Fanny: estudo - 3

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não ser descoberta! E tanto que arrisca! Pobre mulher! Tanto tem que
perder! E eu tão pouco! Ah! que mau homem sou em atormental-a!
Tratava-me ella por creança, e, com franqueza, eu o merecia bem. Quantas
coisas eu sabia do seu viver que ella me occultava, com medo de
penalisar-me!
Eu não queria comprehender nunca que havia dias em que lhe era
completamente impossivel sahir, e a mais banal visita era bastante a
retêl-a em casa. Desconfiava então de abominaveis calculos. Affirmava
que ella me mentira. Cuidava que procedia a falta de excitações e
fadigas na partilha que ella devia detestar. Odiava-a.
«Fases-me piedade! dizia ella quando eu lhe deixava vêr os horrores do
meu infermo espirito.
Todavia, algumas vezes, meio esquecido de minhas magoas pessoaes, para
entrar ás profundezas da consciencia, dizia em mim: «Quando a tenho
torturado bastante, quando ella d'aqui sae chorando, attribulada,
golpeada no coração, perguntando-se se me tornará a vêr em sua vida, que
fará ella na rua para disfarçar o tormento que a aperta, e mascarar o
rosto com o gesto de habitual tranquilidade, para volver á mulher
risonha que eu conheço? Será á custa de carinhos que ella affasta as
suspeitas de um marido difficil de enganar? Ah! que lagrimas ella deve
chorar com seus filhos! São tantos os esforços dolorosos que elles lhe
custam!
E como sei bem que elles adivinham o segredo das lagrimas d'ella! E quão
certo é que, semelhantes á mãe, tão bons, tão discretos, com suas
mãosinhas lhe enchugam os prantos, sem lh'os trahirem.
Fanny soffria horrivelmente. Via-se-lhe o amarellecer da tristeza.
Eu, sem lh'o dizer, observava o circulo negro que marmoreava a
circumferencia de seus olhos elanguecidos, e lhe dava ao olhar estranha
expressão de piedade.
Via-lhe contrahidos os labios; e as rugas que subiam da fronte
perderem-se sob os cabellos sedosos como symbolos visiveis de dolorosos
pensamentos. Consternava-me este ar de desleixo que a definhava.
Diante de mim sómente ella affrouxava a rigidez do seu porte, e eu da
melhor vontade lh'o perdoava: devia estar cansadissima de representar de
senhora feliz!
Quem lhe dera a ella poder tudo confessar, e viver francamente commigo,
sem ignominia!
«Não me deixes--dizia-me ella por vezes--Tu es-me necessario como a
luz!»
E outras vezes accrescentava:
«O que me prova que eu te amo, é que eu amo tudo que é teu, o teu dôce
egoismo até, até a tua colera, mesmo as tuas sublimes injustiças!
Depois, ficava subitamente callada, como se algum funebre pensamento,
que não ousava confessar, a angustiasse sem desabafo.
Eu observava-a, e ella sacudia a cabeça. Depois, retorcendo os dedos,
exclamava:
«Trahir! trahir sempre! Eis aqui o horror que tudo me invenena, mesmo a
idea da minha felicidade. Eu sou a mais miseravel das creaturas. Deus
negou-me força, e, por toda a vida, cumprirei a sentença da minha
fraqueza. Tenho vivido sempre diversamente da vida que quizera ter;
tenho visto sempre ao pé de mim o que eu quizera fazer. Trahir! meu
Deus! como eu me detesto!
Tomava-a então nos meus braços para applacal-a; mas não achava que
responder-lhe--De que quer ella fallar?--Perguntava-me eu estupidamente.
Devia de ser do facto da perfidia; mas eu conhecia-a ainda mal, e
attribuindo-me as palavras fugidas á consciencia d'ella, sentia-me feliz
e orgulhoso.
Isto ás vezes fazia-me chorar, e tomar corajosas resoluções--Guardarei
para mim os males todos, e as consolações para ella--propunha eu comigo.
Por compaixão, pois, esquecia eu momentaneamente os meus desgostos;
sacudia o cansaço do meu pesado scismar, por me deixar levar dos
transportes ardentissimos da paixão. Refazia-me em meiguice e ternura e
sujeição, mais affectuoso que o molosso fiel que, apoz longa auzencia,
encontra o olhar do dono querido.
Vertia a fluxo nectar dulcissimo da lisonja á mulher estremecida;
tornei-me frivolo, fallador, volitando por sobre vinte assumptos a um
tempo, rindo desentoadamente, evitando sobre tudo proferir palavra que
dissesse respeito directo ao assumpto uzual dos meus tormentos.
Mas esta missão heroica, de que dei má sahida, não a enganava. Olhava-me
ella com spasmo. Escutava-me meneando a cabeça. Cuidaria ella, em
consciencia, que, extincto o ciume, seria o mesmo extinguir-se o amor?
Estes accessos de heroicidade não podiam durar em mim longo tempo.
Suspirando, como pessoa aliviada d'um peso grande, viu ella que eu
recobrava o meu aspecto triste.

XXVII
Acabei, para grande vergonha minha, por acceitar tacitamente aquella
situação. Mas, d'ahi em diante, havia entre nós alguma coisa, que não
podia já mais obliterar-se: um pensamento constante e unico, que,
mutuamente, nos atormentava os corações. Embora cerrassemos os labios
para o não deixar sahir em palavras, no intimo o sentiamos sempre como
dôr aguda que, a revezes, nos desentranhava imprecações. Um só grito
bastava então para incendiar uma explosão subita, e eu, principalmente,
esquecia os protestos de meu orgulho por dar livre curso á tristeza que
me devorava. Não queria fallar do meu rival, e fallava d'elle sempre.
Era um nome que me alanceava a memoria, e se me estorcia entre os
labios, como um aspide. Proferido apenas, mil perguntas incendiarias se
embaralhavam tumultuosamente em minha boca. Eu queria conhecel-o melhor
ainda. Queria saber tudo o que elle era, tudo que fazia, tudo que dizia.
Fanny formalisava-se então; meditava largo tempo antes de responder-me,
para não se desmentir, depois dava indicios de impaciencia e carregava o
sobr'olho.
Os homens são insaciaveis--dizia ella, com grande espanto meu--Não podes
contentar-te com ser amado? Por que te occupas incansavel no que se
passa em minha caza?
Apoz estas contendas, separavamo-nos tristes, e, passados oito dias,
esperava-a furioso, exasperado pela raiva, com a boca cheia de
sarcasmos, decidido a romper brutalmente com ella. Mas só de vêl-a, toda
a minha cholera se exhalava como fumo, ajoelhava-me aos pés d'ella, e
comprimia-a convulsivamente ao meu coração.
O que muito me espantava e irritava acremente era a docilidade com que
ella, sem murmurar, a tudo se submettia. A ausencia, os obstaculos, as
difficuldades, não podiam nada com ella. Vêr-me, não me vêr, era tudo o
mesmo. Sempre serena aquella phisionomia. Dava-se ares de victima, e não
dizia palavra.
«E se eu me matasse?» exclamei eu, um dia.
Fanny encolheu os hombros.
«E se algum incidente imprevisto nos separasse?»
--Que queres que eu te faça!...--disse ella, e em seguida entrou a
chorar.
Não podendo viver com ella, eu queria ao menos governar-lhe a vida, de
modo que as suas menores inspirações lh'as désse eu. De sobra
comprehendia ella a minha intenção, e mostrava-se; mas não me cedia
nunca em pontos de delicadeza que ella converteu em pontos de honra. E
dizia-me:
«Eu sou obrigada a soffrer a posição que me deu a sorte. Devassar-lhe os
segredos, de que monta? Affliges-te se fallo, affliges-te se me callo...
Tracta de esquecer as causas dessa tristeza, meu Roger.
Eu de mim esqueço-as sempre que venho aqui.
Outras vezes dizia meio risonha e meio motejadora:
«És muito egoista! Pelos modos eu não devo amar senão a ti!»
Impellido, porém, pela minha idea fixa, e sem admittir que ella
anteposesse a sua vontade á minha, astuciava com ella, impetrando-lhe
exclusivamente a piedade, e descia, por derradeiro, a tal degrau de
baixeza, que, irritado por ser eu só a penar, empregava toda a minha
influencia para exigir d'esta desgraçada mulher que seguisse uma norma
de proceder deametralmente opposta á que seu marido lhe traçára. Bem
sabia, eu, com isto, que a sua casa, até ahi pacifica, ia tornar-se um
inferno, e isso queria eu: Durante alguns dias, por cansaço, seguiu ella
docilmente os meus conselhos, e assim se viu intallada entre seus dois
senhores, como o ferro amollentado pelo fogo entre a incude e o malho.
Ambos nós, sem treguas, lhe flagellavamos o coração.
Espicaçada, emfim, pela tortura, e tambem por uma especie de espirito de
inteiresa, disse-me:
«Roger, tu aconselhas-me muito mal, por que me obrigas a perturbar-lhe o
repouso.»
Fiquei consternado, e cessei de empregar aquelle novo genero de
martyrio, por que era para mim cruelissima mortificação vêl-a erigir-se
em defensora de seu marido. Fanny, além disso, parecia fatigada d'essas
disputas aviltantes e penosas.--Tenho medo de infastial-a--disse-me eu
um dia.

XXVIII
Porém, nos mais violentos accessos de meu ciume, inraivecia-me vêr-lhe
no semblante aquelle seu ar pudico, que ella conservava sempre, mesmo na
mais avida vertigem do goso. Ora isto, com o correr do tempo, deu para
me irritar. Tomei a peito depraval-a, buscando abafar este amor nas
cinzas do fastio: Fanny ficava sempre a mesma! Estavam alli duas almas
diversas a exhalarem-se-lhe dos labios e dos olhares. Uma era a de
Phrynea absorvida, e séria, nutrida dos mais finos primores como das
especiarias mais corrosivas da paixão, o que, alternadamente, se
assignalava por um sorrir estranho e vago. A segunda era a de um anjo
immaculado. Ai! aquelle olhar d'ella! Aquella expressão de spasmo que
reluzia perpetuamente em seus olhos azues, tão rasgados, sob as placidas
e destacadas palpebras! Ainda agora me seguem e arrebatam! Sinto-os
sempre, fitos nos meus! Interrogam-me, e fascinam-me! Não poderei jámais
esquecer os olhos d'ella?...
Fanny, no garbo de suas attitudes, no meneio da cabeça, no andar, tinha
algumas vezes um não sei que que denunciava appetites de um sensualismo
profundo e vehemente, e mesmo alguma coisa dessa monstruosa concessão
duplicada, que tanto a meus olhos a invilecia. De subito, com uma
palavra só, transfigurava-se, e julgal-a-ieis uma outra mulher.
«Que mulher és tu, pois?» lhe disse eu, em seguida a uma discussão em
que me havia manifestado sentimentos os mais contraditorios. Levantou
ella a face, e encarou-me com os seus olhos tranquillos e lympidos;
porém, commoção interna lhe dilatava as azas nazaes e avermelhava de
leve as faces.
--Não posso viver sem amar--respondeu ella pausadamente--Não posso viver
sem ser amada. Minhas qualidades boas, e meus defeitos, são cousas
secundarias: todas as mulheres tem d'umas, e d'outros. Mas o que é
exclusivo meu, é a minha paixão.--E com leal exaltação, ajuntou:
«comprehendes-me?»

XXIX
Chegou o estio, ao cabo d'estas muitas e penosas discussões. Todos os
annos, Fanny ia passar aquella estação ao campo, nos arrabaldes de
Pariz. Um dia, veio ella afflicta annunciar-me a triste nova da partida;
eu, porém, recusei explicitamente conformar-me com a ausencia
«Escrever-nos-hemos» disse ella. Semelhante resignação exasperou-me. Não
sei que lhe respondi, esqueci-o; lembra-me só que combati aquella
resolução com energia de desesperado. Eu chorava tanto, estava tão
alvoroçado, tão infeliz, que ella houve piedade de mim. Apertando-me nos
braços, mil vezes me repetiu que consentia em adoptar os expedientes que
eu lhe indicasse.--Sê prudente! sobre tudo, não te arrisques--disse-me
ella, entre dois beijos, retirando.
Passados oito dias, encaminhei-me na direcção de Chaville. Á beira da
estrada real de Versaille é que estava a casa d'ella.
Quando ouvi dar a meia noite nos relogios longinquos, escalei o muro, e
fui ter a um pavilhão, cujo local me havia indicado Fanny. A vinte
passos, d'um ponto em que me occultavam as copas do arvoredo, vi um
vulto pardacento, immovel. Era Fanny. Corri para ella. Levou-me comsigo.
Fechei a porta. Estávamos ás escuras--Não falles--segredou-me ella, com
extraordinaria agitação--elle está desconfiado ha tres dias; anda
triste; deve ter suspeitas.
Aqui está uma variante nova na amargura da minha vida, com a qual eu não
contava.--Ouve--murmurou ella, com a voz tremula de mêdo--é preciso que
elle não desconfie; não quero que elle o saiba; não quero. Tu és homem,
a ti pertence dirigir o meu comportamento. Falla; e, se é de sacrificios
que vaes fallar-me não temas, que eu sou forte.--E sentindo-se
desfallecer, vendo-me perdido de dôr, disse-me com amargura:--Eu tinha
esquecido que tu não passas d'uma creança. Perdoa-me por haver-te
fallado como a um homem.
«Fanny,--disse-lhe eu solemnemente aconchegando-a de mim para fazel-a
sentar ao meu lado--serei talvez creança, mas tenho coragem de homem.
Surprehendido imprevistamente por esta cruel noticia, não sei que
inventar; mas, já que és forte, decide tu o que devemos fazer:
submetto-me. É preciso abandonar-te? Dize-o. Pela memoria de tua mãe, se
assim o queres, não me verás jámais, ainda que me procures por toda a
terra.
Não quero que morras--disse ella com voz soturna, erguendo-se, e batendo
no chão com o pé. Depois tomou-me a cabeça entre ambas as mãos e
abraçou-me convulsivamente sobre os labios. Mas o ruido de passos que
rangiam na areia impoz-nos silencio. Abraçados pela cintura, curvamo-nos
sobre a vidraça para vêr quem assim passeava no jardim a hora tal.
Era elle! Reconheci-o na largura dos hombros, nos cabellos arrussados
que volteavam ao vento sobre a cabeça nua. Caminhou parallelamente ao
pavilhão, pela rua larga e descoberta, alagada dos fulgores da lua que
cahiam sobre ella a prumo. Marchava lentamente, com as mãos enlaçadas no
dorso, cabisbaixo, as feições alteradas, como homem que leva de poz si
pensamento oppressivo. Passou ante nós, e imbrenhou-se no cerrado
arvoredo.
Tive de sustentar em meus braços a desgraçada mulher, por que os joelhos
não podiam sustel-a. «Socega, minha querida, disse-lhe eu--teu marido
nada suspeita. Está preoccupado; mas não se vê alli a inquietação febril
dos ciumosos. Eu sei bem o que é, de sobra me tenho observado a mim.
--Crês? exclamou ella n'um impeto de esperança que a vibrava.
«Tenho a certeza. Entretanto, separemo-nos. Passados oito dias,
tornarei. D'aqui até lá observa-o bem. Não sei o que é que o inquieta;
mas eu a quem tu hoje chamas creança, digo-te isto: teu marido não tem
ciumes.

XXX
Logo que ella partiu, fui impetuosamente no encalço do solitario
passeador. Via-o outra vez na volta d'uma rua. Passou, como primeiro,
deante de mim, sem me perceber, sempre sombrio, sempre meditativo. Curei
de surprehender alguma involuntaria palavra que me revelasse a causa da
sua concentração. Mas tinha cerrada a bôcca, e impassivel a fronte.
Subindo para casa, accelerou o passo. No patamar, parou, olhou o céo
estrellado com sombria seriedade, e alongou para elle os braços, como se
do coração lhe fugisse alguma prece ameaçadora. E eu exclamei
mentalmente: «É elle, pois, desgraçado tambem!»

XXXI
Passei os oito seguintes dias em angustia inexprimivel. Não parava em
parte alguma. Os temores, as suspeitas subiam-me ao cerebro em
borbotões, como os vapores da vinolencia. Pensava n'ella só! Dizia-me
não sei que de convicto e infallivel que eu estava ameaçado de perder
Fanny. Era como um espectro deante de mim a imagem d'uma separação
violenta. Não atinava com o modo de aliar esta especie de previdencia
com a certeza de que o marido ignorava tudo; mas esta previdencia
justificava-se tanto que eu entrei a tomal-a como aviso do céo.
Ao oitavo dia, á hora costumada, puz-me a caminho; mas, d'esta vez não
esperei a hora indicada, nem me acautelei para entrar em casa de Fanny.
Não. Caminhava deante de mim mesmo, com a violencia e direitura d'uma
balla, resolvido a procural-a mesmo no seu quarto, se a não encontrasse
no pavilhão. Timido de tudo, sem poder definir o objecto dos meus
temores, esporeava o cavallo, que se espadellava com a terra,
alternadamente contrahido e distendido como um grande arco atormentado
por mãos febris. A lua alumiava de travez a estrada silencioza que eu
levava, zebrando-a de listas de prata, e parecia voltar-se para mim
melancolicamente seguindo-me com os seus fulgidos olhares. Desfillavam a
meu lado as arvores, rapidas e negras como phantasmas vertiginosamente
marulhados n'um rodopio. Os cães, que dormiam nos pateos, atiravam-se
aos portões latindo ao estrepido das ferraduras do meu cavallo, que
estalavam na calçada. E o vento que me açoitava a cara, murmurava-me aos
ouvidos palavras irritantes. Tudo me impellia e me vaticinava algum
drama em que eu ia representar um papel. Armei-me para isso, decidido a
não succumbir sem luctar com todas as forças que a desesperação desde
muito me tinha dado. Quão exaggerado eu era na espectativa como nos
preparatorios! Este meu espirito enthusiasta não sonhava senão combates
sobrehumanos, desinteresse fero, esforços heroicos!... Ai! e que
desenlace tão vulgar me esperava!

XXXII
Transpondo o muro, fiquei surpreso de vêr Fanny assentada na margem d'um
passeio. Mais d'uma hora me tinha eu antecipado, e receava que seu
marido estivesse ainda fóra. Logo, porém, que me avistou, Fanny, veio
para mim, sem se esconder, como se fosse natural entrar eu em sua casa
pelo caminho dos malfeitores. Tomei-lhe a mão. Pareceu-me vêl-a inleada
e cuidadosa.
«Que aconteceu?--perguntei, levando-a para debaixo das arvores.
--Tinhas mais que rasão, Roger; meu marido não tem ciumes--disse
ella--Nunca se fiou tanto de mim. Não me cancei a interrogal-o. Hontem
contou-me a causa da sua preoccupação. Os seus haveres todos,
depositados em Inglaterra, estão em risco com a fallencia d'um
banqueiro. Esta manhã partiu para salvar alguns restos, se ainda for
tempo. É forçoso que a inquietação fôsse grande--ajuntou Fanny
suspirando--por que nunca foi commigo tão expansivo.
Não achei palavra com que responder a esta afflictiva noticia, com
quanto nos consolasse a ambos de tamanho pezo. Fiquei atordoado como
homem que soffreu violenta pancada na cabeça. Regorgitavam-me nos labios
os sarcasmos; mas eu represava-os.
«Nada respondes, meu amigo?--disse Fanny.
--Que heide responder?--exclamei, perdida a consciencia da minha
brutalidade.--Lamento-te se tinhas grande apego ao luxo de que vaes ser
privada; lamento-te, principalmente, por teus filhos; mas... «Mas?»
atalhou ella.
--Mas não posso lamentar-te por teres sido ameaçada de perder-me, e te
achares hoje mais livre que nunca para amar-me.
Fanny ergueu as mãos ao céo, como invocando o seu testemunho, com
expressão de piedade, e disse brandamente:
«Não fallemos mais de mim. Eu heide ser sempre um livro fechado para ti.
Passeamos, depois d'isto, debaixo das arvores vagarosamente, sem nos
darmos o braço, sem dizer palavra, durante meia hora: por fim, parou
ella deante de mim e tomou-me ambas as mãos, e disse em tom de voz
submissa:
«Roger, por que não fallas?
--Não tenho consolações que dar-te.
«Por que?
--Por que eu mesmo tenho talvez necessidade de ser consolado.
«Pois que te succedeu?
--Nada.
Continuamos a passear, ao acaso, entre o arvoredo, silenciosos, ella
curvando-se debaixo das franças, eu, erguendo-as, para ella passar.
--Agora vamos nós tomar quinhão nas amarguras d'elle--disse eu de
repente. «Assim deve ser» respondeu ella com tranquillidade.
O remate do nosso encontro foi magoado por um começo que eu não podera
prevenir. O pensamento de Fanny vagueava por outra parte. O meu, a meu
pesar, tambem. E, todavia, eu não poderia justificar-me d'um certo
prazer inquieto que me dava a idea d'um successo que podia apartal-a do
marido para sempre.
--Quem sabe--pensava eu commigo--se a sua ruina fará o que a minha dôr
não pôde fazer?

XXXIII
Depois d'este dia só em Paris nos tornamos a vêr. Era facil a Fanny
ausentar-se, agora que a ninguem devia contas de suas sahidas. Por isso
tornamos ao antigo viver. O que eu, porém, previra realisava-se com um
rigor de desesperar. Não era só o pensamento senão a vida de Fanny que
estavam n'outro logar. Cada vez o sentia mais. Nossa tranquillidade,
prazeres, expansões, jubilos dependiam absolutamente das cartas que o
marido lhe escrevia. Se faltava o correio, ficava distrahida, não me
ouvia. Se recebia de manhã carta inquietadora, ficava preoccupada e
taciturna. Quando a carta era de esperanças, irrompia ella em explusões
d'amor e d'alegria. Esta alegria, porém, molestava-me muito mais que a
tristeza, e aquelle amor, cuja explosão atava a alguma coisa que não
derivava d'elle mesmo, indignava-me. Gélido deante de sua inquietação,
mudo se ella estava triste, irritado pela sua alegria, recuzava
energicamente a receber a repercussão das novidades que tanto a
preoccupavam; e quiz-me parecer que Fanny não se incommodava ou nem dava
fé dos meus enfados. Isto desesperava-me.
Em summa, aborrecido de me vêr assim atado ao meu rival pela mulher,
que, repartindo-se equitativa por nós, dava todos os seus pensamentos
aquelle que ella julgava ter mais urgente precisão de suas sympathias;
indignado por compartir dessas penas, e esperar-lhe anciosamente as
alegrias que só podiam fertilisar as minhas; aguilhoado da tristeza, do
ciume, e da desgraça, resolvi tentar um supremo esforço para recobrar o
socêgo, arrancando-lh'a a elle. Desde muito que se me gerava no animo o
desejo de exigir de Fanny o maior sacrificio que ella podia fazer-me;
mas, retido pelo vago receio d'uma recusa dolorosa, deferi de dia para
dia o momento de sollicitar-lh'o. Azou-se a occasião. Foi ella que a
deu.

XXXIV
«Uma mulher que se aliena--disse-me ella, uma vez, sem nexo que
explicasse o improviso, e olhando-me com ar piedoso--Uma mulher, que se
aliena, não pode amar sem tornar o seu amante o mais desgraçado dos
homens. Quanto mais me examino, Roger, mais conheço que, fartes vezes,
com desgosto meu, te devo fazer soffrer muito.
Commovido por este exordio, respondi balbuciante:
--E, todavia, a nossa alliança podia ser ditosa.
«Sim--disse ella amargurada--O que ha de mais entre nós é o amor.
O castigo secreto d'esta ligação é isso. Estas relações só duram com a
condição de serem banaes; e, se o são, devem repugnar a corações nobres
e delicados; se são profundas e intimas, tornam-se o supplicio de quem
as sente.
E suspirou. Respondi assim:
--Vou mais longe que tu, Fanny.
Um amante, ainda mesmo que o seu amor seja mero capricho, deve soffrer
com uma partilha que offende os sentimentos humanos todos. O amor
proprio, por igual com o amor, tem seus ciumes, seu pudor, suas
torturas. Uma amante, qualquer que seja o seu theor d'amar, conhece
sempre a existencia do marido. O marido, por via de regra mais feliz,
não conhece a existencia do amante.
«Isso é ir longe de mais--disse ella a meia voz; depois, alçando os
hombros, poz os olhos no céo, e exclamou:--Que é o amor proprio, Deus
meu?
Folgando em fim de encontrar Fanny em tal disposição de espirito,
aventurei-me. Peguei-lhe da mão, e erguendo-me, em quanto ella me olhava
affectuosa, disse, n'um tom supplicante:
«Com tudo... se tu quizeres...»
Fanny corou logo, comprehendendo que se demaziava.
--Que queres tu dizer-me?
Não ousei responder; mas ella, por certo me adivinhou, por que me
apertou meigamente a mão, e disse suspirando:--creança!
Eu fiz com a cabeça um gesto negativo! «Deixa-me!--disse ella de
sobresalto, em tom de precipitada--Curar-te has assim? Não posso
fazer-te feliz. Caza-te!»--A dôr anniquilou-a. Repelli-lhe rudemente a
mão, e fitei-a colerico, por essas phrazes que me pareceram uma ameaça.
Mas tão quebrantada a vi, que não tive coragem de a levar ao extremo, e
murmurei por de mais:
--Bem sabes que não é possivel isso.
Replicou:
«Dei-te quanto podia haurir d'affectos em meu coração, e és tu quem me
castigas!
Estava offendida: foi preciso aquietal-a, e jurar-lhe submissão; ella,
porém, não perdoava assim, e exclamou:
«Que queres que eu faça mais?
--Se me amas, como creio, o teu dever está traçado.
Corou outra vez: é que comprehendera.
«Meu dever! meu dever! Muito indiscreto és em proferir semelhante
palavra, Roger! Ignoras tu que o meu mais restricto dever me ordena de
não deixar a caza que governo?
--Ah! Fanny!--exclamei eu--que insignificancia tu trazes para me
ferir... que confronto!...
«A caza--replicou ella baixando os olhos--é o posto d'honra confiado á
mulher! Mulher que se respeita, não a abandona nunca!
Quiz interrompêl-a, mas ella continuou, de repente applacada, e
olhando-me com ternura:
«Raciocina um pouco, meu querido filho: póde uma mulher abandonar sua
familia honorifica, sem perder a estima de si propria? Póde ella
desquitar-se publicamente de todos os seus deveres sem despenhar-se aos
olhos do mundo entre as mulheres perdidas?
--São bem tristes considerações as da sociedade quando as cotejas com a
minha vida...--respondi eu.
Ficamos em silencio, alguns minutos. Fanny proseguiu:
«Se eu seguisse os conselhos que me deixas adivinhar por que és muito
honesto para m'os dar claramente, ser-te-hia forçoso, algum dia,
fazer-me arrepender.
Eu quiz jurar; mas ella cortou-me a palavra.
«Podemos nós supprimir o passado? Não és tu zeloso mesmo do passado? Oh!
quero poupar-te!--accrescentou Fanny, levantando-se, e lançando-me um
braço em roda do pescoço, em quanto com a mão sobre o meu peito, cravava
ternamente nos meus os seus olhos azues--«Em teu logar, crê-me, eu seria
tambem ciosa... Muito resististe!... disse ella, cahindo sobre uma
cadeira, e escondendo entre as mãos a face: «Por que me não fugiste,
quando era ainda tempo!
«Já era tarde, Fanny, bem o sabes, no dia mesmo em que te vi, pela
primeira vez, passar deante de mim.
Ergueu-se outra vez, e abraçou-me com mudo transporte. Pensativo,
alheado, recebia, como insensivel, as caricias. A final, pude dizer-lhe:
--O amor, Fanny, póde consolar muitas dôres, remir muitas humilhações,
substituir muitos affectos. Diz tu: o que é a estima do mundo, os
tranquillos sentimentos da familia, comparados á absorpção d'uma
existencia por outra existencia? É acaso tão longa a vida que possamos
consentir em immolal-a a coisas tão frivolas? E, de mais, que se lucra?
Quem nol-o agradece?
«Roger! Roger!--interrompeu Fanny--que estranha moral!
E eu prosegui:
--Não estás cançada de córar, de tremer, de te esconderes? Não tens,
emfim, vergonha da vergonha? E não te repugna ao coração esperar,
esperar mais, esperar sempre, para trazer-me os beijos avidos á minha
bôca faminta? No espaço d'um anno, com grande custo, apenas teremos cem
horas de viver juntos... a felicidade, de que devemos contentar-nos, é
isto? Se ao menos essa felicidade fosse pura, estrema, absoluta! Mas tu
não pódes ouvir-me, sem que a lembrança de tuas inquietações, perigos a
que te expões, os meus proprios tormentos, te não impallideçam; e eu,
tão desgraçado! não posso uma só vez abraçar-te, sem que logo um
espectro...
«Supplico-te--bradou ella impetuosamente--se me amas, não me digas que
és desgraçado, por que me matas.
--E se tu quizesses--continuei, fitando-a internecido--se quizesses!...
Não haveria no mundo existencia para competir com a nossa. O que eu te
peço é ser eu só o encarregado de te fazer serena a vida, desvelar-me
por ti eu só, preparar, suavisar sob os teus pés a vereda do futuro; ser
só a amar-te; o que eu quero é ser para ti o meio e o fim da felicidade;
é tomar sobre mim todas as penas, e dar-te em troca todos os meus
sonhos, prazeres, e felicidades; o que eu quero é ser a um tempo teu
filho, teu amante, teu pai, reunindo sobre a tua cabeça querida as mais
dôces e solidas affeições, é concentrar em ti as lembranças do passado,
as felicidades do presente, os anhelos do porvir, de modo que venhas a
ser toda para mim, e que não haja na minha vida inspiração que não seja
tua, que não proceda de ti, que não sejas tu! Se tu quizesses... Não ha
ahi paizes onde livremente os que a sorte separou e o amor ajunta pódem
emfim saborear aquelle particular repouso que resulta da plenitude da
felicidade que é a vida? Em meus sonhos, muitas vezes me figuro que
somos voluntariamente proscriptos na immensidade d'alguma solidão, onde,
sob um céo azul sempre, á sombra d'arvores sempre veridentes, á beira
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