lhe então as costas, cobertas de tranças dos cabellos, e o vestido
fazia roda por largo espaço com impudor esplendido. Oh! como a
abominavel creatura cheia de graça e lascivia se aconchegava d'aquella
espadua robusta!
--É impossivel aquillo!--gritei eu em minha consciencia.--Não ha-de ser
assim!--Mas elle abraçou-a, collando a boca espessa ás puras faces
d'ella, e não sei o que lhe disse a meia voz. Fanny fez um gesto
negativo com a cabeça, muitas vezes, sem córar. Elle, por cortezia,
insistiu sorrindo, e ella, resistindo, pouco e pouco se rendia! Mulher
scelerada! como ella prolongava o meu supplicio! O debate mudo, durou
algum tempo. Não sei como foi que o sinto se lhe despregou, e rolou nas
dobras do vestido. E eu chorava sempre. Levantou-se ella em fim, aquella
mulher de resplendores e flôres, e, por um só movimento de braços e
hombros, fez escorregar o chambre até aos pés. Eu cahi de joelhos, e
ergui as mãos, como a exorar piedade. Ella tirou com afan, os pés do
monte de estofos, e, um tanto pallida, mas em silencio, caminhou para o
leito, achegando ao peito as ultimas coberturas. Quantas vezes a vira eu
assim impallidecer! Cravei as unhas no rosto. O marido ia depós ella,
vagarosamente.
E eu sem uma arma! Eu queria immediatamente estrangulal-a, espedaçal-a,
ingolphar meus braços nas entranhas d'aquella mulher estupida. Com todo
o sangue d'ella, não se apagaria o ardôr da minha tortura. Arquejante
como o tigre, que vê a garra do leão cravada na sua preza, ergui-me a
prumo, ferrei as unhas contra os dentes, escorria-me o suor da face,
soluçava, como em arrancos de morte, estrebuchava, e via os horrores
d'aquelle quarto.--Piedade! piedade!--foi o meu grito! E furioso, e
perdido, avançara um passo! mas os cabellos heriçaram-se-me, e os olhos
saltavam-me das orbitas, e a minha vista acerada entrou como um punhal
nos cortinados sombrios, e vi... vi tudo! Quiz ir ávante, e não pude. A
punição pregava-me os pés á balaustrada, e de minha bôca sahiam
gargalhadas de demonio. Que horror! Eu testemunha d'aquelle espectaculo,
a rir, como um doudo, a comprazer-me d'um jubilo que não tem nome nas
linguas humanas! Tentei de novo avançar, por que ouvira suspiros, e
queria saber qual das duas bôcas os exhalavam. Por um esforço prodigioso
dos meus musculos todos, cheguei a despregar o hombro da parede, e dei
ainda um passo; mas por que ao coração intumecido me refluira todo o
sangue, perdi o equilibrio, e cahi como um pezo inerte sobre o balcão.

LXVIII
Quando cobrei o alento, estava a janella fechada e apagada a luz. Corri
as mãos sobre os vidros impenetraveis. Corri a baranda em toda a sua
extenção; tudo apagado, tudo fechado, dormia tudo. Dominava-me uma raiva
glacial. Á custa de tudo, eu queria remirar esta mulher que eu detestava
com o coração, com a alma, com os sentidos, com todo o meu ser. Mas ir
até ella, como? Pendurei-me na rampa, e deixei-me cahir ao jardim.
Rodiei vinte vezes a casa, empurrando todas as portas; mas a minha
fraqueza não podia com ellas. Finalmente, atirei-me ao chão, e ahi, com
o rosto entre as mãos, desafoguei-me em soluços.
--Trahido! trahido!--bramia eu, com monotonia desesperadora.--E o céo
impassivel!--De subito ergui-me, e, sem idéa fixa, atravessei as trévas,
rapido como se me viessem perseguindo assassinos. Precorri a tapada;
saltei o muro, atravessei a estrada, entrei nos campos, e a correr
sempre, com a cabeça nua, chorando e fallando sósinho, atirei-me como um
attribulado gamo, que foge com os dentes de matilha feroz incravados nos
flancos.
Onde ia eu? não sabia. Fugia áquelle espectaculo. Salvava-me a todo o
correr, para o mais longe possivel, para não vêr a imagem horrenda que
me ficara nos olhos. Trahido! Trahido! era o grito que me esporeava, e
excitava a fuga. Despenhei-me em barrancos. Levantava-me ferido, coberto
de suor e lama, e corria de novo, sem destino, por escuridade pavorosa.
Lancei-me desamparadamente em cancellos insilveirados; deixava-lhes os
meus vestidos a pedaços, e caminhava. Esgalhos de arvores batiam-me no
peito, raspavam-me a face e os hombros os tojos lacerantes; parava a
chorar e depois caminhava. Atravessei as ruas dezertas das aldeias, que
resoavam sob os meus passos; campos cultivados, cujas searas me
ondulavam nas pernas como vagas; collinas, bosques, regatos, atalhos,
estradas que desfilavam á roda de mim, como se o solo fosse arrastado
commigo no arremeço d'um sorvedouro immenso. Faltava-me a respiração, e
eu corria ainda, chorando, chorando sempre.
--Ó minha mãe!--bradei eu.--Se soubesses quanto eu soffro!
De repente, achei-me com os pés em agua. Ante mim, distendia-se um vasto
espaço negro, uniforme, entranhado nas trevas, d'um lado e d'outro, com
grandes e mysteriosos zunidos. A lua dardejando de viez o seu reflexo
argentino, sobre esta superficie luzente, parecia serpente enorme
assanhada contra mim, para engulir-me. Involvia-me o nevoeiro. Avancei
tropeçando nas pedras, mas os jactos d'agua da torrente rapida,
embargavam-me o passo. Horrida tentação me assaltou. Contemplei o céo
sereno, onde brilhava, entre nuvens immoveis, o dôce astro dos amantes;
puz a mão sobre o coração, e caminhei. Dava-me a agua pelos joelhos, mas
sentia sempre o chão lodento em redor dos meus pés que escorregavam. Não
podia mais. Vergado á fadiga e á commoção, soluçando como as mulheres,
cahi, e fui arrastado na torrente que marulhava em sua marcha obscura.

LXIX
O que decorreu depois d'isto, não sei.
Atrophiara-me um frio horrivel. Era nos ouvidos o sibilar lacerante.
Sentia abafar. Muitas vezes cheguei a ajoelhar, impellido sempre pelo
peso das aguas. Por fim, esqueci tudo; entendi que morria.
Quando me senti viver, estava na minha cama, com a cabeça em fogo. Abri
os olhos esgazeados. Tremia em todas as fibras. Sacudia-me o corpo,
desde a cabeça aos pés, uma horrivel febre. Ao meu lado, estavam dois
amigos observando-me. Fallei, e elles abanaram a cabeça. Veio um homem,
e tomou-me o pulso: encolheu os hombros, e partiu. Continuei a tremer.
Isto durou muitos dias.
Depois soube que uns pescadores me tinham, de madrugada, encontrado sem
sentidos, nas margens do Sena, com a cabeça envazada no lôdo.
Buscaram-me as algibeiras, e acharam na minha carteira uma carta, e,
guiados por ella, me trouxeram a minha casa. Delirei no caminho, e
tiveram-me em conta de doido. Estava-o, realmente.
Fanny, porém, ignorante de tudo, admirada de me não vêr, veio uma manhã;
mas o meu creado, a chorar, impediu-lhe a entrada no quarto, e
contou-lhe o que sabia. «Quiz afogar-se--disse elle--e agora está
doido»--Ella, porém, não quiz crêr no suicidio, e supplicou a entrada.
N'esse dia, um abatimento sem nome, semelhante ao dos cadaveres
prostrados em seus sepulchros, me tinha como pregado pelas costas ao
leito, com os braços alquebrados e os olhos abertos. De repente, devisei
na porta, que se abriu ao pé do meu leito, uma fórma humana, de pé e
quieta.
Não atinei logo com quem fosse aquella mulher que me vinha vêr
moribundo, adornada de trajos de estio tão elegantes e frescos, com
braceletes nos braços e flôres no chapéo: tambem não entendi por que
chegava com ambas as mãos o seu véo branco ao rosto. Os meus amigos
tinham-se retirado para o fundo do quarto, afim de respeitar, quanto
fosse possivel, um segredo que não queria ser penetrado. A mulher
adiantou-se até á minha cama, e eu ouvi-lhe o fremito do vestido.
Curvou-se-me sobre o leito, e levantou o véo. Como que senti
refrigerar-se-me a alma, de vêr sobre o meu rosto aquella face viçosa
cheia de graça, e como perfumada de saude.
Fanny! exclamei subitamente, erguendo os braços. Fanny abaixou-se a
soluçar sobre o meu peito. Mas a memoria restaurara-se com o conhecêl-a;
levei-lhe á face os punhos fechados, e repelli-a de mim, gritando
furioso «sai d'aqui!» Ella acreditou que eu estava doido, e arredou-se
chorando; mas com um resto de força que a raiva me déra, bati-lhe no
hombro, e, ao lançar-me fora da cama, cahi por terra aos pés d'ella.

LXX
Quando sahi do lethargo, suppliquei, de mãos postas, aos meus
enfermeiros, que não deixassem entrar em minha casa aquella mulher.
Ella, porém, que não podia suspeitar o succedido, e continuava a crêr na
minha demencia, vinha todos os dias--disseram-m'o depois, e todos os
dias com gestos afflictivos, sollicitava vêr-me.--O medico não
consente--respondia inflexivel o meu creado. Fanny offerecia dinheiro e
prendas; mas comprehendendo a final que a sua presença podia matar-me,
retirou-se, pedindo a Deus a minha cura, e offerecendo-lhe, em troca da
minha, a sua vida. D'isto não sabia eu nada então. Decorriam os dias, e,
por desgraça minha, graças aos disvellos que me rodeavam, a vida pouco a
pouco affluiu apagando a febre.

LXXI
Ao cabo de seis semanas entrei em plena convalescença. Já os amigos me
tinham deixado. Perguntou-me, muitas vezes, o creado, se eu queria
receber aquella pessoa que tanto parecia amar-me, e cuja presença tão
mal me fizera uma vez. Sempre com repellão lhe disse que o expulsava se
a deixasse entrar. O desejo, porém, de a vêr, entrou commigo, e
tornou-se emfim n'uma irresistivel necessidade. Fiz fallar o creado
sobresaltado, que não intendia a minha frieza. Contou-me tudo que eu não
sabia; que ella vinha diariamente, e elle já não sabia que dizer-lhe,
para estorvar-lhe a entrada. Se ella vier hoje,--murmurei eu
impetuosamente, corrido de vergonha,--recebo-a.
Sentia-me eu abalado como se alguma funesta esperança tentasse renascer
em mim. Com o abatimento da molestia, quasi que a cólera se desvanecera;
mas ganhara-me uma dôr intensa, e eu assentava--tamanho desgosto era o
meu por tudo--que não podia viver. Aquella noite terrivel da traição,
lembrava-me como um sonho máo. A um tempo, amava e desprezava a mulher
graciosa e perfida, cuja imagem era commigo sempre. O que eu esperava
para acabar com tudo, era alguma cousa indelineavel.
Estava eu sentado n'uma poltrona, ao pé da minha janella, com os olhos
fechados, repassando no animo o que eu diria á prejura, quando senti
apertarem-me a mão, e misturarem-se n'ella os beijos com as lagrimas.
Abri os olhos. A meus pés, de joelhos, livida, mas formosa ainda,
formosissima, estava Fanny, olhando-me com eloquente ternura. Senti o
perfume d'ella. Nada diziamos. Eu sei que chorava.
Fanny ergueu-se, abraçou-me maternalmente a fronte e os cabellos, com os
seus dois braços nús. Não resisti, porque me era aprazivel receber
aquellas caricias, a que eu tinha direito, em quanto não fallasse. E por
isso mesmo é que não fallava. Finalmente, como eu chorava sempre e a não
abraçava, Fanny disse:
--Foi-se o teu amor, Roger?
--Ainda não--respondi, tapando o rosto com as mãos. Ella não intendeu, e
deteve-se em pé e agitada defronte de mim.
--Fanny, diz-me que é um sonho, ou que estou doido. Diz-me que não devo
odiar-te, porque este odio dilacera-me.
Não córou. Não impallideceu. Pura como a chamma, e crendo-se talvez ella
mesmo pura, amimou-me internecida, com apparencias de admirada.
Foi então que eu, reunindo as minhas forças todas, a tomei pela cintura
gentil em meus braços, e a fiz sentar defronte de mim. E disse-lhe:
--Sei tudo.
«O que? tu que sabes?
--Vi tudo.
«Mas que?
--Porque me trahiste? Tu não cedeste, porque foste tu quem o procurou,
não foi elle a ti. Foste tu, que trocando despejadamente o papel, o
seduziste a elle.
Fanny não perdeu ainda a côr, e quiz fallar. Eu, porém, com os olhos
cravados n'ella, sem cólera, e frio como o aço, continuei:
--É necessario dizer-te tudo? Não merecias confiança. Comprei a caza
vizinha da tua, em Chaville...
Aqui, impallideceu, e disse:
«E depois?
--Uma noite, horrivel noite!... depois de te espiar em vão quinze dias,
arriscando a minha vida, consegui introduzir-me sobre o balcão da tua
casa. Não sei que hora era. Ajoelhado por traz da vidraça do quarto de
teu marido, pude vêl-o. Como te vejo agora, tudo vi. Estava elle só.
Entraste...
«Isso é falso!» exclamou Fanny, mais horrivelmente pallida. Semelhava um
cadaver sentado n'uma cadeira defronte de mim.
--Será preciso dizer mais?--accrescentei.--Vestias um chambre de
cachemira azul. Trazias os cabellos em desalinho, e o peito nú. Calçavas
chinellas de setim. Nús, trazias os braços. Serena como sempre, no
momento mesmo em que prejuravas, não amaldiçoaste aquelle que vinhas
saciar, por que ha em ti dois corações, para amar dois homens, Fanny, a
elle, e a mim.
Fanny sacudiu rapidamente a cabeça, e disse com voz abafada:
«É falso! é falso! tu não me conheces!
--Será preciso dizer mais?... Exprobraste-lhe a traição, que é
certissima. Defendeu-se elle, a sorrir. Tu, cem vezes, passaste diante
de teu marido, por que querias fascinal-o, sem lh'o dar a intender, com
os teus exteriores pudibundos. Sahiu-te tudo ao pintar, por que elle
puchou-te para sobre o coração, e tu deixaste-te sentar sobre os
joelhos, e nem de mim te lembravas, de mim, a agonisar, com aquelle
espectaculo diante...
«Basta!»--exclamou Fanny, e ficou a olhar para mim. Parecia soffrer
horrorosamente; mas não chorava. Dilatavam-se-lhe as pupilas, e
crispavam os labios resequidos. Com pena d'ella, baixei os olhos, mas
accrescentei:
--Sabe que eu estive ali, eu, que te adorava, e é de crêr que a vergonha
e a dôr não matem, por que eu vi tudo, e não morri.
Como duas estatuas fronteiras, nas bordas d'um jazigo, assim ficamos em
contemplação, e immoveis. Por fim, disse ella:
«Eu devo fazer-te horror!
--Fazes.
Ergueu-se, levantou as mãos ao céo, lançou-se a mim, como sobre uma
preza, apertou-me entre os braços, sentou-se-me nos joelhos, peito a
peito, e a buscar-me os labios, com estas exclamações:
--Não importa! eu adoro-te sempre.
Mas eu, levantando-me, sacudi-a, e atirei-a ao chão, e ella ahi ficou.
Abismada a meus pés, como a Magdalena, soltas as tranças, nodados os
braços aos meus joelhos, desfeita em pranto, exclamava:
«Perdão! piedade! Eu tinha perdido o juizo! estava doida! mas amo-te
sempre! Tem compaixão de mim.
E prometteu submetter-se a tudo que eu exigisse d'ella. Propôz-me a
fuga, bradando:
«Mata-me, e não me repulses! Esmaga-me aos teus pés. Sou culpada, mas
não me abandones. Amo-te. Rasga-me o coração...
Fiz que se erguesse e sentasse. Estava corada, e escondia o rosto; mas
eu sentia-me impiedoso. Recrudescera o meu furor com a narração do meu
supplicio. Voltei as costas áquella mulher, cuja soberba, por tanto
tempo me mentira. Ainda assim queria ella violentar-me, estendendo para
mim os braços; mas fiz-lh'os recuar á face, com um gesto.
--Sabe que te detesto e adoro--disse-lhe eu--É isto o meu castigo, por
que eu fiz minha, a mulher d'outro, e devo ser castigado. Tu, para mim,
és uma deshonra, e mais nada. És um idolo attascado em lama. Vi-te, em
attitude pudica, com o rosto angelical, e olhar infantil; vi-te grotesca
e disforme, raivar e uivar, como a loba mordida pelos cães. Cala-te! tu
fizeste peor que as creaturas com quem esse homem hediondo te compara:
essas, ao menos, não mentem.
«Mas elle é meu marido!--disse Fanny.
--Não tens consciencia? Diz-me com franqueza se é certo seres tu um ser
intelligente, e se uma idéa dirigiu a tua acção funesta. Quem te
obrigava a ir procural-o?
Fanny, com grande esforço, respondeu:
«Eu via que elle se desprendia de mim. Não o amo, por que te amo, mas
dependendo d'elle. Não é natural? Repartida entre o desejo de conservar
sua affeição, e o receio de ser forçada a mostrar-lhe uma affeição
semelhante, quiz segural-o quando me fugia, e, quando se approxima, é
escusado tentar eu fugir-lhe. Cedi ao dever. Reciei que me deixasse. O
temor de me vêr abandonada com os meus filhos, inlouqueceu-me.
Perdoa-me. A mulher, que elle conheceu em Londres, é a causa de tudo. Eu
preciso de paz, socega-me tu. Fiz mal, por que te amo; mas sou mulher, e
tu não conheces as mulheres. Não calculas quanta honestidade pode haver
nas traições d'ellas.
--E o teu juramento?--exclamei. Fanny contorcia as mãos afflictivamente.
Eu prosegui:
--Mentes, quando dizes que cedeste ao dever. Não cedeste senão ao
orgulho. Intristecia-te o ser abandonada por esse homem que não amas, e
te não ama, e te opprime, e te despreza e insulta. Não cedeste tambem á
sêde d'um prazer abominavel? Repito-te que ouvi tudo.
Neste conflicto, encontraram-se os nossos olhos. Fanny fez-se escarlate,
quiz fugir, tornou para mim, e cahiu de joelhos, exclamando:
«Se soubesses quanto eu me abomino! Eu queria arrancar o coração deste
corpo. O meu coração está puro. Vêr-te, ouvir-te, sentir-te ao meu lado,
bastára-me sempre. Por isso mesmo que te amo, é que tu és o unico ente,
mais que homem para mim. Tu és neste mundo o meu amor unico. És a minha
vida.
--Amas-me!--bradei eu com raiva.--Mas de que modo me amas? Acima de mim,
em teu coração tão puro, estão vãs considerações do mundo, razões de
sociedade, costumeiras mesquinhas, está teu marido. Não me falles de
teus filhos. Que amor é aquelle que não conhece a virtude dos
sacrificios? que recua diante de qualquer respeito? que é limitado? que
soffre prescripções? que não é uma abnegação absoluta do individuo, de
todos os seus pensamentos, e affectos, e deveres e virtudes? Quem se
perde pelo ente que ama, e destroe a honra e segurança do seu futuro, e
chega, por amor delle, até ao crime, e se tortura a inventar maiores
provas ainda, não dá o mais radioso testemunho da paixão exclusiva,
intolerante, e soberba. Tu nunca soubeste que o amor não vive senão de
si, e nada reserva fóra de si. Renegado sublime, piza os mais santos
objectos, forte da felicidade que inventa, e que lhe justifica a
impassibilidade. Porém, tu! mulher das dedicações mesquinhas, das
virtudes pequenas, dos deveres timidos, chamas loucura a tudo isto. É
alto de mais para ti! a tua vista não alcança tanto. O que tens,
superior a ti, é a tua casa, é o teu bem-estar, é o luxo que te cerca, é
a falsa estima do mundo que tanto se dá de ti como das outras, são as
relações banaes, é um complexo de coisas miseraveis. E dizes que me
amas! Supportarias tu o abandono da sociedade? Offereci-te tudo que
tinha; dar-t'o era a minha felicidade; para ti roubaria eu os
indigentes. Ainda assim, aceitarias tu o menor incommodo como preço da
minha felicidade? Não ultrajes, pois, o amor, a paixão soberanna, que
não quer ouvir em redor do seu throno, uma voz que não seja a sua. Crês
que amas por te haveres entregado? Vai, já te disse que vi tudo. Estavas
com elle como commigo. Custou-te tanto a passar dos meus braços para os
delle como d'um vestido para outro.
Fanny, ergueu-se desesperada, e quiz partir; mas eu retive-a, atirei-a
para o fundo da alcova, e collocando-me diante da porta, com os braços
cruzados, exclamei:
--Hasde ouvir tudo!
Faltou-me a expressão. Arquejava de anciedade. As minhas palavras eram
gritos. Cerrei os punhos em postura ameaçadora; Fanny olhava-me de revéz
com inexpremivel terror. As palavras vieram, depois, impetuosas:
--Eu nunca tive crença em ti. Tanta certeza eu tinha de que me
atraiçoavas, que, por minha desgraça, quiz conspurcar o nosso amor.
Sabe-o, se nunca o supposeste; sabe que eu, teu adorador, atraiçoei-te
com as mais rasteiras mulheres.
Fanny não me acreditava. Attribuia á impotencia do furor o que eu
dissera, e fez um gesto de denegação soberba. Máo grado meu, repassado
de angustia, fallei n'um tom de voz supplicante, e branda. Toda a minha
cólera cahiu sob o pezo da piedade.
--Sabe, pois, murmurei eu com as mãos erguidas, que eu te amava ao mesmo
tempo com amor de mãe, de mulher, de creança. Quanta piedade, respeito,
e ternura que podem resumir-se em amor no coração, quantas delicias,
tocam a divinisação pela maviosidade, todas senti por ti, desde o
primeiro dia em que te vi passar com tuas graças, com a tua serena
suavidade, com a tua formosura. Sabe que te adorei piedosamente; que só
em ti pensava; que eras a minha segunda alma; que me doiam mais teus
males que os meus; que, por desvanecer-te do animo uma incerteza, teria
dado, risonho, a vida, que eu só amava por que te era aprazivel. Vê que
choro. Tudo que era teu, amei: teus filhos, tua mãe, tua casa, teus
creados; as irregularidades irritaveis do teu caracter, os teus
vestidos, e as tuas rendas. Creio até que o amava a elle, por que, em
meu espirito, a tua imagem andava associada á d'elle. Nem minha mãe amei
como a ti. Por ti, têl-a-hia abandonado, com tudo que venero. Eras o meu
eterno espirito, o meu bem mais caro, a imagem perfeita das coisas
puras.
«Perdão!» exclamou ella, recahindo de joelhos.
--E tu, Fanny, calcaste aos pés este respeito, este amor incomparavel,
este coração...
«Piedade!
--Recalcaste-me como a féra impassivel que esmagou com as garras as
primeiras flôres do campo. E agora... aqui me tens sem futuro, como um
desgraçado que não pode amar alguem, como o ancião, que viu em roda de
si, morrerem todos os seus. Tudo feneceu, tudo apodreceu em meu coração.
Estou velho! tenho cem annos! vou morrer! sou um sepulchro! Tu sabes de
mais que estou sósinho no mundo...
«Piedade! perdão!--exclamou Fanny, indo hallucinada, esbarrar nos moveis
e nas paredes.--Não me digas que és desgraçado!
--Oh! desgraçado! e não digo bem o que sou. A lingua não tem voz que o
diga.
Ingrata! Não te bastava ser senhora da minha alma, do meu coração, da
minha vida; vens ainda tirar-me o que eu mais amava no mundo... a estima
de ti... que me era mais que tu mesma!
«Piedade! piedade!»--continuava ella exclamando.
--Assassinaste-me a mocidade. Pois bem! ouxalá que nunca soffras o que
eu estou soffrendo... Adoro-te, e horrorisas-me!
Dito isto, quiz feril-a e abraçal-a ao mesmo tempo; mas cahi
desfallecido: e, por noite, quando abri os olhos, e a procurei no quarto
ás apalpadellas, não a encontrei.

LXXII
No dia seguinte, senti-me saciado de vingança. Experimentava aquella
especie de serenidade cruel, que segue as execuções supremas. Sentia-me
satisfeito, em fim, como o juiz que tem em seu poder a irrecusavel prova
do crime que puniu.
Já me não afligia o pensar n'ella. Não obstante, eu previa lucidamente
os graves desgostos da sua vida.
--Soffrerá longo tempo, e depois odiar-me-ha. Incadeada sob o jugo,
debalde tentará soffrêl-o corajosamente. A resignação desdiz do caracter
d'ella. Outro virá, mais tarde, substituir-me. Se a não amar, será
despresado. Amando-a, repetir-se-hão immediatamente, e com as mesmas
phrazes--identicas luctas, as mesmas perfidias, iguaes torturas.
Emquanto viva, Fanny perseguirá fatalmente a sua chimera. O amor ideal
que a arrasta não se dessipará mesmo nos gelos da idade; quando as rugas
sobrevierem a provar-lhe que tudo é mudavel na terra, ella continuará a
evocar o phantasma d'uma paixão que foi e será sempre o seu supplicio.
Ha-de apartar-se da sociedade, como os soldados feridos no fogo de vinte
pelejas. Como elles, afastada de tudo, saciada de tudo, tirará commoções
para uma vida nova no mysterioso poema das suas remeniscencias. Os
filhos, que adora, não a consolarão. Quem sabe se virão a
desprezal-a?... Condemnada a amar por egoismo, não se fará feliz a si,
nem a outrem. Impotente para o bem, ser-lhe-ha martyrio eterno o
procural-o. Para a felicidade propria, faltar-lhe-ha sempre um vicio;
para a felicidade alheia, faltar-lhe-ha sempre uma virtude. Tem coração
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